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DAVI DONATO
As quatro funções da escuta de Pierre Schaeffer e sua importância no projeto teórico do Traité E
DEBATES | UNIRIO, n. 16, p.32-51, jun. 2016.

B
As quatro funções da escuta de Pierre Schaeffer e sua
importância no projeto teórico do Traité A
___________________________________________
T
Davi Donato
E
PPGMUS – Escola de Comunicação e Artes / Universidade de São Paulo
S
Resumo: Pierre Schaeffer – engenheiro, músico, escritor, inventor da
música concreta – publicou em 1966 seu Traité des objets musicaux,
resultado de uma pesquisa de pelo menos 15 anos realizada por seu grupo
de pesquisas (GRM – Groupe de Recherches Musicales), onde o autor expõe 16
sua busca por uma nova musicalidade generalizável, formulando uma teoria
que viria substituir noções da teoria musical consideradas pouco apropriadas
para as práticas musicais da época. A pesquisa de Schaeffer parte de uma
investigação da escuta que tem a finalidade de formular um método de
pesquisa que utilize a escuta como meio observação. Neste artigo irei discutir
uma parte fundamental desta investigação: a teoria das quatro funções da
escuta, exposta no livro II do Traité. Tentarei demonstrar como Schaeffer,
partindo de um modelo complexo, vai isolar certos aspectos da percepção
possibilitando que se chegue ao conceito de objeto sonoro e ao método da
escuta reduzida, discutindo alguns pressupostos e implicações do modelo
schaefferiano.

Palavras-chave: Escuta. Música Concreta. Percepção. Pierre Schaeffer.


___________________________________________
Pierre Schaeffer’s theory of four functions of listening and its
importance in the theoretical
project of the Traité

Abstract: Pierre Schaeffer – engineer, musician, writer, inventor of concrete


music – published in 1966 his Traité des objets musicaux, the result of a
research that ran for at least 15 years with the cooperation of his research
group (GRM – Groupe de Recherches Musicales), in which the author present
his pursuit for a new generalized musicality, formulating a theory that aimed
to substitute notions of music theory considered inappropriate to the musical
practices of the time. Schaeffer’s research depart from an investigation on
listening with the intent to lay down a research method that uses listening as
a observation medium. In this article I’ll discuss a fundamental part of that
listening investigation: the theory of the four listening functions as exposed
on book II of the Traité. I’ll try to demonstrate how Schaeffer will, starting
with a complex model, isolate certain aspects of perception making way to
the concept of sound object and to the method of the reduced listening,
discussing some o the assumptions and the implications of the schaefferian
model.

Keywords: Listening. Concrete Music. Perception. Pierre Schaeffer.


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As quatro funções da escuta de Pierre Schaeffer e sua importância no projeto teórico do Traité
DEBATES | UNIRIO, n. 16, p.32-51, jun. 2016.

Introdução mostra uma enorme dificuldade


para a tradução a outras línguas,
Pierre Schaeffer – ao menos para as línguas em que
engenheiro, músico, escritor, não há quatro verbos
inventor da música concreta – razoavelmente equivalentes, como
publicou em 1966 seu Traité des é o caso da língua portuguesa.1 Por
objets musicaux, resultado de uma isso optei, neste artigo, por manter
pesquisa de pelo menos 15 anos os quatro termos no francês
realizada por seu grupo (GRM – original, tratando os termos como
Groupe de Recherches Musicales), conceitos, e assim evitando
onde o autor expõe sua busca por confusões.2
uma nova musicalidade A associação dos quatro
generalizável, formulando uma termos às funções não é arbitrária,
teoria que viria substituir noções Schaeffer vai ao dicionário buscar
da teoria musical consideradas os possíveis significados
pouco apropriadas para as práticas relacionadas a cada termo, e a
musicais da época. (SCHAEFFER, partir disso, flexibiliza os sentidos
1966: 17-19) A pesquisa de de cada palavra para chegar às
Schaeffer parte de uma seguintes definições:
investigação da escuta que tem a 1. Écouter, é emprestar
finalidade de formular um método o ouvido, interessar-se
de pesquisa que utilize a escuta por. Eu me dirijo
como meio observação. Neste ativamente a alguém ou
artigo irei discutir uma parte
fundamental desta investigação: a 1
Por exemplo, a solução dada por John
teoria das quatro funções da Dack em sua tradução inglesa do Guide
escuta, exposta no livro II do des Objets Sonores (CHION, 2009):
comprendre – comprehending; écouter –
Traité. Tentarei demonstrar como
listening; entendre – hearing; ouïr –
Schaeffer, partindo de um modelo perceiving, não me parece satisfatória. Não
complexo, vai isolar certos apenas por conta do termo perceiving se
aspectos da percepção aplicar a todo tipo de percepção, mas
possibilitando que se chegue ao principalmente pelo fato das palavras em
inglês não possuírem significados análogos
conceito de objeto sonoro e ao aos termos originais em francês o que, ao
método da escuta reduzida, longo texto, faz com que se perca possíveis
discutindo alguns pressupostos e significados sugeridos, quando não causa
implicações do modelo uma confusão completa.
2
Outra dificuldade de tradução vem do uso
schaefferiano.
que Schaeffer faz de conjugações de cada
um dos quatro verbos no corpo do texto,
Funções da escuta claramente escolhidos na medida em que o
aspecto da escuta tratado no momento se
Pierre Schaeffer reconhece aproxima mais de uma ou outra função.
quatro funções que compõem a Por isso, nas citações que utilizo aqui a
cada vez que aparecer algum dos quatro
atividade de escutar. A língua verbos, farei a tradução que achar
francesa possui quatro verbos que apropriada (sem me comprometer com
são, em algum grau, sinônimos uma palavra portuguesa específica para
para escutar. O autor, então, se cada função), porém colocarei sempre
aproveita disto para relacionar entre colchetes o verbo no original francês,
para possibilitar que todas as indicações de
cada um destes a uma das quatro funções da percepção apareçam
funções de que vai tratar. Isto se claramente.
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alguma coisa que me é experiências previamente adqui-


