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Mariza Peirano Entrevista Tambiah PDF
Mariza Peirano Entrevista Tambiah PDF
ENTREVISTA
CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E
HORIZONTES EM EXPANSÃO
Stanley J. Tambiah
campo que fiz no Sri Lanka eu estava zado nos moldes antropológicos tra-
interessado, naquele momento, em par- dicionais. Foi então que encontrei
te sob a influência de Bruce Ryan, no Edmund Leach. Ele tinha concluído
esquema de Robert Redfield sobre o seu trabalho de campo em Pul Eliya em
continuum folk-urbano que ele tinha 1954, e estava de volta em 1956 para
desenvolvido de maneira muito interes- uma última verificação dos dados em
sante a partir da sua experiência no função da monografia que estava es-
México – posteriormente, Redfield tam- crevendo. Eu já havia terminado o sur-
bém veio a se interessar pela civiliza- vey, bem como minha primeira etno-
ção indiana. Minha tese baseou-se em grafia sobre parentesco, e tinha escrito
um estudo de três comunidades situa- alguns trabalhos sobre parentesco e
das a diferentes distâncias de Colombo, posse da terra. Meu primeiro artigo foi
a capital e a cidade mais urbana do publicado em Man (JRAI), com o auxí-
país: uma comunidade era muito próxi- lio de Leach2, e o survey foi publicado,
ma a ela, uma era mais distante, já na separadamente, em 19573. Leach não
área de plantação de chá, e a outra era gostou do survey e escreveu o ensaio
ainda mais afastada, na nova área aber- no qual afirmava que “Tambiah é um
ta para reassentamento de camponeses. antropólogo inato”, mas que ele, pes-
O estudo comparou essas comunidades soalmente, não gostava de análises
a partir de certas atitudes expressas em quantitativas baseadas em dados obti-
questionários formais, complementados dos através de surveys4. No entanto,
por alguma observação participante. O ele havia lido a primeira versão do meu
objetivo era situar as comunidades no artigo, do qual gostou, e quando retor-
continuum folk-urbano e testar a pró- nou a Cambridge escreveu-me dizen-
pria hipótese de Redfield. O estudo do que eu deveria publicá-lo em Man.
nunca foi publicado, embora um artigo Naquela época eu já tinha para mim
meu em parceria com Bruce Ryan tenha que minha concepção do estudo dos
aparecido na American Sociological fenômenos sociais estava mais sintoni-
Review1, e eu tenha escrito subseqüen- zada com a abordagem antropológica.
temente alguns artigos sobre assenta- Ou seja, interessava-me mais a obser-
mentos camponeses que também são vação participante, conversar com as
pouco conhecidos. pessoas, observar rituais, e ver situa-
Quando me tornei um antropólogo? ções no seu contexto, tudo aquilo que
Imagino que o ano decisivo foi 1955/56 você não pode fazer em um survey, no
quando, depois de retornar ao Sri Lan- qual você faz perguntas em série sem
ka, vindo de Cornell, comecei a fazer conhecer ou mapear em profundidade
trabalho de campo em colaboração com suas inter-relações. Assim, eu mesmo
um economista que também era esta- estava me convertendo, e Leach tornou
tístico, N. K. Sarkar. Realizamos um isto claro para mim com sua crítica ao
survey sobre as condições econômicas survey e com sua demonstração da
na área Kandyan do Sri Lanka: regimes importância do parentesco e da orga-
de apropriação fundiária, relações de nização social reveladas pela pesquisa
arrendamento, padrões de posse da etnográfica. Eu nunca pude entender
terra nas aldeias e assim por diante. muito bem o que ele quis dizer quando
Combinei com este survey meu próprio afirmou que meu ensaio tinha, de
trabalho de campo sobre estrutura de algum modo, influenciado sua com-
parentesco e organização social, reali- preensão de Pul Eliya.
CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 201
vas. Eu sabia, portanto, que logo teria e muitos outros, tendo feito a gradua-
de ensinar em cingalês, e eu não esta- ção no Sri Lanka, podiam sem nenhum
va apto para isso. problema vir para o Ocidente e conti-
nuar os estudos de pós-graduação.
