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vieira/

O início dos sermões está sempre ligado às circunstâncias concretas (acontecimentos históricos
e sociais) em que foram pregados. Vieira transforma os sermões que prega em instrumento de
intervenção na vida política e social, em defesa das grandes causas humanitárias a que dedicou a
vida.

Vieira: um visionário:

Vieira escreveu também um livro de carácter profético* – A História do Futuro, no qual se


mostra sebastianista** e defensor do mito do Quinto Império, mostrando-se convicto do futuro
glorioso de Portugal, país cuja grandeza do tempo das Descobertas há-de ser recuperada, tal
como Deus determinou (Portugal é um país destinado pelo Céu a um esplendor de que Vieira
não duvida) por um rei que estando no presente “encuberto”, aparecerá para transformar
Portugal nessa nova potência que será o Quinto Império: «Assim que o Império que
promete Daniel ***não é império já passado, senão que ainda está por vir.»

* Uma obra profética (ou texto profético) é aquela em que o autor relata as suas visões, sonhos
ou premonições/ intuições de acontecimentos futuros, considerando que é um emissário ou
porta-voz de Deus que o escolheu para que anunciasse aos homens comuns o que irá acontecer
num país, por exemplo. O profeta é, assim, o escolhido por Deus para transmitir as Suas
mensagens.

**”sebastianista” é aquele que acredita no regresso do rei D. Sebastião (o Encoberto) para salvar
o país da má governação e difícil situação económica, social, cultural e política e que o há-de
conduzir ao Quinto Império ou reino de paz e glória eternas. O mito sebastianista ou sebástico é
o principal mito nacional e teve muitos adeptos ao longo da nossa história, sobretudo em épocas
de crise; entre eles, contam-se António Vieira e séculos mais tarde, Fernando Pessoa.

***Daniel foi um profeta do Antigo Testamento que profetizou a vinda de um quinto império
após os quatro já conhecidos: o babilónico, o persa, o grego e o romano.

As cartas escritas por António Vieira são também importantes para se conhecer o pensamento
do autor e acontecimentos de carácter político e social que o marcaram.

«(…) Muito estimo encomendar-me V. Revª que faça visitar mais vezes as aldeias do Maranhão.
O que nisto se faz é que na casa do Maranhão e Pará não reside ordinariamente mais que um só
sacerdote. Todos os mais estão divididos pelas residências, onde cada um tem três e quatro
aldeias à sua conta, e algum há que tem onze; (…) O serviço de Índios é qual V. Revª tem
experiência. Necessitamos muito de tapanhunos que já temos pedido à Província, mas não sei se
chegaram as cartas porque nem respostas delas se recebeu até agora (…)»

Carta CCCIII, 1660 (excerto)


Retomando a narração da longa e atribulada vida do Pe A.Vieira…

O Pe António Vieira viveu uma boa parte da sua vida sob o domínio filipino, na sequência da
perda da independência portuguesa após o desastre de Alcácer-Quibir. A independência é
recuperada em 1640, tendo sido eleito rei de Portugal o Duque de Bragança, futuro rei D. João
IV. Este período da vida política nacional é conhecido pela época da Restauração (Portugal foi
restituído aos Portugueses após 60 anos de domínio castelhano).

Quando a notícia da Restauração chega ao Brasil, António Vieira é enviado pela Companhia de
Jesus a Lisboa para homenagear o novo rei em nome da colónia brasileira. Entre Vieira e D.
João IV desenvolveu-se uma forte amizade que durou até à morte do monarca. A vida de
pregador da corte e de diplomata no estrangeiro está para breve. António Vieira é nomeado
pregador régio e torna-se conselheiro do rei e passa a ser político e diplomata.

Possivelmente por inveja do sucesso que o pregador tinha alcançado em Lisboa, a Companhia de
Jesus mostra-se disposta a expulsá-lo. O grande amor de Vieira à Companhia de Jesus e a
protecção de D. João IV evitam a expulsão indesejada.

Regressado do Brasil, o Pe António Viera constata em Lisboa que o reino tinha perdido o brilho
da época gloriosa das Descobertas: Portugal era constantemente atacado nas colónias
ultramarinas, facto que enfraquecia a economia. Pensou, então, em aconselhar o rei e seu amigo
D. João IV, a reintegrar os judeus expulsos de Portugal no tempo do rei D. Manuel I já que estes
eram hábeis nos negócios e em lidar com o dinheiro.Os judeus constituíam grande parte da
burguesia emergente que, pelo seu poder financeiro, provocavam a inveja de nobres e clero.
Estas expulsões foram extremamente prejudiciais para os reinos ibéricos visto que dinamizavam
a economia. Ricos e inteligentes, os judeus da Península eram odiados pelo Tribunal do Santo
Ofício que tudo fez para os condenar à morte em nome de Cristo. Neste contexto, o Pe António
Vieira foi muito ousado ao defender o seu regresso ao país agora empobrecido, junto do rei de
Portugal, porque os padres inquisidores dominavam toda a sociedade que, por sua vez, os temia.
António Vieira argumenta em defesa dos judeus dizendo que a sua expulsão ia contra a caridade
cristã e que, segundo as profecias do Bandarra, a fundação do futuro quinto império comandado
por Portugal seria da responsabilidade de judeus. Esta defesa valeu-lhe a antipatia dos padres
do Santo Ofício que, mal puderam, se vingaram, prendendo-o.

Em 1646, o Pe A. Vieira é enviado, como diplomata, à Holanda e a França, aonde regressa no


ano seguinte, revelando-se um político hábil ainda que não tenha obtido o sucesso ambicionado.

Depois destas missões diplomáticas regressa a Lisboa; a corte não o recebe com bons olhos
embora D. João IV continue seu amigo. Face a esta indiferença por parte da grande nobreza
portuguesa, decide regressar ao Brasil e continuar a sua missão evangelizadora junto dos
indígenas, no estado brasileiro do Maranhão.

Os índios chamavam-lhe «paiaçu»: “pai grande”, reconhecendo, assim, o valor humanitário de


Vieira junto das tribos índias, habitualmente desrespeitadas pelos colonos exploradores e sem
escrúpulos.
Os maus tratos aos indígenas e negros escravizados na colónia do Brasil levam o Pe A.Vieira a
apresentar várias queixas ao rei, contra os colonos portugueses que, longe de Lisboa, faziam as
suas próprias leis de acordo com as suas conveniências.

O Sermão de Santo António aos Peixes foi escrito na véspera da partida de A. Vieira para
Lisboa (13 de Junho de 1654) com o objectivo de denunciar de viva voz a D. João IV o drama dos
ameríndios.

