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ANÁLISE INSTITUCIONAL E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE


CONHECIMENTO: A QUESTÃO DA IMPLICAÇÃO INSTITUTIONAL
ANALYSIS AND THE CONSTRUCTION OF KNOW....

Article · January 2017

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Joao Batista Martins


Universidade Estadual de Londrina
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ANÁLISE INSTITUCIONAL E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
DE CONHECIMENTO: A QUESTÃO DA IMPLICAÇÃO
INSTITUTIONAL ANALYSIS AND THE CONSTRUCTION OF KNOWLEDGE: THE IMPLICATION’S
QUESTION
ANÁLISIS INSTITUCIONAL Y EL PROCESO DE CONSTRUCCIÓN DE CONOCIMIENTO: LA
CUESTIÓN DE LA IMPLICACIÓN

João Batista Martins*


1

RESUMO
Este trabalho tem como perspectiva, a partir do campo da análise
institucional, apresentar a noção de implicação como uma dimensão
que nos permite compreender a intervenção institucional em sua
complexidade. Tal noção nos auxilia a compreender os interstícios
da intervenção, seus meandros, seus rumores. Ela se circunscreve
sob duas dimensões: a que diz respeito aos processos institucionais
inconscientes que possibilitam ao analista estar ali; e a que diz respeito
ao próprio analista, que se vê implicado em sua prática institucional.
O processo analítico que se desenha nesee encontro possibilita a
construção de um conhecimento implicado e compartilhado - uma
produção de conhecimento tanto do analista como da instituição -,  
processo de construção de conhecimento que se dá sob o signo da
alteração.
Palavras-chave: Implicação. Construção de conhecimento. Análise
Institucional.

ABSTRACT
This work has the perspective. from the field of institutional analysis,
introduce the notion of implication as a dimension that allows us to
understand the institutional intervention in its complexity. This notion
helps us understand the interstices of intervention, their intricacies,
their rumors. It is limited under two dimensions: one that concerns the
institutional processes unconscious that allow the analyst to be there.
Another dimension concerns the analyst himself, who finds himself involved
in institutional practice. The analytical process that draws on this date
allows the construction of a knowledge involved and shared-a knowledge
of both the analyst and the institution-building process of knowledge that
takes place under the sign of the change.
Keywords: Implication. Knowledge construction. Institutional analysis
* Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional, Universidade Estadual de Londrina
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - UNESP/Assis. Email: jbmartin@sercomtel.com.br

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ANÁLISE INSTITUCIONAL E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO: A QUESTÃO DA
IMPLICAÇÃO

RESUMEN
Este trabajo tiene la perspectiva desde el campo del análisis institucional,
introducir la noción de implicación como una dimensión que nos permite
comprender la intervención institucional en su complejidad. Esta noción
nos ayude a entender los intersticios de la intervención, sus complejidades,
sus rumores. Ella es limitada en dos dimensiones: una que se refiere a los
procesos institucionales desconocen que permite al analista estar allí. Otra
dimensión refiere a la analista, que se encuentra involucrado en la práctica
institucional. El proceso analítico que se basa en esta fecha permite la
construcción de un conocimiento participan y comparten un conocimiento
del analista y el proceso de institucionalización del conocimiento que se
desarrolla bajo el signo del cambio.
Palabras clave: Implicación. Construcción de conocimiento. Análisis
institucional

1. INTRODUÇÃO

T
omando como ponto de partida o desenvolvimento da psicologia, podemos
dizer que ela, enquanto um campo científico que nasceu na segunda
metade do século XIX, na Europa, numa sociedade capitalista industrial, se
desenvolveu através do embate de alguns paradigmas inconciliáveis (Figueiredo,
1991, 1993). Apesar de essa disciplina se estruturar a partir de uma unidade
- unidade esta que se subsidiou nos parâmetros científicos da época (os das
ciências naturais) -, ela se estabeleceu no universo da ciência muito mais
como um discurso ideológico, uma vez que se constituiu como instrumento
das necessidades da sociedade em que nasceu, com o objetivo de selecionar,
orientar, adaptar e racionalizar, visando, em última instância, a um aumento da
produtividade (Patto, 1984).
Cabe registrar, no entanto, que, ao longo dos anos, novos caminhos foram se
circunscrevendo para essa ciência, com caminhos não tão próximos ao modelo
das ciências naturais. Assim, as influências das correntes das ciências sociais mais
críticas tiveram seu efeito sobre a prática do psicólogo e sua produção teórica.
Dentro desse contexto, localizamos o movimento da análise institucional1 como 2