Peirano Várias pessoas da minha geração fize-
Você fala cingalês? ram isso, não apenas na minha área,
mas também em economia, política,
Tambiah ciências, história, literatura. Assim, na-
Apenas coloquialmente, não fui educa- quele momento percebi que estava na
do nem alfabetizado nessa língua. Pro- hora de partir. Quando o convite de
fissionalmente seria um retrocesso para Hugh Philp chegou, eu aceitei e fui
mim, pois tentar ensinar antropologia para a Tailândia. Isto ocorreu em 1960.
na língua nativa consumiria todas as
minhas energias. E mesmo se eu qui- Peirano
sesse fazer essa mudança, eu estaria Quando você decidiu estudar religião
fora do sistema internacional de conhe- na Tailândia, essa escolha se baseou
cimento: eu tinha de ir para outros lu- em evidências etnográficas ou foi moti-
gares e permanecer profissionalmente vada por sua própria curiosidade? Em
aberto para os desenvolvimentos inter- outras palavras, por que religião?
nacionais.
Tambiah
Peirano Efetivamente eu não estava apenas
Nesse contexto, seria possível ensinar investigando religião na Tailândia, mas
antropologia? realizando um trabalho de campo
sobre vários aspectos da vida rural. Co-
Tambiah letei material sobre parentesco, orga-
Bem, mais tarde percebeu-se que a nização social, economia agrária, pos-
transformação do cingalês e do tamil se da terra… e, paralelamente à orga-
em meios de instrução seria um grande nização social, sobre os rituais. Além
problema – especialmente no que se re- disso, já que a maior parte das aldeias
fere ao ensino superior –, justamente abrigava monastérios habitados por
porque não é possível traduzir os livros monges budistas, estudei as relações
das principais línguas ocidentais nesses entre esses monges e a população, bem
idiomas. A maior parte dos estudantes como vários rituais. Na verdade, entre
educados nas línguas nativas estava vir- 1960 e 1963, participei do estudo de
tualmente excluída da literatura mun- três diferentes comunidades: uma, na
dial, recebendo uma educação muito Planície Central, situada aproximada-
limitada. Desse modo, os padrões aca- mente a cem quilômetros de Bancoc;
dêmicos caíram muito. A Universidade outra, no nordeste; e a terceira, no nor-
do Ceilão, à qual eu pertencia, era a te da Tailândia. Como sempre aconte-
principal universidade nessa época, ce, elaboramos e escrevemos apenas
que coincide com as últimas fases do sobre um fragmento do nosso trabalho
colonialismo, porque tinha padrões re- de campo. Escrevi uma etnografia pre-
lativamente elevados; estava vinculada liminar a respeito de uma aldeia situa-
à Universidade de Londres e as provas da na Tailândia Central, ou seja, foca-
eram aplicadas por examinadores ex- lizei aspectos da economia, estrutura
ternos. Pessoas como eu, Obeyesekere de parentesco, vida familiar, ritual, e
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assim por diante. Essa monografia nun- tempo para escrever sobre isso porque
ca foi publicada. Foi aceita para publi- passei para outros temas.
cação pela Cambridge University
Press, mas àquela altura, em 1963, eu Peirano
já tinha ido para Cambridge e já esta- Gostaria de focalizar essas mudanças.
va escrevendo minha segunda mono- Como você as vê? Existem continuida-
grafia sobre a segunda aldeia, Bud- des, uma coisa leva à outra de modo
dhism and the Spirit Cults in Northeast contínuo?
Thailand8. Nesse estágio, também em
Cambridge, entrei em contato com al- Tambiah
gumas das idéias de Leach: o “estrutu- Bem, existe continuidade e expansão.
ral-funcionalismo” estava sendo supe- Esqueci de contar como comecei a es-
rado pelo “estruturalismo”, perspectiva tudar religião. Uma das coisas que per-
que me influenciou bastante. Assim, cebi quando deixei o Sri Lanka foi que,
esse livro foi escrito em sua maior parte como membro de uma minoria, eu tinha
em Cambridge, mas só foi finalizado no de compreender o que é o budismo, o
período em que estive no Center of revivalismo budista como uma resposta
Advanced Studies, em Palo Alto. Então ao colonialismo, e o que era o naciona-
eu disse à editora: “não publiquem a lismo budista no Sri Lanka após a inde-
primeira monografia, publiquem esta. pendência. Estas eram questões em
E eu reescreverei a primeira”. relação às quais eu estava “alienado”
no Sri Lanka, mas cujo significado era
Peirano fundamental captar como antropólogo.