descrito ou aludido por ridos.
um som. Logo fica claro que as quatro
2. Ouïr é perceber pelo definições só podem ser entendidas
ouvido. Por oposição a em conjunto, pois além de serem
écouter que corresponde complementares funcionam
a uma atitude mais simultaneamente, sempre em
ativa, aquilo que eu ouço cooperação. Schaeffer segue
[ouïs], é aquilo que me é elaborando a definição de cada
dado pela percepção. função aos poucos. Este é um
3. De entendre, detalhe importante da maneira
reteremos o sentido como o autor escolhe apresentar
etimológico: “ter este modelo. Começando pelo
intenção”. Isto que significado retirado do dicionário
percebo [entend], isto ele vai aos poucos, através da
que me é manifesto, é reflexão sobre exemplos
função dessa intenção. específicos, aprofundando a
4. Comprendre, tomar diferenciação entre os quatro
para si, traz uma relação conceitos, para enfim chegar de
dupla com écouter e fato a quatro funções mais
entendre. Eu percebo claramente distintas (como as
[comprend] isto que eu descrevi no parágrafo anterior).
miro com minha escuta Este método de exposição reforça o
[écoute], graças àquilo entendimento de que, de uma
que eu escolhi escutar atividade contínua (a escuta), o
[entendre]. Mas, autor destaca estes quatro
reciprocamente, aquilo aspectos.
que eu já percebi Seguirei citando algumas
[compris] dirige minha das descrições das funções no
3
escuta [écoute], informa intuito de esclarecê-las.
o que percebo [entends]. Começando com ouïr: “eu não paro
(SCHAEFFER, 1966: 104) jamais de ouvir [ouïr]. Eu vivo em
um mundo que nunca deixa de
A função écouter está estar lá para mim, e este mundo é
relacionada à busca por uma causa sonoro, assim como tátil e visual.”
do som ouvido, algo material, de (SCHAEFFER, 1966: 105) Ouïr não
existência física, por isso o autor é “ser atingido por sons que
diz que se dirige a “alguém ou chegam ao meu ouvido sem
alguma coisa”. Ouïr se refere à alcançar minha consciência. É por
escuta do fundo sonoro, em sua testemunha [a da função de
oposição a um objeto discernível.
Entendre diz respeito à seleção 3
Considerando que este artigo se propõe a
intencional de aspectos da escuta, uma análise do texto de Schaeffer julguei
e, portanto funciona em articulação necessária a inclusão de citações em um
número que pode parecer excessivo, mas
com as outras funções. que, tendo em vista a inacessibilidade de
Comprendre trata da função que uma tradução do Traité para o português,
faz associações a conhecimentos e se mostra imprescindível para o
entendimento de minha análise por um
público mais abrangente.
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ouïr] que o fundo sonoro possui Entendre, portanto, quer


uma realidade.” (SCHAEFFER, dizer fazer escolhas dentro do todo
1966) Já écouter é a função que da percepção, ressaltar certos
não se interessa pelo som aspectos, daí a relação com
propriamente dito, mas sim, por intencionalidade apontada
seu intermédio, visa outra coisa anteriormente. Segue a definição
que não ele [o som]. (SCHAEFFER, de comprendre:
1966: 106)
A função entendre é Enfim, posso tratar o
definida, no Tratado, em relação às som como um signo,
outras funções, primeiramente a introduzindo-me em um
ouïr: certo domínio de valores,
Comecemos por observar e me interessar pelo seu
que me é praticamente significado. O exemplo
impossível não exercer mais característico,
seleções dentre o que claro, é aquele da
ouço [ouïs]. O fundo palavra. Trata-se,
sonoro não é anterior; portanto de uma escuta
ele não existe a não ser semântica, orientada
em um conjunto sobre signos semânticos.
organizado onde tem seu (SCHAEFFER, 1966: 115-
papel. Enquanto eu 116)
estou ocupado por aquilo Nesta próxima citação
que vejo, aquilo que entendre aparece em relação com
penso ou aquilo que écouter e já também evocando o
faço, eu vivo de fato em comprendre:
um ambiente
indiscernível, percebendo quando vejo uma casa,
muito pouco além de situo-a na paisagem.
uma qualidade global. Mas se continuo a me
Mas se permaneço interessar, examinarei
imóvel, os olhos ora a cor da pedra, sua
fechados, a mente vazia, matéria, ora a
é bem provável que eu arquitetura, ora o
não mantenha por mais detalhe de uma escultura
que um instante uma acima da porta,
escuta imparcial. Eu retornarei em seguida à
localizo os ruídos, eu os paisagem, em função da
separo, por exemplo, em casa, para constatar que
ruídos próximos ou ela tem uma “bela vista”,
distantes, vindos de fora eu irei vê-la novamente
ou de dentro do em seu conjunto, como
aposento, e, fatalmente fiz no início, mas minha
eu começo a privilegiar percepção estará
uns em relação a outros. enriquecida por minhas
(SCHAEFFER, 1966: 107) investigações
precedentes, etc. Está,
além disso, quase fora
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do meu poder vê-la com eu posso perceber


o mesmo olho que se [comprendre] a causa
fosse uma rocha ou uma exata daquilo que eu
nuvem. É uma casa, ouvi [entendu]
uma obra humana, colocando-o em relação
concebida para abrigar com outras percepções,
humanos. É em função ou por um conjunto mais
deste significado que eu ou menos complexo de
a olho e aprecio. E minha deduções. Ou ainda,
investigação, assim posso perceber
como minha apreciação, [comprendre] por
serão igualmente intermédio de minha
diferentes, na medida escuta [écoute] alguma
em que meu olho seja de coisa que tem com
um futuro proprietário, aquilo que percebo
de um arqueólogo, de [entends] não mais que
um andarilho ou de um uma relação indireta: eu
esquimó conhecedor de constato de uma só vez
iglus. (SCHAEFFER, que os pássaros se
1966: 108-109) escondem, que o céu
está baixo, que o calor
A função comprendre abre está opressivo, e
espaço para a multiplicidade de percebo [comprendre]
sujeitos ouvintes e implica no que vai cair uma
entendimento da escuta como uma tempestade.
atividade construída, quer dizer, [SCHAEFFER, Pierre.
em constante transformação pela Traité des objects
experiência própria. Como a função musicaux: essai
comprendre influencia as outras interdisciplines. Paris:
funções (como vimos na citação Éditions du Seuil, 1966,
acima), esta qualidade de p. 17-19]. (SCHAEFFER,
construção constante obviamente 1966: 110)
não atinge apenas as relações A identificação da fonte
semânticas, mas sim toda a sonora através da associação com
escuta. É também a função a visão também pode ser
comprendre que possibilita a entendida como uma dedução via a
relação com outros sentidos – pois função comprendre.
fica claro que além destas quatro É interessante notar como
escutas existem de forma análoga quando Schaeffer passa para
quatro visões, quatro olfatos, etc. exemplos concretos, aparece mais
(SCHAEFFER, 1966: 113) –, claramente o quanto as funções
comprendre, por se referir a cooperam, parecendo impossível
conjuntos de significados, descrever qualquer caso concreto
transcende o domínio de um através de uma só função. A seguir
sentido particular, pois o me permito uma citação
conhecimento não é específico de relativamente longa, mas que vale
sentido algum: pelo interesse do caso descrito