um campo extremamente importante, uma vez que abriu novos caminhos para
a prática psi nas instituições.
A seguir, apresentamos algumas ideias que localizam a emergência da análise
institucional, estabelecendo um novo campo de coerência, no âmbito das ciências
humanas, bem como uma discussão teórica acerca do processo de produção
1 Cabe esclarecer que, ao nos referirmos ao movimento de análise institucional, estamos nos remetendo ao movimento que se
consolidou na França, após a Segunda Guerra Mundial, e que teve como expoentes autores como Lapassade e Lourau (1972).

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de conhecimento, que daí se desdobra, tendo como ponto de partida algumas


noções desenvolvidas no campo da análise institucional, mais especificamente a
noção de implicação.

2. DA ANÁLISE INSTITUCIONAL
Segundo Hammouti (2002), podemos localizar a emergência da teoria da
análise institucional após a Segunda Guerra Mundial, a partir das experiências
de psiquiatras e psicólogos que trabalhavam com doentes mentais nos hospitais
psiquiátricos. Essas atividades se apoiavam no reconhecimento da dimensão
política implicado no tratamento psiquiátrico, o que trouxe uma mudança
fundamental na abordagem dos pacientes, uma vez que a cura passou a ser
considerada não mais a partir das relações terapêuticas estabelecidas entre
médico/psiquiatra e o doente, mas da instituição, de seu funcionamento
organizacional. Lourau (1996) denomina essa fase de humanização das relações
hospitalares como empírica, circunscrita no contexto da ocupação nazista e que
se baseava numa concepção militante e política marxista contra qualquer forma
de opressão, inclusive na relação psiquiatra-doente mental.
Após a Segunda Guerra Mundial, ainda segundo Hammouti (2002), novas
técnicas foram importadas dos Estados Unidos, as psicoterapias de grupo. A
introdução do psicodrama de Moreno vai desempenhar um papel importante,
assim como as técnicas de “psicoterapia ocupacional” (ergoterapia, socioterapia,
técnicas ativas, técnicas Freinet).
Na esteira de Moreno, falava-se em “revolução sociométrica”: a terapia de
grupo implica a constituição de uma comunidade terapêutica. Aparecem as
“reuniões de síntese”, os “coletivos terapêuticos”, as “oficinas”, as “reuniões de
pavilhão”, todo um tecido de encontros que dão uma nova forma à
organização hospitalar e que transformam as relações sociais na instituição.
(Hess & Savoye, 1993, 11-12).
Lourau (1996) caracterizou esse momento do movimento como ideológico,
que se caracterizou pela ressocialização dos doentes, por meio da nova
organização da vida em grupo, no interior do hospital. A expressão psicoterapia
institucional aparece pela primeira em Daumezon e Koechlin (1952), no artigo
La psichoterapie institutionnelle française contemporiane (publicado nos Anais
Portugueses de Psiquiatria, n. 4).
O momento denominado por Lourau (1996) como teórico é marcado pelo
processo de teorização dos fenômenos institucionais. Segundo Hammouti
(2002),

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ANÁLISE INSTITUCIONAL E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO: A QUESTÃO DA
IMPLICAÇÃO

No hospital psiquiátrico de Saint-Alban e na Clínica de La Borde (Cour-Cheverney),


começaram a ser repensadas as práticas de psicoterapia institucional; foi introduzida
a dimensão inconsciente da instituição, houve uma mudança no olhar teórico sobre as
práticas e interrogou-se o sentido da instituição de novas formas sociais da terapia. Nesse
momento de desenvolvimento teórico, foram elaborados os principais conceitos da análise
institucional: analisador, transversalidade, transferência e contratransferência institucionais,
grupo-sujeito e grupo-objeto. Esses conceitos aparecem nas publicações de 1964 a 1965
(em revistas como La Revue de Psichothérapie Institucionnelle e Recherches, as quais são
reproduzidas no livro de F. Guattari Psychanalyse et transversalité). (Hammouti, 2002, p.
21).