Assim, você ainda nos deve a primeira. Percebi que não seria possível estudar
Qual era o tema central dela? plenamente as expressões políticas do
budismo no Sri Lanka; no entanto, eu
Tambiah seria capaz de fazê-lo na Tailândia, um
Bem, ela é diferente da segunda. Em país mais distante, com o qual eu pode-
certo sentido, antecipa alguns escritos ria desenvolver uma relação de empa-
de Bourdieu a respeito das escolhas tia e estudar de dentro. Buddhism and
estratégicas e das práticas, mas num the Spirit Cults… foi escrito para que
estilo e num jargão antropológicos dis- eu entendesse de que maneira o budis-
tintos. Como a organização social tai- mo atuava nas aldeias como uma reli-
landesa é muito flexível (por exemplo, gião popular. Uma vez que já estava
existem várias maneiras de contrair inclinado a compreender o budismo
“casamento”), eu esperava primeiro como uma religião, especialmente em
estabelecer o que eram as normas for- seus aspectos políticos e rituais, a Tai-
malizadas, e então verificar como essas lândia pareceu-me um bom lugar para
normas eram usadas e aplicadas, e investigar o que eu não entendia até
quais seriam seus resultados enquanto então.
práticas. Algum dia tentarei publicar Assim, o segundo projeto, que re-
esse livro. De qualquer maneira, a se- dundou no livro World Conqueror and
gunda monografia veio a ser escrita de World Renouncer9, foi para mim o resul-
forma diferente. Eu tinha coletado mui- tado da elaboração do primeiro, no qual
tos dados nas três aldeias que mencio- enfoquei a aldeia como um microcosmo
nei, especialmente sobre estruturas do macrocosmo. Em Buddhism and the
bilaterais de parentesco, mas não tive Spirit Cults... a aldeia fornecia algumas
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Peirano Peirano
Em geral, podemos dizer que você Poderíamos dizer que Austin, Leach e
identifica um fenômeno que, mesmo na Evans-Pritchard são alguns de seus
disciplina, é de senso comum, o dissol- interlocutores privilegiados? Quais se-
ve analiticamente e, finalmente, mos- riam os outros?
tra sua universalidade em outro nível.
Nesse processo, o que era um objeto Tambiah
empírico, ou uma classe de objetos, tor- Acho que muitos. Max Weber, é claro;
na-se uma abordagem analítica. É isso Durkheim; Marx em menor extensão;
que acredito que você fez com o ritual, Malinowski; Evans-Pritchard (o livro
entre outras coisas. sobre os Azande) – “Form and Mea-
ning of Magical Acts” é efetivamente
Tambiah minha resposta à sua compreensão das
Como um prefácio a esse ponto, deixe- práticas rituais Azande. Há ainda Lévi-
me contar que quando estava em Cam- Strauss e Leach, no que se refere à teo-
bridge, descobri Austin acidentalmen- ria da classificação, liminaridade e te-
te, comecei a lê-lo e incorporei minha mas desse tipo. E a lista estende-se na
compreensão de suas idéias em “Form direção de Austin, Peirce, Foucault,
and Meaning of Magical Acts”18. Esse Bourdieu, Bakhtin…
é um desenvolvimento pessoal. Leach
não gostava dessa tendência e era crí- Peirano
tico em relação à filosofia da lingua- E Marcel Mauss com sua noção de efi-
gem desenvolvida em Oxford. A esse cácia?
respeito, ele era um tanto antiquado e
acho que provavelmente concordaria Tambiah
com o ataque de Gellner à filosofia de Você quer dizer a teoria de Mauss
Oxford, em Words and Things. Mas eu sobre a magia? Sim. Suas formulações
estava convencido de que a idéia de sobre a magia, o dom, o sacrifício são
Austin sobre as locuções performativas parte fundamental do nosso legado e
era importante. Embora isso possa pa- capital clássicos, e ponto de referência
recer autopromoção, tenho certo orgu- do qual não se pode escapar.