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para se pensar estas relações entre conhecimento. Agora, eu


funções: recuo em relação a ela
Eu escuto [écoute] um [a percepção], eu paro
carro, eu o localizo, de fazer uso dela, eu
estimo sua distância, estou desinteressado.
eventualmente Ela pode então aparecer
reconheço a marca. Que para mim, tornar-se
digo eu do ruído que me objeto. Escutar [Écouter]
forneceu este conjunto aqui ainda é mirar,
de informações? A através do som
descrição que eu faria instantâneo
dele, se me fosse propriamente, uma outra
requisitada, seria tanto coisa que não ele: um
mais pobre quanto mais tipo de “natureza
indubitável e sonora” que se entrega
rapidamente ele [o diante do todo de minha
ruído] me haverá percepção. (SCHAEFFER,
informado. 1966: 106-107)
Por outro lado, é A função ouïr está sempre
precisamente ao ruído do presente por razões óbvias. Mesmo
carro que eu empresto o que se esteja prestando atenção a
ouvido se o carro é meu algo o fundo sonoro está sempre
e se me parece que o lá, sendo também ouvido e
motor faz um “barulho permitindo que se escute algo de
estranho”. Mas minha específico selecionado por entendre
escuta continua utilitária, como numa relação figura e fundo.
pois procuro inferir A busca pela fonte [écouter] não
informações sobre o fica suspensa quando há intenção
funcionamento do de destacar algo [entendre] ou
motor: na incerteza em associação a um conjunto
que estou em relação às semântico [comprendre] e pode
causas, sou forçado a inclusive ser informada por ou
passar primeiro por uma informar alguma destas duas. Da
análise dos efeitos. mesma forma se interessar por
Enfim, posso escutar algum aspecto específico não exclui
[écouter], como havia busca da causa, e a semantização
prometido inicialmente, depende deste algo a que o
sem outro objetivo além ouvinte se interessa ou da fonte
de melhor perceber causal para se realizar. Nestas
[entendre]. Esta análise, situações reais fica claro o quanto
que neste momento se todas as quatro funções estão
impõe como uma etapa, sempre envolvidas no processo de
torna-se ela mesma seu escuta. Apenas em um momento
objetivo. Voltado para o de abstração, por exemplo,
acontecimento, eu me expondo um ponto teórico, é
seguro a minha possível separar as quatro.
percepção, eu a utilizo A teoria das quatro escutas
sem tomar como exposta por Schaeffer não
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faz sentido algum a não ser que se está visível –, muitas vezes
valorize sempre esta mistura. aparece intimamente ligada à
Numa situação em que não se vê o associação com conhecimentos
que está causando o som, a busca prévios [comprendre] de tal
pela causa necessariamente passa maneira que fica difícil dizer onde
por prestar atenção a certos acaba uma função e começa a
aspectos do som tornando-o um outra. A diferença principal entre
objeto [entendre] e também pela as duas segundo Schaeffer é que
associação a um conjunto de écouter se refere a algo material
significados previamente que posso tocar, ou ver, enquanto
adquiridos [comprendre] para comprendre se refere a
então se chegar ao que causou significações abstratas, códigos
este som. O exemplo dado por linguísticos por exemplo.
Schaeffer na citação acima, do Vejo esta mesma
motor de carro fazendo um barulho combinação de funções quando,
diferente demonstra essa situação por exemplo, ouço uma gravação
perfeitamente: o som do carro que, de música clássica e reconheço
para ele, em princípio estaria no qual instrumento da orquestra está
plano de fundo, ao apresentar tocando qual parte, ou ainda ouço
alteração chama sua atenção – uma gravação de música popular e
processo este que se dá através da reconheço o uso de reverb na voz
função que Schaeffer chama de da cantora. Em ambos os casos, se
entendre. O ouvinte vai então os penso nos termos do modelo,
comparar os detalhes deste objeto- tenho as mesmas três funções –
som que está ouvindo com o seu écouter, entendre, comprendre –
conhecimento prévio de motor novamente em conjunto, e claro
[comprendre]. Chamo a atenção que, enquanto isso, a função de
aqui para o fato de que a alteração ouïr não foi “desligada”, apenas
no som para ser percebida já havia seu objeto não foi contemplado
necessitado do recurso ao nesta análise parcial, mas está
comprendre, pois só se sabe que o presente enquanto escuta de um
som está diferente tendo o fundo que possibilita a percepção
conhecimento de como ele deveria de uma figura.4
ser. Assim como o entendre teria Para evitar mal entendidos,
que estar já presente para Schaeffer deixa claro em diversos
qualificar o som e notar a momentos que descrições deste
mudança, ficando clara, portanto tipo, da percepção através das
que a cooperação das funções. quatro funções. não implicam
Neste exemplo fica evidente numa sucessão cronológica de
também o quanto comprendre e percepções, tudo se dá ao mesmo
écouter, no limite, até se tempo. O entendimento das quatro
confundem, pois esta associação escutas como modos
da alteração no som com algo independentes levaria a este outro
previamente conhecido será a equivoco: de que haveria uma
própria descoberta da causa do sucessão de escutas no tempo.
som. A busca da causa [écouter],
especialmente na situação 4
A proximidade com a Gestalt é
acusmática – quando a causa não explicitada por Schaeffer no livro IV do
Traité.
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Pensar desta maneira nos levaria a abstrai experiências reais sem