Lourau, em 1970, publicou A análise institucional (Lourau, 1996), mobilizando


modelos interpretativos estritamente dialéticos, estabelecendo alguns parâmetros
teóricos e práticos para a pesquisa e intervenção institucionalista. Em 1972, junto
com Georges Lapassade, escreve Chaves da sociologia (Clefs pour la sociologie), um
livro que vai contribuir para a constituição de um novo campo de coerência
científico, uma vez que rompe com as orientações dominantes da sociologia de
seu tempo: eles ambicionam refundar a sociologia sobre as novas bases, tendo a
intervenção - a análise institucional - como sua pedra fundamental.
Entretanto, em suas proposições, não estabelecem, com relação à questão da
implicação, um avanço significativo. Podemos verificar que os autores fazem
um esclarecimento do conceito e o colocam no lugar dos “instrumentos de
análise” (distância, implicação, transferência) enunciados dentro do A análise
institucional, uma formulação condensada na expressão “implicações no objeto
estudado (implicações afetivas, ideológicas, políticas”” (Lapassade & Lourau,
1972, p. 171), ideia que será mantida ao longo do desenvolvimento teórico até
1983, como veremos mais à frente.
Vale lembrar que, para estabelecer a nova acepção de implicação, eles se
apoiam não mais nas experiências socioanalíticas, mas no “método que procure
ultrapassar os riscos de uma tenacidade pura, dando ênfase aos objetivos e
implicações do entrevistador” (Lapassade & Lourau, 1972, p. 43), a saber, o
método marxista, aquele proposto por Mao Tsé-Tung, no qual a implicação dos
pesquisadores é ressaltada: “A implicação, longe de ser um obstáculo, é uma
condição da pesquisa” (Lapassade & Lourau, 1972, p. 47). Cabe registrar, no
entanto, que a implicação apresentada nessa obra - Chaves da sociologia -­expressa
muito mais um engajamento pessoal, de caráter militante do sociólogo que se
vê envolvido “na prática da luta de classes e da experiência científica de seu
tempo” (conforme formulação de Mao Tsé-Tung, apresentada em Lapassade &
Lourau, 1972, p. 47)2 - o que nos leva a reconhecer a dimensão política da
3

análise institucional.
2 O que será qualificado mais tarde por Lourau como sobreimplicação. Ver Lourau, 2004b: 186-198).

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A temática da implicação será revisitada em 1983, em um número dedicado


ao tema na revista Pour, de onde destacamos os trabalhos de Lourau, Genèse
du concept d’implication, e de Ardoino (1983), Polysémie de l’implication, que
apresentaremos em seguida.

3. DA IMPLICAÇÃO
Ardoino vai localizar a questão da implicação reconhecendo sua importância
para a consolidação da análise institucional, cuja elaboração teórica estava sendo
efetivada por um grupo de pesquisadores da Maison de Sciences de l’Homme.
Num primeiro momento, esse autor estabelece uma distinção:

Lembramos que é necessário distinguir [...] entre as implicações libidinais, identificadas pelos
psicólogos, examinando as pulsões, os fantasmas, as tendências, as motivações, a memória
dos indivíduos como o inconsciente e as implicações institucionais, sócio-econômico-
políticas, ligadas às posições sociais, aos status, aos pertencimentos, às ideologias, melhor
analisadas pela sociologia. (Ardoino, 1983, p. 19).

Para esse autor, a implicação se revela muito mais como um modo de ser,
opaco à consciência, entendendo a noção de implicação num sentido psicológico,
a partir da qual os analistas institucionais puderam fazer “do conhecimento
e da análise da implicação um pretexto para uma démarche crítica, recusando
sem pena os behaviorismos e, mais geralmente, o imperialismo das abordagens
quantitativas ou dos modelos positivistas”. (Ardoino, 1983, p. 19).
Ardoino reconhece nesse texto que a noção de implicação ainda não tinha
sido trabalhada suficientemente, mas as interrogações a que ela nos conduz
situam-se sobre um plano mais epistemológico do que metodológico, uma vez
que tal noção aparece como

[...] um modo particular de conhecimento ligado a um modo específico de ser, caracterizado


pela existência. Dito de outra forma, objeto possível e desejável de análise, porque modo de
ser, a implicação constitui outro modo especial de produção de conhecimento onde ela se
torna parte integrante. (Ardoino, 1983, p. 20).

