Você está na página 1de 76

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

SIMÃ CATARINA DE LIMA PINTO

A COBERTURA DA MÍDIA JORNALÍSTICA DIGITAL E A


CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Niterói
2018
Simã Catarina de Lima Pinto

A COBERTURA DA MÍDIA JORNALÍSTICA DIGITAL E A


CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Dissertação parcial apresentada ao programa de


Pós-Graduação em Sociologia e Direito, da
Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Ciências Sociais e Jurídicas.

Orientadora: Letícia Veloso

Niterói
2018
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1 O ABORTO E A NATURALIZAÇÃO DE SUA PRÁTICA COMO CRIME


1.1 A atual situação das mulheres e o contexto político e jurídico em relação ao aborto
no Brasil
1.2 O controle social do corpo da mulher e a criminalização do aborto como conduta
discriminatória
1.3 Análise da cobertura da mídia digital sobre o aborto e as clínicas clandestinas no
Brasil
1.4 O direito brasileiro e a desigualdade entre homens e mulheres: o reflexo da divisão
social do trabalho na construção do sistema de justiça criminal

2 A POLÍCIA E OS AGENTES DO CRIME: O APARATO POLICIAL E A


FIGURA DO CRIMINOSO NOS CRIMES DE ABORTO NA COBERTURA DA
MÍDIA JORNALÍSTICA
2.1 A força e o discurso policiais usados na cobertura jornalística sobre as operações
policiais nas clínicas clandestinas e sua espetacularização
2.2 A construção do significado do crime de aborto pela mídia e a formação da opinião
pública
2.3 O espaço midiático onde se faz a cobertura jornalística analisada
2.4 Os agentes do crime de aborto e o estereótipo da mulher como vítima

3 O LUCRO E A QUANTIDADE DE ABORTOS REALIZADOS NAS CLÍNICAS:


Uma análise sobre a influência desse discurso nas notícias na manutenção do aborto
como crime
3.1 O aborto noticiado em números e o lucro: o contexto
3.2 O lucro e as perdas entre agentes, vítimas e o poder punitivo

CONCLUSÃO PARCIAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RESUMO

A presente pesquisa tem o objetivo de fazer a análise da cobertura jornalística digital


das operações policiais nas clínicas clandestinas onde eram realizados abortos. A análise
diz respeito a três tipos de dados diferentes coletados da cobertura. O primeiro deles se
refere à forma naturalizada com que a cobertura jornalística trata o aborto como um
crime. De fato, trata-se de um crime, mas a maneira como a cobertura sobre esse fato
ocorre, e esta é uma das hipóteses da pesquisa, promove e reforça o aborto como se
fosse qualquer outro tipo de crime, sem que se fala maiores questionamentos esse
respeito, embora os dados que se tem sobre a prática do aborto inseguro no Brasil se
mantenham estáveis, conforme demonstra o primeiro capítulo. Para que se fizesse a
análise e interpretação dos referidos dados, há na pesquisa uma apresentação do atual
contexto jurídico e político a partir do qual o trabalho interpretativo dos dados foi feito,
de modo que esse contexto será a base para a análise de todos os demais dados que
serão analisados nos capítulos dois e três. Na fase atual em que se encontra a pesquisa,
os dados relativos à naturalização com que a cobertura jornalística trata o aborto como
crime foram analisados e interpretados a partir do referencial teórico adotado com base
no qual a hipótese se sustenta. Em relação aos dados coletados do segundo capítulo, o
foco da cobertura jornalística digital foi a atuação dos policiais nas operações e os
agentes do crime tratados nas notícias. Enquanto os dados dos capítulos um e dois
foram analisados de forma interpretativa a se considerar o contexto jurídico e político,
bem como esses dados estarem relacionados diretamente com os dispositivos legais que
tratam do aborto, no capítulo três pretende-se fazer a análise do discurso propriamente
dita, pois os dados a ele correspondentes não estão relacionados diretamente aos
dispositivos legais que tratam do aborto. Por essa razão, optou-se por fazer uma análise
do discurso com base na teoria da análise do discurso de Eni Orlandi.
1 INTRODUÇÃO

A prática do aborto é prevista como crime no Brasil. As únicas hipóteses permitidas


pelo Código Penal são nos casos de risco de morte para a mulher e quando a gravidez
decorrer de estupro. Além dessas hipóteses legais, o Supremo Tribunal Federal, na ADPF
(Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54, decidiu que nos casos em que
se constata que a gravidez é de feto anencéfalo a interrupção também é permitida, situação
esta a que o STF denominou de “antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo”,
conforme consta no teor da referida ADPF. Fora esses casos, o aborto é criminalizado e a
pena prevista para a mulher que o provoque ou que permita que outra pessoa lhe provoque o
aborto é a detenção que pode ir de um a três anos. Já a pena prevista para as pessoas que
realizem o procedimento na gestante é a reclusão que pode ir de um a quatro anos.
A partir da análise da previsão legal que proíbe o aborto no Brasil, bem como das
consequências dessa proibição, a proposta é fazer uma análise da cobertura jornalística
digital dentro de um recorte específico de notícia, relacionado ao aborto. Essa análise tem o
objetivo de responder como a cobertura da mídia jornalística digital trata do aborto quando se
refere a operações policiais em clínicas clandestinas. Com base no recorte e de sua análise,
buscou-se verificar de que maneira essa cobertura contribui para que a prática do aborto seja
mantida como crime no Brasil, a despeito dos números de complicações que ocorrem nos
procedimentos abortivos, os quais podem levar as mulheres ao hospital ou ao óbito,
conforme demonstram os dados mais recentes sobre aborto no País.
Nesse sentido, a hipótese que se pretende verificar, com base no questionamento
acima, é de que a maneira como é veiculada a cobertura da mídia jornalística digital contribui
para que o aborto seja mantido como um crime qualquer no Brasil, haja vista os dados
retirados das notícias analisadas, os quais apontam para um possível reforço na ideia de que o
aborto seria um crime como qualquer outro, e que em razão disso deveria ser mantido como
tal, o que se faz por meio de vários mecanismos de controle social informal, dentre eles a
cobertura da mídia jornalística digital.
Quanto à escolha do recorte do tipo de notícia a ser analisada, a primeira informação
importante a esse respeito é a delimitação do período em que as notícias foram coletadas. Por
se tratar de uma pesquisa cujo campo é um determinado tipo de cobertura jornalística veicula
a respeito das operações policiais em clínicas clandestinas que realizavam aborto, o marco
temporal das notícias foi delimitado com início em fevereiro de 2013 – data escolhida em

5
razão da apresentação do Projeto de Lei 5069, em 27 de fevereiro de 2013 – e fim, em
outubro de 2016, data da última notícia encontrada com o recorte escolhido. Após essa data
foram encontradas outras notícias semelhantes, mas que não se encaixavam dentro do recorte
da pesquisa, como, por exemplo, investigações policiais em clínicas de aborto em casos de
óbito de mulheres. Nesse sentido, importante ressaltar que as pesquisas mais gerais tiveram
início no mês de maio de 2017, de modo que nos primeiros meses a intenção era conhecer o
universo de notícias disponíveis na mídia jornalística digital que tratassem do assunto. As
buscas com os termos mais específicos da pesquisa avançaram e tiveram início em setembro
de 2017 e duraram até o presente ano de 2018, a fim de verificar se, de fato, não haveria
outras notícias que se encaixassem dentro do recorte escolhido o qual diz respeito a
operações policiais em clínicas clandestinas. Saliente-se que dentro desse recorte escolhido
dentro de um universo de notícias todas sobre aborto, operações policiais e óbitos
decorrentes de abortos clandestinos, as notícias escolhidas para compor a pesquisa dos dados
foram aquelas que não continham, necessariamente, na data das operações, óbitos de
mulheres em decorrência do aborto nas clínicas investigadas. No entanto, embora o recorte
de notícias não tenha sido sobre investigações e operações policiais em clínicas clandestinas
após o óbito de mulheres, em muitas notícias há um adendo ao final que faz referência ao
caso de Jandira Magdalena dos Santos, morta após se submeter a um aborto numa clínica
clandestina na cidade do rio de Janeiro. Nesses casos, quando se tratava apenas de um
adendo ou breve menção ao final das notícias, optou-se por mantê-las dentro do recorte
escolhido a fim de fazer a análise da cobertura jornalística, uma vez que essas notícias foram
elaboradas apenas com uma observação ou breve menção ao caso de óbito, o que não gerou
qualquer alteração na análise da cobertura como um todo.
Essa delimitação do conteúdo das notícias se justifica em razão de que o objetivo da
pesquisa é analisar o discurso midiático da cobertura jornalística cujo destaque são as
operações policiais nas clínicas de aborto, sem que necessariamente haja ocorrido algum
óbito que justifique a operação, a fim de que se possa fazer uma interpretação teórica mais
específica sobre os dados do recorte escolhido. Por isso, se se acrescentassem as notícias nas
quais o destaque fosse o óbito de uma mulher que recorreram ao aborto clandestino, entende-
se que poderia haver algum equívoco na interpretação, pois o ângulo tanto da análise quanto
da teoria seria mais amplo.
Para isso, o recorte da cobertura jornalística foi feito por meio de buscas que se
referiam aos temas “aborto”, “clínica clandestina” e “polícia”, bem como os anos, de 2013

6
até 2018, embora, conforme mencionado, a última notícia encontrada que se encaixou no
recorte de cobertura escolhido date de outubro de 2016. A escolha dos referidos temas
ocorreu depois que as buscas mais genéricas começaram a apresentar recorrentemente
notícias relacionadas a operações policiais em clínicas clandestinas que realizavam abortos
em diversas regiões do País. Ao verificar que havia certa frequência desse tipo de notícia, os
termos pesquisados foram se especificando até serem delimitados aos referidos temas a fim
de que os dados pudessem ser colhidos.
No entanto, a pesquisa, a fim de chegar ao ponto em se encontra, pretendeu, num
primeiro momento, recolher material da mídia jornalística digital, relacionado ao tema do
aborto de forma mais ampla. O intuito era, naquele momento, descobrir como os jornais na
internet falavam quando tratavam do aborto para então fazer a análise e, a partir disso,
descobrir onde se encontrava o foco jornalístico: nas mulheres, nos bebês ou em alguma
espécie de fetichização de crianças no Brasil. Entretanto, ao iniciar a pesquisa das notícias
observou-se que, para a pretensão da pesquisa, não se podia tratar do tema do aborto se se
recolhessem textos jornalísticos voltados especificamente à criminalização ou não do aborto,
já que estes estavam sempre relacionados a um discurso evidentemente setorizado, no sentido
de que ou as matérias defendiam a descriminalização do aborto ou reforçavam de maneira
enfática sua criminalização. Além disso, constatou-se que, a depender da origem da matéria,
havia relação direta com questões religiosas, o que não é o recorte e nem o objetivo da
pesquisa.
Ao dar continuidade às buscas na internet a fim de se observar do que e de como se
falava quando o assunto era aborto um ponto começou a chamar a atenção. Muitas notícias
que apareciam nas pesquisas com termos relacionados ao aborto se referiam a operações
policiais que descobriam o funcionamento de clínicas clandestinas e consequentemente à
prisão de pessoas que trabalhavam nelas, o que evidenciava que, a despeito de o aborto ser
uma prática comum em todas as classes sociais, a descoberta do funcionamento dessas
clínicas é sempre caso de polícia. Nesse ponto, verificou-se a coerência das notícias com os
dispositivos legais que criminalizam o aborto no Brasil.
Diante desses resultados, o recorte da pesquisa precisou ter como objeto os termos
usados nessas notícias específicas, diante da frequência com que apareciam nas buscas. Os
termos de busca, então, passaram a ser relacionados a “aborto”, “clínicas clandestinas” e
“polícia”, uma vez que a clandestinidade da prática e a questão policial e criminal
costumavam aparecer antes mesmo de usar os referidos termos, além da palavra “aborto”.

7
Conforme apontado, as notícias recolhidas condizem com o que o Código Penal
brasileiro prevê em relação ao aborto. A partir desse dado mais evidente, a pesquisa tem o
objetivo nos dois primeiros capítulos atribuir uma interpretação dos dados encontrados
cobertura jornalística da mídia acerca das descobertas das clínicas clandestinas e prisões das
respectivas pessoas envolvidas e analisar como essa cobertura é elaborada. O objeto é
analisar os dados encontrados na cobertura jornalística digital e analisá-los de modo a
compreender o discurso adotado por esses veículos a partir do qual optou-se por adotar um
referencial teórico que pudesse dar uma possível interpretação para o que a cobertura em si
quer dizer e como as possíveis consequências dela na vida das mulheres brasileiras, bem
como na maneira pela qual a legislação atual é mantida, a despeito do alto número de abortos
realizados todos os anos no Brasil, fato este que é demonstrado tanto pelos dados
apresentados quanto pelas próprias notícias analisadas.
Nesse aspecto, o contexto dado, que se apresenta por meio de dados analisáveis são
coerentes com os dispositivos legais que criminalizam o aborto no Brasil, na medida em que
na cobertura jornalística analisada a prisão de pessoas envolvidas, a clandestinidade das
clínicas, os procedimentos adotados pela polícia confirmam, sustentam e reforçam a prática
do aborto como crime, sem que se suscite qualquer tipo de questionamento sobre as razões
que levam as mulheres a abortar.
Diante disso, os dados colhidos foram analisados, de modo que os primeiros dados
encontrados na cobertura jornalística se referem à naturalidade com que a cobertura
jornalística aborda e divulga o aborto como crime. Conforme se verá no primeiro capítulo,
um dos objetivos é fazer uma análise e uma exposição da situação e do contexto legal acerca
do aborto de forma a demonstrar como está o atual contexto político e jurídico brasileiro para
as mulheres, haja vista os dados colhidos, bem como os projetos de lei que visam ao
recrudescimento da punição para quem praticar o aborto, bem como uma evidente intenção
legislativa de proibir o aborto em qualquer situação, inclusive nas situações atualmente
permitidas pela lei, como, por exemplo, o aborto me risco de morte para a gestante.
É objetivo também apontar como opera o controle social sobre o corpo da mulher por
meio do enrijecimento da lei penal e da ideia transmitida pelas notícias de que o aborto é
caso de polícia, o que reduz a prática abortiva a uma questão policial, sem que haja quaisquer
esclarecimentos a respeito da frequência e permanência do aborto no país, bem como analisar
sua naturalização e seu tratamento como um crime como qualquer outro pela cobertura da
mídia jornalística digital e fazer a relação com a desigualdade entre homens e mulheres.

8
Já os dados analisados no segundo capítulo se referem à relação dos agentes dos
crimes apontados na cobertura da mídia jornalística com a lei penal e seus desdobramentos
que, de acordo com os dados observados, apontam para a ênfase que é dada à força policial
utilizada e sua relação com a espetacularização no modo de elaboração da cobertura
jornalística sobre as investigações criminais das clínicas. O objetivo é apresentar, por meio
da análise dos dados coletados nessa cobertura, a maneira como o aparato policial é usado,
bem como a forma com que ela trata o uso da força policial. Isto é, pretende-se fazer uma
interpretação a partir da análise da cobertura da mídia jornalística digital acerca do aparato
policial utilizado nas operações nas clínicas clandestinas. Outro objetivo é analisar a figura
do que se entende por criminoso e apresentar críticas e reflexões a respeito do que a lei
determina que seja crime, bem como analisar a forma com que a mídia noticia as operações
policiais, a qual se verificou que se dá de maneira não somente superficial, mas também de
um modo tendencialmente espetacular, dirigido a tornar a notícia não um meio de informar,
mas, antes, um meio que serve à manutenção do status quo no que se refere à sustentação do
aborto como crime.
A partir disso será também possível estabelecer uma relação com a discussão teórica
feita no primeiro capítulo, na medida em que os dados do segundo capítulo permitem fazer
uma análise crítica sobre como a extensão do rol dos agentes do crime de aborto pode ter
relação com a manutenção do estereótipo da mulher como vítima e da ampliação da
punitividade em razão dos demais agentes no crime de aborto, conforme apontam as notícias.
Já o terceiro capítulo tem o objetivo de fazer a análise do discurso da cobertura da
mídia jornalística digital pesquisada e compreender as razões pelas quais os dados
encontrados neste capítulo constam num número considerável de notícias. Esses dados se
referem aos valores cobrados pelos procedimentos, bem como à quantidade de abortos
realizados nas clínicas. Essa escolha se deu porque se verificou nas notícias que um de seus
destaques foram os lucros obtidos pelas “quadrilhas” ou pelos médicos ou médicas por meio
das clínicas clandestinas, bem como a quantidade de abortos realizados num determinado
período. Pretende-se, com isso, fazer uma análise desse discurso, considerando-se os dados
referentes tanto à quantidade de abortos praticados nas clínicas quanto aos valores cobrados e
o lucro obtido pelos profissionais envolvidos e, a partir disso, tratar sobre os ganhos e perdas
nesse processo no contexto no qual ele se apresenta.
É importante ressaltar que a análise que se faz no terceiro capítulo pretende se pautar
na teoria da análise do discurso de Eni. P. Orlandi, a partir da qual o terceiro capítulo se

9
baseará. Nesse sentido, há uma diferença fundamental quando se fala nesta pesquisa em
análise do discurso e análise da cobertura da mídia jornalística digital no decorrer de seus
capítulos. Isto é, nos capítulos 1 e 2 a análise que se faz é mais objetiva, dos dados coletados
na cobertura jornalística, os quais remetem diretamente a uma interpretação teórica acerca do
que foi encontrado ali. A mesma coisa não ocorre no terceiro capítulo, conforme se verá, na
medida em que neste pretende-se fazer uma análise do discurso nos termos apresentados pela
referida autora, no intuito de se compreender como o objeto analisado produz os sentidos
simbólicos tanto em relação aos sujeitos que os produzem quanto aos sujeitos que o
consomem. Neste ponto, não se buscará necessariamente dar sentido à essa análise, mas
compreender a relação de sentidos que a contorna e a atravessa, com base no contexto
apresentado nos dois primeiros capítulos.
A partir desses objetivos, a preocupação quanto aos efeitos da presente pesquisa para
o respectivo campo, tendo em vista se tratar de um estudo interdisciplinar, é demonstrar a
necessidade de se repensar a maneira pela qual a mídia jornalística digital pode cobrir fatos
relacionados à criminalização do aborto. Nesse sentido, muito embora o estudo parta da
análise da maneira pela qual a mídia trata das operações policiais em clínicas clandestinas, há
também, quase simultânea e consequentemente, a análise da forma de atuação da polícia
nessas operações. Ou seja, ao mesmo tempo em que se a proposta de pesquisa permite fazer
uma análise do discurso midiático sobre o recorte de cobertura jornalística selecionada, é
possível também analisar o contexto no qual o jornalismo brasileiro age na elaboração da
cobertura. Esse contexto diz respeito a uma harmonia encontrada entre a lei penal e aquilo
que se noticia a partir da adequação de fatos sociais ocorridos e noticiados e das previsões
legais dispostas abstratamente. A partir disso, pode-se dizer que o presente estudo pode trazer
contribuições para o campo na medida em que, com base nas reflexões trazidas, permite-se
compreender um dos motivos que podem estar por trás da manutenção como um crime de
uma prática tão insistente e urgente.
Os dados trazidos na cobertura jornalística sobre o aborto demonstram o estado
constante de tensão e medo no qual as mulheres brasileiras se encontram quando, por
diversas razões e circunstâncias, não querem ou não podem prosseguir com uma gravidez, o
que pode se dar em diversos contextos e situações, a depender de sua raça ou da posição
social que ocupa. Por conseguinte, trazer à luz o que muitas vezes se oculta na cobertura da
mídia jornalística digital pode contribuir para que novos olhares sobre esse fato sejam

10
lançados, alterando de alguma forma a maneira de se pensar quando se fala do aborto como
um “crime” no Brasil.
Nesse aspecto, propõe-se a reflexão sobre os poderes que estão por trás do controle
social do corpo da mulher, e em como micropoderes atuam numa perspectiva macro,
sujeitando e impondo às mulheres a submissão a procedimentos abortivos arriscados sem que
lhes sejam oferecidas alternativas. Para essa proposta, optou-se por adotar como fundamento
teórico, a concepção de poder em Michel Foucault e os conceitos a ele relacionados. Há que
se observar que a concepção de poder adotada é voltada ao objeto desta pesquisa e no
contexto no qual ela é feita. Tratou-se, por isso, de interpretar os dados coletados da
cobertura jornalística com base não em um modelo jurídico-discursivo de poder, o qual viria
de cima, da figura de um soberano, mas com base num poder positivo, produtivo, o qual é
relacional e se constitui num corpo social múltiplo. É a partir dessa concepção de poder que
os capítulos 1 e 2 se basearão.
No primeiro capítulo, a maneira difusa com que o poder e, consequentemente, o
controle social atua sobre o corpo das mulheres e suas vidas é interpretada com base em
Michel Foucault e seu conceito de biopoder. Isto é, uma tecnologia de poder que, no presente
trabalho, pretende-se própria do sistema de justiça criminal por meio do qual o controle
social se dá informal e formalmente, ponto este que é tratado a partir da criminologia em
Alessandro Baratta.
O entendimento do controle social com base em Foucault foi adotado em razão de ter
a presente pesquisa uma proposta na qual implica e demanda a discussão de gênero. Com
base nisso, espera-se que a pesquisa e as questões e reflexões trazidas possam contribuir para
uma sociedade mais justa e efetivamente equânime na qual as mulheres tenham sua
autonomia, dignidade e seus direitos reprodutivos respeitados, a despeito de quaisquer outras
razões herméticas e obscurantistas que fujam ao real propósito da busca de uma concreta
cidadania das mulheres.
Para isso, as múltiplas relações de poder que se estabelecem no corpo social, com
base em Foucault, serão analisadas de forma dialogal com Alessandro Baratta e Eugenio
Raúl Zaffaroni, haja vista o controle social trabalhado por eles estarem, conforme colocado,
estritamente relacionado com os estudos sobre o poder em Foucault. O diálogo que se propõe
estabelecer entre os estudos dos referidos autores se dirige a interpretar e a refletir sobre as
possíveis razões pelas quais o aborto ainda é criminalizado no Brasil, a despeito de todos os
dados sobre o aborto inseguro e suas implicações na vida das mulheres.