Chegado a Lisboa após uma viagem marítima bastante acidentada, profere dois dos seus
sermões mais famosos: o Sermão da Sexagésima e o Sermão do Bom Ladrão.

D. João IV ouviu-lhe as queixas e toma medidas para proteger os indígenas ordenando que este
fiquem doravante a cargo dos padres jesuítas. Os colonos não apreciaram esta decisão que
punha em causa a mão-de-obra barata que viam no trabalho indígena e expulsam-no do Brasil
depois de assaltos à Companhia de Jesus. Regressa doente a Portugal.

Entretanto morre D. João IV e o Pe António Vieira, sem a protecção real, fica à mercê dos
muitos inimigos que foi criando ao longo da vida devido à defesa constante dos mais fracos,
fossem índios, negros ou judeus, devido, também, à fama que tinha conquistado como pregador,
tanto em Portugal como no estrangeiro, e às missões diplomáticas em que tinha participado e
que lhe tinham dado prestígio. Era odiado na Corte e pela Igreja.

Os padres do Santo Ofício esperavam uma oportunidade para o prender e tiveram-na quando
descobrem que António Vieira não só defendia o mito sebastianista como também que seria D.
João IV o tal rei “encoberto” que, ressuscitado, iria conduzir Portugal ao esplendor perdido,
chefiando o Quinto Império; os padres inquisidores vêem nesta crença de A. Vieira um atentado
à fé cristã e declaram-no réu num processo que se prolongará e irá contribuir para enfraquecer a
saúde do pregador que contava nesta altura 56 anos.

No período da contenda com o Santo Ofício começa a escrever a “História do Futuro”, obra que
mostra a crença sebastianista do autor e profetiza o Quinto Império para Portugal (época áurea
vindoura). Esta obra não teve impacto na sociedade portuguesa e tendo sido apreendida pelo
Tribunal do Santo Ofício, leva Vieira à prisão por ordem dos padres inquisidores que
consideravam escandalosas as ideias sebastianistas de Vieira. A Inquisição proibe-o de pregar e
condena-o a prisão domiciliária.

Algum tempo mais tarde, é-lhe permitido assistir em Roma à canonização de um padre jesuíta
que tinha sido assassinado. Acaba por ficar 6 anos em Roma onde veio a ser aclamado pelos seus
dotes de pregador e convidado para vir a ser o confessor da rainha Cristina da Suécia, convite
que A. Vieira não aceita. É em Roma que consegue que o Papa interceda por ele junto do Santo
Ofício.

Liberto da perseguição da Inquisição graças ao Papa, A. Vieira regressa, então, a Lisboa, em


1675, com 67 anos. A corte lisboeta não sentia por ele nenhuma simpatia e, ressentindo-se desta
indiferença, decide regressar ao Brasil, agora com 73 anos.
Após a sua partida para o Brasil, os estudantes de Coimbra e os padres da inquisição queimam a
sua imagem na praça pública.

No Brasil, e apesar da velhice e de estar quase cego, Viera continua a ler, escrever, a interessar-
se pelo que ia acontecendo no mundo e fiel à crença sebastianista que tantos problemas lhe
tinha causado.

Aos 86 anos a sua saúde já debilitada piora após uma queda numa escada de pedra.

«(...) Há perto de quinze dias, como tenho escrito e outras, que estou sustentando à
capa nesta Quinta a grandes tempestades de catarros, que com pleurises, e sem
outra febre mais que a sua natural, ouço que fazem grandes destroços em todas as
sortes de vidas e idades.

Enfim me resolvo a deixar este deserto e ir para o Colégio, ou para sarar como
homem com os remédios da medicina, ou para morrer como religioso entre as
orações e braços de meus padres e irmãos. (…)» Carta CCXC, 1696 (excerto)

O Pe António Vieira morre aos 89 anos, em 1697, no Brasil.

O contexto político, religioso, social e cultural em que viveu e escreveu o Pe


António Vieira:

1. A situação política vivida em Portugal no século XVII

- Ao longo dos 3 anos do domínio filipino após a morte de D. Sebastião em Marrocos, sem deixar
sucessor para o trono português, a política castelhana foi desrespeitando os compromissos
assumidos com Portugal (agora província castelhana). Esta situação criou intabilidade a todos
os níveis, contribuindo para aumentar o número de sebastianistas.

Os focos de rebelião contra Castela terminaram a 1 de Dezembro de 1640, com a morte dos
representantes do governo castelhano em Lisboa, seguida da aclamação de D. João IV como rei
legítimo de Portugal.

O reinado de D. João IV não foi nada fácil: a riqueza nacional derivada das colónias
ultramarinas estava em decadência assim como o prestígio de que Portugal tinha gozado na
restante Europa com as Descobertas. Para este enfraquecimento das finanças nacionais
contribuíram os ataques permanentes dos ingleses e holandeses às colónias portuguesas nos
diversos continentes, cuja riqueza cobiçavam.

Foi o reconhecimento da debilitada economia nacional que levou o Pe António Vieira a defender
o regresso dos judeus expulsos, como já vimos atrás.

2. O contexto religioso:

No século XVII, Portugal foi dominado pelo espírito de um movimento religioso designado
porContra-Reforma. Como o nome sugere, a Igreja Católica quis reformar uma
reforma imposta pelo padre alemão Lutero (1483-1546) e pelo monge holandês Erasmo de
Roterdão (1466-1536). Estes pensadores, verdadeiros gigantes intelectuais europeus e
hummanistas, estiveram ligados à fé católica numa fase inicial, acabando por pô-la em causa,
não porque tivessem perdido a fé, mas porque viam com maus olhos os vícios, a hipocrisia e vida
excessivamente dedicada aos prazeres mundanos do Papa e da grande maioria dos membros do
clero da época. Manifestam-se, então, contra a Igreja de Roma argumentando que esta não
respeitava o Evangelho porque apenas lhe interessava o luxo, a ociosidade e uma vida
pecaminosa.

Como é de prever, tiveram a oposição do Papa, do clero obediente à Igreja de Roma e de muitos
católicos que, influenciados pelas mensagens deturpadas acerca do que pensavam Lutero e
Erasmo, viam neles inimigos da fé que era urgente combater.

A Europa dividiu-se entre os apoiantes de Lutero e Erasmo e os apoiantes do Papa romano. Este
mal-estar dá origem a lutas terríveis e muito sangrentas entre as duas facções, um pouco por
toda a Europa, ainda que com maior incidência nos países da Europa Central.