Já o texto de Lourau (1983) traça os campos disciplinares que, de uma certa


forma, contribuíram para a elaboração do conceito de implicação. Trata-se de um
percurso que envolve a fenomenologia, a psicanálise, a etnologia e a história das
micro e macrofísicas contemporâneas, especialmente quando essas disciplinas,
a partir de seus pressupostos teóricos, colocam em questão a relação sujeito x
objeto.
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ANÁLISE INSTITUCIONAL E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO: A QUESTÃO DA
IMPLICAÇÃO

Após traçar o percurso da noção de implicação no campo da análise


institucional, Lourau propõe, ainda que de modo provisório, o seguinte
esquema para estabelecer uma classificação que nos permite fazer uma análise
da implicação:

Implicações primárias:
1. implicações do pesquisador-prático, em relação ao seu objeto de pesquisa/
intervenção
2. implicação em relação à instituição de pesquisa ou outra instituição de
pertencimento, e em relação à equipe de pesquisa/intervenção
3. implicação em relação ao comando social e às demandas sociais
Implicações secundárias:
4. implicações sociais, históricas, dos modelos utilizados (implicação
epistemológica)
5. implicações dentro da escritura ou em todo outro meio que serve para
exposição da pesquisa. (Lourau, 1983, p. 17).

Finalizando o texto, Lourau (1983) considera o “vivido”, a vida cotidiana,


como um elemento que circunscreve as cinco dimensões descritas:

O vivido não é um mundo à parte, mas a trama da pesquisa como da formação e de todas
as nossas atividades, diurnas ou noturnas. Seria, portanto, diminuí-lo, até suprimir toda
sua importância, isolá-lo das diversas operações que fazem de toda pesquisa (e não somente
da pesquisa-ação) uma série interminável de atos falhos. Somente a análise das implicações
permite compreender e transformar relativamente os atos falhos da pesquisa em ciências
sociais. (Lourau, 1983, p. 18).

Ardoino se aproxima dessa formulação de Lourau, quando, ao percorrer a


etimologia das palavras explicação e implicação, nos sugere que o explicativo nos
remete à dimensão espacial, supõe modelos lógicos, físicos ou mecânicos; já a
implicação nos remete à dimensão temporal, histórica, às metáforas - psicológicas,
sociológicas ou biológicas - ligadas à especificidade do vivente. (Ardoino, 1983,
p. 21).

4. O PAPEL DO ANALISTA INSTITUCIONAL


Quando um analista institucional entra em cena? Lourau (2004a) nos
assinala que o analista institucional entra em cena, ou é convocado, quando a

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sociedade ou as instituições sociais estão em crise. Para Hammoutti (2002), o


próprio movimento da análise institucional se valeu das diversas crises sociais
para avançar em seus pressupostos e em suas teorizações.
Assim, num primeiro momento, conforme Ardoino e Lourau (1994), a
prática dos analistas institucionais era caracterizada por uma intervenção de
curta duração, na qual se colocavam em análise vários dispositivos: a análise da
demanda, a análise do pagamento, a análise das relações de poder, etc... Ao longo
do tempo, especialmente depois de 1986, com o trabalho de Boumard, Hess,
e Lapassade (1987), a prática da análise institucional incorpora, em seu corpo
teórico, algumas considerações realizadas pela etnologia no que diz respeito à
observação participante. Sob essa perspectiva, a intervenção do analista passa
a ser mais longa do ponto de vista temporal. Há uma convivência mais estreita
entre o analista e o campo em que está intervindo. Nessa situação, a convivência
entre o pesquisador/analista e os envolvidos pode levar ao estabelecimento de
uma relação sincrética entre eles, no ambiente de pesquisa ou de intervenção.
Considerando que o principal objetivo do analista institucional é o de desvelar
os jogos de sentido que perpassam as relações sociais, os valores aí implícitos, a
ideologia etc., presentes na instituição e que ele próprio, o analista, é um dos
sujeitos que se vê alterado (implicado) pelas relações que ali se estabelecem,
o processo de conhecimento (produzido pela ação do analista e no coletivo
dos que participam do cotidiano institucional) se realiza a partir do encontro
intersubjetivo promovido pela situação institucional.