11
Dentro desse mesmo contexto e linha interpretativa, teóricas da criminologia
feminista, como Soraia da Rosa Mendes (2017) e Vera Regina Pereira de Andrade (2005),
serão estudadas, juntamente com os já citados autores, no intuito de estabelecer um diálogo
sobre a criminologia feminista no que se refere à criminalização do aborto no Brasil. A
intenção é seus estudos como base interpretativa a fim de que se possa refletir melhor sobre a
criminalização do aborto no Brasil e o papel exercido pela mídia jornalística digital.
O segundo capítulo, por ter como alguns dos objetivos o estudo da mídia como
instrumento da manutenção do status quo no que se refere à criminalização do aborto, bem
como a análise da cobertura jornalística paralelamente ao que dispõe a lei penal sobre os
agentes do crime de aborto, os principais autores do referencial teórico serão Marcus Alan
Gomes (2015), no tratamento da mídia e sistema penal, e Rubens Casara (2015), na questão
da espetacularização do processo penal, bem como Eugenio Raúl Zaffaroni (2014 e 2017),
cuja teoria será retomada tanto no que concerne à questão dos meios de comunicação e sua
relação com a criminologia quanto no que se refere ao exercício do poder punitivo estatal e
sua relação com a sociedade. Além desses principais autores, os estudos sobre criminologia
de Vera Regina Pereira de Andrade (2012) serão retomados a fim de que se possa tratar do
estereótipo feminino no crime de aborto e sua relação com a vitimologia.
Outro objetivo do segundo capítulo é apresentar alguns questionamentos sobre o que
seria o crime em si e quem seriam seus protagonistas. Para isso, juntamente com os autores
citados, os estudos de Nils Christie (2013) contribuirão para que se estabeleçam relações
entre a criminalização do aborto no Brasil e o conceito de crime.
O referencial teórico do segundo capítulo se mantém, assim como no primeiro
capítulo, com base num estudo primordialmente criminológico. No entanto, em razão de o
tema proposto no segundo capítulo ter relação com os estudos midiáticos – já que a questão
criminal está estritamente ligada à maneira pela qual a mídia jornalística digital se apropria
das leis penais para fazer valer seu discurso –, autores da teoria da comunicação serão
estudados também de modo que se possa fazer um diálogo tanto entre a criminologia
feminista, a criminologia midiática e os estudos comunicacionais no intuito de possibilitar
uma compreensão da maneira pela qual o processo de apropriação de uma área pela outra
ocorre. Para isso, autores como Muniz Sodré (2009), Mauro Wolf (1999), Vera Veiga França
(2014), dentre outros, foram estudados a fim de situar e atualizar os estudos relacionados aos
meios de comunicação os quais, conforme se verá, foram tratados como sinônimo de mídia
sem consideráveis distinções, haja vista a proposta da pesquisa estar mais próxima de uma

12
compreensão do aborto como crime do que da compreensão da mídia em si, muito embora no
presente trabalho a relação entre ambos seja intrínseca e, por isso, igualmente importante.
Como se verifica, a interpretação teórica aplicada aos dados apresentados é feita
primordialmente com base na criminologia crítica e na criminologia feminista, bem como
nos estudos sobre desigualdades de gênero e sobre o poder em Foucault para, então,
prosseguir com outras questões teóricas relacionadas à mídia e sua relação com a
manutenção do contexto jurídico e político no qual as mulheres se encontram no que se
refere ao aborto como crime.

13
1 O ABORTO E A NATURALIZAÇÃO DE SUA PRÁTICA COMO CRIME

O objetivo deste capítulo é apresentar o atual contexto político e jurídico no qual as


mulheres se encontram no Brasil de modo a relacionar as questões legais às questões
jurídicas concernentes à criminalização do aborto. Para isso, alguns projetos de leis, bem
como a Proposta de Emenda à Constituição 181, que tramitam no Congresso foram
analisados no intuito de situar o atual contexto a fim de que se compreenda os dados
analisados depreendidos das notícias jornalísticas e a relação com os dados referentes às
complicações à saúde das mulheres que por algum motivo precisaram se submeter ao
procedimento, bem como ao número de óbitos.
No primeiro momento, os dados observados das notícias se referem à naturalização
do aborto como um crime como outro qualquer é noticiada pela mídia jornalística digital
analisada e os possíveis reflexos na sociedade. A interpretação teórica desses dados foi feita
com base nas tecnologias de poder em Michel Foucault e os mecanismos que se ocultam por
trás do controle social por meio da criminalização do aborto, conforme se pode observar a
partir de Eugenio Raúl Zaffaroni.
Conforme se poderá observar neste capítulo, o controle social dos corpos das
mulheres será tratado a partir de um diálogo que se baseia na desigualdade de gênero e
demais aspectos que permeiam essa desigualdade, conforme aponta Nancy Fraser acerca da
discriminação de gênero.
Além disso, a análise de como a mídia jornalística digital trata as operações policiais
na investigação de clínicas clandestinas tem o objetivo a narrativa segundo a qual a
criminalização do aborto é reforçada por essa mídia, o que configuraria uma das maneiras
pelas quais o controle social opera.
Importante salientar, ainda, que a partir deste ponto da pesquisa o diálogo entre
autores da criminologia crítica, autoras da criminologia feminista como Alessandro Baratta,
Soraia da rosa Mendes e Vera Regina de Andrade serão fundamentais para a compreensão e
reflexão sobre todos os aspectos que envolvem a desigualdade entre homens e mulheres na
sociedade e sua relação com o controle social sobre os corpos das mulheres.

1.1 A atual situação das mulheres e o contexto político e jurídico em relação


ao aborto no Brasil

14
As hipóteses legais nas quais o aborto é permitido no Brasil são ainda restritas e as
possibilidades de alteração se direcionam para uma restrição ainda maior, ao apontarem para
uma criminalização indiscriminada do aborto, sem considerar qualquer implicação na vida da
mulher ou sem que se faça qualquer análise criminológica ou leitura crítica sobre o tipo penal
no qual o aborto se enquadra. O Projeto de Lei (PL) 5069 tem como objetivo acrescentar um
artigo relativo ao aborto no Código Penal, cujo teor diz respeito a anúncio de meio abortivo e
induzimento ao aborto. O texto desse projeto de lei é obscuro porque prevê que a prestação
de qualquer auxílio para o aborto, “ainda que sob pretexto de redução de danos” dificulta a
interpretação porque vai de encontro às exceções trazidas pelo próprio Código Penal, nos
casos de risco de vida da gestante e gravidez em casos de estupro. A redação que pretende
acrescentar o artigo 127-A ao Código Penal pode, em razão disso, dificultar os
procedimentos médicos necessários nos casos em que o aborto é permitido, o que inclui,
ainda, o aumento de pena para os profissionais da saúde, bem como nos casos em que a
gestante for menor de idade. Em outras palavras, a redação do PL 5069 de 2013 apenas tende
a dificultar qualquer tipo de procedimento ou medicalização abortiva em casos de estupro, ou
até mesmo, o que a redação que pode ser acrescentada permite, nos casos em que há risco de
morte para a gestante.
Ao se considerar que o acréscimo do artigo ao Código Penal tem uma redação que é
toda no sentido de dificultar ou proibir qualquer interrupção da gravidez, haja vista a redação
do PL se mostrar de difícil entendimento quando interpretada de acordo com as exceções ao
aborto previstas pela mesma lei, verifica-se que há uma incisiva tendência a alterar o sentido
do artigo que prevê as exceções. Ou seja, a proposta, ao que indica a leitura do novo artigo
do PL, tem por fim o enrijecimento das hipóteses que permitem o aborto, de modo que o
procedimento seja praticamente impossível de ser realizado legalmente, intenção esta que vai
de encontro aos direitos reprodutivos e à autonomia da mulher sobre seu próprio corpo e sua
própria vida. Pela redação do PL, pode haver até mesmo a impossibilidade de se interromper
a gravidez de mulheres que tenham sido infectadas pelo vírus zika, o qual, de acordo com
Diniz (2016, p. 40), diz respeito ao risco da síndrome neurológica nos fetos, descrito como
“microcefalia” ou ‘síndrome do zika congênito”, com graves repercussões à saúde pública,
uma vez que os mosquitos que carregam o vírus não foram eliminados pelo Estado brasileiro.
Ao afirmar no presente estudo que a finalidade da proposta do PL é enrijecer as
hipóteses que permitem o aborto de forma excepcional, saliente-se que, muito embora o

15
presente trabalho tenha o marco temporal baseado na apresentação do PL 5069 de 2013 na
Câmara dos Deputados, a intenção do PL e do contexto no qual ele se insere só pode ser
percebida pela análise de outros projetos que estão em andamento na mesma Câmara, a partir
dos quais se pode afirmar que o objetivo do acréscimo à lei é dificultar ou até mesmo vetar a
prática do aborto em qualquer situação.
Nesse sentido, embora o PL 5069 tenha sido escolhido para ser o marco inicial
temporal do recorte das notícias analisadas na presente pesquisa, existem ainda outros
projetos de lei que foram apresentados depois dele cujo objetivo é o enrijecimento das
hipóteses em que o aborto é permitido e até mesmo sua proibição total. O PL 4396 de 2016
tem uma redação que altera o artigo 127 do Código Penal. Sua finalidade é aumentar a pena
da prática do aborto nas hipóteses de microcefalia ou qualquer outra anomalia no feto. Isto é,
a alteração prevista no PL 4396 de 2016 acrescenta o aumento de pena justamente para
impedir a exceção decidida pelo STF na ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental) 54 segundo a qual é permitida a “antecipação terapêutica do parto de feto
anencéfalo”. Conforme se verifica, o teor do referido projeto de lei visa proibir também o que
o STF havia permitido no intuito de tornar a possibilidade de realização do aborto ainda mais
difícil.
Há, ainda, o PLS (Projeto de Lei no Senado) nº 461, de 13 de dezembro de 2016,
segundo o qual a proposta de alteração acrescenta o artigo 127-A ao Código Penal diz
respeito à proibição do aborto em qualquer estágio da gestação. A justificativa desse projeto
de lei especificamente se refere à preservação da vida acima de quaisquer outros direitos das
mulheres. No entanto, ao se analisar dados relativos a complicações decorrentes de aborto
inseguro, bem como do número de óbitos anuais, conforme se demonstrará, verifica-se que a
justificativa desse projeto de lei no Senado não tem como objetivo a preservação da vida
efetivamente. O que se propõe é a imposição de mais dificuldades na realização do
procedimento de aborto. Outro aspecto a ser observado é que, muito embora questões
religiosas não façam parte do objeto desta pesquisa, importante mencionar que os autores dos
referidos projetos de lei, além de serem homens, são pastores e/ou evangélicos, fato este que
aponta para uma onda conservadora cujos propósitos são opostos aos direitos das mulheres.
Dois desses projetos de lei, a título de exemplo, são claramente a favor do direito à vida do
embrião e do feto, mas contra o direito à vida das mulheres.
A regressão dos direitos fundamentais das mulheres ou mesmo a impossibilidade de
se efetivá-los se fortalece com a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 181, apresentada

16
pelo Senado, a qual, num primeiro momento, propunha somente a alteração do artigo 7º da
Constituição no que se refere ao aumento da licença maternidade em caso de parto
prematuro. No entanto, ao retornar da Comissão Especial para a análise do texto original, ela
foi alterada de modo que o texto retornou com acréscimos que sequer se podia cogitar que
poderiam ser feitos, diante do conteúdo, o que resultou na PEC 181-A cuja proposta seguiu
uma orientação evidentemente distinta da original. Essa alteração não só aumentou
consideravelmente o conteúdo da PEC, mas também o sentido da proposta, haja vista que
propõe a alteração não mais somente do inciso XVIII do artigo 7º da Constituição, que trata
do tempo da licença maternidade em relação ao parto prematuro, mas, ainda, mais duas
alterações em artigos que se referem a direitos fundamentais.
As alterações na PEC 181, transformada na PEC 181-A, se referem a dois acréscimos
aos artigos 1º, inciso III e 5º, caput, da Constituição Federal os quais passam a constar na
proposta a expressão “desde a concepção”. Diante disso, no referido artigo 1º que dispõe
sobre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, a redação proposta para o inciso III
passa a ser que um desses fundamentos é “a dignidade da pessoa humana, desde a
concepção”, e no caput do artigo 5º a redação passa a ser que “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção, à liberdade, à
segurança e à propriedade (...)”. Essas alterações na PEC 181, as quais nada têm que ver com
a proposta original, quando interpretadas juntamente com os projetos de leis apresentados
cujas propostas pretendem alterar no Código Penal no crime de aborto, verifica-se que o
objetivo é o mesmo, senão o único, qual seja, o de proibir o aborto em qualquer situação,
intenção esta que não guarda relação com os demais artigos que tratam dos direitos
fundamentais na Constituição Federal.
Enquanto em outros países há uma tendência a flexibilizar as leis que proíbem o
aborto ou de descriminalizá-lo dentro de alguns critérios, como foi o caso recente da Irlanda,
a qual a partir de maio de 2018 deixou de proibir o aborto até a 12ª semana de gestação,
outros países como Reino Unido, Holanda, Islândia, Espanha, Romênia1, Cuba, Porto Rico e
a Cidade do México, desde 2007 e Uruguai, desde 20122, deixaram de proibir o aborto, no
Brasil a tendência, conforme se pode verificar, é limitá-lo cada vez mais.

1
DINIS, Débora; LAVINAS, Lena. Direito de irlandesas e brasileiras. O Globo. Rio de Janeiro, 29 maio.
2018.
2
PASCUAL, Julia; MINÃNO, Leila. No Chile, a luta pelo direito ao aborto. Le Monde Diplomatique
Brasil. 01 out. 2015.
17
Ao se falar da maneira pela qual as notícias pesquisadas tratam a prática do aborto em
clínicas clandestinas espalhadas pelo Brasil, o que se constata pela análise dessas notícias é a
naturalização com que a prática do aborto é colocada como crime. Passa-se a ideia de que a
prática do aborto, por estar prevista como crime no Código Penal, é um crime como qualquer
outro, uma vez que as notícias apontam para a movimentação de todo o aparato policial em
torno dessa ideia, a de que a mulher que comete aborto não passa de uma criminosa e que,
portanto, deve ser tratada como tal. Mas o que se verifica pela análise das notícias objeto da
presente pesquisa demonstra, ainda, que não somente as mulheres que recorrem ao aborto são
criminalizadas, mas, de uma forma ainda mais evidente, todos os profissionais que de alguma
forma participaram ou contribuíram para a prática de abortos ilegais são destacados nas
notícia.
Esses dois pontos especificamente serão tratados no próximo capítulo, mas para
prosseguir com o presente capítulo é necessário mencioná-los, ainda que brevemente, dada a
necessidade de tratar sobre a marcante naturalização da prática do aborto como um crime
qualquer narrada nessas notícias.
Saliente-se que ao se falar de “naturalização” no presente estudo diz respeito à
maneira com que os fatos são apresentados pela mídia pesquisada, isto é, a apresentação de
um fato isoladamente de seu contexto e dos sujeitos envolvidos, a maneira que os casos são
tratados é colocada como uma verdade, o que se reflete no foco que é dado à movimentação
de toda estrutura estatal, forças policiais, recursos públicos etc., sem que se adentre a
quaisquer questões relacionadas ao contexto social do que ocorre. Inexiste qualquer menção
ao motivo pelo qual levou as mulheres que se encontravam no local a fim de praticarem o
aborto ou ao motivo pelo qual estavam numa clínica cujos funcionários foram detidos; não
há menção ao número de abortos realizados no País e em quais situações as mulheres optam
por abortar. Esse tipo de informação nas notícias é praticamente inexistente diante da
superficialidade das notícias, o que coloca a prática do aborto como um crime qualquer que
merece punição, bem como não escapa da visibilidade midiática e do excesso de exposição
dos agentes do crime.
Diante disso, quando se fala em “naturalização” da prática do aborto como crime
como retratado nas notícias se fala dessa superficialidade na forma de tratar de uma prática
que está eivada de questões complexas demais para ser tratada apenas como “caso de
polícia”, sem qualquer olhar crítico ou que aponte para uma real necessidade na vida das
mulheres, o que se distancia da lógica que está presente nessas notícias a qual se mostra

18
circular e tautológica porque, de acordo com o que elas apresentam, o aborto é crime porque
é crime previsto na lei e na maior parte das notícias não se questiona ou se levanta qualquer
dúvida a respeito disso.
A naturalização da qual aqui se fala apresenta implicações por se referir a uma prática
que é criminalizada e evidenciada sem qualquer análise crítica pela mídia pesquisada. São
apresentadas como se dissessem respeito a crimes comuns, como roubo, homicídio, furto etc.
sem que se observe ou mesmo faça aparecer as circunstâncias sociais peculiares que
permeiam a prática do aborto.
Nesse sentido, a forma com que as notícias analisadas na pesquisa tratam das clínicas
clandestinas sequer se aproximam da realidade vivenciada pelas mulheres que decidem
abortar, o que demonstra um descolamento entre a realidade brasileira acerca do aborto e da
maneira pela qual a mídia digital noticia as clínicas clandestinas de aborto, uma vez que sua
prática é uma realidade presente em todas as classes sociais e da qual qualquer mulher está
sujeita, conforme apontam os resultados da PNA (Pesquisa Nacional de Aborto) realizada em
2016, segundo a qual demonstrou que “o aborto é comum entre as mulheres brasileiras”
(PNA, 2016, p. 655). De acordo com a pesquisa realizada em campo em junho de 2016, foi
constatado que das 2.002 mulheres alfabetizadas das áreas urbanas entre 18 e 39 anos que
foram entrevistadas, 13% já fez ao menos um aborto, percentual este que corresponde um
total de 251 mulheres do total de mulheres entrevistadas. Uma das conclusões da pesquisa é
de que quase uma em cada cinco mulheres aos 40 anos fez um aborto, sendo que a PNA
(2016, p. 659) aponta que “no ano de 2015 ocorreram cerca de meio milhão de abortos”
Grande parte dos abortos realizados é ilegal, “feito fora das condições plenas de
atenção à saúde”, o que coloca o aborto como “um dos maiores problemas de saúde pública
do Brasil” (PNA, 2016, p. 659), além do fato de sua frequência ser alta, já que os dados de
diferentes grupos etários de mulheres permanecem assim há muitos anos. A proporção de
mulheres que realizaram pelo menos um aborto não se alterou de forma relevante entre os
anos de 2010 e 2016, de acordo com a PNA dos respectivos anos, o que demonstra que “o
problema de saúde pública chama a atenção não só por sua magnitude, mas também por sua
persistência” (PNA, 2016, p. 659).
A partir dos dados retirados da PNA 2016, verifica-se que a prática do aborto, a
despeito de ser crime no Brasil, é considerada de grande magnitude e segue sendo
persistente, além do fato de não ser um fenômeno específico de uma determinada região ou
situação econômica, muito embora possa haver influência a depender da região onde a

19
pesquisa é feita. Não há um estereótipo específico das mulheres que abortam, pois, conforme
concluiu a própria pesquisa, “a mulher que aborta é uma mulher comum” (PNA, 2016, p.
659), o que demonstra que a criminalização não guarda correspondência com a real situação
do aborto no Brasil e só serve para impor às mulheres uma situação de risco ao lhes negar a
prática do aborto seguro, que não coloque sua saúde nem sua vida em risco, uma vez que a
PNA 2016 demonstra que 46 a 48% das mulheres entrevistadas foram internadas no último
aborto.
As pesquisas apontam que são sobretudo as mulheres mais pobres, com baixa
escolaridade e negras que recorrem a práticas clandestinas e inseguras para abortar, o que
demonstra a prática do aborto é mais acentuada entre mulheres de escolaridade mais baixa e
com maior frequência nas mulheres não brancas (SANTOS, 2013). Além disso, “as mortes
por aborto no Brasil ocorrem principalmente entre as mulheres pobres, jovens e negras com
baixa escolaridade” (FUSCO; SILVA; ANDREONI, 2012, p. 710). No entanto, embora o
quadro seja evidentemente mais prejudicial para esse grupo de mulheres, há que se verificar
que, de acordo com os resultados da PNA 2016, “o aborto é um fenômeno frequente e
persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e
religiões.” (PNA, 2016, p. 653). O aborto é, portanto, “um fenômeno tão expandido que
cumpre considerá-lo como um dos riscos normalmente implicados na condição feminina”
(BEAUVOIR, p. 646, 2009), ou seja, trata-se de um procedimento que deveria ser
considerado e tratado de forma semelhante ao parto no sentido de ser inerente à condição da
mulher. Nesse mesmo sentido foi o que declarou em entrevista um médico que realiza
abortos no estado de São Paulo, ao falar sobre a situação do aborto no Brasil e as
consequências pelas quais as pessoas pobres se submetem ao tentar interromper uma
gravidez indesejada. O médico, cuja identidade não foi revelada na entrevista a fim de que
sua integridade, bem como a de suas pacientes fosse preservada, declarou que

O pobre sofre mais consequências do aborto mal feito. Ou acaba tendo outro filho
porque não conseguiu interromper. A mulher vai, usa o Cytotec [medicamento para
evitar úlceras gástricas usado como abortivo] e não consegue. Aí o filho nasce com
sequelas, paralisia facial... Por isso acho a interrupção um procedimento tão ético
quanto um parto.3

No entanto, a prática do aborto no Brasil, ainda se apresenta como um grave


problema de saúde pública, dada a proporção e magnitude, o que é refletido no número anual

3
Entrevista concedida ao El País, por um médico que realiza abortos clandestinos em São Paulo,
publicada em 8 de março de 2014, com o título “O mesmo amor com que se faz um parto de faz um
aborto”.
20
de mais de um milhão de abortos induzidos no Brasil, além de ser uma das principais causas
de morte materna no País. Anualmente, são realizadas no SUS cerca de 240 mil internações
decorrentes de complicações em abortos. O aborto inseguro é, ainda, a quarta causa de morte
materna (SANTOS, 2013, p. 497) e se constitui como uma das formas de discriminação
contra a mulher.
Nesse aspecto, a considerar o quadro que se apresenta no Brasil, com os dados e
estatísticas aqui colocados, o que se constata no que se refere à discriminalição é que mesmo
com um elevado número de internações e óbitos decorrentes da prática do aborto clandestino,
como não poderia deixar de ser em razão de ser criminalizado, a insistência em manter sua
prática como crime no Brasil constitui uma evidente conduta estatal discriminatória que se
dirige tão somente à mulher, mais especificamente àquelas mulheres com baixa escolaridade
e não brancas, conforme se demonstrou.