Assustado com os argumentos dos apoiantes da Reforma da Igreja Católica, o clero peninsular
desenvolve um movimento de Contra-Reforma; foi este apego do clero que não queria perder os
privilégios que tinha há séculos à tradição católica apostólica romana que originou os excessos
cometidos pela Inquisição e as tragédias que muitos inocentes viveram, apoiantes ou não de
Lutero. Bastava que tivessem uma maneira de viver e de pensar pouco ou muito diferente
daquela que era considerada como a “correcta”, para pagarem essa diferença com a morte nos
autos-de-fé do Santo Ofício, cujo poder se manifestava no país inteiro e sobre todos os cidadãos,
fossem nobres ou populares.

O Tribunal do Santo Ofício espalhou o terror em Portugal e, devido à intolerância do clero


inquisidor, o país ficou isolado da Europa civilizada e culta, facto que está na origem do
considerável atraso registado em Portugal no domínio das ciências e das letras.

3. O contexto social: alguns traços marcantes da sociedade seiscentista:

3.1 Aumenta o número de sebastianistas ou adeptos do mito sebastianista devido à época de


crise social que se vivia em Portugal. Os portugueses, populares e nobres, agarravam-se à
esperança de que o país mudasse; as trovas do Bandarra que prediziam o regresso de um rei
encoberto que viria restaurar o prestígio nacional foram lidas, decoradas e recitadas
frequentemente às escondidas do clero que as considerava perigosas para a fé cristã já que o rei
encoberto seria um messias terreno e não de origem divina.

3.2 O milagrismo, ou crença em milagres, aumenta em Portugal, país atrasado culturalmente e


com grande percentagem de analfabetos.

3.3 O patriotismo: para além de sebastianistas, os portugueses que detinham mais cultura
elegiam Os Lusíadas como livro preferido para compensar o desânimo que sentiam com as
recordações da passada grandeza nacional cantada por Camões.
3.4 Medo: todos poderiam vir a ser vítimas da Inquisição, bastando para tal uma denúncia de
um vizinho mal disposto. A Inquisição não poupava nem as mulheres nem as crianças; no que
respeita aos encarcerados e mortos, confiscava-lhes os bens.

Para além do terror que as práticas da Inquisição espalhavam entre as populações, estas
manifestaram a consciência dolorosa da efemeridade da vida, facto que levou à existência de
modos de vida que oscilavam entre a tristeza depressiva e a tendência para uma vida
desregrada.

3.5 Ignorância generalizada. Galileu Galilei, Pascal, Newton, Descartes eram praticamente
desconhecidos em Portugal.
3.4 O poder real tornou-se absoluto e a corte um centro de vaidade e de luxo, onde a nobreza
ociosa se divertia em serões palacianos em que se recitava poesia ao som do cravo.

4. O contexto cultural: a corrente estética designada por Barroco:

no século XVII surge uma nova corrente estética – o Barroco – que vai dominar a literatura, a
pintura e a escultura. O movimento artístico do Barroco nasceu em Itália e propagou-se nos
restantes países europeus, atingindo o apogeu em Espanha.

A palavra “barroco” vem de “barrueco” que significa pérola imperfeita. “Barroco” foi, durante
muito tempo, uma designação pejorativa para caracterizar modos de escrever, pintar e esculpir
considerados, pelos amantes da simplicidade como de mau gosto, demasiado excêntricos,
extravagantes e teatrais. A arte barroca é espectacular e faustosa, estando, por isso, longe a
simplicidade da época do Renascimento.

As manifestações da arte barroca caracterizaram-se, em muitos casos, pela tentativa de fuga, por
parte dos artistas, a um ambiente pesado e excessivamente vigiado pelo Santo Ofício. Esta falta
de liberdade conduziu ao gosto pela evasão e esta manifestou-se de diversas formas, na arte.

A pintura barroca

O século XVII teve pintores brilhantes, como Caravaggio, Rubens, Rembrandt, Vermeer,
Velasquez, Murillo, Zurbaran. O mais influente entre todos foi certamente o italiano
Caravaggio, famoso pelas pinturas religiosas. Em Espanha, a pintura atingiu um grande nível
artístico com Velasquez, Murillo e Zurbaran. Distinguiram-se ainda o pintor holandês
Rembrandt e o flamengo Vermeer. Trata-se de uma pintura caracterizada pelo contraste claro-
escuro, luz-sombra, mistura de tons quentes, formas cheias de sensualidade, valorização da
emocionalidade sobre a racionalidade, tentativa de impressionar os sentidos do espectador
através das cores (vermelho, dourado, amarelo) e formas arredondadas que sugerem a ligação à
terra. Sendo profundamente católica e produto do espírito da Contra-Reforma, a arte barroca
exprime, frequentemente, mensagens religiosas (cenas bíblicas, retratos de santos, passagens
das suas vidas, etc.)

O tema central da pintura barroca reside na antítese vida/morte e os artistas manifestam por
um lado o prazer de viver e, por outro, a dor face à efemeridade da vida e ao tempo que tudo
destrói. A expressão latina «carpe diem» (aproveita o momento presente) é um dos temas
frequentes na arte deste século.

A escultura barroca:

foi na estatuária e na talha dourada que o Barroco teve uma das manifestações mais ricas. A
talha dourada (madeira talhada e dourada de modo a parecer ouro) é abundante em muitas
igrejas portuguesas. Esta manifestação artística exprime o gosto pelo luxo e opulência da Igreja
que queria, assim, impressionar os fiéis. São vulgares, nas igrejas barrocas, colunas e altares
ornamentados com anjinhos, cachos de uvas, conchas, tudo pintado em dourada. Para além da
talha dourada, Portugal distinguiu-se, ainda, na azulejaria.

A Literatura barroca:

A produção literária do século XVII está a cargo de uma elite social e cultural que, impedida de
ser livre devido ao Tribunal do Santo Ofício, se refugia numa escrita recheada por vezes de
frases ou versos difíceis de compreender devido ao recurso excessivo a figuras de estilo
(metáforas, hipérboles, antíteses, alegorias, …).

Em termos gerais, é uma escrita muito imaginativa, extravagante e fútil nos temas,
nomeadamente na poesia, arte vista como divertimento de e para nobres, marcada por
complicados e imaginativos jogos de linguagem. Por este motivo, poucos são os poetas
portugueses desta época que passaram à posteridade.

Na prosa, o nome de vulto é o Pe António Vieira, cujo prestígio chegou aos nossos dias. Foi a
ele que Fernando Pessoa chamou « Imperador da Língua Portuguesa».

Música barroca:

A música está intimamente associada com a vida religiosa. Entre os grandes compositores
barrocos, incluem-se Bach, Haendel, Scarlatti e Monteverdi.

CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

1. Introdução

O Pe António Vieira é considerado o maior orador sacro português e domina todo o século XVII
pela sua personalidade vigorosa que capta a atenção dos ouvintes.