4.1 Implicação e processo de construção de conhecimento


Tal perspectiva vem afirmar a especificidade da prática do analista institucional,
não mais através de um objeto empírico constituído - a instituição -, mas através
de uma abordagem epistemológica constituinte. Ou seja, quando o analista
institucional se insere no campo, ele não só observa, mas também participa com
os seus interlocutores nas várias situações sociais que circunscrevem o universo
social que está pesquisando. Assim, podemos dizer que o objeto teórico da análise
institucional deixa de estar ligado a um espaço cultural ou histórico particular,
pois passa a caracterizar-se como uma maneira de olhar o outro e a si mesmo,
em relação.
Essa perspectiva rompe com as perspectivas epistemológicas tradicionais à
medida que reconhece que o conhecimento se realiza na relação mesma entre
sujeito e objeto - na relação intersubjetiva. Isso significa dizer que, no lugar de
ter um objeto que se quer objetivo, nós iremos, na verdade, ter um objeto que é
ao mesmo tempo sujeito.3 4

3 Palestra Análise institucional: gênese, atualidade e perspectivas proferida, em 1998) na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Faculdade de Psicologia. Porto Alegre.

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ANÁLISE INSTITUCIONAL E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO: A QUESTÃO DA
IMPLICAÇÃO

Cabe salientar, no entanto, que, no âmbito da pesquisa, os seres vivos,


especialmente os humanos, quando submetidos a quaisquer que sejam os
determinismos (econômicos, sociais, culturais etc.) que os condicionam e
que podem explicar seus modos de funcionamento, têm em si um poder de
negação, de contra-estratégia que lhes dá, ao menos em parte, a inteligência
desses determinismos e uma certa capacidade de reagir e de adaptar-se, senão
de transformá-los. Ardoino denomina essa capacidade de negatricidade, o que
significa o reconhecimento de certa opacidade própria dos objetos que estão
sob investigação. Ardoino entende negatricidade como “a capacidade que o
outro possui sempre de poder desmantelar com suas próprias contra-estratégias
aquelas das quais se sente objeto”. (Ardoino, Barbier & Giust-Desprairies, 1998,
p. 68). Isso quer dizer que o homem, tanto individual como coletivamente, não
é indiferente às produções de saber que lhe concernem e que reagirá diante delas,
interferirá constantemente com os dispositivos de análise e de investigação que
lhe serão aplicados, perturbando seu funcionamento.
Além disso, do ponto de vista do pesquisador, Ardoino considera que, além de
ele não dominar seu objeto, no sentido de controle, em função da negatricidade
que lhe é inerente, ele está implicado com ele e nele. Tal perspectiva nos sugere
que o processo de construção de conhecimento não se efetiva sob a égide
exclusiva de uma determinada racionalidade. Pelo contrário, o conhecer se
estabelece a partir de outros vários planos: das motivações mais profundas do
pesquisador (inconscientes?), de seus desejos, de suas projeções pessoais, de suas
identificações, de sua trajetória pessoal etc. Nesse sentido, podemos dizer que a
relação entre sujeito e objeto propicia tanto o desvelamento do objeto como o
desvelamento do sujeito.
Com a noção de implicação assume-se que o conhecimento produzido no
âmbito da análise institucional é da ordem da intersubjetividade, o que significa
reconhecer que a produção de conhecimento implica um processo de “negociação”
entre as múltiplas referências que compõem o conjunto das representações de
cada indivíduo envolvido no processo, ou seja, o conhecimento se produz a
partir da heterogeneidade dos sentidos que está implícita nas relações que se
estabelecem no campo da pesquisa.
Queremos dizer com isso que a relação entre sujeito e objeto, entendida
como um encontro intersubjetivo, requer o reconhecimento de dimensões que
não estão relacionadas nem com os aspectos teóricos, nem com os aspectos
metodológicos, que utilizamos na realização de nossas pesquisas. Tais dimensões
estão circunscritas pela ordem do psíquico, do desejo, da vontade, que implicam
afetos nem sempre “dizíveis” em nosso cotidiano acadêmico, mas que emergem
durante a construção do conhecimento.
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Numa perspectiva psicológica, podemos dizer que a heterogeneidade