1.2 O controle social do corpo da mulher e a criminalização do aborto como


conduta discriminatória

Como se pode verificar, o Estado e suas instituições insistem em manter como crime
uma prática que persiste ao longo dos anos e numa escala estável, entre mulheres de
diferentes classes sociais e graus de escolaridade. Ainda que haja predominância em
mulheres com baixa escolaridade e não brancas, pode-se dizer que se trata de prática estatal
discriminatória, na medida em que se conserva uma estrutura social de controle sobre os
corpos das mulheres, que as mantêm submetidas a uma constante pressão e sob o risco
permanente de morrerem ou sofrerem sequelas decorrentes de abortos realizados
clandestinamente. O risco de gravidez, nesse contexto, torna-se um meio de controle de
poder. Integra-se nesse ponto o controle sobre os corpos das mulheres por meio do biopoder,
isto é, uma tecnologia de poder caracterizada por uma

(...) série de fenômenos (...), a saber, o conjunto de mecanismos pelos quais aquilo
que na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai
poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de
poder. (FOUCAULT, 2008, p. 03)

Essa tecnologia de poder se dirige especificamente a uma população específica, qual


seja, a população feminina, muito embora a biopolítica esteja espraiada em todo o corpo o

21
qual não se pode chamar de social, mas, como coloca Foucault, um “corpo múltiplo, corpo
com inúmeras cabeças, se não infinito, pelo menos inumerável.” (FOUCAULT, 1999, p.
292). A biopolítica vai operar a partir de “previsões, de estimativas estatísticas, de medições
globais” e “vai se tratar igualmente, não de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal
indivíduo, na medida em que é indivíduo, mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo
que são as determinações desses fenômenos gerais (...).” (FOUCAULT, 1999, p. 293). É
importante, neste ponto, observar que

se o corpo do indivíduo, como quer Foucault, é perpassado pelo poder, todo o corpo
social está igualmente submetido ao jogo de forças em conflito. E da mesma forma
que o poder produz subjetividades – no nível individual –, ele produz efeitos
globais, agindo sobre o conjunto de membros de uma comunidade política.
(ADVERSE, 2016, p. 938)

Por conseguinte, ao se considerar os dados relativos ao número de óbitos decorrentes


de abortos no Brasil, o Sétimo Relatório Periódico Brasileiro da CEDAW (Comitê para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher), realizado em 2012,
demonstra que o aborto inseguro está entre as principais causas de mortalidade materna, a
qual representa 11% do total de mortes de mulheres no Brasil. Além disso, no que se refere à
raça, consta no relatório que “as mulheres negras apresentam um risco 3 vezes maior de
morrer por aborto inseguro do que as mulheres brancas; mulheres com baixa escolaridade
possuem acesso deficiente às políticas de planejamento familiar para prevenção de uma
gravidez indesejada.” Ao fazer a análise desse dado dentro de um contexto biopolítico no
qual já existe um controle social sobre os corpos das mulheres de um modo geral, observa-se
que se as mulheres negras apresentam um risco três vezes maior de morrer por aborto
inseguro, pode-se dizer que o controle social exercido sobre elas é atravessado não somente
pelo gênero e pela classe, mas, ainda, pela raça. Isso faz com que a situação das mulheres
negras, no que se refere à criminalização do aborto e suas consequências, seja um
desdobramento da seletividade do sistema de justiça criminal.
Nesse contexto, a intervenção biopolítica sobre a população feminina se dá de forma
regulamentada a partir da qual o poder se caracteriza pelo “fazer viver” e “deixar morrer”, ao
contrário do poder da soberania segundo o qual o Estado soberano “fazia morrer e deixava
viver” (FOUCAULT, 1999, p. 294), na medida em que a criminalização do aborto, bem
como o discurso midiático naturalizado que se faz sobre ele, constitui-se como a imposição
do poder de “fazer viver” (o embrião ou feto) e de “deixar morrer” as mulheres que não
querem ou não podem, por qualquer motivo, prosseguir com uma gravidez. Um valor (da

22
vida de um embrião) que o Estado, por meio da criminalização do aborto, impõe sobre a vida
concreta das mulheres, a despeito de todos os dados relacionados tanto quanto ao número de
complicações decorrentes da realização de abortos clandestinos quanto ao número de mortes
anuais, os quais são de conhecimento público.
A função exercida pela mídia jornalística digital, por conseguinte, haja vista a
naturalidade com que o aborto é tratado nas notícias analisadas, faz com que a criminalização
de sua prática seja mantida de maneira desconcentrada, para além de um único núcleo de
poder, isto é, o biopoder a partir do qual o aborto é mantido como um crime, legitimado por
inúmeras teias no “corpo múltiplo” no qual

existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o


corpo social e que estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer
nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um
funcionamento do discurso. (FOUCAULT, 1979, p. 179)

Zaffaroni e Pierangeli (2015, p. 62) vão numa direção muito próxima à de Foucault
ao colocar que em razão de o âmbito do controle social ser muito amplo e diante de sua
protéica configuração nem sempre é evidente, o que caracteriza o fenômeno de ocultamento
do controle social que se perfaz de formas distintas nos países centrais e periféricos, mas que,
a despeito disso, está presente em ambos. Para o autor, “os meios de comunicação de massa
induzem a padrões de conduta sem que a população, em geral, perceba isso como ‘controle
social (...)’.” (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2015, p. 62)
A criminalização do aborto e as informações de sua prática veiculadas pela mídia
digital tendem a reforçá-lo como um crime qualquer. Esse reforço anda de par com a
discriminação das mulheres, na medida em que, conforme se pode verificar no primeiro item
do presente capítulo os projetos de lei apresentados, cujos objetivos convergem à limitação e
até mesmo à proibição do aborto em qualquer hipótese, o que pode ser observado também na
Proposta de Emenda à Constituição 181-A, que tem como autores homens brancos que fazem
parte de uma elite política e econômica. Ou seja, encontram-se esses sujeitos numa realidade
e vivência distantes da realidade dos outros sujeitos aos quais as leis que eles propõem alterar
recairão. Nesse aspecto, conforme aponta Silva (p. 423, 1979), na prática, os homens
continuam donos do corpo, da psique e do comportamento femininos, o que os leva a se
sentirem muito capazes e autorizados para legislar sobre o corpo das mulheres, o que inclui
legislar sobre maternidade, anticoncepção e aborto, com uma impávida suficiência que

23
prescinde da opinião das interessadas4. Essa situação é evidenciada quando, conforme
demonstrado, o conteúdo dos projetos de lei vai de encontro aos dados acerca do aborto, os
quais demonstram a situação das mulheres no País. Em outras palavras, a discriminação
opera tanto no controle social do corpo das mulheres quanto no procedimento formal de
elaboração das leis que dispõem sobre esse controle, o que se verá em item adiante.
A sujeição das mulheres às normas androcêntricas “faz com que as mulheres pareçam
inferiores ou desviantes e contribuem para mantê-las em desvantagem, mesmo na ausência
de qualquer intenção de discriminar” (FRASER, 2006, p. 234). Trata-se de uma
subordinação que se sustenta e se renova difusa e constantemente, a qual pode ser
identificada como “discriminação atitudinal”, termo usado por Nancy Fraser para se referir a
uma discriminação que seria algo semelhante a uma discriminação institucional, em razão de
não haver intenção de discriminar, mas que gera, do mesmo modo, “a exclusão e/ou
marginalização das esferas públicas e centros de decisão e a negação de direitos legais plenos
e proteções igualitárias” (FRASER, 2006, p. 236), uma vez que o androcentrismo diz
respeito à “construção autorizada de normas que privilegiam os traços associados à
masculinidade” (FRASER, 2006, p. 234), o qual vem acompanhado do sexismo cultural que
se caracteriza pela “desqualificação generalizada das coisas codificadas como ‘femininas’
(...).” (FRASER, 2006, p. 234). Essa desvalorização

Se expressa numa variedade de danos sofridos pelas mulheres, incluindo a


violência e a exploração sexual, a violência doméstica generalizada; as
representações banalizantes, objetificadoras e humilhantes na mídia; o assédio e
a desqualificação em todas as esferas da vida cotidiana; (...) (FRASER, 2006, p.
324)

Todas essas formas de desvalorização são manifestações da discriminação que


operam tanto de modo direto quanto de formas indiretas (atitudinal), como é o caso do
discurso que se faz acerca da maternidade. Nesse sentido, a maternidade compulsória,
imposta por meio da criminalização do aborto, bem como pela valorização da mulher
enquanto cumpridora da função materna que lhe é designada pelo controle social informal –
veja que aqui tanto o controle social formal quanto o informal contribuem para que a
maternidade compulsória se mantenha – são formas de discriminação atitudinal, de modo
que, no segundo caso, o controle informal que se dá com a idealização da mulher-mãe, é

4
Saliente-se que se trata de citação que se refere a um artigo escrito por Carmen da Silva, em 1979, para
a revista Cláudia, republicado no livro “Problemas de Gênero” em 2016, o que demonstra que nesses
últimos 39 anos nada se alterou nesse aspecto.
24
conduzido de forma sutil e difusa no corpo social por meio dos meios de comunicação, nos
diálogos do cotidiano etc., nos quais a mulher aparece como aquela que cumpre ou cumprirá
em algum momento de sua vida o papel de mãe.
Zaffaroni aponta que

A discriminação, em sua forma de hierarquia baseada em diferenças


biológicas dos seres humanos, têm múltiplos capítulos que são outras
tantas faces de uma mesma viscosidade: racismo, discriminação de
gênero, de pessoas com necessidades especiais, de enfermos, de
minorias sexuais, de crianças, adolescentes e pessoas maiores etc.5
(ZAFFARONI, 2003?, p. 19)

De acordo com o Autor, há duas formas de classificação de discriminação, propostas


por Michel Wieviorka. Uma delas é a forma inorgânica que se refere às discriminações que
se manifestam sem discursos ou instituições que as sustentem de modo pretendidamente
coerente. Já as formas orgânicas são aquelas que aparecem quando partidos ou instituições
assumem os discursos as sustentam. Há ainda as formas oficiais de discriminação que são
aquelas assumidas como políticas pelos Estados (ZAFFARONI, 2003?, p. 20). Pode-se dizer
que a criminalização do aborto no Brasil se vale dessas três formas de discriminação contra a
mulher, mas sua predominância é a forma oficial de discriminação. Para o autor, “a
discriminação biológica é sacralizada com o surgimento do poder punitivo em sua forma
atual, com o saber manipulado por inquérito e efeitos de domínio com a consequente
hierarquia patriarcal, senhorial e corporativa da sociedade.”6 (ZAFFARONI, 2003?, p. 20),
Ressalte-se que o termo discriminação, inserido no contexto que aqui se apresenta, é
cabível na medida em que a insistência na criminalização do aborto, mesmo com todos os
dados retirados de pesquisas empíricas realizadas nos últimos anos as quais demonstram a
precariedade e o constante risco ao qual as mulheres estão submetidas, caracteriza de fato o
referido termo. Discriminação, de acordo com Rios (2008), diz respeito à “materialização, no
plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas,
relacionadas ao preconceito, que produzem violação de direitos dos indivíduos e dos
grupos.” (RIOS, 2008, p. 15).
A discriminação contra a mulher que recai na criminalização do aborto é inorgânica
quando se aceita social e culturalmente que a mulher deve ser, necessariamente, em algum

5
Tradução livre de ZAFFARONI, Eugênio Raúl. El discurso feminista y El poder punitivo. [2003?].

6
Tradução livre de ZAFFARONI, Eugênio Raúl. El discurso feminista y El poder punitivo. [2003?].

25
momento de sua vida, mãe. É orgânica quando partidos conservadores, como ocorre no
Brasil, assumem os discursos que criminalizam o procedimento abortivo sem considerar os
dados relacionados a óbitos e complicações durante o procedimento. Trata-se, ainda, de uma
discriminação intencional por consistir

em violações deliberadas de direitos civis, mas pode assumir a forma branda da


indiferença para com o impacto danoso de instituições e estruturas sociais nas
mulheres e minorias (como quando legisladores brancos toleram danos infligidos a
mulheres e a minorias que seriam tidas como intoleráveis se infligidos aos homens
ou aos brancos). (INGRAM, 2010, p. 170)

E possui, precipuamente, a forma oficial quando o Estado acata todos esses discursos
e criminaliza o aborto, indo de encontro a todo um ordenamento jurídico sistemático cujo
fundamento é a dignidade humana e, antes disso, descolando-se da realidade das mulheres
que precisam se submeter ao procedimento sem qualquer proteção ou tutela. A
criminalização do aborto é, portanto, um dos desdobramentos do patriarcado, termo
feminista que designa “o impacto danoso díspar que instituições socioeconômicas, estruturas
políticas e normas têm sobre as mulheres” (INGRAM, 2010, p. 170)

1.3 Análise das notícias da mídia digital sobre o aborto e as clínicas


clandestinas no Brasil

No contexto que aqui se apresenta e diante dos dados que demonstram a real situação
das mulheres brasileiras no que se refere ao aborto, o controle social pode se dar também por
meio dos diferentes tipos de mídia. No presente estudo mídia jornalística digital foi analisada
e o recorte foram notícias que se referem a operações policiais realizadas em clínicas de
aborto clandestinas, a partir das quais foi possível observar a “naturalização” com que esta
mídia trata as clínicas clandestinas, as pessoas envolvidas e o aborto no Brasil.
O modo com o qual os crimes de aborto são noticiados demonstram a maneira natural
como ele é tratado e colocado, na maior parte das vezes, de forma negativa, o que reforça sua
prática como se se tratasse de qualquer outro tipo de crime, o que evidencia, ainda que não
seja essa a intenção dessas notícias, a frequência com que mulheres recorrem ao
procedimento, bem como o número de profissionais envolvidos, como demonstra, a título de
exemplo, o trecho da notícia a seguir, retirada do site G1, datada de 14/10/2014, segundo a
qual consta que “o público alvo da quadrilha eram mulheres” uma informação que, embora

26
óbvia, pode passar despercebida, dada a naturalidade com que a informação é colocada.
Além disso, a notícia aponta que “inclusive menores de idade, nas mais variadas etapas de
gestação”, o que reflete e reforça o que notícias como essas pretendem negar, isto é, que a
prática do aborto é muito mais frequente do que se imagina e evidencia a necessidade de que
menores de idade deveriam poder se submeter ao procedimento sem quaisquer
constrangimentos, caso fosse descriminalizado. Em outras palavras, a própria notícia evoca,
sem intenção, a necessidade da descriminalização do aborto, na medida em que ao mesmo
tempo que reforça e, por consequência, naturaliza a prática do aborto como crime, apresenta
dados concretos que evidenciam uma demanda social para que seja descriminalizado. (esse
ponto deve ser tratado com mais profundidade no capítulo 2 no qual será usado “uma
razoável quantidade de crime”)
Notícia do Site G1, datada de 14/10/2014, conforme referido:

O trecho da mesma notícia abaixo, retirada do site G1, datada de 14/10/2014, aponta
que se trata de “um problema recorrente em vários lugares” e imediatamente depois o foco da
notícia é novamente voltado à operação policial e ao envolvimento de policiais no caso,
demonstrando, com isso, a naturalização e dessas operações que investigam a prática do
aborto como se fosse um crime qualquer, com todo o aparato policial em busca de agentes
envolvidos.
A maneira de sobrepor uma informação à outra de forma imediata demonstra a
relevância que a notícia dá para a operação policial e de como ela deve operar, dentro dos

27
limites legais, o que pode levar o leitor a prestar mais atenção na suposta necessidade que os
agentes policiais devem ter para cumprir sua função dentro do que determina a lei.
Desta maneira, qualquer possibilidade de se pensar a prática do aborto como uma
realidade social advinda das necessidades reais das mulheres que buscam pelo procedimento
em clínicas clandestinas é ofuscada pelo discurso da operação policial, a qual, de acordo com
a notícia, como se pode verificar, cumpre sua função legal e legítima de maneira a dar à
notícia a idéia de seriedade da corporação das polícias civil e militar na operação policial.

1.4 O direito brasileiro e a desigualdade entre homens e mulheres: o reflexo da


divisão social do trabalho na construção do sistema de justiça criminal

O posicionamento diferente de mulheres e homens na sociedade impõe experiências


divergentes para ambos e um tratamento diferenciado do primeiro grupo em relação aos seus
direitos e, na prática, deveres. Nesse sentido, o direito e as instituições mantêm as mulheres
ainda submetidas ao cumprimento de papeis sociais que atentam contra sua autonomia e
independência, tal como é o caso da manutenção da prática do aborto como crime, mesmo
diante de todos os dados que demonstram o constante risco de vida a que as mulheres
precisam se submeter quando não podem ou simplesmente não querem prosseguir com uma
gravidez.
O direito brasileiro reflete as contradições que permeiam a vida das mulheres
brasileiras, na medida em formalmente a Constituição da República garante o direito à
igualdade, conforme estão previstos no inciso I do artigo 5º, bem como no parágrafo quinto
do artigo 226, os quais prevêem, respectivamente, que “homens e mulheres são iguais em
28
direitos e obrigações” e que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são
exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”, as desigualdades materiais subsistem
insistentemente, com base em comportamentos culturais e históricos que delegam às
mulheres responsabilidades afetas ao ambiente doméstico e ao cuidado dos demais membros
da família e que reflete a divisão entre as esferas pública e a privada relacionada ao
feminismo.
No que se refere à criminalização do aborto, Campos (1999) aponta o que se verificou
acima no sistema penal de controle do desvio social o qual revela “a contradição fundamental
entre igualdade formal dos sujeitos do direito e desigualdade substancial dos indivíduos”
(CAMPOS, 1999, p. 14). Ao tratar do assunto, a Autora se refere à seletividade do sistema
penal que se dirige à população pobre, tema este que é um dos principais pilares da
criminalização. Campos se refere à seletividade do sistema penal voltado à criminalização da
população mais pobre; a função do sistema penal apontada reproduz as relações sociais e
mantém a estrutura vertical da sociedade e os processos de marginalização, o que faz com
que a criminologia crítica revele a “realidade oculta do sistema penal” (CAMPOS, 1999, p.
15), o que, a despeito disso, ainda não incorporou a crítica feminista ao Direito e à Ciência.
A desigualdade da mulher no direito penal é reflexo do mesmo sistema que lhe
garante igualdade, mas que na prática prevalece a desigualdade. Essa situação, desde a
década de setenta, como afirma Baratta, passou a ganhar mais atenção por parte da
criminologia, pois tanto a falta de proteção das mulheres quanto às formas específicas de
criminalidade a elas relacionadas saíram da marginalidade acadêmica e passaram a ser
estudadas. Nesse aspecto, a desigualdade material que caracteriza a situação da mulher tanto
na sociedade quanto no direito e no sistema da justiça criminal é entranhada e historicamente
internalizada.
No que se refere ao aspecto histórico da criminologia, autores como Zaffaroni (2013)
e Mendes (2017), consideram a inquisição como uma “manifestação orgânica do poder
punitivo recém nascido, a partir da qual, pela primeira vez, se expõe de forma integrada um
discurso sofisticado de criminologia etiológica, direito penal, direito processual penal e
criminalística” (MENDES, 2017, p. 20-21). Isso foi feito por meio do Martelo das
Feiticeiras, obra dos inquisidores Kramer e Sprenger, na qual é atribuído às mulheres um
conjunto de características que lhes seriam próprias e que justificasse toda a perseguição
genocida a elas, o que se baseou num discurso que fundou o poder punitivo a partir da
ameaça que as bruxas representavam. (MENDES, 2017, p. 22). Mesmo entre os historiadores

29
há muitas interrogações acerca das razões que levaram ao “significativo aumento da
violência contra as mulheres” (MENDES, 2017, p. 25). De acordo com a autora,

Por mais de três séculos nenhuma mulher restou incólume ao delírio


persecutório daqueles tempos, pois o empreendimento ideológico foi
tão bem arquitetado e alicerçado, que depois do Malleus
Maleficarum, até o século XIX, a criminologia, salvo referências
tangenciais e esporádicas, não mais se ocupou das mulheres. Em
verdade, poder-se-ia dizer que não mais “precisou” se ocupar das
mulheres dada a eficácia do poder instituído a partir da Idade Média.
(MENDES, 2017, p. 29)

Como se pode verificar, a criminologia etiológica teve por base todo o conjunto de
atribuições às mulheres que as fizeram ser perseguidas e mortas por mais de cinco séculos,
tempo suficiente para fazer com que a figura da mulher permanecesse por muitos outros
séculos como uma ameaça. No entanto, embora isso faça parecer que a submissão e a
reclusão das mulheres tenham sido inovações medievais, conforme aponta Mendes, já “na
Palestina, ao tempo de Jesus Cristo, por exemplo, por volta dos doze anos, ou mais cedo, as
meninas passavam do poder paterno para o marital” (MENDES, 2017, p. 27), o que as levava
ao afastamento da esfera pública.
Com isso, o afastamento da mulher da esfera pública ocorreu antes da Idade Média,
mas, conforme aponta a citada autora,

é a partir da baixa Idade Média, especificamente, que se constrói o


mais perfeito e coordenado discurso, não somente de exclusão ou
limitação da participação feminina na esfera pública, mas de sua
perseguição e encarceramento como pertencente a um grupo
perigoso. (MENDES, 2017, p. 28)

Entretanto, a situação de subalternidade e enclausuramento doméstico da mulher é


mantida mesmo durante e depois do Iluminismo, uma vez que “entre o final da Idade Média
e o século XIX, não há pensamento criminológico sobre a condição de repressão e
perseguição das mulheres” (MENDES, 2017, p. 31) e a mulher é relegada à esfera doméstica,
espaço onde o controle informal se exerce e onde a lei não alcança. Conforme aponta
Mendes, os direitos conferidos às mulheres no Iluminismo

não tinham outro objetivo senão o de torná-las melhores mães ou


esposas. E, é neste sentido, que o direito buscou assegurar a
“diferença”. Ou seja, tendo, por exemplo, a maternidade como uma
das réguas a partir da qual se determinava um padrão de mulher
“normal” ou de “criminosa”. (MENDES, 2017, p. 36)