Destaca-se, ainda, pela coragem evidenciada na luta, através das palavras, contra a exploração
dos povos oprimidos e pelo patriotismo evidenciado na luta pela manutenção da independência
nacional, numa época instável como foi a da Restauração.

É marcante, também, o seu anticonvencionalismo e ousadia ao combater a organização social e


religiosa mais poderosa de Portugal – O Tribunal do Santo Ofício – cujas práticas anti-cristãs
denuncia, independentemente dos perigos a que se expôs e do sofrimento que tais atitudes lhe
causaram.
2. Razão do título do sermão de Sto António aos Peixes:

O sermão inspira-se na lenda medieval segundo a qual Santo António, numa das pregações
destinadas a emendar o comportamento dos homens, decide falar aos peixes ao constatar que os
homens não lhe prestam atenção. Compreensivos e atentos, os peixes levantam as cabeças à
superfície das águas, comprovando a força da palavra do santo.

António Vieira imitá-lo-á visto que também não é ouvido pelos colonos do Maranhão que
exploram os ameríndios e os escravos negros; à semelhança do santo que tanto venera, falará
aos “peixes” – alegoria dos colonos. Deste modo pode criticá-los sem temer represálias.
3. Contexto em que foi pregado este sermão e objectivo do mesmo:

Foi pregado na cidade brasileira de São Luís do Maranhão, em 13 de Junho de 1654, «três dias
antes de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos Índios
(…) E nele tocou todos os pontos de doutrina (posto que perseguida) que mais necessários
eram ao bem espiritual e temporal daquela terra, como facilmente se pode entender das
mesmas alegorias.»

3.1 Funções do sermão:

O sermão tem uma missão social (salvar os ameríndios da cobiça e exploração, isto é, salvá-los
da antropofagia que era a prática comum entre os homens na sociedade), e é também um
instrumento de intervenção na vida política do país;
tem também uma missão espiritual: divulgar a palavra de Cristo, o Evangelho e histórias de
santos como exemplos de condutas a imitar.

4. Intencionalidade comunicativa do pregador:

O sermão é um texto que pretende:

a) ensinar através do recurso a citações bíblicas, dados da História natural, exemplos da


sabedoria popular. Tem, portanto, uma função informativa (informa sobre diversos saberes)

b) agradar aos ouvintes através do recurso a frases exclamativas, interrogações retóricas,


gradações, apóstrofes, alegorias. Tem uma função emotiva (desperta emoções nos ouvintes)

c) Persuadir os ouvintes através da argumentação por meio do confronto com a Bíblia, emprego
do modo imperativo, do vocativo e interrogações retóricas. Tem uma função
apelativa(interpela os ouvintes, obrigando-os a reflectir no que é dito)

d) intervir na sociedade portuguesa da sua época.

5. A estrutura do sermão (a organização temática e discursiva do texto)

1ª parte do sermão:

5.1 O conceito predicável como ponto de partida:


o sermão parte de uma afirmação retirada da Bíblia à qual se dá o nome de conceito
predicável. O conceito predicável que inicia este sermão é «Vós sois o sal da terra»,
afirmação retirada por Vieira do Evangelho de São Mateus.

Que pretende dizer o pregador aos seus ouvintes do Maranhão? O sal preserva os alimentos
impedindo-os de se estragarem (era assim que antigamente a carne e o peixe eram
conservados); ora, tal como o sal preserva os alimentos da corrupção, o mesmo faz a palavra de
Cristo a quem a ouve, visto que a palavra divina transmitida pelos pregadores (eles são o sal)
impede que os colonos (a terra) se afastem do caminho do bem. O conceito predicável é uma
verdade intemporal que tem raízes bíblicas e que, por esse facto, dá credibilidade à pregação já
que ninguém se atreve a contestar a palavra de Cristo.

5.2 O Exórdio ou Introdução:

É uma parte importante porque é através dela que o pregador capta a atenção dos ouvintes,
logo, tem que prender e agradar.

O conceito predicável está inserido na 1ª parte do sermão – o Exórdio. Neste, o


pregadorapresenta o tema do sermão: a necessidade dos colonos do Maranhão alterarem a
sua conduta desumana.

Resumidamente: no exórdio Vieira diz que se as palavras do pregador (o sal) não cumprem a
sua função de impedir a corrupção entre os homens, duas questões devem ser analisadas:

será que o defeito está nos pregadores cujas palavras não convencem porque dizem uma coisa e
fazem o contrário do que pregam? A solução para este caso consiste em deitar fora o sal porque
não presta: «é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» (cap.I)

Mas também pode acontecer que o pregador ou sal seja bom e a terra ou colonos o desprezem:
«E à terra que não se deixa salgar, que se lhe há-de fazer?» (cap.I)

«Este ponto não resolveu Cristo Nosso Senhor no Evangelho; mas temos a sobre
ele a resolução do nosso grande português Santo António.»

Assim sendo, Vieira opta por imitar Sto António que deixou os homens e se virou para melhores
ouvintes: os peixes.

O Exórdio termina com uma invocação à Virgem Maria ou Domina Maris (Senhora do
mar) para obter a inspiração necessária à pregação convincente que deseja.

Fim do cap.I do sermão.

No que respeita à organização do discurso e linguagem figurada, notar alguns exemplos


de:

- encadeamento lógico das ideias;

- paralelismo sintáctico ou estrutural: «ou é porque (…) ou é porque (…) ou é porque (…)»;

- interrogações retóricas que confrontam directamente os ouvintes: «Não é tudo isto verdade?»
- vocativo: «Vós, diz Cristo, (…)»

- repetição da conjunção coordenativa disjuntiva “ou” que inicia várias frases com estrutura
idêntica.

- linguagem metafórica: «sal», «salgar», «e como erros de entendimento são dificultosos de


arrancar», «começam a ferver as ondas (…)»…

- exclamações retóricas: «Ó maravilhas do Altíssimo!»

- enumeração e gradação crescente: «sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito
verdadeira»

- trocadilhos: «é melhor pregar como eles que pregar deles»

- ironia: «o mar está tão perto que bem me ouvirão»

São ainda de notar as inúmeras afirmações, interrogações e citações bíblicas em latim: mostrar
erudição e dar validade ao discurso.

2ª parte do sermão

5.3 Os capítulos II – V correspondem à 2ª parte do sermão (o desenvolvimento) e neles o


orador desenvolve, através de um discurso fortemente argumentativo, a tese exposta no cap.
I: é necessário reformar os costumes dos colonos do Maranhão.