crer, por exemplo, que a alteração nunca poder substituí-las ou
no som do motor “chama” a função propriamente explicá-las (ao
entendre para tomar lugar da ouïr, menos não no sentido em que se
quando isto não seria possível, pois explica um mecanismo fisiológico).
como disse acima, a alteração só é Sendo a sua função somente
percebida através das funções facilitar a reflexão sobre o processo
entendre e comprendre, senão de escuta de uma maneira
nem seria identificada como sistematizada. O que acaba
alteração. As quatro escutas estão tornando seu uso desinteressante e
sempre ali, mesmo que engessado é quando o texto é lido
aparentemente em estado latente. de forma que se negue a fluidez do
Até porque as quatro de fato são modelo, assim como a abertura e
uma só. multiplicidade que estão bastante
No espírito de uma explícitas na descrição da função
descrição bastante comprendre (e que, me parece,
empírica daquilo que se são de fato os aspectos mais
passa quando se escuta interessantes desta proposta) 5 . O
vamos propor um tipo de uso deste modelo para análise
quadro de formas musical, por exemplo, seria uma
diversas da atividade do armadilha – ao menos aos que
ouvido. Do mais ao pretendem uma análise de tipo
menos elaborado, de generalizável. Pois o que o modelo
fato, ouïr, entendre e mostra com mais clareza é
comprendre nos exatamente a impossibilidade de se
sugerem um itinerário supor uma escuta geral.
perceptivo progredindo
de etapa em etapa. Não
é nossa intenção aqui Enquadrando as funções da
decompor a escuta em escuta
uma sequência
cronológica de eventos Em um esforço de
decorrentes uns dos sistematização de seu modelo,
outros como os efeitos Schaeffer propõe um quadro em
decorrem das causas, que cada setor representa uma das
mas, com um propósito quatro funções:
metodológico, descrever
os objetivos que
correspondem a funções
específicas da escuta.
(SCHAEFFER, 1966: 113)
Portanto, a teoria das quatro
escutas de Schaeffer me parece
uma interessante maneira de se
pensar estes fenômenos, tomando-
se o cuidado de não perder de
vista suas limitações próprias de 5
Exemplos de leituras que, em minha
uma construção discursiva que opinião adotam este viés podem ser vistas
em: KANE, 2007; THORESEN, 2012.
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Quadro 1: Funções da escuta Apesar das ressalvas,


(SCHAEFFER, 1966: 116) representar o modelo como um
quadro talvez não seja a melhor
4. Comprendre 1. Écouter
opção, pois a separação em
– para mim: – para mim:
signos índices quadrantes parece subjugar todo o
– diante de – diante de discurso favorável à mistura das
mim: valores mim: evento funções que vinha sendo
(sentido- exterior construído pelo autor. Não por
linguagem) (agente-
Emergência de instrumento)
acaso é comum encontrar textos
um conteúdo Emissão do que, ao fazerem referência ao
do som e som modelo, apresentam-no de
referência, maneira bem mais rígida e inerte,
confrontação a
1 e 4: deixando de lado a fluidez, a
noções extra-
objetivo pluralidade e o caráter de
sonoras.
3. Entendre 2. Ouïr constante transformação que neste
– para mim: – para mim: trabalho estou tentando valorizar6.
percepções percepções No entanto, variações deste quadro
qualificadas brutas,
– diante de esboços do
2 e 3: seguem sendo utilizadas ao longo
subjetivo do resto do Traité, além da própria
mim: objeto objeto
sonoro – diante de capa do livro ser uma espécie de
qualificado mim: objeto interpretação deste quadro em
Seleção de sonoro bruto imagens (SCHAEFFER, 1966: 116,
certos aspectos Recepção do
particulares do som. 155), o que certamente indica uma
som. importância central para o projeto.
Dito isto, fica evidente, em suas
1 e 2:
3 e 4: abstrato diversas aparições ao longo da
concreto
Traité, que o quadro ajuda
Cada um dos quadrantes Schaeffer a sistematizar suas
apresenta três descrições, uma ideias sobre a escuta e apresenta-
tratando do que o som é para o las em forma de texto (veremos a
ouvinte (“para mim”) em cada seguir que o autor passa a se
caso, outra do objeto percebido referir aos quatro quadrantes com
(“diante de mim”), e por fim uma grande frequência). Sendo assim,
descrição da função. talvez o quadro seja uma saída
Após apresentar o quadro aceitável, se lido com o devido
Schaeffer insiste em pontos já cuidado.
salientados aqui, afirmando que da
divisão e numeração não deve ser A repetição de experiências
inferida a existência de uma conjuntas como caminho para a
cronologia, ou que este seja um objetividade
esquema ao qual a percepção iria Schaeffer acredita que:
se conformar. Diz ainda que passar [a percepção procede]
de um setor a outro quando se por sucessivos esboços,
busca uma descrição lógica é sem jamais esgotar o
apenas um artifício de exposição,
não implicando em sucessão 6
Para exemplos ver os já mencionados na
temporal no ato da percepção. nota anterior: KANE, 2007; THORESEN,
(SCHAEFFER, 1966: 117) 2012.
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objeto, na multiplicidade objeto, subsiste sob a


de nossos conhecimentos forma de um halo, pode-
e de nossas experiências se dizer, de percepções
anteriores (em função da nas quais as
qual o objeto se qualificações explícitas
apresenta de uma vez são implicitamente
com diferentes sentidos referência. (SCHAEFFER,
ou significações), e na 1966: 115)
variedade de nossas Este objeto que existe sob
intenções de escuta, forma de halo é o “objeto sonoro
daquilo para o qual nos bruto”, que se oferece a função
voltamos. (SCHAEFFER, ouïr como fonte de percepções
1966: 109) possíveis.
Quando a experiência é Neste contexto, de uma
repetida – por exemplo, ouvindo percepção que é sempre parcial em
um gravador ou um sulco fechado comparação com o objeto possível,
de um toca-discos – esta e variada dentre os diversos
percepção em “sucessivos esboços” ouvintes, a única possibilidade de
vai acrescentando aspectos ao acordo, ou seja, de uma
objeto percebido, aproximando-o objetividade intersubjetiva, é
de um objeto mais completo, que através da repetição de
contém em virtualidade todas as experiências dirigidas feitas em
percepções possíveis. No entanto conjunto:
quando há diversos ouvintes escutas coletivas de
reunidos em torno de uma fonte objetos novos
que reproduz um som: provavelmente
[eles] não percebem manifestarão, de saída,
[entendent] todos a divergências importantes
mesma coisa, não entre os diversos
selecionam nem ouvintes. É apenas com
apreciam o mesmo, e na a sequência de um
medida em que suas grande número de
escutas tomam partido escutas reiteradas,
por um ou outro aspecto permitindo uma
particular do som, ela exploração dirigida da
leva a uma ou outra experiência perceptiva a
qualificação do objeto. cada nível, ao mesmo
Tais qualificações tempo coletiva e
variam, assim como a individualmente, que os
função entendre, em ouvintes poderão
função de cada compartilhar resultados.
experiência anterior e de Assim, sucederá a um
cada curiosidade. tipo de exposição que
Portanto, o objeto esgotará, no limite, as
sonoro único, que torna virtualidades do setor 2
possível esta (objeto sonoro bruto):
multiplicidade de uma certa objetividade,
aspectos qualificados do ou ao menos um certo
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número de acordos (1). (SCHAEFFER, 1966:


intersubjetivos vai então 119)
emergir do confronto de
observações. Portanto, Schaeffer consi-
(SCHAEFFER, 1966: 118) dera objetivo aquilo que em
experiências demonstra
Objetivo-subjetivo; concreto- concordância entre indivíduos, e
abstrato subjetivo o que apresenta
variações. Pergunto-me se este
De acordo com tipo de experiência seria realmente
características do objeto de cada possível. Por exemplo, como as
função da escuta, Schaeffer as funções seriam isoladas já que
classifica em subjetivo ou objetivo estão sempre em constante
e concreto ou abstrato. São cooperação? Schaeffer descreve
considerados subjetivos ouïr e em detalhe outras de suas
entendre, pois “cada um percebe experiências envolvidas na
[entend] o que pode”, e “a pesquisa para o Traité, enquanto
possibilidade de perceber [entend] desta, não há nenhum tipo de
alguma coisa pré-existe no setor 2 detalhamento.
[ouïr]”. E classifica como objetivos Acredito que Schaeffer, na
– vale lembrar mais uma vez que realidade, fundamenta sua
para Schaeffer objetivo é sempre o classificação na crença de que
mesmo que intersubjetivo – signos e referências causais são
écouter e comprendre, pois, razoavelmente compartilhados
“existem signos (sonoros, dentro de uma determinada
musicais) de referência (setor 4) e sociedade, e, portanto poderiam
técnicas de emissão de som (setor ser considerados intersubjetivos.
1) próprios a uma civilização Por outro lado, a função entendre,
determinada, e então como envolve seleção e
objetivamente presentes em um apreciação, e ouïr que me parece
contexto sociológico e cultural”. ser definida pelo que sobra da
Ainda segundo o autor: entendre (afinal se o setor ouïr é
na experimentação onde se encontram as
científica encontra-se, possibilidades para entendre,
correspondente aos posso concluir que o que lhe resta
setores 2 e 3, é o que a função entendre não
observações que seleciona ou aprecia), parecem
dependerão ambas se adequar mais à
estreitamente dos classificação de subjetivas.
observadores, opondo-se Já o outro par de conceitos
ao conjunto de se alinha da seguinte forma: tanto
conhecimentos cujas a “escuta qualificada ao nível
observações são subjetivo” [entendre] quanto
transmitidas (4) a fim de “valores e conhecimentos que
conduzir a uma emergem ao nível coletivo”
explicação ou a uma [comprendre], consistem em reter
determinação do evento do objeto apenas qualidades, que
permitem que o coloque em
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relação com outros objetos, ou de que, quando entra em contato com


referi-lo a sistemas de significados, o outro, torna possível a
por isso se voltam ao domínio do emergência de uma
abstrato. Nos setores 2 e 3 que intersubjetividade. Sendo assim,
tratam de como as duas poderiam ser
todas as virtualidades de opostas?
percepção contidas no A oposição entre concreto e
objeto sonoro [ouïr], ou abstrato também me parece
de todos os referentes problemática. A função principal do
causais contidos no conceito ouïr na teoria de Schaeffer
evento [écouter], a me parece ser assegurar a
escuta se volta para o existência de um todo concreto
concreto dado, como tal, irredutível a índices, signos e
inesgotável, assim como quaisquer qualificações abstraíveis
particular [...] Em toda a (via entendre). Denota uma crença
escuta se manifesta a essencialista. Este todo concreto,
confrontação, de um pela maneira como o entendo, não
lado, entre um sujeito está no mundo que a física
receptivo dentro de descreve, mas sim no mundo
certos limites e uma percebido – o que é bastante óbvio
realidade objetiva; de já que é ouvido por nós. Portanto
outro, valorizações neste caso, concreto se refere à
abstratas, qualificações fonte de possibilidades de
lógicas que se destacam abstração.
do concreto dado que É o que permanece
tende a se organizar em idêntico através do
torno delas sem, “fluxo de impressões”
portanto jamais se diversas e sucessivas
deixar reduzir. que tenho, na medida
(SCHAEFFER, 1966: 119) em que minhas diversas
A expressão “realidade intenções lhe
objetiva” na citação acima concernem. A segunda
obviamente se refere mais uma característica principal
vez à intersubjetividade. No do objeto percebido é de
entanto a oposição proposta desta se mostrar através de
com o sujeito é questionável. A esboços: no objeto
virada que o pensamento sonoro que escuto, há
fenomenológico – linha de sempre mais a perceber
pensamento com a qual Schaeffer [entendre]; é uma fonte
flerta em diversos pontos do de potencialidades
Traité, ainda que o flerte não se jamais esgotada.
torne de modo algum uma filiação (SCHAEFFER, 1966: 115)
ortodoxa – traz com a Já em relação às referências
compreensão de que a objetividade causais, a associação ao termo
seria na realidade intersubjetiva concreto não me parece tão clara.
tem como decorrência mais Segue a descrição de Schaeffer:
importante justamente a quebra
desta dicotomia. É a subjetividade
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Eu trato o som como um deixa claro que a noção de causa