30
Diante disso, conforme aponta Baratta (1999, p. 45) uma estrutura baseada em “duas
esferas da divisão social do trabalho, quais sejam, a da produção material e a da reprodução”,
não é menos importante que as posições sociais e sua reprodução, na medida em que

É nesta diferenciação das esferas e dos papéis na divisão social do


trabalho que age a construção social dos gêneros. A sociedade
patriarcal reservou, de forma ampla, o protagonismo da esfera
produtiva aos homens e do círculo reprodutivo, às mulheres.
(BARATTA, 1999, p. 45)

O sistema penal, para Baratta (1999, p. 45), “é um sistema de controle específico das
relações de trabalho produtivo, e, portanto, das relações de propriedade, da moral do
trabalho, bem como da ordem pública que o garante”. A estrutura do Direito Penal não é
direcionada à ordem privada no sentido de que o poder punitivo público não tem por objeto
primeiro exercer controle sobre a esfera privada. Enquanto às mulheres é dirigido
exclusivamente um sistema de controle informal, que se realiza na família e no âmbito
privado, relacionado ao seu papel de gênero e que, portanto, se distancia da tutela do direito
penal; aos homens, enquanto operadores de papéis na esfera pública, se dirige o controle
exercido pelo direito penal, isto é, um direito feito por e para homens. (SMAUS apud
BARATTA, 1994, p. 46)
Esse controle informal que é dirigido às mulheres as quais são possuidoras de papeis
no âmbito privado da reprodução natural reafirma o discurso ou a ideologia oficial do
sistema com base no qual tanto o controle informal quanto o formal reproduzem as
hierarquias de gênero. Como aponta Andrade (2005, p. 85), o protagonismo reservado à
mulher na esfera privada, lugar onde se exercem as relações familiares, opera por meio do
aprisionamento da sexualidade da mulher na sua função reprodutora e de seu trabalho no
cuidado do lar e dos filhos, o que caracteriza o eixo da dominação patriarcal. No entanto,

O contrato sexual, deve-se enfatizar, não está associado apenas à esfera privada. O
patriarcado não é puramente familiar ou está localizado na esfera privada. O
contrato original cria a sociedade civil patriarcal em sua totalidade. Os homens
passam de um lado para o outro, entre a esfera privada e a pública, e o mandato da
lei do direito sexual masculino rege os dois domínios. A sociedade civil é
bifurcada, mas a unidade da ordem social é mantida, em grande parte, através da
estrutura das relações patriarcais. (PATEMAN, 1993, p. 29)

Por conseguinte, a diferenciação social das qualidades e dos valores masculinos e


femininos difere nos dois sistemas, já que ambos possuem competências distintas dentro do
mecanismo geral de reprodução do status quo social, cuja diferença está no fato de que,
enquanto o sistema de controle penal age na esfera pública, o sistema informal age na esfera
31
privada, de modo que em ambos há o elemento masculino da violência física como última
garantia de controle (BARATTA, 1999, p. 46-7).
O autor aponta para a diferença do estilo dos dois sistemas de controle, porque no
sistema de controle penal prevalecem qualidades consideradas “masculinas” relacionadas à
ciência e ao direito, tais quais abstração, objetividade, orientação segundo princípios etc.;
enquanto no sistema de controle informal, os elementos que prevalecem são aqueles
socialmente atribuídos ao homem, como demonstra o primeiro elemento de cada um dos
seguintes pares: “em pares conceituais que dizem respeito, especificamente, às esferas
privada, da sexualidade e da reprodução natural, vale dizer: ativo/passivo, impulso/sensível,
forte/fraco, dominante/dominado, possuidor/possuído” (BARATTA, 1999, p. 47). Como se
pode observar, há uma exaltação das “qualidades subjetivas do predomínio masculino na
esfera privada, onde o relacionamento da dominação é homem/mulher” (BARATTA, 1999,
p. 47), enquanto na esfera pública, no âmbito do controle penal, as qualidades exaltadas são
as objetivas, as quais “asseguram, principalmente, a relação de domínio de homens sobre
outros homens e, residualmente, o relacionamento de dominação de gêneros.” (BARATTA,
1999, p. 47).
Os mecanismos de controle das esferas pública e privada se complementam, por
constituírem “um instrumento material e ideológico fundamental para o funcionamento de
uma economia geral do poder, na qual todas as várias relações de domínio encontram o seu
alimento específico e, ao mesmo tempo, se entrelaçam e sustentam”, de modo que a esfera
pública assegura a reprodução material, na qual se concentram os campos de ação mais
prestigiados, campo privilegiado no qual se realizam os papeis masculinos , ao contrário da
esfera privada, que é reservada ao mundo de vida, terreno fértil dos papéis femininos.
(BARATTA, 1999, p. 48).
Há, consequentemente, no sistema de justiça criminal, com base no que coloca
Baratta, uma dupla residualidade a qual por meio das “estruturas profundas em ação”, quais
sejam, o capitalismo e o patriarcado, condicionam o sistema de justiça criminal e o torna um
controle seletivo, que reproduz e relegitima por meio de um controle classista, sexista, além
de racista (ANDRADE, 2005, p. 83). Nesse sentido, o sistema de justiça criminal replica a
lógica e a função real de todo o mecanismo de controle social em nível micro e macro, isto é,
o controle social por meio da produção de subjetividade e o controle social no nível macro,
como um exercício de poder entre homens e mulheres o qual reproduz as estruturas, as

32
instituições e os simbolismos, o que torna o sistema de justiça criminal elemento chave na
manutenção do status quo social. (ANDRADE, 2005, p. 83).
O controle social no nível macro só se efetiva por meio de um controle social micro, o
qual se faz possível a partir de um controle social difuso presente na distribuição simbólica e
hierarquizada de papeis sociais que são cumpridos nas esferas pública e privada, por meio
dos quais o simbolismo de gênero é reforçado “com sua poderosa estereotipia e carga
estigmatizante” (ANDRADE, 2005, p. 85), o que denota a discriminação que é fruto de
estigmas sociais arraigados. A reprodução sistemática dos simbolismos de gênero num nível
micro por homens e mulheres

apresenta a polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças


naturais (biologicamente determinadas) e as pessoas do sexo feminino como
membros de um gênero subordinado, na medida em que determinadas qualidades,
bem como o acesso a certos papeis e esferas (da Política, da Economia e da Justiça,
por exemplo) são percebidos como naturalmente ligados a um sexo biológico e não
o outro. (ANDRADE, 2005, p. 85)

A construção da mulher como um “(não) sujeito do gênero feminino” (ANDRADE,


2005, p. 85), é reforçado e mantido pela bipolaridade do gênero. O aborto é, de algum modo,
o crime que sustenta o sistema de justiça criminal como eminentemente androcêntrico, já que
serve apenas como instrumento de controle social da mulher que opera por meio do medo e
do risco de morte e complicações pelo aborto clandestino. Isso ocorre em razão de que,
conforme dados do Relatório do IPAS Brasil, até 2011, o número de mulheres processadas
por aborto era de 128, número que corresponde à quantidade de processos que tramitavam no
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Saliente-se, entretanto, que

Este tipo de dado, acerca de registros criminais, nos desperta duas questões
imediatas: a primeira se relaciona com o que muitos chamam de “subnotificação”,
ou seja, uma ocorrência de registros que não traduz propriamente a
incidência do fenômeno (no nosso caso, de realização de aborto), ou seja, este dado
não nos diz a quantidade de pessoas que abortaram neste período, nem o
local; ele nos diz onde essas pessoas foram localizadas e inseridas no sistema de
justiça criminal. Ou seja, faz lembrar que nosso campo de análise é composto
não pelo universo de pessoas que realizaram aborto, mas pelas pessoas que
realizaram aborto e foram “pegas” pelo sistema de justiça. (Relatório IPAS
Brasil, 2013, p. 19)

O baixo número de processos de mulheres por aborto realizado ou não aponta para o
fato de que a criminalização do aborto, associada a um baixo número de processos ilustram
um sistema de justiça criminal no qual a posição predominante da mulher é a de vítima – o
que mantém intactos os estereótipos a ela impostos –, e no qual a previsão legal do crime de

33
aborto tem a finalidade de manter um sistema caracterizado tanto pelo controle social
informal quanto pelo formal. Ou seja, não somente o controle formal na forma da tipificação
do crime mantém a mulher na posição que lhe foi designada, seu encerramento na esfera
privada, mas também o controle informal que se dá pela constância e permanência dos
estereótipos, o que se pode verificar nas notícias analisadas as quais não somente naturalizam
o aborto como crime, sem quaisquer questionamentos acerca da prática, bem como na
maneira com que as notícias “celebram” de algum modo as operações policiais.
A intervenção do sistema de justiça criminal é feita de modo subsidiário, conforme
aponta Baratta, com o fim de sancionar as desobediências à moral do trabalho, disciplinar os
grupos marginalizados do mercado oficial de trabalho, bem como para assegurar a ordem
pública e a política necessária ao “normal” desenvolvimento das relações sociais de
produção, ou seja, o sistema de justiça criminal se dirige precipuamente aos homens os quais
desempenham o trabalho produtivo, mas cuja disciplina para esse trabalho foi insuficiente; e
àqueles que ficaram à margem do mercado de trabalho. (BARATTA, 1999, p. 48-49).
É importante observar a estreita relação entre o mundo do trabalho e sua divisão
sexual com o sistema de justiça criminal. Isso se dá por meio do funcionamento da sociedade
baseada nas relações de trabalho na estrutura capitalista, mantida pelo sistema de justiça
criminal que exerce o controle formal sobre aqueles que não se adequaram à exigência de
obediência e utilidade que a disciplina exige. Isto é, aqueles indivíduos que não se adequaram
às “instâncias de controle social informal”, entendidas como a família, a escola, a igreja etc.,
(MENDES, 2017, p. 53) são frequentemente encaminhados para as “instâncias de controle
formal (polícia, justiça, administração carcerária etc.)” (MENDES, 2017, p. 53).
De acordo com Zaffaroni (2003?, p. 20-1), a sociedade corporativa e verticalizada
assume seu poder sobre três vigas mestras: o poder do pater familiae, caracterizado pela
subordinação da mulher e seu policiamento; o poder punitivo, exercido pela vigilância e
eventual coerção disciplinar e pelo poder do saber do domínio da ciência senhorial. Essas três
vigas mestras do poder, apresentada por Zaffaroni constituem conceitos chave em Foucault,
respectivamente, a microfísica do poder, o poder disciplinar e a relação do poder e do saber.
Os dispositivos de poder em Foucault podem ser vistos a partir do poder assumido sobre as
três vigas mestras apresentadas por Zaffaroni, uma vez que o poder punitivo diria respeito a
uma “tecnologia política sobre o corpo” por meio de uma microfísica do poder que está
presente não de forma centralizada ou localizada em alguma instituição ou mesmo no Estado,
mas num outro nível (FOUCAULT, 2014, p. 30). O poder, nesse aspecto, “é exercido em

34
toda a sua espessura, em toda a superfície do campo social, segundo todo um sistema de
intermediações, conexões, pontos de apoio, coisas tênues como a família, relações sexuais,
moradia etc.” (FOUCAULT, 2015, p. 207) O poder se desloca e escapa de um ponto
específico e se coloca como estratégia. No que se refere ao poder punitivo e as práticas
penais em Foucault, trata-se antes um “capítulo da anatomia política” do que “uma
consequência das teorias jurídicas.” (FOUCAULT, 2014, p. 32).
Por conseguinte, a distinção da esfera privada da esfera pública a partir do pater
familiae, bem como da subordinação da mulher condiz com uma microfísica do poder e
assenta nas relações de poder e de dominação às quais o corpo é investido e por meio do qual
a necessidade se torna um instrumento político que integra esfera privada e pública. Ou seja,
a submissão dos corpos constituem elementos que fundam todo o controle social formal, na
medida em que este busca a adequação e sujeição da mulher no espaço privado e do homem
no espaço público que lhe é reservado. Nesse sentido, o funcionamento do sistema de justiça
criminal se apóia e se funda no controle social informal, pois aquele

funciona como um mecanismo público (masculino) de controle dirigido


primordialmente aos homens como operadores de papéis masculinos na esfera
pública da produção material e a pena pública é o instrumento deste controle.
(ANDRADE, 2005, p. 87)

A utilização econômica do corpo se dá por meio de relações complexas e recíprocas.


“sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está em um sistema de sujeição
(onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado,
calculado e utilizado)” (FOUCAULT, 2014, p. 29), de modo que “o corpo só se torna força
útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” (FOUCAULT, 2014, p. 29).
As três vigas mestras, para Zaffaroni (2013?, p. 21), nasceram com o poder mesmo,
sem que pudesse ser de outro modo, já que se entrelaçam e se cruzam em sua construção. A
“relação docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 2014, p. 135) não foi alcançada pelos
indivíduos para os quais o sistema de justiça se direciona (criminalização secundária), como
se ocorresse uma falha na técnica do poder disciplinar. Essa técnica gera a formação de uma
“política das coerções, que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de
seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos”. (FOUCAULT, 2014, p. 135).
A disciplina deveria fabricar corpos submissos e exercitados, corpos dóceis, hábeis e
dispostos a “não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se
quer, com as técnicas segundo a rapidez e a eficácia que se determina” (FOUCAULT, 2014,

35
p. 135). Pode-se dizer que aqueles indivíduos que não foram devidamente adestrados pelo
poder disciplinar não podem ser utilizados senão pelo sistema de justiça criminal.
Desta forma, enquanto o mundo do trabalho se dá por meio de um controle
disciplinar, difuso no tecido social, por meio do qual se exigem características específicas
para o cumprimento de determinadas funções, bem como para a organização da sociedade, o
sistema de justiça criminal se pauta no controle social formal que se dá pela via penal. Este,
por sua vez, integra-se ao sistema de controle social informal o qual se volta às “interpretes
de papéis femininos” (BARATTA, 1999, p. 49). Essa integração é possível em razão de todo
esse sistema cujos mecanismos de poder se complementam, indo desde a divisão sexual do
trabalho7, com atividades bem definidas pelos intérpretes feminino e masculino, passa pelo
controle formal dessas atividades exercidas pelos homens no trabalho produtivo e, por fim,
pelo sistema de controle social formal que vai determinar quais condutas caracterizam
indisciplina na estrutura social capitalista, patriarcal e racista.
Nesse aspecto, o trabalho produtivo e o reprodutivo constituem elementos chave para
a compreensão da integração do sistema de controle social informal com o sistema de
controle social formal. Isto é, a manutenção do status quo social no qual tanto o controle
formal se impõe sobre certas categorias de indivíduos, quanto a divisão sexual do trabalho
que impõe e divide quais os tipos de trabalhos serão realizados pelos intérpretes masculinos e
femininos que são bem definidos, de modo que

Os afazeres domésticos, ou seja, o “cuidar” da família é uma


atividade reprodutiva fundamental que não objetiva gerar
mercadorias, mas a criação de bens úteis indispensáveis para a
sobrevivência da família. E essa é uma das diferenças essenciais entre
o trabalho assalariado e doméstico, pois enquanto um está vinculado
ao espaço produtivo, o outro está relacionado à produção de bens
úteis necessários para a reprodução dos próprios componentes da
família, permitindo, em grande medida, que o capital também se
aproprie, mesmo que indiretamente, da esfera da reprodução.
(NOGUEIRA, 2009, p. 210)

O trabalho reprodutivo e o estereótipo da mulher, presentes na estrutura hierárquica


sexista são estruturantes do sistema de justiça criminal na medida em que “o direito penal é

7
Saliente-se que, conforme Hirata, “a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social
decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da
relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a
designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a
apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.).
(HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599).

36
um sistema de controle específico das relações de trabalho produtivo, e, portanto, das
relações de propriedade, da moral do trabalho, bem como da ordem pública que o garante.”
(BARATTA, 1999, p. 45), o que faz com que a esfera da reprodução, isto é, a esfera privada,
integre-se ao sistema de justiça criminal por meio do controle informal, como já colocado.
Entretanto, trata-se de uma integração que embora seja essencial ao sistema funciona de
forma secundária, na medida em que seu objeto principal é o controle social formal.
Os sujeitos aos quais o sistema de justiça criminal se dirige precipuamente são os
homens; já as mulheres, em razão da relevância que têm no controle social informal o qual
mantém em funcionamento a estrutura do controle formal reciprocamente, são sujeitas ao
controle formal, mas de forma secundária, o que pode ser exemplificado pelos “tipos
específicos de gênero na lei penal (criminalização primária): aborto, infanticídio, abandono
de menores” (BARATTA, 1999, p. 49), todos relacionados à maternidade, já que a figura da
mulher lhe é direta e estritamente relacionada. No controle informal, a mulher deve
necessariamente cumprir com o estereótipo de mãe que lhe foi imposto e “o direito ao aborto,
especialmente, confronta a idealização da maternidade, que é um modo de representação de
um papel compulsório como se fosse uma tendência natural e desejo comum de todas as
mulheres”. (MIGUEL; BIROLI, p. 123, 2014), além da existência da mobilização de
conexões entre maternidade e sexualidade que se destinariam a restringir a autonomia das
mulheres. (MIGUEL; BIROLI, p. 124, 2014). Nesse sentido, a mulher que descumpre a
idealização da maternidade, que se constitui como um dos instrumentos do controle social
informal, afronta toda a ordem patriarcal que lhe impõe o exercício compulsório desse papel.
Conforme coloca Mendes,

Enquanto em uma mulher “normal” a sexualidade encontra-se subordinada à


maternidade, o que faz com que a mãe “normal” coloque os/as filhos/as em
prioridade absoluta, entre as criminosas dá-se justamente o oposto. Elas, as
criminosas, não hesitam em abandonar seus/as filhos/as [...] (MENDES, 2017, p.
44)

Pode-se dizer que essa dicotomia existente entre a idéia de “mulher normal” e a
mulher criminosa decorre do controle social informal dentro do qual à mulher é imposto um
ideal de mãe que é mantido a partir da consolidação de relações sociais baseadas em uma
estrutura de micro-poderes. Esses micro-poderes possibilitam a sujeição dos indivíduos a
ideais que se operam dentro de instituições sociais, dentre elas o casamento que é o local
onde ainda predomina a relegação da mulher ao âmbito privado. Observa-se, ainda, que se
trata de um controle que se dá por meio de um discurso da sexualidade, no nível micro,

37
individual, e no nível macro o qual atua sobre a população.. Diante disso, “o discurso da
sexualidade atua tanto no nível do corpo individual quanto no corpo político. No nível do
corpo político, a forma de poder que Foucault chama de biopoder atua através do controle
populacional, saúde pública e genética.” (MCLAREN, 2016, p. 121).
No que se refere à sujeição, saliente-se que a ideia de sujeição remete a uma situação
na qual a submissão ou a obediência se dá sem muita resistência ou sem resistência efetiva,
concreta. Isso se opõe às teorias contratualistas as quais se baseiam na liberdade contratual,
na medida em que, conforme coloca Pateman (1993, p. 23-24), os críticos da doutrina do
contrato, sejam eles socialistas, – preocupados com o contrato de trabalho – sejam eles
feministas – preocupadas com o contrato de casamento ou de prostituição –, contrapõem a
afirmação segundo a qual as partes concordariam voluntariamente com os termos dos
contratos da vida cotidiana, pois eles seriam exemplos de liberdade individual em razão da
“situação frequente de total desigualdade das partes envolvidas e as restrições econômicas,
entre outras, enfrentadas pelos trabalhadores, pelas esposas e mulheres em geral”
(PATEMAN, 1993, p. 24)
Nesse sentido, conforme aponta a referida autora, “a liberdade universal é sempre
uma hipótese, uma história, uma ficção política”, já que “o contrato sempre dá origem a
direitos políticos sob a forma de relações de dominação e subordinação” (PATEMAN, 1993,
p. 24-25), o qual se sustenta com base no ideal da mulher-mãe que deve ser mantido. Por
conseguinte, as relações de dominação e subordinação que se estabelecem socialmente de
forma micro para se estenderem de forma macro constituem tanto o controle social informal
quanto o formal. A criminalização do aborto se estabelece como o elo que mantém intocável
a ideologia da sujeição da mulher ao homem, já que possibilita a manutenção do controle do
corpo da mulher por meio da constante ameaça da punição, bem como do risco de morte que
se ela corre na hipótese de interrupção de uma gravidez indesejada, situação esta que se
agrava quando se trata de mulheres pobres, negras e de baixa escolaridade. Davis aponta que
“quando as mulheres negras e latinas recorriam ao aborto em tão grande número, as histórias
que contavam não eram sobre o seu desejo de se verem livre das suas gravidezes, mas antes
sobre as miseráveis condições de trazer novas vidas ao mundo” (DAVIS, 2013, p. 146),
situação esta que ainda permanece e que aponta para diferentes motivos que podem levar
uma mulher a optar pelo aborto. De acordo com Baratta (1999, p. 49), “a criminalização do
aborto serve, em primeiro lugar, para representar simbolicamente o papel conferido à mulher
na esfera (privada) da reprodução natural”.