Assim, se existe o Bem e o Mal, o sermão, a partir do cap.I, será dividido em 2 partes, a
saber:

- louvor das virtudes dos peixes, em geral – cap. II

- louvores aos peixes em particular, no cap. III: serão louvados o Santo Peixe de Tobias, a
Rémora, o Torpedo e o peixe Quatro-Olhos.

- repreensão aos peixes em geral: cap. IV

- repreensão aos peixes em particular – cap. V: são repreendidos os peixes Roncadores,


Pegadores, Voadores e o Polvo.

Para defender as suas ideias, Vieira recorre a uma argumentação cerrada, a uma linguagem
alegórica* de modo a tornar claras e facilmente compreensíveis determinadas realidades
abstractas (os vícios e as virtudes humanas) e a citações bíblicas e ou de padres famosos/ santos
para melhor convencer acerca da pertinência das suas ideias.

* a alegoria é uma figura de estilo através da qual se refere ideias abstractas recorrendo a
exemplos comuns do mundo material; os vários peixes elogiados e repreendidos são alegorias da
maldade e bondade humanas.

5.4 Capítulo II (1ª parte do desenvolvimento) – síntese das ideias:

As 2 qualidades dos peixes mencionadas no início deste capítulo estabelecem um contraste com
2 defeitos humanos:
- «os peixes ouvem e não falam», donde se depreende que os homens falam demais e não
ouvem os bons conselhos do pregador;

- seguidamente, Vieira informa que quer pregar com a mesma imparcialidade que Santo
António usou nas suas pregações porque essa é a atitude que deve manifestar qualquer pregador
digno desse nome: «Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para
o conservar e repreender o mal para preservar dele.», isto é, o louvor das virtudes
(humanas) influencia a continuidade das mesmas e a crítica aos vícios (humanos) leva a que
quem os pratica se consciencialize dessa prática errada.

- Vieira justifica, com novos argumentos, o elogio das virtudes em geral dos peixes:

foram os primeiros animais criados por Deus, são os animais mais numerosos e com maiores
dimensões, são ordeiros, tranquilos e ouviram com atenção e devoção a mensagem de Santo
António, contrariamente aos homens que a desprezaram «tão furiosos e obstinados».

Jonas, personagem do Antigo Testamento a quem Deus encarregou de cumprir uma missão, foi
deitado ao mar pelos homens e salvo por uma baleia.

os peixes vivem retirados do convívio com os humanos, facto que revela a sua sensatez pois são
independentes e livres:

«Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles,
Deus vos livre!»

Na conclusão do cap II, Vieira interpela directamente os peixes e diz-lhes:

«Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.» Como eles procedeu Santo António,
cuja biografia é sumariamente narrada na antítese que termina este capítulo: «e por fim
acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado
dos homens.»

5.5 Capítulo III – síntese das ideias

Neste capítulo, o pregador passa à enumeração dos peixes que serão elogiados e das razões que
levam a esses elogios. Cada peixe representa, alegoricamente, virtudes humanas.

1º peixe elogiado: o peixe de Tobias, personagem do Antigo Testamento que, no momento em


que ia lavar os pés ao rio, é surpreendido por «um grande peixe com a boca aberta em
acção de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado (…)»

Acontece que este peixe assustador ia, afinal, salvar Tobias com as suas entranhas: «o fel era
bom para salvar da cegueira e o coração para lançar fora os demónios.»

2º peixe elogiado: a rémora «peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no
poder»; a rémora é alegoria da energia e força de vontade que devem ser o “leme”/ a orientação
das acções humanas. A rémora representa todos os que são imunes, como Santo António, à
«fúria das paixões», guiando-se na vida pela racionalidade.
À alegoria da rémora seguem-se outras alegorias: as “naus” soberba, vingança, cobiça e
sensualidade. Estes são vícios humanos decorrentes da falta de racionalidade que arrastam o
homem para comportamentos indevidos.

3º peixe elogiado: «aquele outro peixezinho, a que os latinos chamam torpedo»; este peixe
produz uma descarga eléctrica que passa para a mão do pescador, fazendo-lhe tremer o braço.
Isto quer dizer que a virtude deste peixe contagia o ser humano, sendo essa virtude a energia
para lutar contra a atracção pelo mal. Com esta nova alegoria Vieira critica os padres pregadores
que se interessam apenas por falar sem atender à qualidade das suas mensagens evidenciando
ausência de espírito crítico e descuido relativamente aos fiéis que “pescam” com os respectivos
discursos. Isto nunca acontecia com os sermões de Santo António visto que aqueles que os
ouviam “tremiam” de tanta emoção que, «tremendo, confessaram seus furtos; (…) todos
enfim mudaram de vida e de ofício e se emendaram.»

4º peixe elogiado: o quatro-olhos -«Tantos instrumentos de vista a um bichinho do


mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que
estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos!»

Tantos olhos num único peixe (2 virados para o céu e 2 virados para baixo) devem-se ao facto de
serem muito perseguidos no mar e no ar, pelas aves marítimas. Deste facto o pregador conclui
que este peixe ensina os homens a olharem para o céu para praticarem a virtude e a não
esquecerem o inferno sempre que olham para a terra.

O capítulo III termina com um elogio a todos os peixes que alimentam os pobres (as solhas); já
os salmões alimentam os ricos. Devido a esta boa acção dos peixes, o pregador deseja que se
reproduzam em abundância: «Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos
confirme a sua benção.»

5.6 capítulo IV – síntese das ideias

Neste capítulo, Vieira repreende os peixes em geral porque os peixes grandes comem os
pequenos (alegoricamente é referida a antropofagia social, isto é, os homens poderosos
aniquilam os mais frágeis, os marginalizados da sociedade: os ameríndios e negros do Brasil).
Assim sendo, a terra parece «um açougue» ou matadouro, já que os marginalizados vão
morrendo de cansaço, fome e doença, diante da indiferença dos colonos. Mas os homens
também se comem uns aos outros mesmo dentro da mesma classe social, porque cobiçam os
bens uns dos outros, são interesseiros:

«Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se
hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a
despedaçá-lo e a comê-lo. Comem-nos os herdeiros, comem-no (…) ainda o pobre
defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.»
Os homens deviam preocupar-se em lutar pela independência da sua terra atacada pelos piratas
ingleses e holandeses em vez de se perderem em lutas por bens menores sem objectivo que as
justifique.

Os peixes comem-se uns aos outros no mar por razões de sobrevivência, mas os seres humanos
aniquilam-se e desprezam-se por amor excessivo ao dinheiro. Esta constatação leva a uma 2ª
repreensão geral aos peixes alegoria dos homens: estes dão a vida por insignificâncias, «um
retalho de pano», mas os bens terrenos são ilusórios e fonte de discórdias; o costume de se
aproveitarem dos bens dos naufragados é condenável: «Pode haver maior ignorância e
mais rematada cegueira que esta?» Deviam seguir o exemplo de Santo António que, tendo
nascido rico, abandonou tudo para imitar Jesus Cristo.

