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Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais

ISSN 2177-6687

A CAVALARIA NA TAPEÇARIA DE BAYEUX

FERRARESE, Lúcio Carlos (PIC-UEM)


REIS, Jaime Estevão dos (DHI/UEM)

Entre os anos de 1042 e 1065, Eduardo, o Confessor havia sido o rei de uma
Inglaterra conturbada: descendente de Normandos e Ingleses, ele aumentara a influência
dos primeiros em seu reino à desgosto dos últimos. Além disso, embora tenha sido
considerado um homem justo e piedoso, seu reinado fora considerado fraco por seus
nobres, e ele morreria sem deixar descendentes diretos ao trono. Conforme sua vida
findava, já se especulavam os problemas de sua sucessão, e vários chefes e líderes, tanto
ingleses quanto normandos e mesmo vikings, tinham interesse por suas terras.
Contemporaneamente, na Normandia surgia um novo líder político que ocupava
o nobre posto de Conde, um jovem guerreiro filho ilegítimo de uma plebéia. Ele era
chamado Guilherme, o Bastardo, e era sobrinho em segundo grau de Eduardo. Já na
Inglaterra, a família anglo-saxônica dos Godwin se tornava politicamente forte e
aclamada pelos outros nobres, com seus membros tornando-se suseranos sobre grandes
extensões de terra. Nesta família encontraríamos Haroldo Godwinson, poderoso
suserano anglo-saxão temido e experimentado na batalha, que fora coroado rei quando
Eduardo falecera por aclamação de seus pares. Inicia-se então a contestação do
normando Guilherme, que afirma ter sido prometido à coroa por seu parente,
contestação esta que termina em luta. Da batalha entre estes dois homens pela coroa,
deste momento decisivo da história da Inglaterra, seria criada uma extraordinária fonte
histórica, bem como surgiria uma monarquia forte, cujas influências podem ser
percebidas hodiernamente.
Realmente, o historiador atento pode perceber que o poder real não diminuiu e
nem se desintegrou em pequenos reinos na Inglaterra medieval, em comparação aos
outros reinos continentais europeus, como o franco. Isso se deve à vários fatores, mas
em particular podemos apontar a influencia de Guilherme, alcunhado o “Conquistador”,
que teria se tornado o seu rei e era considerado um cavaleiro poderoso e patrono de

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outros cavaleiros. Vitorioso, ele fez com que os senhores ingleses se curvassem diante
de um só suserano, e moldou o governo ao redor de sua figura.
A história de como este homem normando se tornou rei dos ingleses, é
extremamente interessante especialmente pelo fato de ter sido contada através de um
documento histórico que sobrevive até hoje: a Tapeçaria de Bayeux. Esta fonte,
denominada como tapeçaria, consiste em um bordado (THORPE, 1973, p. 57) que narra
os acontecimentos que levaram à conquista de Guilherme sobre a Inglaterra em suas
tramas delicadas. Seu climax é a representação da Batalha de Hastings de 1066, vista
pelos olhos normandos, exaltando os guerreiros à serviço de Guilherme enquanto
derrotam o usurpador e perjuro Haroldo. Em um estilo descritivo contínuo e com poucas
interrupções, escrita em latim simples, a Tapeçaria permitia a qualquer pessoa que
estudara essa língua explicar a narração para outros, sem qualquer dificuldade,
demonstrando sua utilização como forma de propagação da vitória retratada.
A narrativa começa com a figura do Rei Eduardo “o Confessor” da Inglaterra,
parente do Duque Guilherme da Normandia, o que situa temporalmente o leitor da
Tapeçaria no seu reinado, que durou entre 1042 e 1066. Estima-se que a Tapeçaria tenha
sido bordada na mesma geração que presenciou estes eventos, pouco tempo após a
conquista de Guilherme, e esses acontecimentos ainda faziam parte da memória da
época, em pessoas que conseguiriam precisar o tempo e os detalhes que hoje fogem aos
historiadores.
Ao mesmo tempo em que vemos Eduardo, também é introduzido nesta história o
seu vassalo mais poderoso, Conde Haroldo. Ambos conversam, e narrativa da Tapeçaria
leva a compreender que Haroldo está recebendo ordens para que vá até a Normandia,
além da ilha britânica, como mensageiro para confirmar a sucessão de Guilherme ao
trono. Esta viagem marítima, no entanto, é mal-sucedida, pois ele naufraga e se
transforma em prisioneiro de Guy da Normandia, numa tática de apresamento que era
considerada uma “tradição” cavaleiresca da época.
A partir deste ponto aparece o protagonista principal da Tapeçaria, Guilherme,
que descobre o aprisionamento de Haroldo e o resgata pacificamente, usando de sua
autoridade sobre Guy. Hospedado pelo Conde Normando, Haroldo se dispõe a ajudá-lo
em suas batalhas dentro da Normandia em agradecimento, e após estas vitórias presta
juramento para tornar-se vassalo de seu salvador, jurando ajudá-lo a se tornar rei da