lho de ter sido um dos primeiros a ex-
plorar essas idéias no estudo do ritual. Peirano
Meu envolvimento com Austin Quando você passou a se interessar por
ocorreu quase no fim da minha estada Peirce?
em Cambridge. O convite para a Rad-
cliffe-Brown Lecture forneceu o incen- Tambiah
tivo para incorporar e estender a noção Passei a me interessar por Peirce quan-
de atos performativos, e o desafio para do cheguei a Chicago. Outras pessoas,
formular algo novo. Anteriormente, o como Michael Silverstein, também es-
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Tambiah Tambiah
Bem, não sei se de fato cheguei a dis- É que, como você sabe, um tipo de con-
solver essas dicotomias, mas acredito tribuição criativa é tomar uma perspec-
que fui desafiado por elas. Existe algo tiva, ou alguma idéia, proveniente de
na minha maneira de abordar as ques- um campo, e aplicá-la a outro domínio,
tões que não entendo conscientemen- o que abre novas possibilidades. Fre-
te. Tenho uma preferência por relacio- qüentemente, essa é a maneira pela
nar dialeticamente componentes que qual a biologia, a física e outras ciências
outros separam e dividem. Você pode ditas “duras” procedem. Esse também
estar certa ao formular essa tendência é um caminho usual em nossa profissão:
que não está clara para mim. Mas há não existe tábula rasa. Lévi-Strauss
outra preferência que me é cara: sem- agiu da mesma maneira quando apli-
pre gosto de pensar que devemos tra- cou de maneira criativa as teorias lin-
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Tambiah Peirano
Sim, reciclados. Outra maneira pela E aí, de novo, a presença de Durkheim.
qual as pessoas são consideradas origi-
nais é quando colocam novas etiquetas Tambiah
em velhos problemas. Cunhar novos Existe algo que Durkheim escreveu em
rótulos também é visto como um exer- As Formas Elementares da Vida Reli-
cício teórico. Novamente, essa ativida- giosa que os leitores nem sempre no-
de não é verdadeiramente inovadora, tam. Na última parte do livro, ele suge-
pois consiste em recondicionar, reci- re que é a participação coletiva nos ritos
clar, colocar um novo verniz em um totêmicos que gera a euforia e a expe-
fenômeno conhecido. Você me pergun- riência da força religiosa. Alguns leito-
tou se continuo com meu interesse em res conhecem essa formulação, mas
religião, ritual, política…? Leveling nem sempre a utilizam. Obviamente,
Crowds..., meu último livro, é sobre Durkheim foi diretamente influenciado
política e violência, com a violência pelas idéias de Le Bon acerca das aglo-
coletiva como uma forma de atuação merações coletivas. Le Bon tinha aver-
política em conflitos etnonacionalistas, são pelo que aconteceu na Revolução
especialmente em arenas onde a de- Francesa, mas reconhecia as paixões
mocracia política é praticada. Mas as que eram produzidas entre as multi-
idéias sobre o aspecto performativo do dões. Durkheim também identificou
ritual estão no centro de minhas consi- esses sentimentos, mas os utilizou para
derações, explicando o papel e o dizer algo muito distinto. Para Le Bon,
padrão da violência coletiva na política os ajuntamentos políticos geravam vio-
moderna. Espero que aqueles que co- lência irracional, enquanto para Dur-
nhecem meu trabalho reconheçam que kheim os ritos praticados coletivamente
estou aplicando e estendendo minhas produziam forças religiosas positivas
idéias a um novo contexto de modo a que, de fato, celebravam a sociedade.
iluminar a política etnonacionalista e a Em Leveling Crowds... tomo essas duas
violência coletiva em nossa época. discussões e as transformo, ao conside-
rar processos semióticos intersubjetivos
Peirano e comunicacionais que ocorrem quan-
E encontrando novos interlocutores… do as multidões são mobilizadas para a
ação, e como esses processos podem
explicar certos aspectos da violência
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coletiva. Assim, algumas questões clás- para encenar procissões e formar as-
sicas suscitadas por Le Bon e Durkheim sembléias coletivas. Levando tudo isso
foram, espero, esclarecidas, refinadas em consideração, sempre acontece
e ampliadas. algo mais nessas aglomerações: o jogo
das paixões coletivas e o papel incitan-
Peirano te dos rumores destrutivos, o entrela-
Durkheim foi, em geral, apropriado de çamento progressivo de fúria e pânico.