Capítulo V – síntese das ideias

Neste capítulo, Vieira repreende alguns peixes em particular:

«Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós»

Os peixes criticados são alegorias dos piores vícios humanos, ainda que haja uma gradação nesta
enumeração porque o polvo será o “peixe” mais criticado.

1º peixe repreendido:

o roncador – é a alegoria dos homens arrogantes e vaidosos que prometem e não cumprem
porque «o muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela»; «Assim que,
amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas
cousas há nos homens que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham:
o saber e o poder.»

2º peixe repreendido:

o peixe pegador – é a alegoria da adulação e do parasitismo, vícios da alta nobreza e classe


política, gostam de receber favores e da adulação daqueles que deles dependem. Estes peixes
nadam presos a um «tubarão», membro mais importante na escala social que eles vão
explorando como podem: «porque não parte vice-rei ou governador para as
Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para
que cá lhes matem a fome, de que lá |em Portugal continental| não tinham
remédio.»

3º peixe repreendido:

o peixe voador – é a alegoria dos sempre insatisfeitos com a vida e ambiciosos porque não se
contentando em nadar no mar, querem voar como os pássaros: «Dizei-me, voadores, não
vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? (…) Peixes, contente-
se cada um com o seu elemento. (…) À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na
memória esta sentença: quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o
que tem.»
4º peixe repreendido:

o polvo, alegoria da hipocrisia e da traição, os vícios piores entre todos. Contra o polvo
ergueram-se as vozes de dois santos importantes: S. Basílio e Santo Ambrósio porque o polvo
aparenta ser aquilo que não é:

«com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios
estendidos parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a
mesma brandura, a mesma mansidão.»

Percebemos o alcance da crítica ao polvo: como ele, também os monges enganam os fiéis,
passando por homens piedosos quando não passam de homens imorais e interesseiros que
utilizam a palavra de Deus para melhor conseguirem os seus verdadeiros intentos.

Através de anáforas, frases paralelísticas e comparações, Vieira descreve a aparência


enganadora o polvo que, devido ao mimetismo, se disfarça para melhor enganar os inocentes e
que é pior traidor do que foi Judas, o traidor de Cristo.

«Se está nos limos faz-se verde, se está na areia, faz-se branco, se está no lodo, faz-
se pardo (…) E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai
passando desacautelado (…) Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez
tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e
mais o que prende.»

Para além das razões já invocadas contra o polvo, Vieira refere o contraste entre a “sujidade”
moral do polvo e a transparência do elemento natural em que habita – o mar:

«Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e
tão cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo
céu!»

Vieira intui os argumentos que os peixes/ homens empregariam, se pudessem falar, para rebater
as acusações contra o polvo:

«Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os
vossos mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades,
enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas
traições. (…) Mas ponde os olhos António, vosso pregador, e vereis nele o mais
ouro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo,
fingimento ou engano.»

Isto é, é verdade que a terra está infestada de traidores e não apenas o mar onde vivem os peixes
acusados, sobretudo o polvo, pior entre os piores. Mas também é verdade que há habitantes da
terra que se destacam pela pureza de coração e amor à verdade, como é o caso de Santo António
a quem Vieira imita e cita frequentemente no seu sermão. Que se há-de então fazer, já que Santo
António é inimitável? Para Vieira, basta que os portugueses do seu tempo se mantenham fiéis
aos valores morais e éticos que outrora existiam em Portugal e que agora parecem estar
arredados das intenções dos colonos do Maranhão:

«E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava
antigamente ser português, não era necessário ser santo.»

O capítulo V termina com uma censura àqueles que roubam os bens dos náufragos que dão à
costa e avisa:

«Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio
atravessado na garganta.»

A Peroração ou Conclusão do sermão – cap. VI

No último capítulo, Vieira quer “consolar” os peixes, eles que para além de terem sido alvo de
duras críticas, também foram excluídos do terceiro livro da Bíblia – O Levítico. Esta
desconsideração feita aos animais marinhos num livro sagrado deve-se a esta razão:

«(…) foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício |entenda-se que se
tratava de uma oferenda a Deus que passava por sacrificar animais, tal como era habitual nas
práticas religiosas ancestrais| e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa morta
não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares.»

Ora, tal como os peixes que morrem antes de chegar a Deus, também «quantas almas
chegam àquele altar mortas (…) estando em pecado mortal!»

No entanto, os peixes estão em vantagem relativamente aos humanos já que nem chegam a
aproximar-se de Deus, não o podendo ofender; opostamente, os homens chegam a Deus cheios
de pecados, facto que leva o pregador a exclamar:

«Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não
chegar ao sacrifício, que chegar morto.»

Mas as vantagens dos peixes não se resumem apenas ao que foi referido antes: o pregador
também é humano e dotado de razão, contrariamente aos peixes que agem segundo as leis da
natureza. Assim sendo, o pregador inveja «a bruteza» dos peixes porque estes não ofendem a
Deus já que nem pensam nem têm vontade própria.

Vieira termina reconhecendo, numa atitude humilde, as fraquezas inerentes aos seres humanos
que falham perante Deus porque a inteligência destrói a inocência e pureza que os peixes, seres
irracionais, conservam e o livre-arbítrio que falta aos peixes nem sempre o conduz à prática
mais cristã :

«Vós fostes criados por Deus para servir ao homem, e conseguis o fim para que
fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que
me criou.»
Acrescenta a esta confissão da sua indignidade face a Deus, o pedido aos peixes para que louvem
a Deus, criador da vida e a quem tudo se deve.

Introdução

O Pe António Vieira escrevia e pregava o que escrevia em público, nas igrejas, a partir do púlpito
ou lugar destinado na igreja aos pregadores. Para que a sua pregação produzisse o efeito
pretendido pelo orador, tornava-se necessário agradar aos ouvintes e conseguir prender a
atenção destes durante o tempo da pregação. Assim, nenhuma parte dos longos discursos era
deixada ao acaso mas, pelo contrário, minuciosamente trabalhada previamente.

Vieira conseguia seduzir os ouvintes à custa dos seus dons oratórios ou capacidade para se
expressar oralmente com convicção, através do recurso a figuras de estilo ou de retórica, do
encadeamento lógico dos raciocínios, das imagens sugeridas através das associações de
vocábulos seleccionados para esse efeito, do recurso a argumentos difíceis de contestar pelos
ouvintes.