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Inglaterra (LEWIS, 1999, p. 100-101). Após o juramento, Haroldo retorna à Inglaterra,


onde vemos a imagem do rei Eduardo moribundo e morto, e a coroação do próprio
Haroldo.
A coroação de Haroldo é obviamente contestada por Guilherme, já que o
juramento deste o fazia vassalo seu, e tal ato estaria quebrando a palavra dada em um
ritual sagrado sobre as relíquias de santos. Esta era a ordem da cavalaria recebida e seu
juramento cavaleiresco, e quebrar este era considerado um ato de traição imenso na
visão normanda. Além disso, a Tapeçaria demonstra a coroação sendo feita por Stigand,
Arcebispo de York, que havia sido excomungado da Igreja Católica de Roma, e que,
portanto, teria perdido o aval papal, tornando a coroação anulável nos termos da época.
Guilherme então lidera uma invasão de forças consideráveis contra a Inglaterra,
arregimentando homens e equipamentos para cruzar o mar até e atacar o rei perjuro e
falso.
Na Inglaterra, a batalha entre o Normando e o Inglês ocorre próxima a Hastings.
Os cavaleiros de Guilherme, seus cavalos, suas armas e armaduras, contra os homens de
Haroldo, a pé e protegidos por escudos, estão representados minuciosamente na
Tapeçaria. Na batalha encarniçada, são as figuras cavaleirescas as principais atuantes,
batalha esta que continua até a morte em batalha do Rei Haroldo. Com a vitória, Duque
Guilherme será de agora em diante chamado o “Conquistador”, e a Tapeçaria termina a
fuga do exército inglês, retirando-se com a morte de seu líder, sendo perseguido pela
cavalaria normanda.
Embora a Tapeçaria esteja incompleta, com parte do final destruído, e também
não relate todos os eventos de seu período, ainda assim ela é um instrumento poderoso,
tanto histórico quanto propagandístico de sua época, tendo sido periodicamente exibida
às populações que a viram na Igreja de Bayeux, França, durante a Idade Média Central.
Ela também foi colocada para demonstração em outras cidades, incluindo da Inglaterra
conquistada, e mesmo em períodos posteriores aos da Idade Média. Embora por vezes
quase tenha sido destruído e por outras vezes tenha sido reconstituído, o fato de este
bordado ter sido conservado é uma oportunidade fantástica para qualquer historiador, e
sua pesquisa é de crucial para qualquer pessoa interessada na história da Inglaterra.
A maneira como esta fonte foi criada, as cores utilizadas, a lingüística, as formas
dos desenhos, as próprias imagens e como elas interagem podem no dizer muito acerca