intrínseca na relação entre sujeito e objeto se caracteriza como processo de
alteração, já que ela é circunscrita por um jogo de influências mútuas. A interação
(alteração) desencadeia jogos próprios das vontades, dos desejos, da angústia, das
manifestações de uma vida inconsciente, de um funcionamento imaginário, que
suscitam tantas estratégias, resistências, ambivalências, opacidades: expressões
de uma negatricidade que permanecem ininteligíveis para um aparato racional.
Tal situação, em função de sua complexidade, geralmente, nos leva para os
caminhos das incertezas e do inacabamento, condições impensáveis na ótica de
uma epistemologia tradicional, cartesiana, positivista.
As perspectivas mencionadas nos abrem a possibilidade de traçar um novo
caminho no processo de elucidação dos fenômenos sociais, rompendo com a
posição epistemológica desenvolvida ao longo da Modernidade. Podemos dizer
que esse rompimento restaura o espaço de sentido de cada participante das
relações e nos permite pensar esse espaço restaurado como circunscrevendo o
discurso de um sujeito falante, tanto para aquele que se diz pesquisador como
para aquele que é olhado como objeto, libertando o homem da sua condição de
objeto.
Sob a perspectiva que aqui defendemos, a análise dos fenômenos sociais
assume outra dimensão. Para Ardoino (1990),

[...] o tipo de análise em questão não tem mais grande relação com a análise entendida
etimologicamente (decomposição, redução do complicado em elementos mais simples). É
mais uma sagacidade (perspicácia), vinculada a um processo de acompanhamento numa
duração, a intimidade partilhada, donde [...] os exemplos psicanalítico, socioanalítico,
etnológico, etnográfico, e até etnometodológico, podem nos dar alguma ideia. (Ardoino,
1990, p. 38).

Tal perspectiva, tanto para o plano da pesquisa como para o plano das práticas
sociais, permite-nos um reconhecimento mais profundo de elementos até então
desconsiderados (principalmente no que se refere à pesquisa) sobre os processos
relacionais, possibilitando-nos uma reapropriação da experiência pela abertura
ao desconhecido, pela disponibilidade para a alteração e, por consequência, para
a heterogeneidade, para a escuta do inefável.
Em outro lugar (Martins, 1995), tivemos a oportunidade de assinalar as
vicissitudes inerentes à relação sujeito e objeto, em que se apontou a necessidade
de reconhecermos a imprevisibilidade que essa relação traz em si mesma, por conta
da situação de alteração que a circunscreve. Na feitura desse trabalho, pudemos

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IMPLICAÇÃO

vivenciar situações que não nos permitiram manter a “clássica” relação entre
sujeito e objeto, aquela prevista nos livros e manuais. O trabalho, a dissertação
em si, foi-se dando à medida que foram se esclarecendo as implicações inerentes
às relações que se estabeleceram durante o trabalho de campo. Isso significa
dizer que a análise das implicações passou a ser o fio condutor do processo de
construção de conhecimento4. 5

Cabe registrar, no entanto, que o processo de análise das implicações, como


nos assinala Monceau (2008), é necessariamente um trabalho coletivo.

Eu não posso analisar minhas implicações sozinho em meu canto. Os dispositivos de análise
que construímos são, pois, sempre coletivos e, geralmente, temos vários analistas em cada
intervenção. Sempre presentes no trabalho de análise, podemos distinguir dois tipos de
implicações, primárias e secundárias. Para simplificar, podemos dizer que nossas implicações
primárias são nossas implicações dentro da própria situação de intervenção e as secundárias
são nossas implicações do campo de análise. [...] Dessa forma, essa primeira abordagem da
questão da implicação na situação de intervenção ... permitiu uma segunda perspectiva de
intervenção ... que são as implicações dos pesquisadores na própria pesquisa. (Monceau,
2008, p. 22).

O autor continua:

[...] o trabalho do pesquisador está saturado de subjetividade. As instituições científicas vão


ter suas próprias ideologias. Elas não são particularmente objetivas, mesmo se elas tentam
nos fazer acreditar nisso. A questão não é que devamos nos livrar de nossas ideologias [de
nossas implicações], mas tentar analisá-las coletivamente. O verdadeiro trabalho científico
deve estar aí. (Monceau, 2008, p. 22).

Cabe resgatar ainda outro desdobramento da noção de implicação, que se


revela e se constitui, na análise institucional, como uma prática política de
intervenção. É sob essa dimensão que entendemos o convite de Lourau, quando
ele se pergunta: “Mas, se não existe CRISE, como fazer uma análise institucional?
Então dê um jeito para que ela ecloda”. (Lourau, 2004a, p. 125). Através desse
convite, ele nos lembra a inserção política do analista institucional, enquanto
transformador da realidade social em que está inserido. Isso nos remete tanto
para as dimensões políticas implícitas nas relações institucionais, como para a
ação política dentro da instituição.

4 Ver Paulon (2005), que traz uma análise semelhante à que desenvolvemos aqui.

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João Batista Martins

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