Para ter sucesso na pregação e convencer os ouvintes a alterar a mentalidade e modos de agir,
Vieira serve-se de variados recursos; para além da argumentação (consulta a página seguinte
sobre este assunto), emprega largamente citações bíblicas, normalmente em latim, faz
referências à vida de Santos e Doutores da Igreja (Santo António, São Basílio, Santo Ambrósio,
Santo Agostinho, São Mateus), refere passagens conhecidas do Antigo Testamento (o episódio
de Jonas, no cap.I;o episódio do Dilúvio e a arca de Noé, no cap. I; o episódio de Tobias a quem
apareceu o Arcanjo Rafael, no cap. II; passagens da vida do rei David, cap. II, o episódio vivido
por Jesus Cristo no Horto, cap.V; a fuga de Jesus para o Egipto, cap. V;…); referências a
filósofos e pensadores (Aristóteles, p.ex.); referências à mitologia greco-latina; referências à
variedade da fauna marítima e terrestre, a zonas geográficas, à sabedoria popular, …

O recurso a abundantes referências bíblicas confere seriedade e credibilidade à pregação já que


não há argumentos de peso que se oponham às narrações bíblicas. Como foram escritos para
serem ouvidos, os sermões têm um ritmo facilmente captável pela audição. Para além disto, os
conceitos mais importantes são acentuados através da repetição e as palavras são escolhidas
criteriosamente porque deviam ser, segundo o pregador, “distintas e claras como estrelas”.

II – Principais recursos estilísticos presentes no Sermão de Santo António aos


Peixes:

1. Alegoria: todo o sermão é alegórico ou uma extensa alegoria, a partir do cap. II (os peixes
são alegorias dos homens e das virtudes e vícios destes).

2. Anáfora e Paralelismo sintáctico ou estrutural

Ex. «Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus
pegos, lá se escondem nas suas grutas» – cap. II
Ex2. «Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças
e cruzar as ruas, vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem
quietação nem sossego?» – cap. IV (nota os verbos antitéticos aqui presentes)

Ex3. «Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se
pardo» – cap. V

3. Apóstrofes

Ex. «Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes (…)» – cap.I

Ex2. «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens» – cap.I

Ex.3 «Ah moradores do Maranhão, quanto (…)» – cap.II

Ex.4 «Parece-vos isto bem, peixes?» (interrogação retórica + apóstrofe) – cap.IV

4. Antíteses

Ex. «Uma é louvar o bem, outra é repreender o mal» (paral. sintáctico + antítese)

Ex2 «tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens» – cap. II

Ex3 «tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder»

Ex4 «traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras» – cap. V

Ex5 «de manhã e de tarde, de dia e de noite» – cap I

Ex6 «e visse na terra os homens tão furiosos e tão obstinados e no mar os peixes tão quietos e
tão devotos» – cap. II

Ex7 «não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro» . cap. II

Ex8 « ou desta hipocrisia tão santa» – cap. V

5. Anadiplose (repetição de uma palavra nos segmentos de uma enumeração para sugerir uma
reacção em cadeia)

Ex. «De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol,
do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador.» – cap. III

Ex2 «E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, (…)» – cap V

5. Enumerações

Ex. «Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no


os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e dos defuntos e ausentes; come-o o médico (…),
come-o o sangrador, (…)» – cap. IV

Ex.2 «(…) que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito
maiores e mais perniciosas traições» – cap. V
Ex 3 «primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal» (enumeração +
gradação) – cap. II

Ex4 «mudou o nome, mudou o hábito e até a si mesmo se mudou» – cap. II

6. Gradações

Ex. «sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira» – cap.I

Ex2. «Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os


pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças fora de água» (enumeração + gradação)
– cap.I

Ex3 «Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza (…)» – cap.
II

Ex4 «o mar é muito largo, muito fértil, muito abundante» – cap. IV

Ex5 «de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água» – cap.V

7. Comparações

Ex. «Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão
cerzidos com a pele, que mais parecem remendos» – cap. V

Ex2 «O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios
estendidos parece uma estrela (…)» – cap. V

8. Metáforas

Ex. «e esse fel que tanto vos amarga (…) uma é alumiar e curar as vossas cegueiras, e outra
lançar-vos os demónios fora de casa» – cap. III

Ex2 «Quem dera aos pescadores do nosso elemento (…) Tanto pescar e tão pouco tremer!» –
cap. III

Ex3 «onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes» – cap. III

Ex4 «porque a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos» – cap. IV

Ex5 «Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos» – cap IV

Ex6 «porque ambas incham: o saber e o poder» – cap. V

9. Quiasmo

Ex. «mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso e os peixes o uso sem a razão» – cap.
II

10. Interrogações e exclamações retóricas

«Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo?» – cap. I

«Oh grande louvor para os peixes e grande afronta e confusão para os homens!» – cap. II
«Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demónios perseguis vós?» –
cap. III

«Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus
juízos!» – cap. III

«Parece-vos bem isto, peixes?» – cap. IV

11. Repetições

Ex. «Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que
haveis de olhar» – cap. IV

12. Trocadilhos

Ex. «Dizei-me: o espadarte porque não ronca? (…) Contudo que lhe sucedeu naquela noite?
Tinha roncado e barbateado Pedro (…) O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela.»
– cap. V

13. Adjectivação dupla

«Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que
escolhestes.» – cap. V

«Vê peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade» – cap. V

«Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno (…)» – cap. V

14. Forte apelo ao sentido da visão

O sentido da visão é, de todos os sentidos, aquele que está mais em evidência:

Ex. «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.» – cap. II

Ex2 «para a cidade é que haveis de olhar» – cap. IV

Ex3 «Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar (…) Morreu algum deles
e vereislogo tantos sobre o miserável» – cap. IV

Ex4 « Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos (…) e olhai quantos o estão
comendo. (…) E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos (…)» – cap. IV

Ex5 «Vede o vosso Santo António, que pouco o pode enganar o mundo» – cap. IV

Ex6 «Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo.» – cap. V

Ex7 «Mas ponde os olhos em António, vosso pregador (…)» – cap. V

15. Verbos no modo imperativo

Ex. «Crescei, peixes, crescei e multiplicai (…)» – cap. III

Ex2 «Vede um homem desses (…) e olhai (…)» – cap. IV


16. Deícticos espaciais

«Porque cá, no Maranhão, ainda que se derrame muito sangue (…)» – cap. IV

«E começando aqui, pela nossa costa» – cap V

17. Aforismos

«Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem» – cap. V

18. Ironia

«o mar está tão perto que bem me ouvirão» – cap. I

«Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente.» – cap II

III – Os conhecimentos de Vieira sobre o mundo

São muitos e variados:

a) Referências a filósofos e pensadores : «Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles,
entre todos os animais, se não domam nem domesticam», cap.I

a propósito dos peixes: «porque há filósofos que dizem que vós não tendes memória» – cap. I

«Olhai como estranha isto Santo Agostinho» , cap. II

b) Conhecimentos bíblicos: «No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o
Mundo» – cap.I;

a história de Tobias, cap. II;

«querei ver um Job destes?», cap. II;

«Pilatos roncava de poder», cap. V;

«Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor, que
(…)», cap. V

c) História natural: referências a animais exóticos: o bugio (macaco), tigres, leões, papagaio
referências a animais europeus: rouxinol, açor, cão, boi
referências a peixes diversos conhecidos possivelmente nas viagens marítimas que fez:
«navegando daqui para o Pará (…)» cap.II: rémora, voadores, quatro-olhos, baleia, tubarão, ….