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das técnicas da época, bem como do pensamento e das alegorias desses homens. Criada
como testemunho da vitória de Guilherme, como justificação de sua coroação, e
também como um regalo de seu meio-irmão Odo para Guilherme, ela também transmite
a importância da cavalaria em uma história exemplar, de como é um bom rei cavaleiro e
como é um mau rei cavaleiro.
A profundidade da fonte é evidente em todos esses detalhes. Porém, podemos
perceber também uma especial participação de um grupo de guerreiros que adquiriam
cada vez mais prestígio, e logo estariam no seu auge: os cavaleiros medievais. Tais
combatentes advieram do passado “bárbaro” da Europa, constituídos pela tradição
romana e germana, bem como foram influenciados pelos ideais cristãos. Em sua posição
como protetores da sociedade e líderes combatentes, juntamente com seu prestígio e de
suas tradições familiares, eles eram cada vez melhor equipados e treinados, e suas
capacidades militares e equipamentos os faziam possuir uma vasta importância militar
no campo de batalha. Esses homens, portanto, foram adquirindo cada vez mais
influência política, social e econômica na sociedade medieval.
Isso fica evidente na narrativa da Tapeçaria de Bayeux, já que eles são os
principais combatentes do lado vencedor, ou seja, de Guilherme. Não apenas isso, o
próprio Guilherme e seus vassalos mais próximos, os principais líderes em batalha,
também são cavaleiros. As armaduras, os cavalos, as formas de manejar a lança, as
investidas, as armas, os principais combatentes de uma luta terrível que mudaria o
destino da Inglaterra – todos estes sinais seriam detalhados e referenciados aos
cavaleiros normandos d’o Conquistador, o que significa que sua importância não era
desprezível, mesmo diante de um líder tão poderoso quanto Guilherme. Ademais,
Haroldo tinha se tornado um vassalo e um cavaleiro pelas mãos de Guilherme, através
de rituais considerados vinculantes e sagrados para os homens daquela época.
A vitória de Guilherme, portanto, seria uma vitória não apenas sua e de seus
cavaleiros, mas sim de cavaleiros corretos, que seguem os preceitos da cavalaria de
forma honrada. Após Hastings, o “Conquistador” viaja com sua hoste pelo interior do
país, capturando as principais cidades até Londres, onde é coroado e lida com os últimos
focos de resistência. Ele consolida seu poder ao distribuir terras entre seus fiéis
vassalos, estes combatentes a cavalo, e procede a um largo recenseamento de suas novas
terras, tornando-se um poderoso rei e centralizando a ilha ao redor de sua figura. Isso

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criaria uma monarquia poderosa, cujas influências podem ser vistas mesmo na
Inglaterra Parlamentarista de hoje. E, na base dessa conquista, estariam os cavaleiros:
ou assim a Tapeçaria de Baeyux deseja que pensemos, pois a proposta do presente
estudo é de uma pesquisa detalhada de tal documento histórico, que em muito pode nos
falar da verdadeira influência de tais guerreiros além da propaganda.
Sendo um tema pouco explorado pela historiografia brasileira, a Cavalaria na
Tapeçaria de Bayeux é de grande importância, vista a influência que provocou na
história social e militar da Inglaterra, e desta para o mundo através de seu
expansionismo imperial. A Tapeçaria é uma fonte documental fenomenal, e analisando-
a é possível perceber a importância das formas documentais imagéticas para a
percepção historiográfica.
Referenciamos o trabalho de Asa Briggs, História Social da Inglaterra (1998),
como base introdutória do contexto histórico da Inglaterra, tanto de seu passado quando
da época contemporânea à Tapeçaria. Recomendam-se também os trabalhos de
Dominique Barthélemy, A Cavalaria (2010), Maurice Keen, La Caballería (2008), Jean
Flori, A Cavalaria (2005) e Josef Fleckenstein, La Caballería y el Mundo Caballeresco
(2006), pois sãos obras que abordam os cavaleiros e seu papel na sociedade, explicando
o que levou estes guerreiros a serem tão exaltados pela narrativa contida na Tapeçaria
de Bayeux. Especificamente a esta última, citamos o trabalho de Kelly Devries,
Batalhas Medievais 1000 – 1500 (2009), introdução particularmente interessante para o
tema abordado neste projeto.
O estudo sobre a Cavalaria Normanda de Guilherme o Conquistador, na Batalha
de Hastings de 1066, representada na Tapeçaria de Baeyux, será baseado na análise
documental desta, bem como será baseado no estudo da historiografia relativa à
cavalaria normanda e da sua instituição, como o ritual de armar alguém cavaleiro, e os
juramentos sobre as relíquias sagradas. Além dos autores já indicados, utilizaremos
obras específicas sobre os normandos, como Norman Knight (1993) e Hastings 1066
(1994), ambas de Christopher Gravett, que estudam a evolução do guerreiro normando,
seus armamentos, treinamento e posição social e política. De igual importância são as já
mencionadas obras de Lewis Thorpe, The Bayeux Tapestry and the Norman Invasion
(1973), e Suzanne Lewis, The Rhetoric of Power in the Bayeux Tapestry (1999), estudos