índice, que me relata envolve várias outras coisas
alguma coisa. É sem associadas à emissão do som
dúvida o caso mais (pensando num exemplo musical:
frequente, pois não só qual o instrumento ou quem
corresponde a nossa o toca, mas também detalhes
atitude mais espontânea, sobre a técnica, tipos de
ao papel mais primitivo articulação, etc.). Na citação acima
da percepção: informar o autor fala de uma “finalidade
um perigo, guiar uma fundamentalmente similar”,
ação. Em geral a mesmo que envolva “conhe-
identificação do evento cimentos altamente elaborados”,
sonoro ao seu contexto mas me parece que há uma grande
causal é instantânea. área cinzenta entre écouter e
Mas pode acontecer comprendre.
também dos índices Talvez seja um problema do
estarem dúbios, de discurso verbal, pois tratando de
maneira que não se um som vibrato, por exemplo, ao
produz a não ser após ser descrito como tal, a qualidade
diversas comparações e de vibrato deixa de ser concreta
deduções. A curiosidade (experimentada de fato) e passa a
científica, mesmo que ser abstrata (ideia imaginada). O
pondo em jogo concreto na verdade não é
conhecimentos descritível enquanto tal, por isso ao
altamente elaborados, elaborar um discurso torna-se
possui uma finalidade difícil separar um do outro. A
fundamentalmente concretude só existe na
similar àquela da experiência. Porém, acredito que a
percepção espontânea identificação do vibrato na escuta
do evento. (SCHAEFFER, também passa por uma relação
1966: 114-115) com conhecimentos previamente
A função écouter, em adquiridos, por isso acredito haver
princípio, refere-se a um objeto uma impossibilidade de separação
tangível, mas será que isto apenas total entre as funções mesmo que
o caracteriza como concreto que conceitualmente.
“jamais se deixa reduzir”? Isto me Já na outra ponta, a relação
leva a uma questão mais ampla, com o termo “abstração” é mais
que é a definição do objeto clara para a função entendre, que,
associado à função écouter. Seria a ao fazer seleções, ressalta certos
causa do som um objeto material aspectos em detrimento de outros,
(um instrumento ou um aproximando-se mais claramente
instrumentista) ou uma ação (tocar da noção de abstrair algo de um
o instrumento)? Se a resposta todo previamente existente. Em
fosse que a causa é apenas o relação ao objeto da função
objeto material, entenderia a comprendre, entendo a
associação ao “concreto” entendido classificação como abstrato
como uma indicação da pensando em referência a um todo
materialidade, porém Schaeffer concreto (objeto do ouïr), onde a
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significação percebida é apenas objeto correto o som externo,


uma das possibilidades. Presumo fenômeno físico, o que não faria
que, como ouïr comporta todas as sentido já que ouïr é uma função
possibilidades de entendre, e a da percepção. Parece-me haver
função comprendre depende de alguma confusão insolúvel neste
entendre para relacionar per- ponto, os eixos abstrato-concreto e
cepções qualificadas a conjuntos de subjetivo-objetivo, quando apli-
significados, o objeto da função cados ao quadro parecem não
ouïr comporta também todas as colaborar na compreensão das
possibilidades da função funções.
comprendre em estado latente. O modelo de Schaeffer me
Porém, a causa (objeto da écouter) interessa na medida em que
não seria também uma abstração evidencia a multiplicidade de
neste sentido? A percepção da aspectos da percepção, assim
causa não se dá também através como as transformações trazidas
de seleções de aspectos que a por experiências vivenciadas.
identifiquem, mesmo que estes Portanto apontar diferentes
aspectos sejam apenas a funções é importante por trazer
localização percebida do som no esta sugestão de variedade, mas a
espaço aliada à visão? E a sistematização rígida demais
localização não faz parte das destes aspectos me parece
possibilidades presentes em ouïr? limitador e inclusive inaplicável a
Sendo assim, por que écouter está qualquer situação real. Por mais
no lado concreto e não no que em alguns momentos
abstrato? Como dito no parágrafo Schaeffer pareça se incline a esta
acima, é possível que Schaeffer rigidez, ao fazer um quadro a
esteja neste ponto se apegando à cruzar eixos entre as funções, em
existência material dos outros aponta de maneira bastante
instrumentos e agentes que clara para uma fluidez do modelo.
causam sons. Porém, pergunto-me E é este último Schaeffer que me
se não há uma oposição dentro- interessa valorizar.
fora – ou sujeito-objeto –
transparecendo no pensamento de Tendências características da
Schaeffer – já que me parece que escuta (natural-cultural; banal-
a única diferença entre os objetos especializada)
de comprendre e écouter é que o
primeiro seria coisa mental, Schaeffer descreve quatro
intangível, não localizável no tendências características da
espaço cartesiano enquanto o escuta (também chamadas de
segundo posso ver, apontar, tocar, atitudes de escuta), que se opõem
etc. Neste caso, ou há uma em dois pares, onde cada uma faz
mudança no significado do termo uso mais acentuado de uma das
“concreto”, em relação ao quatro funções.
“concreto” da função ouïr, no A atitude natural se volta
momento em que este serve para para informações sobre o evento: é
classificar a função écouter, ou a atitude mais primitiva “comum
meu entendimento do objeto do não somente a todos os homens
ouïr estava equivocado, sendo o [...] mas também aos animais”.

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Esta tendência tem sua finalidade um índio do Faroeste. O


localizada no setor 1 (écouter), mesmo galope de cavalo
sendo particularmente sensível no será percebido [entendu]
setor 2 (ouïr), portanto relacionada por eles de maneiras
aos quadrantes “concretos”. Em bastante diferentes.
oposição a ela, a atitude cultural Então, o físico receberá
dá prioridade ao setor 4 uma ideia da constituição
(comprendre), apoia-se em do sinal físico (faixa de
convenções que podem ser frequência,
explícitas como a linguagem, ou enfraquecimento devido
implícitas como o à transmissão, etc.); o
“condicionamento aos sons músico chega espon-
musicais”. Utiliza também o setor 3 taneamente aos grupos
(entendre) que faz seleções de rítmicos; o Pele-Verme-
elementos significativos dentre o lha vai assinalar o perigo
todo. Esta tendência Schaeffer de uma aproximação
chama de cultural por evidenciar hostil, mais, ou menos,
diferenças entre sociedades, e está numerosa ou distante.
mais ligada aos quadrantes (SCHAEFFER, 1966: 122)
“abstratos” do quadro. Este exemplo, bastante
(SCHAEFFER, 1966: 120-121) caricato, deve ser encarado como
O outro par é o formado tal: um exagero para demonstrar
pelas escutas banal e especializada um ponto teórico. E não como a
(também chamada de profissional) descrição de uma possível situação
cuja função é: real. Por exemplo, o fato de um
marcar a diferença de indivíduo ser físico não define por
competência na escuta, si só sua escuta. Schaeffer em
de qualidade da atenção, outros pontos se coloca
e também a confusão de explicitamente contra este tipo de
intenções da escuta relação determinista, portanto me
banal, enquanto a escuta parece razoável supor que não era
especializada escolhe esta a intenção. A função deste
deliberadamente, dentre trecho no texto me parece ser
a massa de coisas a ilustrar a pluralidade e o caráter de
escutar [écouter], construção da escuta, que são as
aquelas que irá perceber principais características da escuta
[entendre] e elucidar. especializada.
(SCHAEFFER, 1966: 121) Enquanto, segundo
Enquanto a escuta Schaeffer, a escuta banal se
especializada seleciona bem o que concentra no setor 2 (ouïr),
quer ouvir, a escuta banal teria podendo eventualmente ir ao setor
como vantagem um caráter de 1 (écouter), porém apenas
universalidade e de intuição global, superficialmente, a escuta
que se perdem na atitude oposta. especializada se concentra no setor
A tendência especializada é 3 (entendre) indo também ao 4
descrita com um exemplo: (comprendre). A função
Tomemos um físico da comprendre seria encarregada do
acústica, um músico e... conhecimento dos significados,
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mas é na entendre que a Schaeffer, que é a suposição de