38
Para Baratta (1999), o funcionamento seletivo do sistema de justiça criminal é
decifrado pela criminologia crítica por meio de variáveis representadas no plano material,
pelas posições sociais e, no plano simbólico, pelos papéis interpretados, o que faz com que o
sistema de justiça criminal reflita a realidade social ao mesmo tempo em que concorre para
que ela se reproduza (BARATTA, 1997 apud BARATTA, 1999, p. 42). Para o Autor, o
sistema punitivo e a estrutura social possuem tanto uma dimensão material quanto simbólica
que se cruzam. Os papeis sociais definidos pelo masculino e feminino que estruturam
elementos simbólicos condicionam elementos materiais do sistema punitivo, como as taxas
de carcerização e a duração das penas nas populações masculina e feminina. Do mesmo
modo, elementos materiais do sistema punitivo, como a posição social população carcerária,
condicionam elementos simbólicos da estrutura social, pautada na crença da legitimidade
escala social vertical (BARATTA, 1999, p. 42).
Some-se a isso a interseccionalidade presente na relação entre o sistema punitivo e a
estrutura social na medida em que, conforme aponta Baratta (1999), produz uma
fragmentação das lutas específicas no campo da justiça criminal, bem como no campo do
poder social, além de uma composição heterogênea dos grupos em desvantagem.
Percebe-se, diante disso, a intrincada situação da mulher na criminologia, já que sua
desigualdade em relação aos homens se constitui pelo simbolismo dos papéis de gênero, mas
também por todas as variáveis que se movem nessa situação desigual. Nesse sentido, se a
criminologia crítica pretende a revelação de uma realidade que se esconde por trás de um
sistema prisional pautado na lei, ela deve corresponder à realidade social que se apresenta de
modo que

Estudar a situação da mulher no sistema da justiça criminal, de modo


cientificamente correto, significa afrontar, a um só tempo, a questão feminina e a
questão criminal, ambas no contexto de uma teria da sociedade. [...] De outra parte,
não é mais possível examinar a questão criminal sem que se tenha presente, de
modo adequado, as variáveis de gênero. A criminologia crítica e a feminista não
podem ser duas coisas diversas; devem necessariamente, constituir uma única.
(BARATTA, 1999, p. 43)

A naturalização com que a mídia jornalística digital analisada trata da prática do


aborto como crime, bem como a ênfase que se dá para a força policial usada, advém das
contradições presentes entre o que se garante como direitos constitucionalmente previstos e
entre o que de fato ocorre com as mulheres que precisam se submeter ao aborto clandestino.
Essa situação é refletida na legislação penal vigente a qual criminaliza tanto a mulher que
aborta quanto as pessoas e os profissionais que trabalham com o aborto clandestino. Ou seja,
39
o que se pode verificar é que enquanto a Constituição da República dispõe formalmente
sobre a igualdade entre mulheres e homens, o que subsiste é a desigualdade a qual se dá por
meio da discriminação institucionalizada por meio de uma legislação penal que se mostra
distante da realidade dos dados sobre aborto no Brasil.
Se se pretende alcançar alguma escala democrática num contexto liberal moderno há
que se atentar tanto para a questão da igualdade quanto da autonomia. A igualdade, como se
demonstra, é pautada por sérias contradições que mitigam por si só a previsão constitucional.
Para o pensamento moderno, conforme coloca Biroli (2013), por ser a autonomia individual
um dos fundamentos do pensamento democrático, ela “corresponde à determinação pelos
próprios indivíduos das leis sob as quais vivem” (BIROLI, 2013, p. 23), sem a qual não há o
que se falar em autonomia nem em igualdade, uma vez que

Mesmo quando o igual respeito à liberdade e à autonomia dos indivíduos é


garantido pelas leis, há hierarquias significativas, que organizam a produção social
das preferências e as possibilidades de ação, restringindo ou ampliando o horizonte
em que se definem. (BIROLI, 2013, p. 27)

Trata-se, antes de apontar diferenças de gênero, de perceber que ditas diferenças


correspondem a hierarquias entre gêneros. O feminismo não busca eliminar as diferenças de
gênero, pois estas, de fato, podem de um modo ou de outro existir, seja em razão de uma
socialização hierarquizada, seja em razão de algumas diferenças biológicas que requerem
políticas adequadas a fim de se garanta proteção e cidadania efetiva às mulheres. Como
coloca MacKinnon (1987, p. 22), “igualdade quer dizer aspiração para erradicar não a
diferença de gênero, mas a hierarquia de gênero” e aponta que a diferenciação para o
feminismo mantém as mulheres numa posição inferior ao se referir a um paradigma sempre
masculino. Conforme se pode observar da leitura de MacKinnon, referir-se à igualdade
equivaleria, pode-se dizer, à manutenção do status quo ocupado pelas mulheres, sem
alterações substanciais, uma vez que o que se busca não é ser valorizada pelo que se é, mas
ter acesso ao processo do que se valora em si mesmo, o que equivale dizer protagonizar o que
se passa a ter valor, alterações originárias a respeito do que se dá valor na sociedade.
Essa distinção entre diferenças de gênero e hierarquias de gênero, apontada por
MacKinnon é importante para a presente pesquisa na medida em que grande parte das autoras
e autores pesquisados, bem como a própria Constituição da República, trata do assunto como
“igualdade” e, muito embora esse termo seja usado com frequência na pesquisa, é importante
frisar que quando se fala de igualdade aqui, pretende-se adotar a diferenciação proposta por

40
MacKinnon a fim de tratar de hierarquia de gênero, pois se verifica mais adequado e próximo
do que pretende a pesquisa.
Nesse sentido, Baratta afirma que

A luta pela igualdade de gêneros não deveria ter como objetivo estratégico uma
repartição mais igualitária dos recursos e das posições entre os dois sexos, mas sim
a “desconstrução” daquela conexão ideológica, bem como uma reconstrução social
do gênero que superasse as dicotomias artificiais que estão na base do modelo
androcêntrico da ciência e do poder masculino. (BARATTA, 1999, p. 22)

A extinção da hierarquia de gênero poderá ser vislumbrada quando os dados sobre o


aborto no Brasil forem considerados na elaboração das leis que tratam do assunto, na medida
em que a garantia formal da igualdade é mitigada diante da naturalização da prática do aborto
como um crime qualquer. Por consequência, não se pode querer falar de igualdade de gênero
enquanto a saúde, a segurança e a vida das mulheres não forem efetivamente garantidas
como um direito. As disposições constitucionais sobre igualdade não correspondem à
legislação penal brasileira vigente. Inexiste sistematicidade e, consequentemente, integridade
no ordenamento jurídico brasileiro no que se refere à igualdade entre gêneros, porquanto o
aborto ser criminalizado no Brasil, diante de um contexto que se impõe de forma precária,
bem como em razão de a criminalização ser naturalizada pelos meios de comunicação,
conforme apontam as notícias analisadas segundo as quais se verifica que se noticia
superficialmente a movimentação de todo o aparato policial em busca de responsáveis pela
prática de abortos clandestinos. As clínicas clandestinas, independentemente de suas
condições de funcionamento e estrutura, são apresentadas pelas notícias como os locais onde
os abortos são praticados sem que se discuta ou fale sobre a realidade das mulheres que
precisam recorrer ao procedimento. Com exceção das hipóteses permitidas legalmente,
qualquer aborto realizado será ilegal e realizado em clínicas clandestinas as quais se
apresentam como uma realidade e muitas vezes como única opção e solução possíveis para
uma mulher que engravidou indesejadamente.
Diante disso, percebe-se que a naturalização do aborto como crime nas notícias se
vale das contradições existentes entre o que prevê a Constituição da República, o Código
Penal e o contexto em que se apresenta quanto aos dados sobre o aborto no Brasil, uma vez
que estes se impõem ao demonstrarem a magnitude e a persistência da prática do aborto no
Brasil. Por conseguinte, a referida naturalização de que aqui se trata encontra terreno fértil
para se manter, pois a igualdade apenas formalmente prevista não é pautada numa estrutura e
sistema jurídicos que a tornem possível de ser efetivada.

41
2 A POLÍCIA E OS AGENTES DO CRIME: O APARATO POLICIAL E A FIGURA
DO CRIMINOSO NOS CRIMES DE ABORTO NA COBERTURA DA MÍDIA
JORNALÍSTICA

Este capítulo tem objetivos fazer a análise dos dados relativos à maneira pela qual as
operações policiais são noticiadas e o excesso de força policial usado nessas operações e na
apreensão de materiais, bem como analisar os dados relativos à maneira pela qual os agentes
do crime são colocados na cobertura jornalística. A maneira como a mídia jornalística digital
elabora essa cobertura, bem como o lugar onde estão situados a mulher no crime de aborto e
as demais pessoas que participam do procedimento. Pretende-se fazer uma relação dos
agentes no crime de aborto, de acordo com o que está previsto na lei, e como isso aparece na
cobertura jornalística analisada em razão da extensão desse rol e a ênfase dada ao no noticiar
a possível punição de todos que participam do crime.
A partir disso, a interpretação desses dados será feita com base em estudos do processo
penal e da criminologia crítica, relacionados à mídia. Nesse aspecto, optou-se pela literatura
que trata do excesso de punição, da espetacularização das operações policiais e do processo
penal, os quais se entende estarem estritamente relacionados ao controle social que envolve o
aborto, bem como no reforço de sua prática como um crime para a população.
O objetivo é iniciar o capítulo com a análise e interpretação da discussão acerca da
punição e da maneira muitas vezes espetacularizada com que as operações policiais ocorrem
nas clínicas clandestinas nas coberturas jornalísticas digitais, de modo que a partir dos dados
observados a interpretação que se dá se baseia em autores cuja linha de pensamento
acompanha a ideia da espetacularização do processo penal por meio da mídia jornalística
digital da qual se trata aqui. Autores como Eugenio Raúl Zafaroni, Marcus Alan Gomes
(2015) e Rubens Casara (2015) tratam da criminologia e do processo penal relacionados à
mídia. Por se tratar de tema que implica não somente a compreensão da relação entre a
criminologia e a mídia, mas, além disso, demanda a compreensão do que representa a mídia
dentro dos estudos sobre comunicação, autores da teoria da comunicação como, por exemplo,
Muniz Sodré, Mauro Wolf e Vera Veiga França, dentre outros, também serão estudados
paralelamente à criminologia midiática a fim de que se possa apresentar uma base teórica a
partir da qual o diálogo sobre criminologia e mídia possa ser melhor compreendido.
A continuidade do tema relacionado à espetacularização na forma de se noticiar o
aborto por meio das operações policiais nas clínicas clandestinas se dá a partir do

42
questionamento que se faz sobre o que é o crime de aborto, com base nos dados relacionados
à forma com a qual a cobertura jornalística midiática trata as operações policiais, de modo a
evidenciar o apelo policial ali presente. A interpretação teórica, nesse ponto, é feita com base
em Nils Christie (2011) o qual coloca a discussão pautada no processo de atribuição de
sentido àquilo que é previsto e entendido como crime.
O desdobramento disso será tratado no último subitem neste mesmo capítulo, com base
nos estereótipos atribuídos à mulher e sua relação com o controle social informal e formal do
sistema de justiça criminal. Parte da literatura e das autoras estudadas no primeiro capítulo,
como Vera Regina de P. Andrade (2005 e 2012) e Soraia da Rosa Mendes será retomada no
segundo capítulo em razão da afinidade do tema neste ponto, já que a análise da forma pela
qual a mídia jornalística trata dos agentes do crime durante as operações policiais leva
necessariamente à análise da mulher como uma agente que não é colocada como a agente
principal nessas notícias.
Nesse sentido, conforme a cobertura jornalística analisada demonstra, a mulher acaba
por não ser retratada com a principal agente no crime de aborto, muito embora a mulher que
pratica o aborto fuja ao estereótipo da mulher passiva,a mulher “normal” que deve cumprir
seu papel materno. Essa mulher representa aquela que nega o papel que lhe foi imposto
socialmente. Além disso, a lei, ao estender o rol de agentes do crime de aborto, coloca nele
todos os profissionais ou pessoas que contribuíram para sua prática, o que neutraliza a figura
da mulher como criminosa. Isso reflete uma maneira de tanto a lei quanto a mídia manter a
figura da mulher mais próxima da figura da vítima do a do criminoso, o que constitui uma
das formas de manter o sistema de justiça criminal voltado para os homens, uma vez que a
mulher é mantida como coisa, “aquilo que não age ou aquilo do que nos não nos lembramos”
(ANDRADE, 2005, p. 86).

2.1 A força e o discurso policiais usados na cobertura jornalística sobre as operações


policiais nas clínicas clandestinas e sua espetacularização

O excesso de força policial não é novidade no Brasil, país marcado por profundas
desigualdades sociais e raciais que se cruzam, bem como por uma mídia que trata o processo
penal de forma excessivamente espetacular. Nesse contexto, a banalização da violência
contra os mais pobres e negros é um dado com o qual a população convive. Soma-se a esses

43
problemas a desigualdade de gênero e a extrema dificuldade de se tratar e até mesmo de falar
sobre o aborto, associados a um crescente número de projetos de lei tendentes a tornar ainda
mais difícil ou até mesmo impossível o aborto no Brasil, conforme demonstrado no primeiro
capítulo. Além disso, uma mídia jornalística que naturaliza o aborto como crime e reforça
para a população sua solução por meio da lei penal, tornando-a mais pesada e possivelmente
mais severa no futuro, em evidente descompasso com os dados sobre complicações nos
procedimentos e óbitos de mulheres decorrentes da prática clandestina e pouco segura, única
opção para mulheres que não podem ou não querem por qualquer motivo engravidar.
As notícias sobre as operações policiais analisadas dentro do recorte escolhido
demonstram uma das maneiras pelas quais o poder sobre o corpo das mulheres se mantém
crescente. A partir de um discurso policial, relacionado às operações policiais que investigam
clínicas clandestinas e os termos frequentes, utilizados nessas notícias, como “quadrilha”,
“organizações criminosas”, bem como a ênfase às prisões em flagrante de profissionais e
demais pessoas envolvidas, é possível identificar, além de um discurso naturalizante do
aborto como crime, conforme analisado no primeiro capítulo, um discurso policial que se
mostra em evidência. No que se refere ao discurso identificado nas notícias, importante
salientar conceitualmente que, conforme Flusser (2014, p. 50), o discurso mantém
informações, ao contrário do diálogo, que as produz. No discurso, informações que foram
anteriormente elaboradas no diálogo são distribuídas8. Enquanto no primeiro capítulo deste
trabalho uma das características das notícias que se mostrou perceptível foi a naturalização
do aborto como crime, no segundo capítulo, verifica-se nas notícias um acentuado discurso
policial que pode ser observado tanto nas referidas expressões muitas vezes usadas quanto no
aparato policial que é evidenciado nas notícias.
Estabelece-se, assim, uma relação entre o espetáculo e a força policial utilizada nas
investigações que são noticiadas, na medida em que a maneira, às vezes sutil, de dar uma
forma espetacularizada à notícia jornalística digital se faz possível por meio da ênfase que é
dada à ação policial na proteção de supostas “vidas” que foram ou seriam salvas. A ênfase
dada à atuação policial reflete e encarna o poder punitivo do Estado o qual mostra sua força e
eficiência com base num aparato policial estruturado e pronto para agir contra todas aquelas e
aqueles que atentem contra a vida daqueles que ainda não nasceram ou sequer se formaram.

8
De acordo com Vilém Flusser, “um momento importante da crítica da cultura é a relação entre diálogo e
discurso. Se o diálogo prevalece, então surgem as elites. A massa é cada vez menos informada. Isso é
típico de nosso tempo.” (FLUSSER, 2014, P. 50)
44
O fato crime, por si só, conforme se verá no item adiante, não gera necessariamente
uma clara e forte noção de que o fato seja de fato um crime. No caso do aborto, o aparato
policial, implicitamente, recobre a falta de Estado nas políticas públicas e nas leis que
poderiam tornar o aborto seguro para as mulheres. Nesse aspecto, quanto mais a força
policial avança como representação da presença do Estado mais evidente se torna a ausência
deste. Isto é, na falta da presença do Estado numa efetiva proteção da saúde e da vida das
mulheres, impõe-se a força coercitiva do Estado a fim de que a conduta na lei prevista como
crime tenha efetivamente a aparência de crime. Se o Estado falta ou não quer estar presente
de um lado, em termos de políticas públicas ou proximidade de sua lei penal com a realidade
social da qual faz parte, por outro lado, sobra Estado, por meio da coerção, o Estado policial.
Como coloca Zaffaroni (2011, p. 172), “o direito penal deve sempre caminhar para o ideal do
Estado de direito; quando deixa de fazê-lo, o Estado de polícia avança.” A mesma lógica da
força corcitiva se aplica à criminalização do aborto, na medida em que sua criminalização é
“muitas vezes o único ato de governo do qual dispõe ele para administrar, da maneira mais
drástica, os próprios conflitos que criou.” (BATISTA, 2003, p. 4)
Ao fato noticiado, portanto, precisa ser dada a ênfase e o enfoque necessários a fim de
que apareça como ilegal, contra as leis vigentes. Nesse sentido, se há polícia, muito
provavelmente há crime. E se a polícia aparece em sua teatralidade na mídia, não restará
dúvida de que o que ocorreu ali seja crime. Na sociedade midiatizada, a encenação que se faz
sobre uma operação policial investigativa é essencial para que o fato aborto seja reforçado
como um crime. Nesse sentido, a mídia, como coloca Gomes (2015, p. 102) definirá como o
apetite do público será fisgado pela passionalidade, o que diz respeito à gravidade do crime,
os contornos, potencial de espetacularização do fato a anormalidade do crime e a repressão
imediata.
Diante disso, o excesso de força policial durante as operações policiais presente nas
notícias reforça o crime para a sociedade que assim o legitima. Constitui-se, com isso, a
tríade crime, mídia e espetáculo como um sistema que se retroalimenta por meio de formas
emaranhadas de controle social que o torna eficaz, na medida em que reforça para a
população que o aborto é crime e sua repressão é legítima e esperada.
De modo geral, como aponta Casara (ver qual parte do texto dele diz isso), a mídia
reforça um direito penal frágil, que não cumpre sua função inerente de garantir o
cumprimento da lei material e processual penal. No que se refere à forma específica, no
aborto, cuja criminalização está estritamente vinculada a interesses políticos distantes dos

45
interesses e realidades das mulheres, o direito penal se encontra refém da mídia
espetacularizada e se legitima por meio de notícias jornalísticas digitais que enfatizam as
operações policiais na investigação das clínicas clandestinas. A título de exemplo, a
brevidade de algumas notícias traz como referência principal a atuação policial na
investigação de uma clínica, conforme se pode verificar na seguinte notícia, retirada da
página eletrônica da folha de São Paulo:

O discurso policial, que já é parte de um processo penal do espetáculo, mostra-se


necessário a um tipo de controle social em razão de a mídia jornalística fazer parte de um
corpo que não é apenas um corpo social, mas, como colocou Foucault (1999, p. 292), um
“corpo múltiplo”. A mídia, de acordo com Gomes, interfere na conformação do sistema penal
e sua capacidade de estabelecer uma agenda pública, construindo a realidade das pessoas, o
que faz com o objeto do conhecimento público seja definido pela mídia, de acordo com seus
próprios critérios e relevância medida por interesses que também são seus. (GOMES, 2015,
p. 14). Seu poder sobre a opinião pública é atravessado por preconceitos, tabus, interesses
políticos etc., os quais constituem uma série de fatores que convergem à manutenção do
status quo social e permite que o sistema penal seja por ela influenciado, o que reforça seu
caráter repressivo ao se aproveitar dos “dividendos mercantis que a notícia-crime
proporciona”, algo como “quase transformar os meios de comunicação em um
supraparlamento, uma suprapolícia e um suprajuíz.” (GOMES, 2015, p. 14).
Nas notícias analisadas, verifica-se que a maneira como a notícia é elaborada e a ênfase
que é dada a determinados fatos se conforme às expectativas sociais relacionadas à
criminalização do aborto. Trata-se de um sistema (mídia e processo penal) que se alimenta de
forma circular, já que o enredo desenvolvido pela mídia jornalística “passa a condicionar as
relações humanas: as pessoas (que são os consumidores do espetáculo e exercem a dupla
função de atuar e assistir), influenciam no desenvolvimento e são influenciadas pelo
espetáculo.” (CASARA, 2015, p. 11). Isso pode ser observado em alguns termos utilizados
nas notícias analisadas, como “formação de quadrilha”; “agenciador de quadrilha”; “grupo
46
criminoso”; “bando”; “flagrante”; pagamento de “fiança”; “açougues”, ao se referirem às
clínicas clandestinas; além da ênfase dada à apreensão de equipamentos usados nos
procedimentos, bem como a quantidade de pessoas presas no momento da operação, os quais
reforçam o caráter ilícito da prática. A utilização de alguns desses termos, por vezes,
demonstram que, conforme Masi e Moreira (2014, p. 444), “a linguagem da mídia é uma
linguagem naturalmente polissêmica, que dá azo a múltiplas interpretações.”
A ênfase na atuação da polícia, da apreensão de material, bem como as prisões em
flagrante durante as operações fazem parte de um “discurso construído para agradar às
maiorias de ocasião” (CASARA, 2015, p. 12) e ocultam a realidade que se esconde por trás
da criminalização do aborto e a situação das mulheres por meio de um enredo cujo objetivo é
a “falsificação da realidade, uma representação social distante da complexidade do fato (...)”
o qual é “descontextualizado, redefinido, adquire tons sensacionalistas e passa a ser
apresentado, em uma perspectiva maniqueísta, como uma luta entre o bem e o mal, entre os
mocinhos e os bandidos” (CASARA, 2015, p. 12)
O enredo presente nas notícias analisadas, além de legitimar o tipo penal do aborto,
satisfaz o anseio daqueles que esperam ler nas notícias o enquadramento do fato à hipótese
legal, o que ocorre por meio de um

Processo de conformação do público àquilo que os mass media apresentam como


informação, e que tende a reforçar condutas e valores em torno dos quais haja um
menor nível de consenso social. Por isso a mídia evita desagradar sua clientela.
Oferece, como regra, o que será bem aceito (lido, ouvido, comentado, confirmado).
(GOMES, 2015, p 63)

Pode-se dizer que a mídia jornalística digital, ao noticiar um fato adequando-o ao que
se espera saber dele inviabiliza qualquer questionamento sobre o fato ser previsto como
crime, uma vez que ele se enquadra na respectiva previsão legal e faz com que “a percepção
social da realidade resulta, em grande proporção, da mediação midiática” (GOMES, 2015, p.
63), já que a mídia acaba por condicionar “o modo de pensar e agir de praticamente todos os
segmentos sociais, pois constitui a fonte mais presente de informação e de conhecimento
ordinário das pessoas.” (GOMES, 2015, p. 67). Trata-se de uma característica presente na
maior partes das notícias analisadas dentro do recorte selecionado e demonstra que as
notícias seguem uma linha de “desejo de audiência” segundo a qual, como colocou Casara
“o caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser
consumida”. (CASARA, 2015, p. 12)

47
Saliente-se, entretanto, que, embora Casara faça referência à tendência da mídia afastar
a correta e adequada aplicação da lei penal, bem como da Constituição Federal, quando se
observa nas notícias que a mídia opta por seguir a linha do “desejo de audiência”, esse
entendimento se adéqua ao tipo específico de crime de que esta pesquisa trata. Nesse sentido,
a despeito de o objeto da presente pesquisa não se tratar de “prisões ilegais ou desnecessárias
em nome do clamor público ou da opinião ‘publicada’ nos meios de comunicação de massa”
(CASARA, 2015, p. 17), ou da observação das garantias penais e processuais penais,
inerentes ao Estado de direito (ZAFFARONI, 2011, p. 173), a lógica seguida pelas notícias
aqui analisadas é semelhante, já que se sustenta numa vontade de manutenção do status quo
que vai de encontro à observação íntegra do ordenamento jurídico brasileiro. O enredo
noticiado “não permite reflexões éticas ou miradas críticas” (CASARA, 2015, p. 13). Isto é, a
criminalização do aborto e seu constante reforço pela mídia jornalística reforça a manutenção
do tipo penal e mantém refém as mulheres que precisam recorrer ao aborto. Nesse caso,
ocorre o afastamento do princípio da igualdade e da dignidade humana por meio da aplicação
da lei penal a qual é reforçada e se mantém legitimada pela população, o que a torna um
contrassenso, já que a criminalização do aborto gera óbitos e complicações à saúde das
mulheres.
Além disso, é importante salientar que o aborto não guarda correspondência com
outros tipos de crime, na medida em que a delinquência relacionada aos mais diversos tipos
de crime e delito não tem a mesma origem nem os mesmos motivos que podem levar uma
mulher a abortar, muito embora possam coincidir num ou noutro aspecto. A despeito disso, a
cobertura midiática que se dá sobre as clínicas clandestinas funciona dentro de uma lógica
muito próxima à cobertura midiática que se dá aos demais tipos de crimes, tais como
assaltos, homicídios, sequestros etc., em razão da “facilidade de elaboração das notícias sobre
a delinquência, normalmente apresentadas sem enquadramento analítico imparcial”
(GOMES, 2015, p. 103) que opera por meio da prestação da

informação superficial sobre detalhes incomuns ou que proporcionem uma


encenação passional do episódio, especialmente no plano moral e político, e
sonega-se do público uma apreciação analítica que permita a formação de juízos
críticos. O objetivo dessa estratégia é realçar um certo aspecto de anormalidade do
crime para apreender o público pela curiosidade, num processo que cria
estereótipos e reveste a mídia com uma aura de neutralidade e independência.
(GOMES, 2015, p. 103)

A intenção de reforçar a prática do aborto como se fosse um crime como qualquer


outro subjaz nas notícias analisadas e a repressão, bem como as operações policiais que são
48
midiatizadas possuem objetivos semelhantes, de modo que nos casos das clínicas há um
objetivo específico que é o de reforçar a prática do aborto como um crime a fim de que assim
se mantenha.