maneira pobre até mesmo pelos antro- Existe algo aí que Le Bon, Durkheim,
pólogos, que o consideram como al- Freud – que também foi influenciado
guém interessado apenas nos aspectos por Le Bon em seu Psicologia de Gru-
da representação. po e Análise do Ego – e Canetti, em
Crowds and Power, discutiram em ter-
Tambiah mos de psicologia de grupo, e que
Sim, isto é parcialmente verdadeiro até poderia ser resgatado, reformulado e
no caso de Lévi-Strauss em seu traba- desenvolvido em novas direções.
lho sobre o totemismo. Lévi-Strauss
leu apenas parte de Durkheim, os ani- Peirano
mais totêmicos e os objetos totêmicos São essas mobilizações de massa que
remetidos às suas próprias idéias fazem com que você se interesse por
acerca da classificação. Ele não esta- esportes como o futebol?
va interessado na discussão de Dur-
kheim sobre como os ritos totêmicos Tambiah
geram sentimentos e fusões interpes- Sim, agora você sabe por que eu que-
soais. Acho que muitas das discus- ria assistir a um jogo de futebol no Rio.
sões em torno de As Formas Elemen- Estou interessado em esportes por ou-
tares da Vida Religiosa ignoram o que tras razões também, mas os jogos são
Durkheim disse sobre a efervescência fenômenos coletivos e espetáculos de
das grandes aglomerações e a euforia massa que me interessam. A torcida
no curso dos rituais coletivos, nos quais das multidões no estádio é fantástica.
as pessoas reunidas se envolvem em As pessoas levantam-se ritmadamente
tipos especiais de interação. e envolvem-se em movimentos orques-
É interessante e relevante conside- trados de ondas de incentivo, e então
rar dois aspectos relacionados à violên- gritam insultos para os jogadores do
cia coletiva das grandes multidões. A time visitante, o “inimigo”, amaldi-
violência é parte da política, e é dirigi- çoando-os, e até ensaiando brigas ou
da por certos políticos e por seus agen- quase-brigas, e proferindo impropérios
tes. Ao mesmo tempo, desordeiros en- para demonizá-los, e assim por diante.
volvem-se em incêndios criminosos e E quem são esses participantes no caso
em atos de violência contra outros se- do futebol americano em Boston, por
res humanos, quando se aglomeram e exemplo? São provenientes de uma
quebram normas que a maioria deles parte da população de Massachusetts:
observa na vida cotidiana. Em Leveling classe trabalhadora, classe média, pro-
Crowds... tento apontar os dois lados da fissionais, jovens e velhos, homens e
questão. Esses distúrbios são proposi- mulheres, todos reunidos em contigüi-
tais e direcionados: ao mobilizar multi- dade física nessa encenação da cultura
dões, certos componentes da cultura de massa.
pública e do ritual público são usados
CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 213
Tambiah Peirano
Sim, mas também uma extensão que Uma das influências marcantes é
inclui eventos que estão ocorrendo na Gramsci.
Índia, no Paquistão e no Sri Lanka.
Examino as questões, as convergências Tambiah
e diferenças que envolvem os conflitos Sim, Gramsci, talvez Foucault, e a tese
etnonacionalistas e também abordo as da “economia moral”. De fato, em
implicações do uso da violência como Leveling Crowds... aponto para a ge-
um modo de atuação política democrá- nealogia de suas produções, tal como o
tica. Espero que a população do Sri ensaio seminal de Thompson sobre a
Lanka venha a compreender que não economia moral dos conflitos na Ingla-
estou dizendo que a política etnonacio- terra do século XVIII, e sua aplicação
nalista seja peculiar ao nacionalismo por Jim Scott à Ásia, em The Moral
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Economy of the Peasants. Alguns his- seu próprio país, o que para mim é uma
toriadores caracterizaram certos movi- situação muito especial.