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mais aprofundados que apresentam uma maravilhosa cópia da própria Tapeçaria para
análise dos historiadores, bem como discussões pertinentes aos episódios representados.
Neste trabalho objetiva-se, portanto, estabelecer um quadro mais preciso da
figura do cavaleiro normando deste período, e da importância da instituição a qual ele
pertence. Pretendemos, portanto, verificar o seu papel social, cuja importância cada vez
mais cresce graças aos fatores anteriormente apontados, e que o leva a ser exaltado
como força militar primária na descrição da Batalha de Hastings de 1066. Tendo
estabelecido sua importância, trataremos de sua representação na Tapeçaria de Baeyux,
do papel da instituição da Cavalaria como base para a luta entre Guilherme e Haroldo, e
de como a quebra das leis da Cavalaria levam à ruína do perdedor Haroldo, enquando o
vencedor Guilherme é glorificado como um grande cavaleiro.
Com a vitória de Guilherme, o mundo normando e o mundo anglo-saxão tornam-
se interligados de uma maneira indissociável, influenciando as gerações futuras através
das formas de lutar e das normas sociais e de governo, com a introdução da Cavalaria
no estilo normando e da centralização do poder real do “Conquistador”. Desta união,
surgiriam os ingleses, que vieram a influenciar a história ocidental em vários níveis. Até
mesmo hodiernamente podemos verificar a influência da cavalaria no mundo militar,
mesmo através de símbolos como a entrega de espadas para oficiais de determinadas
patentes, ato tal que existe até hoje e em várias nações. Compreendendo a importância
que a Cavalaria tinha aos homens medievos que criaram a Tapeçaria, que tanto nos
influenciaram, poderemos obter mais um importante detalhe da estruturação e das
formas de pensamento do Ocidente.

REFERÊNCIAS

Fontes Impressas:

GRAPE, W. (Ed.). The Bayeux Tapestry: monument to a Norman triumph.


Munich/New York, s.d.

WILSON, D. M. (Ed.). The Bayeux Tapestry: London: Thames & Hudson, 2004.

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Bibliografia:

ABBOTT, J. History of William the conqueror: markers of history. New York:


Cosimo Classics, 2009.

BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: Da Germânia antiga à França do século


XII. Tradução: Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas, São Paulo:
Editora da Unicamp, 2010.

BRIDGEFORD, Andrew. 1066: the hidden history in the Bayeux Tapestry. New
York: Walker & Company, 2004.

DOUGHERTY, Martin J. Armas & técnicas bélicas de los caballeros medievales:


1000 - 1500. Tradução: Mª José Antón. Madrid: Libsa, 2010.

DUBY, Georges. A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

GRAVETT, Christopher. Hastings 1066: el fin de la Inglaterra Sajona. Madrid:


Ediciones del Prado, 1994.

GRAVETT, Christopher. Norman knight: AD 950 - 1204. Série Warrior, Volume I.


London: Osprey Publishing Ltd, 1993.

KEEN, Maurice. La caballería. Tradução de Elvira de Riquer e Isabel de Riquer.


Barcelona: Ariel, 2008.

LEWIS, SUZANNE. The rhetoric of power in the Bayeux Tapestry. Cambridge:


Cambridge University Press, 1999.

THORPE, Lewis. The Bayeux Tapestry and the Norman invasion. London: The
Folio Society, 1973.

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