2.2 A construção do significado do crime de aborto pela mídia e a formação da


opinião pública

Há, no contexto da criminalização do aborto, reforçada pelas notícias que tratam sobre
as operações policiais em clínicas clandestinas, um “primado do enredo sobre o fato” que
retira a possibilidade de se pensar sobre “quais são as condições sociais para que certos atos
sejam designados como crimes?” (CHRISTIE, 2011, p. 20). Ao se considerar que o aborto
praticado com o consentimento da mulher, como prevê a hipótese legal do artigo 126 do
Código Penal, ocorre dentro de um contexto maior, o qual compreende diversas realidades e
situações vividas pelos sujeitos que decidem assim proceder, observa-se que essas situações
escapam à objetividade do referido dispositivo penal, o que poderia tornar o crime de aborto
inexistente. Nesse aspecto, “existem somente atos, aos quais frequentemente são atribuídos
diferentes significados em cenários sociais diferentes. Os atos e os significados são os nossos
dados.” (CHRISTIE, 2011, p. 20). O que a cobertura da mídia jornalística analisada faz, a
partir de uma narrativa restrita, é reforçar o entendimento do aborto como crime, o que afasta
a percepção e assimilação dos motivos pelos quais mulheres em todo o país recorrem ao
aborto, bem como os dados a ele relacionados a óbitos e riscos por complicações durante o
procedimento. Nesse sentido, constroem-se “sociedades em que é particularmente fácil, no
interesse de muitos, definir condutas indesejáveis como crime, em vês de serem
simplesmente más, insanas, excêntricas, excepcionais, indecentes ou apenas indesejáveis”.
(CHRISTIE, 2011, p. 85)
Isto é, “quantidades limitadas de informação dentro de certo sistema social
possibilitam a um ato ser atribuído o significado de crime” (CHRISTIE, 2011, p. 23), o que
torna a mídia um meio fundamental no controle social difuso, um dos meios pelos quais a
dominação é permitida, isto é, a mídia como parte do “processo de sujeição ou dos processos
contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os
comportamentos.” (FOUCAULT, 1979, p. 182). Trata-se de um processo que alcança tanto a

49
micro quanto a macro política, uma vez que os micropoderes sustentam o sistema formal de
controle social que se concretiza pela biopolítica cujo alcance abrange toda coletividade.
Essas quantidades limitadas de informação a que Christie se refere está relacionada à
uma comunicação interna nos sistemas sociais, o que geraria consequências na percepção do
que é crime e de quem são os criminosos, uma vez que por meio dessa comunicação interna
poder-se-ia colher mais informações sobre as pessoas à sua volta. (CHRISTIE, 2011, p 23).
A relação entre o crime de aborto, sua abordagem nas notícias e o que o referido autor
apresenta em termos do que é ou não considerado crime em uma determinada sociedade se
encontra na forma restrita com a qual a mídia elabora a notícia.
Por consequência,

aquilo que é real (complexidade do fenômeno criminal) é ressignificado pela mídia,


simplificado pelas técnicas comunicacionais para tornar algo curioso, atrativo, e
oferecido ao mercado de consumo da informação com um único sentido, refratário
a perspectivas críticas comprometidas com a realidade. (GOMES, 2015, p. 14)

É um processo no qual a ressignificação do real pela mídia, “nas sociedades de massa e


de consumo, vem determinando, cada vez mais, os rumos da política criminal e o modelo de
sistema punitivo.” (GOMES, 2015, p. 20). Diante disso, a mídia, ao fazer a cobertura
jornalística acerca das operações policiais nas clínicas clandestinas e relacioná-las
restritivamente à previsão legal que dispõe sobre o crime de aborto, impede que a sociedade
possa pensar sobre os dados relativos ao aborto e o risco que milhares de mulheres correm
anualmente. Isto é, a mídia contribui para que o conhecimento e a informação parcial e
limitada cheguem à parcela da população que lê as referidas notícias. E ela assim faz tanto
quando apresenta o fato noticiado nos moldes legais quanto ao dar ênfase para as operações
policiais, já que “muito do que a polícia e a prisão tocam se converte em crimes e criminosos,
e interpretações alternativas de atos e atores se desvanecem” (CHRISTIE, 2011, p 23). Há,
por assim dizer, obstáculos gerados por essa forma de a mídia fazer a cobertura do crime de
aborto que contribuem para uma sociedade que desconhece a magnitude e a persistência da
prática do aborto no país, bem como desconhece ou se abstém de refletir sobre os direitos
reprodutivos das mulheres e a necessidade de se buscar a efetiva igualdade entre os sexos.
Observa-se, diante dessa situação que

os meios de comunicação de massa e as agências de justiça penal amplificam a


criminalidade. Como determinados problemas sociais passam a ser definidos como
delinquência de acordo com o desejo da classe dominante, enquanto outras
situações muito mais perigosas para a sociedade são ignoradas. (MENDES, 2017,
p. 61)

50
A tradução disso é o fato de que a situação de risco que o aborto ilegal e inseguro gera
para as mulheres que precisam se submeter a ele é ignorada pelo público ao qual a cobertura
jornalística se dirige e o aborto em si, como se fosse um fato isolado e simples de se
solucionar se sobressai a todas as circunstâncias e demais problemas que o cercam.
Ao se considerar atividades aparentemente ilícitas a partir do conhecimento que se tem
delas, bem como de suas causas e razões, pode-se dizer que o aborto seria uma “atividade de
sobrevivência”. O desconhecimento e os tabus que se impõem sobre essa ignorância coletiva,
associados ao reforço da prática do aborto como crime impedem sua descriminalização.
Nesse sentido, “as atividades de sobrevivência talvez estejam um pouco fora da zona do
legalmente aceitável.” (CHRISTIE, 2011, p 23). Pode-se dizer que a maneira com que as
notícias elaboram os fatos que estão sendo investigados nas operações policiais ao mesmo
tempo que contribui para a formação de parte da opinião pública impede que a informação e
os dados reais a respeito do aborto no Brasil cheguem ao público. Essa incoerência faz com
que o significado do aborto como um crime, previsto no Código Penal seja reforçado. À
medida que o aborto é reforçado para população como crime tanto mais legítimo ele parecerá
ser. Do mesmo modo, haverá não uma rede social baseada em informação e conhecimento a
respeito do assunto, mas o seu contrário, ou seja, a crescente desinformação e um corpo
social cada vez mais fragmentado que impede o conhecimento acerca de qual contexto e em
quais circunstâncias as mulheres recorrem ao aborto. Desta forma, “atos não são; eles se
tornam. Pessoas não são; elas se tornam. Uma larga rede social com ligações em todas as
direções cria incerteza, no mínimo, sobre o que é crime e quem são os criminosos.”
(CHRISTIE, 2011, p 23). Essa larga rede social estaria muito próxima da idéia de
comunidade ou communitas a qual se caracterizaria por um afeto que vincula e obriga os
indivíduos uns em relação aos outros; a communitas “é a saída para o exterior a partir do
sujeito individual, seu mito é precisamente a interiorização dessa exterioridade, a duplicação
representativa de sua presença, a essencialização de sua existência” (ESPOSITO, 2003, p.
44).
Nesse sentido, a sociedade de massa, de modo oposto à comunidade, constitui-se não
com base nesse vínculo afetivo que uniria as pessoas numa determinada comunidade, mas,
conforme coloca Wolf, numa composição homogênea de indivíduos isolados que não se
conhecem, que estão espacialmente separados uns dos outros e com pouca ou quase nenhuma
possibilidade de ação ou de exercer alguma influência que seja recíproca. (WOLF, 1999, p.
8). Esse isolamento dos indivíduos constitui a formação de uma massa, caracterizada por um
51
agregado que nasce e vive para além dos laços comunitários e contra esses mesmos
laços, que resulta da desintegração das culturas locais e no qual as funções
comunicativas são necessariamente impessoais e anônimas. A fragilidade de uma
audiência indefesa e passiva provém precisamente dessa dissolução e dessa
fragmentação. (WOLF, 1999, p. 8).

Diante disso, não é possível que haja “um intercâmbio comunicativo, mas uma simples
dinâmica de transmissão simbólica de informação” (GOMES, 2015, p. 16), uma vez que o
cenário que se apresenta se encontra cada vez mais distante de uma sociedade na qual se
possa vislumbrar qualquer aspecto comunitário. Isso porque a sociedade de massa se opõe
em todos os aspectos a um ideal comunitário a partir do qual a realização de abortos pudesse
ser compreendida não como crime, mas como uma necessidade de mulheres que estão num
contexto que não lhe permite ser mãe ou mesmo de mulheres que não querem engravidar,
motivos estes que poderiam ser mais que suficientes para que elas não corressem qualquer
risco de vida ou precisassem colocar sua saúde em risco.
A oposição entre o ideal comunitário e a sociedade de massa apresentada aqui tem
antes o objetivo de apontar uma das razões pelas quais é negada a mulher a efetiva dignidade
e uma real possibilidade de emancipação. Trata-se, conforme se pode perceber, de uma
sociedade na qual os indivíduos estão suficientemente isolados uns dos outros, cuja mídia
jornalística contribui para a invisibilização da humanidade das mulheres, por meio de um
discurso que reforça a característica punitivista do sistema de justiça criminal relacionada ao
aborto, muito embora os dados demonstrem não somente sua ineficiência, mas, ainda, a
magnitude e a insistência do aborto.
A reflexão sobre o aborto, portanto, permite que se estabeleça essa relação com a ideia
de comunidade e a partir dela se perceba a distância que se encontra entre a criminalização
do aborto e sua descriminalização, na medida em que, ao se considerar essa relação existente,
verifica-se que quanto mais a sociedade se afasta de um modo de vida pautado
precipuamente no interesse coletivo tanto mais afastada da possibilidade de
descriminalização do aborto ela será. A justificativa de se manter a proibição do aborto de
alguns grupos e congressistas com base na ideia de que há uma preocupação com a vida
humana (não da mulher, mas de um embrião ou feto) não guarda correspondência com um
ideal de vida comum, mais próximo da idéia de comunidade.
Por conseguinte, o modo de vida isolado e desinformado acerca das questões sociais
relacionadas ao aborto é um caminho aberto para o consumo acrítico das notícias publicadas
sobre as clínicas clandestinas. Paralelo a isso, os meios de comunicação reforçam os

52
estereótipos e preconceitos já existentes que permeiam assuntos tratados como tabus. De
acordo com Biroli (2017, p. 119-120), a mídia é um instrumento central da propagação dos
estereótipos como uma dimensão da imposição da visão de mundo dos grupos e estratos de
grupos dominantes, de modo que a relação entre conhecimento e a superação dos
preconceitos fique comprometida em razão de “o controle das informações e mesmo a
produção da verdade (do que é assim apresentado e poderá ser assim percebido) estarem no
centro da dinâmica da dominação. Um dos aspectos dessa dinâmica, para a autora, é a
“propagação de representações unilaterais e homogêneas da realidade, apresentadas como
sendo a própria realidade ou o que importa dela.” (BIROLI, 2017, p. 120) “A tendência é
privilegiar os índices de audiência, o que deixa pouco espaço para explorar múltiplas
perspectivas e fomentar o debate a discussões mais aprofundadas de qualquer tema.” (MASI;
MOREIRA, 2014, p. 449). Os meios de comunicação e sua influência midiática constituem

Um fenômeno que assume proporções alarmantes em um mundo onde a


comunicação globalizada enraizou definitivamente a massificação da cultura e do
consumo, de tal sorte que a informação tornou-se a mercadoria de uma indústria do
espetáculo, que entorpece o público pelos sentidos e paixões e anula qualquer
esforço de reflexão crítica sobre a realidade. (GOMES, 2015, p. 14)

A partir dessa compreensão, é possível perceber a mídia como um poder que atravessa
o sistema de justiça criminal na conformação e reforço do aborto como crime, já que “a vida
moderna pode ser vista como um conjunto de arenas nas quais atua um exército de
rotuladores.” (CHRISTIE, 2011, p 24). Para o referido autor, “o crime não existe até que a
conduta seja submetida a um processo altamente especializado de atribuição de sentido (...).
Crime é uma, apenas uma, das inúmeras formas de classificar atos deploráveis.” (CHRISTIE,
2011, p 23-24).
A partir dos dados apresentados no capítulo 1, segundo os quais anualmente são
realizados no SUS cerca de 240 mil internações decorrentes de complicações em abortos,
além de o aborto inseguro ser uma das principais causas de morte materna no país
(SANTOS, 2013, p. 497), impõe-se aqui, uma das questões colocadas por Christie (2011, p.
31): “em quais condições materiais, sociais, culturais e políticas o crime e o criminoso
surgem como metáforas dominantes e como a principal maneira de tratar os atos e atores
indesejáveis?” Diante disso, pode-se dizer que a se considerar a gravidade dos referidos
dados não haveria razão para que o aborto continuasse a ser criminalizado. Essa
consequência lógica poderia corresponder a uma realidade mais favorável às mulheres não

53
fosse a mídia jornalística digital a qual se constitui um dentre outros mecanismos de controle
social por meio do qual o aborto é insistentemente reforçado como um crime a ser punido.
Trata-se, por conseguinte, de uma criminologia midiática, conforme tratou do assunto
Zaffaroni, ao apontar que esta criminologia é aquela a que as pessoas que não estudam a
criminologia acadêmica têm acesso, o que faz com que a visão que elas têm da visão criminal
seja construída pelos meios de comunicação, que é a criminologia que as nutre
(ZAFFARONI, 2013, p. 194). A criminologia midiática, aponta o autor,

sempre existiu e sempre apela a uma criação da realidade através de informação,


subinformação e desinformação em convergência com preconceitos e crenças,
baseada em uma etiologia criminal simplista, assentada na causalidade mágica.
Esclarecemos que o mágico não é a vingança, e sim a ideia da causalidade especial
que se usa para canalizá-la contra determinados grupos humanos, (...).
(ZAFFARONI, 2013, p. 194)

A maneira pela qual a mídia introjeta certos preconceitos e estereótipos no público para
o qual se dirige é atravessada por elementos que funcionam de acordo com cada tipo de
mídia. No presente caso, por se tratar da mídia jornalística digital, a linguagem usada, bem
como a maneira de elaborar a notícia a fim de que ela tenha uma aparência de neutralidade,
faz com que preconceitos e desconhecimentos dos leitores sejam reforçados. Conforme
colocado por Zaffaroni (2013, p. 199), a criminologia midiática não dá espaço para a
prudência na medida em que a bipolaridade construída por ela constrói um imaginário social
pautado em dois lados, eles e nós.
As notícias, ao identificar todos aqueles e aquelas que eventualmente possam ter
cometido o crime de aborto, reforça sua qualidade de crime. A ênfase que é dada nas notícias
à força policial utilizada, conforme se demonstrou no item anterior, contribui para que o
aborto não passe de outra coisa que não seja um crime como qualquer outro. Conforme
coloca Zaffaroni (2013, p. 199), um “vocabulário bélico” que, segundo ele, instiga a
aniquilação do eles, mas que aqui se pode entender o verbo “aniquilar” como estereotipar e a
consequência disso é um reforço de uma carga de preconceito sobre as mulheres que
praticam o aborto, bem como dos profissionais ou pessoas que participam do procedimento.
Embora Zaffaroni se refira a grupos marginalizados de pessoas as quais não são
necessariamente aquelas que aparecem nas notícias, a acentuada carga negativa de que se
utiliza a mídia jornalística, além de reforçar o aborto como um crime, faz com que o eles,
nesse caso, recaia sobre a figura da mulher – vista como assassina – e das demais pessoas
que participaram de alguma forma na realização do aborto, estas, por sua vez, em muitas

54
notícias analisadas, fazem parte de uma “quadrilha”, termo este presente em muitas das
notícias analisadas, o qual reforça para o leitor o crime de aborto como se fosse qualquer
outro tipo de crime.
Saliente-se que o presente trabalho, ao mencionar que o aborto é tratado como se fosse
“um crime como qualquer outro tipo de crime”, não pretende relativizar os problemas da
criminologia crítica relacionados aos demais crimes e seus autores, uma vez que o que aqui
se pretende é demonstrar que mecanismos de poder existentes no sistema de justiça criminal
que é direcionado à população que vive à margem de garantias e direitos fundamentais
funcionam com uma lógica muito próxima no que se refere ao crime de aborto quando o
tema é estudado a partir da influência da mídia na elaboração da lei penal. É importante
destacar esse ponto porque no aborto os agentes serão as mulheres que o praticam, bem como
as pessoas ou profissionais que a ajudaram ou auxiliaram em sua realização. Muito embora
as mulheres advenham das mais diversas classes sociais e diferentes raças, havendo uma
predominância de mulheres pobres e negras, conforme aqui já se colocou, as pessoas que as
auxiliam, muitas vezes, possuem o estereótipo avesso àquelas para as quais o sistema de
justiça criminal se dirige. Isto é, médicos e profissionais envolvidos não carregam a mesma
carga de preconceito social e estereótipos que pessoas negras das classes mais baixas
carregam, o que não exime o primeiro grupo de pessoas de ser tratado nas notícias analisadas
como criminosas, bem como o aproveitamento disso pela mídia, de forma a seguir a mesma
lógica na obtenção de vender a notícia e a ideia ali imposta.
A consequência direta disso é que os preconceitos são formados por meio da submissão
das pessoas à criminologia midiática, a qual faz parte de um

processo, nada democrático, de formação da opinião pública (que envolve


desinformação, manipulação de verdades, deformação da realidade social, recurso
ao medo como fator de coesão social, dentre outras formas de criar “consensos”)
em especial o papel dos meios de comunicação, que também repercute nos rumos
do processo penal voltado para o espetáculo. A opinião pública, aquilo que se
afirma em um auditório, apenas sugere que uma determinada crença ou atitude seja
difundida ou partilhada pela maioria (...) (CASARA, 2016, p. 4)

Há, com isso, a constante legitimação do aborto como crime, na medida em que a
opinião pública é permanente e continuamente formada pelos meios de comunicação, em
especial, no presente caso, pela criminologia midiática, submetida à lógica do consumo cuja
“prática é orientada pela curiosidade e pelo desconhecimento.” (GOMES, 2015, p. 19). A
realidade a qual o público tem acesso é uma

55
realidade de segunda mão, filtrada e construída pelos jornalistas, que dirigem a
atenção das pessoas para assuntos específicos, e por razões que vão desde
conveniências de mercado até conflitos de interesses entre grupos de comunicação
e o poder político ou econômico. (GOMES, 2015, P. 63)

Uma das maneiras pelas quais isso acontece é o fato de que os jornalistas trabalham
numa espécie de “jogo de espelhos”, isto é, seu trabalho consiste em saber o que os outros
jornalistas disseram, o que, além de gerar uma informação homogênea, “produz um
formidável efeito de barreira, de fechamento mental” (BOURDIEU, 1997, p. 33). Trata-se de
um tipo de produção de informação cujas escolhas não possuem um sujeito, na medida em
que os “mecanismos de circulação circular” (BOURDIEU, 1997, p. 34) fazem parte da
maneira pela qual o meio jornalístico opera, já que, como o autor coloca, as pessoas
encarregadas de informar são informadas por outros informantes, situação esta que “leva a
uma espécie de nivelamento, de homogeneização das hierarquias de importância”
(BOURDIEU, 1997, p. 36). Além disso, “noticia-se aquilo que é obtido com mais facilidade,
segundo a lógica da velocidade, em que o trabalho do jornalista está condicionado pelo fator
tempo.” (GOMES, 2015, p. 114)
Isso é verificado nas notícias analisadas em pelo menos quatro jornais digitais
diferentes que veicularam notícias sobre o mesmo fato. Um exemplo de como funcionam os
“mecanismos de circulação circular”, apontados por Bourdieu, são um grupo de notícias
digitais analisadas, todas publicadas no dia 14 de outubro de 2014. Elas tratam da operação
policial chamada “Operação Herodes”, cuja cobertura jornalística se deu por vários sites de
notícias e demonstrou como o meio jornalístico trabalhou sobre a operação policial. A
elaboração dessas notícias foi feita de forma muito similar, com as mesmas ênfases e dados
sobre o caso, sem qualquer diferença considerável entre elas, a não ser quanto à sua extensão.
Outro exemplo possível de se verificar isso são as notícias do dia 29 de outubro de 2014, as
quais se referem a uma operação policial a uma clínica clandestina numa na cidade de Porto
Alegre, retiradas de quatro sites jornalísticos diferentes, a partir das quais se percebe que as
informações ali noticiadas são feitas pelo mesmo mecanismo.