mentos camponeses ocorridos durante Tomemos, por exemplo, o caso da
o colonialismo como resistência legíti- Tailândia. Quando fui para lá, no
ma, o que não é uma interpretação en- começo da década de 60, havia um nú-
contrada na literatura oficial. O mesmo mero muito reduzido de pessoas que
poderia ser pensado em relação ao Bra- falavam inglês ou outras línguas euro-
sil: trata-se de um grande país, social e péias. Progressivamente, ao longo das
geograficamente muito diferenciado, décadas de 60 e 70, um número enor-
dotado de um passado colonial que me de estudantes obteve sua formação
constitui um fértil terreno para condu- superior no exterior, e as universidades
zir suas próprias contestações e diálo- americanas também começaram a trei-
gos internos sobre um grande número nar professores e a conduzir programas
de questões relacionadas com a consti- universitários na própria Tailândia.
tuição do Estado-nação, com o pluralis- Hoje existe uma crescente inteligência
mo social e cultural, “etnicidade”, autônoma nas universidades, e os pro-
“raça”, estratificação, identidade etc. fessores, que conhecem plenamente as
Esses diálogos e contestações são rele- fontes e formas de conhecimento oci-
vantes não apenas para o Ocidente, dentais, também estão gerando sua
mas também para a Ásia. Você mesma própria literatura crítica “subalterna”.
previu isso quando fez a comparação É claro que também existem teóricos
entre intelectuais e tradições intelec- ocidentais que adotaram a noção de
tuais no Brasil e na Índia. “resistência”. Uma perspectiva vinda
de baixo, em contraste com uma pers-
Peirano pectiva vinda de cima, pode permitir a
Você mencionou que depois de sua visi- emergência da “resistência” ao autori-
ta ao Brasil você compreendeu melhor tarismo político na Tailândia. A dita
as circunstâncias que produzem nossa transição para a democracia é um pro-
“locação”. blema recorrente tanto na Tailândia
quanto no Brasil. Na Tailândia, apesar
Tambiah do autoritarismo estar bem entrinchei-
O Brasil parece possuir algumas singu- rado, existe uma tentativa de promover
laridades importantes. De um certo uma transição para a democracia ple-
ponto de vista, é parte de um sistema na, e o movimento estudantil, os movi-
triangular: está em relação com os mentos democráticos e as insurreições
Estados Unidos e com a Europa, e essa são formas de resistência a esse poder
triangulação fornece um ponto vanta- autoritário. Essas tendências políticas
joso e peculiar para o seu envolvimen- também estão produzindo uma reava-
to com os centros metropolitanos. Nes- liação das maneiras de conceber o pas-
se sentido, vocês são o terceiro compo- sado tradicional, especialmente com
nente desse diálogo. Além disso, na relação às sublevações que ocorreram
América Latina vocês são diferentes no século XIX. A principal narrativa
dos demais países porque só vocês ortodoxa sobre a Tailândia diz que foi
falam português e grande parte da sua a monarquia Chakki que promoveu a
literatura é em português, dirigindo-se modernização a partir do século XIX.
à inteligência local. Existem diálogos Mas o projeto de um Estado-nação não
importantes em sua língua dentro do era exatamente homogêneo, já que
216 ENTREVISTA
Notas
Ceylon”. American Sociological Review, Haimendorf (org.), Caste and Kin in Nepal,
June 1957. India and Ceylon. New York: Asia Publish-
ing House, 1966.
2 “The Structure of Kinship and its Rela-
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88(1):21-44, 1958. the Second International Conference of Eco-
nomic History, Aix-en Provence, 1962.
3 The Disintegrating Village: Report of
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sity Press, 1957. Asia. Berkeley: University of California Press,
1996.
4 LEACH, E. R. “An Anthropologist’s
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bridge: Cambridge University Press, 1976.
16 Magic, Science, Religion and the
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Culture, Thought and Social Action. Cam- 1985.
bridge, Mass.: Harvard University Press,
1985. 18 In: Culture, Thought and Social Action.
12 “Animals Are Good to Think and Good 20 Sri Lanka: Ethnic Fratricide and the
Abuse”. In: E. H. Lenneberg (org.), New and Violence in Sri Lanka. Chicago: Univer-
Directions in the Study of Language. Cam- sity of Chicago Press, 1992.
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