habilidade de reconhecê-los se especialidades compartilhadas
desenvolve. bastante determinadas, como se,
Schaeffer tenta fazer uma por exemplo, todo o músico
relação com o par de conceitos ouvisse música da mesma forma,
objetivo-subjetivo, de maneira quando basta pensar na variedade
análoga com que fez com as da música de concerto do Séc. XX,
escutas natural e cultural e o par por exemplo, para ter um forte
concreto-abstrato, porém encontra indício de que isto não
dificuldades: necessariamente é verdade. Este
é necessário desafiar os problema me parece levar à falsa
termos objetividade e conclusão de que a objetividade na
subjetividade, se se definição e detalhamento do objeto
pretende aplicar o é mais importante que a
primeiro à escuta multiplicidade de especialidades
especializada e o que me parece inerente à escuta:
segundo a banal. Pois cada escuta espe-
pode-se perfeitamente cializada não resulta
sustentar o contrário: apenas de um Meca-
que a escuta banal nismo de adestramento,
permanece mais aberta mas de uma propriedade
ao objetivo (ainda que o da escuta propriamente
sujeito seja pouco dita. Em resumo,
competente), já que a afirmamos que só se
escuta especializada é percebe [entend] aquilo
marcada profundamente que se tem a intenção de
pela intenção do sujeito perceber [entendre],
(ainda que sua atividade cada especialista mira
seja voltada a objetos um objeto diferente.
precisos) (SCHAEFFER, Compreende-se então
1966: 122) neste sentido que nós
Nesta citação fica bastante não insistamos sobre a
claro como é confusa a utilização subjetividade dos su-
dos termos objetivo e subjetivo por jeitos (evidente pelo
Schaeffer quando, aparentemente, treinamento necessário a
“objetivo” deixa de se referir à uma prática eficaz), mas
intersubjetividade, como vinha sobre a objetividade dos
sendo até então, e passa a objetos detalhados pelas
significar voltar-se a “objetos competências
precisos”, enquanto subjetivo particulares.
passa a ter o sentido de não ter (SCHAEFFER, 1966: 140)
capacidade para mirar tais objetos. A escuta especializada se
São duas oposições bastante define em relação à banal.
distintas, confundidas numa Portanto, mesmo em se tratando
mesma terminologia. de uma especialização específica, o
Esta questão da definição grau em que esta ocorre não é
precisa de um objeto ainda gera fixo, existem níveis de
outro problema no pensamento de especialização diferentes, então
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toda a escuta especializada é escuta, compreende-se


também escuta banal em relação a que será ao menos
um nível de especialização mais problemático buscar
alto que o dela: definir a natureza geral
O especialista se isola do musical em função de
em relação ao mundo de afirmações de uma
significações banais prática musical
originando-se no setor 3; determinada: nós
mas fazendo isso, ele devemos, sobretudo,
institui um novo mundo evitar toda limitação a
de significações, as quais músicas já estabelecidas,
por sua vez, colocadas interrogar o ouvinte
em confronto com um sobre a generalidade de
novo setor 3 de sutilezas sua abordagem
de percepção – finezas seletivamente musical
estas que o hábito dos sons, qualquer que
consagra imediatamente seja o nível em que ele
a banalidade – que se encontre.
constituem talvez o (SCHAEFFER, 1966: 125-
germe do 126)
desenvolvimento de
outras práticas auditivas A importância da função
ulteriores. Assim, a entendre na teoria de Schaeffer
oferta de qualificações é
ilimitada. Dito de outro A função entendre é
modo, toda escuta claramente a mais importante para
especializada sugere Schaeffer, não à toa é o termo
atenções especiais que a escolhido para o título do livro II,
tornarão banal. onde as funções são definidas.
(SCHAEFFER, 1966: 125) Entendre representa as diferentes
intenções que vão não apenas
Esta relativização da construir as especializações, mas
especialização corrobora um também definir a própria escolha
entendimento de uma do objeto:
multiplicidade mesmo dentro de Em um fragmento
uma especialidade comum e bem orquestral eu posso visar
delimitada. Para Schaeffer, no o reconhecimento do
entanto, isto se torna um instrumento, ou ainda
problema, pois, esta variância de desejar distinguir o
escutas impossibilita que sua busca tema, solfejar as notas,
por uma musicalidade geral se ou enfim apreciar o
fundamente em práticas já vibrato do violinista solo.
definidas: A cada escuta minhas
se a atividade auditiva percepções diferem, de
do especialista é assim saída, pela escolha do
chamada a passar ela objeto de escuta. Não
própria por uma preciso dizer que minhas
perpétua renovação da outras atividades

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concorrem com ela. Uma que venho apontando neste