2.3 O espaço midiático onde se faz a cobertura jornalística analisada

A partir da cobertura jornalística analisada, percebe-se que a opinião pública que


envolve o aborto é formada num espaço midiatizado constituído, conforme coloca Sodré
(2009), como uma ordem de mediações socialmente realizadas no âmbito da comunicação

56
como processo informacional, a qual funciona submetida a organizações empresariais cuja
ênfase é num tipo particular de interação, isto é, uma “tecnointeração”, “caracterizada por
uma espécie de prótese tecnológica e mercadológica da realidade sensível, denominada
medium” (SODRÉ, 2009, p. 21). Para o autor, o medium simularia um espelho, mas, além de
refletir o mundo sensível, seria um condicionador ativo daquilo que diz refletir. É eivado
pelas ideologias tecnicistas as quais tentam deixar visível apenas o aspecto técnico do
dispositivo midiático, que seria a prótese9 e ocultaria sua dimensão societal, vinculada a uma
forma específica de hegemonia e que seria uma forma tecnointeracional que seria o resultado
de uma extensão espectral, com uma nova ambiência, código próprio e sugestões de
condutas. Esse espelho midiático se trata de uma nova forma de vida e não uma simples
cópia, com um espaço de “interpelação coletiva dos indivíduos” e possibilita um “potencial
de transformação da realidade vivida”. No entanto, a forma midiática pode ser condicionada,
caso haja abertura a permeabilizações ou permita hibridizações com outras formas vigentes
no real-histórico, o que pode hipertrofiá-la. (SODRÉ, 2009, p. 22-23)
Como se poder observar, a contemporaneidade se dá num contexto muito específico,
num bios midiático autônomo em relação às demais formas de interação social, uma vez que,
conforme aponta Sodré, esse quarto âmbito existencial possui uma forma de mediação muito
específica em relação às outras mediações, uma vez que

Para inscrever-se na ordem social, a mediação precisa de bases materiais, que se


consubstanciam em instituições ou formas reguladoras do relacionamento em
sociedade. As variadas formas de linguagem e as muitas instituições mediadoras
(família, escola, sindicato, partido etc.) investem-se de valores (orientações práticas
de conduta) mobilizadores da consciência individual e coletiva. Valores e normas
institucionalizados legitimam e outorgam sentido social às mediações. (SODRÉ,
2009, p. 21)

Diante da estrutura que compõe o bios midiático, e da forma de mediação que lhe é
específica, pode-se dizer que essas bases materiais permitem que a mediação presente na
midiatização caracterize uma forma de controle social semelhante às demais formas de
controle social informal, por meio dos quais a microfísica do poder atua. Isso pode ser
percebido no fato de que o quarto âmbito existencial, identificado por Sodré (2009), poderia
ser caracterizado também porque “todas as informações são entregues no espaço privado,
seja por enfeixamento ou por conectividade em rede” (FLUSSER, 2014, p. 90). O
micropoder se constitui a partir de uma multiplicidade de relações de poder, mecanismo pelo

9
Do grego prosthenos, extensão. (SODRÉ, 2009, p. 22)

57
qual é feito por meio desse outro ambiente proposto por Sodré, que poderia ser descrito,
conforme colocado por Foucault (1979, p. 182), como uma “face externa” do poder, onde ele
se relacionaria “direta e imediatamente com aquilo que podemos chamar provisoriamente de
seu objeto, seu alvo ou campo de aplicação, quer dizer, onde ele se implanta e produz efeitos
reais.” (FOUCAULT, 1979, p. 182). O conceito de um ambiente ou bios midiático e o lugar
no qual o poder se exerceria em sua “face externa” ou uma de suas extremidades opera
inauguram um espaço atípico dentro e a partir do qual há se estabelecem relações de poder.
Esse espaço se caracteriza pela ausência da dicotomia entre as esferas pública e privada, na
medida em que esse poder se operaria por meio da mídia, cuja material e de funcional faz
com que o espaço privado seja o da informação, mas que, ao mesmo tempo o torne
inexistente, na medida em que

Não existe mais o espaço privado. [...] Minha casa não tem mais muros nem
telhado. As paredes estão perfuradas por cabeamento visível e invisível, como um
queijo suíço. O telhado está perfurado por antenas. O vento da comunicação passa
zunindo pela minha casa. [...]. (FLUSSER, 2014, p. 91)

O autor aponta, assim, que “não existe mais espaço privado, no sentido estritamente
hegeliano da palavra, como o lugar onde, ao me situar, perco o mundo. Mas também não
existe mais a república, pois o espaço público está totalmente tomado por cabeamentos.”
(FLUSSER, 2014, p. 92). Para ele, “no espaço virtual, não se pode mais falar em fora e
dentro”, já que “a ideia de privado e público nesses espaços não tem mais sentido algum”
(FLUSSER, 2014, p. 99), o que seria mais uma característica desse espaço midiático onde o
controle social informal opera sobre a formação da opinião pública relativamente à
manutenção do aborto como um crime.
Esse espaço em que a dicotomia entre o público e o privado é mitigada é o local onde o
poder circula com ainda mobilidade, já que tanto a abstração do espaço virtual quanto sua
efetividade permitem uma constante renovação do poder que circula para além de
determinados centros políticos. Essa mobilidade maior do poder no espaço virtual permite
que ele se exerça em sua plenitude, já que esse poder “não é possuído, porque é algo que está
em ação, que se arrisca” (FOUCAULT, 2015, p. 207), de modo que essa relação de poder
estabelecida “não obedece ao esquema monótono de opressão, dado de uma vez por todas”
(FOUCAULT, 2015, p. 207).
No entanto, conforme se pode verificar, embora o poder não se exerça com base na
opressão, o conteúdo que circula nesse espaço pode ser mais perverso do que a repressão em

58
si, diante de sua capilaridade e sutil alcance cujos efeitos geram mais consequências fáticas
do que a repressão que vem de um pólo específico e único de poder.
Na sociedade de massa e consumo, ocorre a absorção de questões políticas e urgentes
em termos de garantia de direitos pela lógica do capital. Os meios de comunicação de massa
reduzem temas importantes na sociedade “à dramatização para que lhes possa atribuir um
significado diferente do real, um sentido buscado e difundido”, bem como a promoção “de
uma verdadeira reelaboração do caráter simbólico da vida social ao reorganizar o significado
da informação difundida e reestruturar, desse modo, as relações das pessoas entre si.”
(GOMES, 2015, p. 19).
Trata-se, e é importante salientar, de conceitos que de alguma maneira contribuem para
a interpretação da análise das notícias é feita, baseada em matrizes críticas da Comunicação,
na medida em que os conceitos explorados pelos autores estudados se pautam tanto na Teoria
Crítica quanto num pensamento niilista da sociedade contemporânea. No que se refere à
primeira, uma das linhas interpretativas parte da perspectiva frankfurtiana, segundo a qual o
ponto central é “a denúncia da mercantilização da sociedade e a onipresente motivação do
lucro, que contamina a cultura e provoca sua degradação e subserviência (...)”, proposta por
Max Horkheimer e Theodor Adorno (FRANÇA, 2014, p. 103), bem como em teorias
baseadas no pressuposto de uma sociedade “marcada pela lógica do consumo, pela presença
avassaladora dos meios de comunicação, pela avalanche das informações e proliferação das
imagens.” (FRANÇA, 2014, p. 105), estas representadas por pensadores como Guy Debord e
Jean Baudrillard.
Muito embora a referida linha interpretativa possa ser considerada generalista ou muito
ampla por muitos estudiosos ela não deixa de ser referência na interpretação de fenômenos
sociais relacionados aos meios de comunicação (mídia)10. Isto é, ainda que nos dias atuais a
linha interpretativa seguida pelas teorias cuja crítica e a denúncia possam parecer não tanto
adequadas11 em razão das profundas mudanças e da pluralidade dos formatos desses meios,

10
Neste ponto, é importante salientar que na presente pesquisa se optou por entender e utilizar os termos meios
de comunicação e mídia como sinônimos, uma vez que se referem à mesma coisa a que se quer aqui fazer
referência.

11
Sobre este ponto, é importante colocar, conforme aponta França (2014, p. 109), que “as análises ideoló-
gicas e a crítica da dominação cultural foram substituídas por estudos mais pontuais e atentos à
diversidade e pluralidade das práticas comunicativas, dos discursos, das intervenções dos sujeitos. Um
quadro estrutural mais amplo onde se situam (e em relação com o qual atuam) os meios de comunicação
foi deixado de lado, em nome da busca das particularidades, da complexidade, enfim, dos processos
comunicativos, bem como dos elementos e dinâmicas que os constituem.”

59
os autores estudados que tratam do tema tiveram por base essas referências teóricas as quais
representam um marco na compreensão da sociedade contemporânea, o que não quer dizer
que não se buscou compreender o funcionamento dos meios de comunicação no atual cenário
social. Há que se observar que, conforme aponta Gomes (2015, p. 61), ainda hoje, muitas
décadas após a elaboração dos conceitos de indústria cultural e sociedade do espetáculo,
ambos permanecem válidos para responder, do ponto de vista sociológico, a questões acerca
do formato das relações humanas em um mundo consumista globalizado.
Nesse cenário, e possível compreender o motivo pelo qual “o crime foi convertido em
mercadoria midiática rentável que, após o processo de industrialização comunicacional,
oferecida ao público como espetáculo.” (GOMES, 2015, p. 61). Isso promove todas as
condições de possibilidade para que se investigue com maior amplitude a abordagem
midiática do crime e, conforme aponta Gomes (2015, p. 61), “verificar em que medida as
construções teóricas da comunicação social contribuem para elucidar a aproximação do mass
media com o poder, notadamente o político, dada a significativa probabilidade de que tal
envolvimento acarrete efeitos políticos-criminais”, o que constitui, conforme já colocado, um
dos objetivos da presente pesquisa.
Diante disso, a presente pesquisa não tem como objetivo o estudo específico dos meios
de comunicação ou da mídia, mas, antes, fazer uma análise de como a mídia jornalística
digital, num determinado tipo de recorte de notícias sobre operações policiais em clínicas
clandestinas, reforça o aborto como um crime no atual contexto brasileiro. Por essa razão é
que a base para se possa compreender a estrutura da mídia ou dos meios de comunicação foi
feita em sua base a partir de autores que fundaram o assunto.
Partindo-se, portanto, de uma concepção de matriz crítica acerca da influência dos
meios de comunicação na sociedade contemporânea, é possível interpretar a maneira pela
qual o sistema de justiça criminal é tratado pelas notícias jornalísticas analisadas quando o
assunto é a criminalização do aborto, o que demonstra, segundo Gomes (2015, p. 20), o
alcance do sistema penal pelos meios de comunicação de massa, de modo que o sistema
penal constitui uma excelente matéria prima para o jogo de sentidos com o qual a mídia
estimula o consumo da informação mercadoria. Isso faz, conforme o mesmo autor coloca,
com que o sistema penal remeta sempre

a ideias de controle, punição, castigo. Esse é o senso comum que vigora em todas
as camadas sociais, indistintamente, muito em virtude dos significados criados
pelos mass media, que reduzem a complexidade do fenômeno criminal a uma
disputa entre o bem e o mal e estimulam expectativas de vingança, de desforra em
relação aos indesejados. Ao mesmo tempo, a carga valorativa inerente ao crime
60
facilita a construção de um discurso de moralização pautado em dois extremos: o
das vítimas (nós) e o dos criminosos (eles). (GOMES, 2015, p. 20)

A fim de que se instaure ou se mantenha uma certeza de um valor que permeia um


fenômeno social, a mídia cumpre a função de repercutir a certeza acerca de condutas que são
entendidas como criminosas. Conforme verificado, a mídia orienta e respalda preconceitos e
ideias falsas sobre algumas condutas e ela assim o faz a partir de “categorias teóricas como o
risco, o medo do crime e o sentimento de insegurança” (GOMES, 2015, p. 87). No caso do
aborto, essas categorias funcionam de modo a manter e reforçar constantemente o aborto
como um crime, como se tratou neste capítulo anteriormente. A maneira de elaborar as
notícias sobre as operações policiais nas clínicas clandestinas aborda expressões chave a fim
de que o aborto seja mantido como um crime. A ideia que subjaz nessas notícias é de que a
eventual descriminalização do aborto acarretaria tirar a vida de crianças (ainda que sem
formação), o que pode ser verificado a partir do conteúdo dos projetos de lei apresentados no
primeiro capítulo os quais visam restringir ou impedir o aborto em qualquer hipótese, mesmo
aquelas que ainda são permitidas pelo Código Penal.
A lei penal que criminaliza o aborto necessita de um constante reforço, bem como seu
recrudescimento, conforme constam nos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional
e na Proposta de Emenda à Constituição 181. A mídia serve a essa finalidade como uma das
formas de controle social que adentra ao controle informal para que se chegue ao formal, isto
é, a legitimação social da criminalização do aborto concretizada formalmente pelo Código
Penal. Nesse processo, o poder é captado “na extremidade cada vez menos jurídica de seu
exercício.” (FOUCAULT, 1979, p. 182). Nesse sentido, depois de o poder de punir se
incorporar no tecido social fora do contexto jurídico, “legitimam-se a promulgação de leis
penais mais rígidas e intervenções de controle social, pelas instâncias formais, mais
contundentes, sem que haja, a esse respeito, qualquer discordância das correntes ideológicas
que disputam o poder.” (GOMES, 2015, p. 104)
Há, por conseguinte, uma interdependência entre a legislação, o público e os meios de
comunicação. Nesse contexto, o fato crime alimenta o trabalho midiático. Isto é, “a
existência de matéria prima para a indústria de notícias, o que permite que os espaços em
branco da pauta rotineira da imprensa sejam preenchidos com informações sobre crimes”
(GOMES, 2015, p. 102.), situação esta que é somada a “uma latente dramatização ligada à
criminalidade, muito apreciada na fabricação de um produto midiático tão mais vendável
quanto mais (des)informativo seja.” (GOMES, 2015, p. 102.). Nesse aspecto,

61
quando o jornalismo deixa de ser uma narrativa com pretensão de fidedignidade
sobre a investigação de um crime ou sobre um processo em curso, e assume
diretamente a função investigatória ou promove uma reconstrução dramatizada do
caso – de alcance e repercussão fantasticamente superiores à reconstrução
processual – passou a atuar politicamente. (BATISTA, 2003, p. 5-6)

Há, por conseguinte, uma interdependência entre o sistema de justiça criminal e os


meios de comunicação de modo que, conforme coloca Zaffaroni (1991, p. 127-8), os meios
de comunicação de massa são atualmente indispensáveis para o exercício do poder de todo o
sistema penal, sem os quais a população estaria mais exposta à experiência direta da
realidade social e poderia se dar conta da falácia dos discursos que o justificam. Isso reforça
a forma com que os micropoderes operam no corpo múltiplo social, em suas várias
extremidades de tal forma que os meios de comunicação se tornem indispensáveis para o
funcionamento do sistema de justiça criminal.

O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria ideia de
pena: antes de mais nada, creem na pena como rito sagrado de solução de conflitos.
Pouco importa o fundamento legitimante: se na universidade um retribucionista e
um preventista sistêmico podem desentender-se, na mídia complementam-se
harmoniosamente. Não há debate, não há atrito: todo e qualquer discurso
legitimante da pena é bem aceito e imediatamente incorporado à massa
argumentativa dos editoriais e das crônicas. [...] A equação penal – se houve delito,
tem que haver pena – a equação penal é a lente ideológica que se interpõe entre o
olhar da mídia e a vida privada ou pública. (BATISTA, 2003, p. 3-4)

2.2 Os agentes do crime de aborto e o estereótipo da mulher como vítima

No intuito de compreender a especificidade do aborto enquanto crime e os estereótipos


de gênero que o cercam a partir da interpretação com base criminológica dos dados das
notícias aqui analisadas, de modo que dois aspectos fundamentais da criminologia crítica
para os objetivos da pesquisa, quais sejam, a criminologia feminista e a criminologia
midiática, sejam estudados, é necessário que essas duas linhas da criminologia crítica se
aproximem na interpretação teórica dos referidos dados. O ponto em que ambas mais se
aproximam dentro do recorte de notícias analisadas é na forma com que as notícias
analisadas tratam dos agentes do crime, tanto dos profissionais que realizavam ou
contribuíam de alguma forma nos procedimentos cirúrgicos, quanto das mulheres que foram
encontradas nas clínicas à espera da realização do aborto ou já sendo operadas.

62
Nesse sentido, verifica-se que tanto nas notícias mais sucintas quanto nas notícias mais
extensas há uma ênfase sobre os profissionais que participaram do aborto e, sempre se
menciona que havia mulheres que o cometeram ou que estavam aguardando para um suposto
aborto, o que demonstra que as notícias são fieis ao que dispõe o artigo 126 do Código Penal,
segundo o qual a pena prevista para aquele que provocar o aborto com o consentimento da
gestante é de um a quatro anos. Ou seja, trata-se de uma previsão legal que estende o rol de
agentes que são incriminados pela prática do aborto. As notícias, conforme se pode perceber
nesse aspecto, evidenciam todos aqueles agentes que atuam nas clínicas. Além da figura da
mulher gestante como criminosa, todos aqueles que participam de alguma forma na
realização do procedimento são, em regra, tratados como criminosos nas notícias.
O que se percebe a partir dessas notícias é que, se há a criminalização do aborto e, por
consequência, a criminalização de quem o pratica ou de quem participa do procedimento, há
uma ênfase, de uma maneira mais acentuada no modo de se fazer a cobertura jornalística das
operações policiais nas clínicas clandestinas, a qual se volta aos profissionais envolvidos nas
clínicas e nos supostos abortos realizados, de modo que a forma como as mulheres que
estavam no local ou que foram flagradas ganha um espaço menor ou um foco menos
acentuado que as demais pessoas envolvidas.
O que se depreende dessa análise é que mesmo nas notícias que cobrem operações
policiais feitas em clínicas clandestinas, busca-se, ainda que de forma não deliberada pela
mídia, manter, de acordo com Andrade (2012, p. 137) toda a mecânica de controle (enraizada
nas estruturas sociais) constitutiva e reprodutora das profundas assimetrias de que os
estereótipos, os preconceitos e as discriminações se engendram e se alimentam ao sacralizar
hierarquias. Se num primeiro momento, a criminalização do aborto reafirma o lugar social da
mulher, na medida em que “enquanto numa mulher ‘normal’ a sexualidade encontra-se
subordinada à maternidade, o que faz com que a mãe ‘normal’ coloque os/as filhos/as em
prioridade absoluta, entre as criminosas dá-se justamente o oposto” (MENDES, 2017, p. 44),
no que se refere ao aborto seu protagonismo se esvai no discurso da cobertura midiática
jornalística acerca das operações policiais nas clínicas clandestinas. Pode-se dizer, com isso,
que, ao mesmo tempo em que se criminaliza o aborto e se permite que o Estado puna a
mulher que é vista como assassina por interromper a gravidez indesejada – o que é uma
forma de dizer às mulheres que elas devem cumprir a maternidade que lhes é imposta –,
mantém-se a

63
dimensão simbólica da construção da criminalidade/vitimação, representada por
nosso microssistema ideológico que procede a microsseleções cotidianas, ao
associar, estereotipadamente: criminosos com homens pobres; desempregados de
rua com perigosos; estupradores com homens de lascívia desenfreada; vítimas
como mulheres frágeis, entre outros. (ANDRADE, 2012, p. 137)

Verifica-se, no entanto, que os agentes apontados nas notícias os quais seriam


partícipes no crime do aborto, nessa perspectiva da reprodução do sistema penal, não se
encaixam exatamente na associação da criminalidade com homens pobres, desempregados,
de rua ou estupradores, mas, pelo contrário, nessas notícias o destaque que se dá nesse
aspecto é aos diversos tipos de profissionais cujas características se distanciam dos referidos
estereótipos, na medida em que, conforme se pode verificar nas notícias, os profissionais
investigados são, em sua maioria, médicos e médicas, enfermeiras, motoristas etc.
Esse dado nas notícias é verificado de maneira paralela à percepção de que figura da
mulher não como a “criminosa” ou aquela que seria a autora principal do crime de aborto é
sustentada nas notícias, muito embora o recorte dessas notícias digam respeito à investigação
de clínicas clandestinas que realizam o procedimento com o consentimento da mulher. O
conteúdo desses dados acompanha a redação da lei penal brasileira no que concerne ao crime
de aborto consentido, pois, nos artigos correspondentes, a mulher configura como a principal
responsável nesses tipos penais: o artigo 124 prevê a pena de detenção de um a três anos para
quem “provocar o aborto em sim mesma ou consentir que outrem o provoque”, bem como o
artigo 126 que prevê a pena de reclusão de um a quatro anos para quem “provocar aborto
com o consentimento da gestante.
Tanto os dados referentes às figuras criminais distintas dos estereótipos reproduzidos
no sistema penal (passar a analise desse dano para o parágrafo correspondente) quanto a
maneira frequente de colocar a mulher de forma secundária nas notícias demonstram que
nem mesmo o crime de aborto é capaz de fazer com que a mulher apareça na mídia
jornalística digital como a protagonista desse crime, isto é, nem mesmo um crime que é
considerado pela lei penal contra a vida é capaz de alterar o lugar passivo que foi imposto às
mulheres por meio do “estereótipo da mulher passiva (objeto-coisificada-reificado) na
construção social do gênero, divisão esta que se mantém no espaço privado (doméstico), é o
correspondente exato do estereótipo da vítima no sistema penal.” (ADRANDE, 2005, p. 87).
Isso reforça o que Andrade (2005, p. 88) colocou no sentido de o sistema de justiça criminal
ser androcêntrico por se constituir um mecanismo masculino de controle para o controle de
condutas masculinas, em regra, praticadas pelos homens, de modo que seja apenas
residualmente feminino.
64
Trata-se, por conseguinte, de um controle informal materializado na Família (pais,
padrastos, maridos) do qual também participam a escola, a religião e a moral, o que constitui
um mecanismo de controle dirigido às mulheres, como operadoras de papéis femininos na
esfera privada, na medida em que o sistema de justiça faz parte de um poderoso espaço
público no qual serão novamente os homens que estarão lá, assim como na comunidade de
criminólogos. São essas as razões pelas quais é que o sujeito feminino só será encontrado
residualmente no catálogo masculino, de modo que “tanto lendo o Código penal
(criminalização primária) quanto olhando para as prisões (criminalização terciária)
constatamos que o sistema só criminaliza a mulher residualmente e que, de fato, a trata como
vítima.” (ANDRADE, 2005, p. 88).
Nesse aspecto, a forma de elaborar as notícias sobre as operações policiais reforça a
manutenção da mulher a um lugar social do qual nem mesmo o crime de aborto é capaz de
retirá-la. Observe-se que o aborto é previsto como crime na parte especial do Código Penal
como um dos crimes contra a vida, ou seja, trata-se de um dos crimes que atentam contra o
bem jurídico mais importante do ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, o estereótipo
da mulher como vítima subsiste até mesmo quando a mídia jornalística digital trata do crime
de aborto por meio das notícias sobre a cobertura das operações policiais nas clínicas
clandestinas.
Como foi tratado no primeiro capítulo desta pesquisa, no sistema de justiça criminal a
posição predominante da mulher é a de vítima a qual é mantida pela constância e
permanência dos estereótipos. Neste item, no entanto, o reforço dos estereótipos atribuídos à
mulher se dá de forma mais sofisticada, uma vez que ao mesmo tempo em que se reforça a
criminalização do aborto a partir da ênfase que é relacionada a todas as pessoas envolvidas
na realização de abortos nas clínicas, o foco é, antes, nos profissionais envolvidos nos
procedimentos do que nas mulheres que se encontravam no local à espera de atendimento ou
prestes a serem operadas. O que se verifica, diante disso, é uma maneira mais sutil, embora a
vontade de realizar o aborto seja das próprias mulheres que se encontravam nos referidos
locais, de atribuir maior responsabilidade simbólica, nas notícias, aos profissionais
envolvidos, de modo que a figura da mulher como vítima permaneça de alguma forma intacta
no sistema de justiça criminal, o que se dá pela retirada do protagonismo das mulheres até
mesmo no noticiário digital a respeito das clínicas onde se realizam abortos.
Isso é parte do sistema de justiça criminal e toda a dinâmica do controle social informal
que o cerca e o movimenta, servindo à manutenção do “simbolismo de gênero com sua

65
poderosa estereotipia e carga estigmatizante.” (ANDRADE, 2012, p. 142). Esse simbolismo
tão enraizado e, por isso, reproduzido sistematicamente por homens e mulheres “apresenta a
polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças naturais
(biologicamente determinadas).” (ANDRADE, 2012, p. 142). O que as notícias na mídia
digital fazem é manter esses valores intactos, de forma sutil, conforme se observa, já que
nelas as mulheres não são colocadas como protagonistas do crime de aborto. É de se observar
que as notícias dizem respeito a operações policiais realizadas nas clínicas clandestinas onde
trabalham profissionais envolvidos ou suspeitos do envolvimento nos abortos. No entanto,
verificou-se um padrão na maneira de se referir às mulheres que se encontravam nos locais
sendo atendidas ou à espera de atendimento, padrão este que as coloca para o público que lê
as notícias num segundo plano numa perspectiva de agentes dos crimes.
A mídia jornalística digital no que se refere ao aborto reforça os estereótipos do
masculino ativo e do feminino passivo presentes no sistema de justiça criminal o qual “existe
sobretudo para controlar a hiperatividade do cara e manter a coisa no seu lugar (passivo)”
(ANDRADE, 2012, p. 143), uma vez que o cara representa aquele sujeito onipresente e
onisciente do nosso imaginário, enquanto a coisa seria seu contraponto, isto é, aquilo que não
age ou aquilo do que não nos lembramos: “Como é mesmo o nome daquela coisa?”
(ANDRADE, 2012, p. 143).
O reforço do aborto como crime, tanto no sistema de justiça criminal (controle formal)
quanto nas reproduções estereotipadas veiculadas pela mídia (controle informal), serve não
apenas para manter as mulheres reféns do controle biopolítico de seus corpos, sobre uma
constante apreensão que se impõe sobre suas vidas e sua saúde, mas serve, de modo
semelhante, à manutenção de seus corpos na esfera privada. O aborto como crime se impõe
como uma forma de mantê-las duplamente como cumpridoras dos atributos necessários que
lhes foram impostos. A forma dupla de imposição do que lhes cabe socialmente se constitui
tanto pela proibição de as mulheres optarem por interromper uma gravidez indesejada quanto
pelo fato de as notícias analisadas as colocarem como agentes de menor protagonismo no
crime de aborto.
Há, com isso, uma dupla função no controle sobre a mulher, cuja característica é
manter sobre ela

os atributos necessários ao desempenho do papel subordinado ou inferiorizado de


esposa, mãe e trabalhadora do lar (doméstica) são bipolares em relação ao seu
outro. A mulher é então construída femininamente como uma criatura emocional-
subjetiva-passiva-frágil-impotente-pacífica-recatada-doméstica-possuída.
(ANDRADE, 2012, p. 142)
66
Deste modo, há um ofuscamento na própria maneira com que o sistema opera por meio
de uma eficácia invertida a qual é possível pelo reforço que obtém dos meios de
comunicação os quais traduzem o funcionamento do sistema de justiça criminal a partir de
uma “espécie de sabotagem comunicacional a serviço de fins lucrativos, que tem como
premissa a domesticação da crítica pelo processo de seleção da informação e de seu
direcionamento ideológico (construção da realidade via agenda setting).” (GOMES, 2015, p.
112). Trata-se de uma função real do sistema de justiça criminal, a qual, como coloca
Andrade (2005, p. 79), é inversa ao seu discurso oficial e que incide negativamente na
existência dos sujeitos e da sociedade. É, por conseguinte,

precisamente o funcionamento ideológico do sistema – a circulação da ideologia


penal dominante entre os operadores do sistema e no senso comum ou opinião
pública – que perpetua o ilusionismo, justificando socialmente a importância de sua
existência e ocultando suas reais e invertidas funções. Daí apresentar uma eficácia
simbólica sustentadora da eficácia invertida. (ANDRADE, 2005, p. 79)

Os meios de comunicação, portanto, operam na efetivação da eficácia invertida


segundo a qual a função latente e real é construir uma criminalidade seletiva e estigmatizante
de modo a reproduzir material e ideologicamente as desigualdades e assimetrias sociais (de
classe, gênero e raça). (ANDRADE, 2005, p. 79).
Por conseguinte, a interdependência entre os meios de comunicação e o sistema de
justiça criminal se constitui como uma das formas de manter este voltado para os homens,
uma vez que a mulher é mantida vítima ou uma coadjuvante até mesmo no crime de aborto o
qual ela é a principal responsável.

67
3 O LUCRO E A QUANTIDADE DE ABORTOS REALIZADOS NAS CLÍNICAS:
Uma análise sobre a influência desse discurso nas notícias na manutenção do aborto
como crime

A primeira parte deste capítulo se constitui, conforme se verá, tanto de elementos


teóricos relacionados à análise do discurso quanto de sua aplicação à análise dos dados
coletados, referentes a valores e lucros, bem como à quantidade de abortos realizados nas
clínicas. A intenção é fazer a análise do discurso nas notícias, no que concerne aos dados
específicos de que se trata este capítulo, paralelamente à abordagem teórica. Essa necessidade
se justifica em razão de os capítulos anteriores se relacionarem a dados os quais, por si só,
trouxeram elementos passíveis de interpretação sem que se fizesse a análise de discurso. Já
neste capítulo, entende-se que os dados a ele concernentes, por si só, não são passíveis de
serem interpretados sem que se fizesse uma análise de discurso nos moldes que aqui se
apresenta, observando-se sua base teórica de modo a aplicá-la. Isso se dá em razão de que os
referidos dados não se referirem especificamente à figura da mulher, dos demais agentes do
crime, bem como com o tipo penal específico que criminaliza o aborto, na medida em que
inexiste qualquer menção na lei penal relacionada a obtenção de lucro pela realização do
aborto. Dito de outro modo, esses dados apresentam valores relacionados ao lucro retirado dos
supostos abortos realizados nas clínicas, o que demonstra que são dados que, embora não se
refira objetivamente à conduta tipificada como crime, apareceram em numa grande
quantidade de notícias.
Ao se considerar que os referidos dados fogem ao tipo penal ao não se referir
objetivamente à mulher nem aos demais agentes do crime de aborto, bem como não fazer
referência ao poder punitivo do Estado no que se refere ao aborto, ao contrário, trata-se de
informações contidas nas notícias que fazem menção ao lucro obtido e ao número de abortos
realizados. Nesse sentido, conforme se verá, entende-se que a análise do discurso neste
capítulo faz necessária, na medida em que seu objetivo é “fazer compreender como os objetos
simbólicos produzem sentidos” (ORLANDI, 2001, p. 26).
Diante disso, pretende-se neste capítulo, a partir da análise do discurso, compreender
na cobertura jornalística o que os dados referentes ao lucro e à quantidade de abortos
realizados nas clínicas querem dizer aos leitores e os motivos pelos quais os referidos dados
estão presentes num considerável número de notícias. O objetivo é compreender a relação de
sentidos que se estabelece a partir do contexto no qual as notícias que trazem esses dados

68
específicos se situa, de modo a observar a linha que se optou para fazer a análise do discurso.
A opção por analisar esses dados específicos se deu porque se percebeu que, ao ler e
selecionar as notícias que se encaixavam dentro do recorte da pesquisa, verifica-se que na
maior parte das notícias analisadas há uma preocupação da mídia jornalística digital em
apontar o número de abortos supostamente realizados nessas clínicas, bem como a média de
lucro obtida pelos abortos. Com isso, observa-se que, para além da naturalização e do
excesso do aparato policial empregado nas operações policiais, há um forte discurso acerca de
valores monetários que por vezes se relacionam à quantidade de abortos que as clínicas
realizam.

69
CONCLUSÃO PARCIAL

Esta pesquisa teve a pretensão de apresentar uma análise dos dados que se
apresentaram mais evidentes na cobertura na mídia jornalística digital cujo recorte foi a
respeito das operações policiais realizadas em clínicas clandestinas no país. A partir disso,
verificou-se alguns aspectos que se repetiam em muitas notícias, os quais são relativos à
forma com que a mídia trata o aborto; ao aparato policial utilizado pelo Estado nas operações
policiais, bem como aos agentes que participaram do crime e dos dados relacionados ao lucro
e preços cobrados pelo procedimento de aborto.
Até o presente momento é possível concluir que os dados retirados da cobertura
jornalística analisada nos primeiro e segundo capítulos se relacionam a aspectos que estão
objetivamente descritos nos dispositivos legais do Código Penal brasileiro que proíbem o
aborto. Isto é, aspectos como à maneira de se tratar o aborto como um crime, o uso de um
aparato policial nas investigações, a forma com que os agentes que participaram do crime são
tratados e a maneira da mídia de se referir às mulheres que se encontravam no local já em
atendimento ou à espera de atendimento no momento das operações policiais.
A análise dos dados considerou o atual contexto político e jurídico no qual as mulheres
se encontram no Brasil. Entre projetos de leis que propõem mais causas proibitivas de aborto
ou que tornam as penas maiores, os interesses que atravessam essas propostas nunca estão
relacionados aos direitos reprodutivos da mulher. Sua autonomia e seu corpo sequer são
considerados na elaboração dos projetos de leis analisados, bem como a PEC 181 cuja
redação tende a impedir qualquer forma de interrupção da gravidez.
Os dados do primeiro capítulo apontaram para a maneira naturalizada com que o
aborto é tratado como crime pela mídia no recorte de cobertura analisado, de modo que a
interpretação teórica que se deu pra isso se pautou nas formas como o poder opera na
sociedade, por meio do controle social formal e informal. Percebe-se que a naturalização da
forma de se tratar o aborto como se fosse um crime qualquer reforça e mantém legítima a
continuidade da criminalização do aborto no Brasil.
No segundo capítulo, percebeu-se, pela análise da cobertura jornalística que há ênfase
na repressão policial cujo foco é somente o fato em si e a manutenção de preconceitos e
opiniões que se mantêm em torno dele. Um segundo dado do segundo capítulo foi em relação
à forma com que os agentes do crime de aborto é feita pela cobertura. Uma parte considerável
da cobertura jornalística sobrepôs os demais agentes do crime de aborto em relação às

70
mulheres que estavam no local. O que se verificou foi que, ainda que no crime de aborto a
agente principal, que toma a decisão de forma deliberada, seja a mulher, parte considerável
das notícias da cobertura realçou como agentes principais os profissionais que contribuíram
de alguma forma na realização do aborto.
Diante disso, verificou-se que, muito embora a figura da mulher no controle social
informal tenha que obedecer ao que lhe foi imposto socialmente, como cumprir a função de
mãe e ter o dever de cuidar dos filhos e demais membros da família, na cobertura jornalística
analisada a ênfase dada aos agentes do crime de aborto não recaiu necessariamente sobre as
mulheres de um modo geral. Deve-se considerar que o Código Penal prevê a pena para o
crime de aborto tanto para a própria mulher que o provoque quanto para quem ela lhe deixa
provocar. No entanto, a decisão é sempre dela quando se trata de aborto consentido que foi o
tipo penal do qual se tratou na pesquisa. A despeito disso, a cobertura jornalística digital
manteve a figura do criminoso não sobre a mulher, mas sobre os profissionais que estavam de
algum modo envolvidos no funcionamento das clínicas clandestinas investigadas e,
consequentemente, nos abortos possivelmente nelas realizados. A interpretação teórica que se
fez disso, ao se considerar todo o contexto jurídico e político no qual as mulheres estão e
vivem as consequências de uma gravidez indesejada, foi a de que o sistema de justiça criminal
funciona por meio do protagonismo dos homens, tanto no que se refere à sua manutenção
funcional em termos de conhecimento técnico e operacional quanto no que se refere ao seu
destino. Isto é, o sistema de justiça criminal se destina precipuamente aos homens.
No que se refere aos dados analisados que estarão presentes no terceiro capítulo, a
intenção é fazer uma análise do discurso propriamente dita desses dados, opção esta que se
justifica em razão de que esses dados, diferentemente dos dados do primeiro e segundo
capítulos, não se relacionam ou se referem a aspectos descritos objetivamente na lei, ou seja,
trata-se de dados que se referem ao lucro obtido pelas clínicas e ao número de abortos
realizados periodicamente por elas, de modo que este segundo dado se relaciona ao primeiro
em termos de lucro financeiro.

71
REFERÊNCIAS

ADVERSE, Helton. Foucault e a história da sexualidade: da multiplicidade das forças à


biopolítica. Revista de Filosofia Aurora. Curitiba. v. 28. n. 45, pp. 927-948, 2016.

ANDRADE, Vera Regina de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no


tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência. Florianópolis. n. 50,
pp. 71-102, 2005.

ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da
(des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BORDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:


promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n. 181, de 16 de dezembro de 2015. Altera a


redação do inciso XVIII do artigo 7º da Constituição. Câmara dos Deputados e Senado
Federal. Brasília. Disponível em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2075449

BRASIL. Projeto de lei n. 5.069, de 27 de fevereiro de 2013. (Dep. Eduardo Cunha)


Acrescenta o art. 127-A ao Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código
Penal. Câmara dos Deputados, Brasília. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565882

BRASIL. Projeto de lei n. 4.396, de 16 de fevereiro de 2016. (Dep. Anderson Ferreira)


Altera o art. 127 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.
Câmara dos Deputados, Brasília. Disponível em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2077282

BRASIL. Projeto de lei do Senado n. 461, de 13 de dezembro de 2016. (Senador Pastor


Valadares). Altera o Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.
Senado Federal, Brasília. Disponível em
http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127776

BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana.


In: CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Editora
Sulina, 1999.

72
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, Revista Especial, 8º Seminário Internacional, n. 42. São Paulo: RT,
jan/mar., 2003. Disponível em < http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-
penal.pdf>

BIROLI, Flávia. A reprodução dos estereótipos no discurso jornalístico. In: BIROLI,


Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Notícias em disputa: mídia, democracia e formação de
preferências no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017.

BIROLI, Flávia. Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para


a crítica democrática. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013.

CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Editora


Sulina, 1999.

CASARA, Rubens R. R. A espetacularização do processo penal. Revista Brasileira de


Ciências Criminais, São Paulo. vol. 122, 2016.

CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a


dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito
Editora, 2015.

CEDAW, Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a


Mulher. Sétimo Relatório Periódico Brasileiro (CEDAW/C/BRA/7), do Comitê para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Disponível em
<http://www2.ohchr.org/english/bodies/cedaw/docs/ngos/CLADEM_forthe_session_pr.pdf
. 2012>.

CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Revan: Rio de Janeiro, 2011.

DAVIS, Angela. Mulher, raça e classe. Tradução Livre. Plataforma Gueto: 2013.
Disponível em https://we.riseup.net/assets/165852/mulheres-rac3a7a-e-classe.pdf

DINIZ, Débora; LAVINAS, Lena. Direito de irlandesas e brasileiras. O Globo. Rio de


Janeiro, 29 maio. 2018. Opinião. Disponível em http://infoglobo.pressreader.com/o-
globo/20180529/282046212773047

DINIZ, Débora. Não grite eugenia: ouça as mulheres. In: RODRIGUES, Carla; BORGES,
Luciana; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org). Problemas de gênero. Rio de Janeiro:
Funarte, 2016.

DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto


2016. Ciência e Saúde Coletiva. n. 22, (2), pp. 653-660, 2017.

ESPOSITO, Roberto. Communitas: Origen y destino de la comunidad. 1ª. ed. Buenos


Aires: Amorrortu, 2003.

FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as conferências de Bochum.


Martins Fontes: São Paulo, 2014.

73
FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. Martins Fontes: São Paulo, 2015.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Martins Fontes: São Paulo, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Edições Graal: Rio de Janeiro, 1979.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Martins Fontes: São Paulo,


2008.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. ed.
Petrópolis: Rio de Janeiro, 2014.

FRANÇA, Vera Veiga. Crítica e metacrítica: contribuição e responsabilidade das teorias


da comunicação. Matrizes (USP), São Paulo. n. 2 (8), pp. 101-116, jul/dez. 2014.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-


socialista”. Cadernos de Campo. São Paulo, n. 14/15, 2006.

FUSCO, Carmen L. B.; SILVA, Rebeca de Souza e; ANDREONI, Solange. Aborto


inseguro: determinantes sociais e iniquidades em saúde em uma população vulnerável em
São Paulo, Brasil. Cad. Saúde pública, Rio de Janeiro. n. 28, (4), pp. 709-719, 2012.

GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização


nos meios de comunicação. Revan: Rio de Janeiro, 2015.

Grupo de Pesquisa Direito Humanos, Poder Judiciário e Sociedade – UERJ. (IPAS Brasil).
(2013). Relatório Final. Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a partir
dos atores do sistema de Justiça. Disponível em https://apublica.org/wp-
content/uploads/2013/09/Relat%C3%B3rio-FINAL-para-IPAS.pdf

HIRATA, Helena; KERGOAT; Dàniele. Novas configurações da divisão sexual do


trabalho. Cadernos de Pesquisa. v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007.

INGRAM, David. Filosofia do direito: conceitos chave em filosofia. Artmed: Porto


Alegre, 2010.

MACKINNON, Catherine. Feminism Unmodified: discourses on life and law. Harvard


University Press: Cambridge, 1987.

MACLAREN, Margareth A. Foucault, feminismo e subjetividade. Intermeios: São


Paulo, 2016.

MASI, Carlo Velho; MOREIRA, Renan da Silva. Criminologia cultural e mídia: um


estudo da influência dos meios de comunicação na questão criminal em tempos de crise.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo. Ano 22, v. 108, pp. 437-460,
maio/jun. 2014.

MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. Saraiva: São


Paulo, 2017.

74
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução.
Boitempo: São Paulo, 2014.

NOGUEIRA, Claudia Mazzei. As trabalhadoras do telemarketing: uma nova divisão


sexual do trabalho? In: ANTUNES, R.; BRAGA, R. (Org.). Infoproletários: degradação
real do trabalho virtual. Boitempo: São Paulo, 2009. p. 7-16.

O mesmo amor com que se faz um parto se faz um aborto: entrevista. [14 de março, 2014].
Madrid: El País. Entrevista concedida a Talita Bedinelli e Raquel Seco. Disponível em
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/08/sociedad/1394236454_746976.html

ORLANDI, Eni Puccinelli. A análise de discurso em suas diferentes tradições


intelectuais: o Brasil. In: Anais do 1º Seminário de Estudos em Análise de Discurso.
2003 Nov 10-13; Porto Alegre, Brasil. UFGRS: Porto Alegre, RS, 2003. Disponível em
http://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/1SEAD/Conferencias/EniOrlandi.pd
f

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Pontes:


Campinas, SP, 2001.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.


Vozes: Petrópolis, RJ, 1996.

ORLANDI, Eni Puccinelli. O que é linguística. Brasiliense: São Paulo, 2013.

PASCUAL, Julia; MINÃNO, Leila. No Chile, a luta pelo direito ao aborto. Le Monde
Diplomatique Brasil. 01 out. 2015. Disponível em https://diplomatique.org.br/no-chile-
a-luta-pelo-direito-ao-aborto/

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1993.

RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações


afirmativas. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2008.

SANTOS, Vanessa Cruz. et al. Criminalização do aborto no Brasil e implicações à saúde


pública. Revista Bioética, Brasília. n. 21, (3), pp. 494-508, 2013.

SILVA, Carmen da. Maternidade não é obrigação. É escolha. In: RODRIGUES, Carla;
BORGES, Luciana; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org). Problemas de gênero. Rio de
Janeiro: Funarte, 2016.

SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede.


Vozes: Petrópolis, RJ, 2009.

WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Editorial Presença: Lisboa, 1999.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. A questão criminal. Revan: Rio de Janeiro, 2013.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. El discurso feminista y El poder punitivo. [2003?].

75
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do
sistema penal. Revan: Rio de Janeiro, 1991.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal


brasileiro: parte geral. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2015.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Revan: Rio de Janeiro, 2011.

76

Você também pode gostar