vez escolhido o objeto capítulo.
privilegiado (eu escuto Há, portanto, uma mudança
[écouter]), eu dou significativa na correlação entre
ouvidos (ouço [ouïs]), objetos e funções, que vai ser
aprecio isto que eu central para o próximo passo da
percebo [entend], e me pesquisa de Schaeffer. Passamos a
refiro àquilo que já sei ter objetos relativos à emissão do
[comprends]. Mas tudo som (e.g. qual é o instrumento que
isto vale para o fagote e emite som, quem é que o toca,
para o acorde, para o qual seu nível de habilidade, etc.;
motor e para o ruído. previamente ligados à função
(SCHAEFFER, 1966: 148) écouter), objetos relativos a
Os quatro objetos listados “efeitos” do som (e.g. afinação das
no fim desta citação: fagote, notas, aspectos da linguagem
acorde, motor e ruído, haviam sido musical, etc.; até então associados
pouco antes associados a cada à função comprendre), o fundo
uma das quatro funções, sonoro que é cada vez mais
respectivamente: entendre, entendido no Traité como um
comprendre, écouter e ouïr. Não é reservatório de possibilidades para
claro, ao menos para mim, porque a escuta (ligado à função ouïr) e
o fagote está associado ao por fim o objeto que Schaeffer
entendre, mas deixarei isto de chama até então de o “som em si
lado, pois o ponto exposto é mais mesmo” (associado à entendre), e
importante. O que Schaeffer vai em seguida definir com o nome
argumenta é que cada uma das de “objeto sonoro”.
quatro funções podem ser Eu posso [...] me
aplicadas a cada um destes interrogar sobre o som
objetos. De início parece confuso, propriamente dito, de
pois o autor havia anteriormente um só golpe destacado
associado cada função a um objeto dos dois polos da
de natureza diferente emissão musicista e do
(qualificações, significados, fontes valor musical: um som
sonoras, fundo sonoro). Porém fica desconhecido atinge meu
mais claro entendendo a proposta ouvido, e sua estranheza
como uma relativização das quatro me faz percebê-lo
funções, similar à relativização [entendre] para além de
feita com os pares de “tendências todo o índice
da escuta” – banal-especialista, concernente ao emissor
natural-cultural –, onde se e de todo valor de
reconhece que cada um destes referência. Notemos,
tipos de objeto associados a cada contudo que, enquanto
uma das funções na realidade instrumentista, é
passa pelas quatro funções. Ou frequentemente assim
seja, me parece que, na verdade, o que eu escuto [écoute]
que Schaeffer está fazendo neste meu próprio som ou que
ponto é colocar de forma mais eu trabalho minha voz,
sistemática a fluidez do modelo por exemplo. Após
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muitos anos de exercício, som: os índices que


que escuto eu que já não revelam as circunstân-
conheça, de meu cias do evento, ou
instrumento ou de minha aquela do seu signifi-
partitura, que não esta cado: seus valores
maneira corrente de relativos a uma lin-
modelar tal som filé, ou guagem sonora deter-
tal timbre de minha voz? minada. Enfim, em um
(SCHAEFFER, 1966: 151) terceiro caso, se a
intenção de escuta se
Desse modo Schaeffer volta para o som ele
começa a separar os objetos da mesmo, [...] índices e
percepção em dois grupos, um valores são deixados
externo ao som (que trata o som para trás, esquecidos,
como índice ou signo) e outro que renovados em proveito
é o som propriamente dito. de uma percepção única,
Schaeffer descreve a curiosidade inabitual, mas, portanto
que leva a este último da seguinte irrefutável: tendo
forma: desprezado a proce-
É aquela [curiosidade] dência e o sentido,
do afinador “provando” o percebe-se o objeto
som, como se prova um sonoro. (SCHAEFFER,
vinhedo, não para dizer 1966: 155)
o ano, mas para Portanto me parece que a
distinguir suas virtudes. busca pelo objeto sonoro está
É também aquela do diretamente relacionada com
instrumentista, certo de aquela impossibilidade de se
sua afinação e de seu recorrer a práticas estabelecidas,
violino, mas que faz sem argumentada por Schaeffer numa
cessar o mesmo som, citação anterior, acerca da escuta
até que esteja satisfeito. especialista que precisa sempre se
Ele encontra, nesta rever e nunca é especialista o
escuta, índices e valores, suficiente. E principalmente, se
mas não se contenta, ele relaciona com a “necessidade de
nutre o som em si uma revisão” que Schaeffer
mesmo. (SCHAEFFER, argumenta no início do Traité (17-
1966: 153) 19).
A citação acima mostra que, Esta busca por uma escuta
na busca pelo “objeto sonoro”, há nova deve então ser feita no que
a vontade de encontrar algo novo, Schaeffer acredita ser um nível
ou melhor, uma maneira nova de original do sonoro, e não em
lidar com aquele mesmo objeto camadas “extra-sonoras”,
potencial. O trecho a seguir sobrepostas ao “som puro” pela
também toca nesta ideia: acumulação de experiências em
a escuta se tornará em comunidades, que gerou
direção a uma ou outra convenções, sejam semânticas
percepção exterior: (linguagens musicais), sejam
aquela da origem do
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maneiras de se produzir sons culturais”, muitas das “oposições


(instrumentos): superficiais” seriam resolvidas (10-
Através de uma curva 11). É possível que, para
imprevista da audição, Schaeffer, abstrato e concreto
ou então, mais (tentando entrar
prosaicamente, por um momentaneamente no jogo de
retorno inverso de Schaeffer com estes conceitos)
percurso, um sejam no fim das contas apenas
reagrupamento daquilo uma oposição de superfície, e o
que parece de saída objeto sonoro uma tentativa de
conduzir resolvê-la possibilitando o acesso a
inevitavelmente, de um uma camada original, com-
lado à origem concreta partilhada por todos independente
do som, de outro à sua de hábitos ou condicionamentos.
significação abstrata; Deste modo, a “escuta reduzida” –
recusando-se a nome dado a esta intenção de
esquartejar a escuta escuta da qual estive tratando, que
entre o acontecimento e leva ao objeto sonoro – deve ser
o sentido, aplica-se mais entendida como o método para
e mais a perceber aquilo esta a busca, um método de
que constitui a unidade descondiciomento, que levaria a
original, isto é, o objeto camada original, possibilitando a
sonoro. Este representa construção da nova musicalidade
então a síntese de generalizável desejada por
percepções de hábitos Schaeffer.
dissociados. Não
saberíamos negar as Referências
aderências às CHION, M. Guide to Sound Objects.
significações ou às Trad. John Dack. Londres: EARS,
anedotas, nem rompê- 2009.
las; mas pode-se
inversamente visá-las, KANE, B. L’Objet Sonore
para tomar delas a Maintenant: Pierre Schaeffer,
origem comum. sound objects and the
(SCHAEFFER, 1966: 155- phenomenological reduction.
156) Organised Sound, v. 12, n. 1, p.
Nesta questão da busca por 15–24, 2007.
uma “origem comum” me parece
conveniente apontar como isto THORESEN, L. Sound, Pattern, and
ressoa uma discussão colocada no Structure: novel methods for
prefácio do Traité, que, a partir de analysing music-as-heard. In:
uma citação de Lévi-Strauss, fala Anais do II SIMPOM. Rio de
de uma vontade de se “reencontrar Janeiro: Unirio, 2012.
as estruturas permanentes do
pensamento e da sensibilidade SCHAEFFER, P. Traité des objects
humana”e propõe que através da musicaux: essai interdisciplines.
complementariedade entre “meios Paris: Éditions du Seuil, 1966.
naturalmente dados” e “estruturas
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