«Comerem-se uns animais uns aos outros é voracidade e sevícia e não estatuto da natureza. Os
da terra e do ar que hoje se comem, no princípio do Mundo não se comiam, sendo assim
conveniente e necessário para que as espécies se multiplicassem», cap. IV

«Se o rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, como devem ter, pois
dele manam todos.», cap. V;

«Vai o xaréu correndo atrás do bagre, como o cão atrás da lebre, e não vê o cego que lhe vem nas
costas o tubarão» , cap. IV
d) mitologia: «o canto das sereias» (Odisseia de Homero), cap. I; «O que é a baleia entre os
peixes, era o gigante Golias entre os homens.», cap. V;
«depois que Ícaro se afogou no Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano», cap. V;

e) sociedade:

«e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e
presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida.
Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho,
ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras
(…)? No triste farrapo com que que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.» – cap. IV

«São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão
depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado,
e já está comido.» , cap. IV

«Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome
de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos
inteiros.», cap. IV

«Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, (…) que os maiores
que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; (…)
Assim foi; mas, se entre vós se acham por acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios,
vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam este lá no Tejo que esses
mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os
comam também a eles»
cap. IV

«A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens.»,
cap. IV

«Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela
o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido
esta ronha e pegado também aos peixes. (…) Este modo de vida, mais astuto que generoso, se
acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do
alto, depois que os nossos portugueses o navegaram.», cap. V

O Texto Argumentativo
1. Argumentar: o que é?

Argumentar é utilizar os conhecimentos linguísticos de que dispomos com a finalidade de fazer


valer as nossas razões, ideias, pontos de vista sobre determinado assunto em discussão.

Argumentar é, portanto, uma prática discursiva oral ou escrita na qual o Emissor visa convencer
o/os Receptores/ Destinatários da sua mensagem a acreditar nele, isto é, a aceitar como válidas
as suas teses ou ideias. Todos nós temos determinadas ideias sobre determinado assunto ou
questão e sabemos que, muitas vezes, o outro, aquele que nos ouve ou lê, nem sempre está de
acordo connosco. Sentimos, então, consciente ou inconscientemente, necessidade de
afirmarisso em que acreditamos,quer porque gostamos de nos expressar livremente quer porque
nos custa a aceitar que esse outro pense de maneira diferente da nossa quer porque precisamos
da conivência desse outro para nos sentirmos aceites na sociedade em que vivemos.

Também pode acontecer que sintamos necessidade de argumentar em defesa de pontos de vista
alheios quando concordamos com eles, evidentemente. No entanto, nem sempre que
argumentamos, isto é, defendemos os nossos pontos de vista, chegamos a um acordo com o
nosso interlocutor, mas, é através da via argumentativa que criamos a possibilidade de sermos
compreendidos, já que argumentar é um processo racional de resolvermos diferendos.

Assim, é a posse da capacidade argumentativa oral ou escrita que nos permite participar na
sociedade na medida em que, graças a ela, o que pensamos e sentimos é exteriorizado ao ser
verbalmente expresso.

Para haver recurso à argumentação é preciso que haja perspectivas diferentes sobre uma
questão. Se há acordo total entre o Emissor e o Receptor, o acto de argumentar não tem
cabimento.

Por exemplo, se eu sou vegetariana e tu também és, não se torna necessária qualquer
argumentação; mas se tu achas que o consumo de carne é imprescindível para que a
alimentação seja equilibrada e saudável, “obrigas-me” a explicar-te as razões que me levam a
rejeitar o consumo de carne na minha alimentação. As razões em que me vou basear são os
meus argumentos. Tu, evidentemente, vais contrapor os teus, tentando levar-me a concordar
contigo. A opção que fizemos para fazer valer os nossos pontos de vista é a tal via argumentativa
que é indício da nossa pertença a uma civilização que se serve do raciocínio e da palavra para
encontrar soluções em vez do recurso à força física.

2. Argumentação, o que é?

É o conjunto de argumentos ou razões a que recorremos para defender ou repudiar um ponto de


vista, para convencer um oponente, um interlocutor circunstancial ou até a nós próprios. Estes
argumentos juntos num texto ou numa conversa são a nossa argumentação e ela resulta de um
acto de raciocínio/ inteligência e revela a nossa perspicácia, cultura, conhecimento da língua e
tipo de relação que temos com o interlocutor.

Ora, quem argumenta tem que pensar no interlocutor porque é a ele que a nossa argumentação
se dirige. Nesse caso, a nossa argumentação será mais eficaz se conhecermos o modo de pensar/
personalidade/ modo de vida do interlocutor e se tivermos suficiente competência linguística. Se
te exprimes, verbalmente ou por escrito, com muitas dificuldades, a tua argumentação além de
“pobre” em ideias, não vai prender a atenção do Receptor; nesse caso, o ponto de vista dele
poderá impor-se porque ele é mais “forte” do que tu, mesmo que saibas que és tu quem tem
razão nesta ou naquela questão. A verdade é que a argumentação depende não tanto da razão de
quem argumenta, mas sobretudo do modo como o faz, isto é, ou consegue ser persuasivo e
seduzir a mente do outro, ou não e, nesse caso, “perde” a batalha da argumentação.
É preciso não esquecer que uma argumentação pode ser racional e credível sem que por isso
convença o Receptor ou auditório. Nesse caso, a argumentação empregue é má. Por outro lado,
uma argumentação que encante o Receptor ou auditório baseada em falácias e em argumentos
disparatados e irracionais, é igualmente má e, pior ainda, um embuste.

A argumentação deve ser racional (não pode ferir a inteligência do interlocutor), deve
seduzir ou convencer criando no outro interesse em ouvir ou ler os nossos argumentos
(exclui as relações de mando ou poder, evita a repetição dos mesmos argumentos, evita ferir a
sensibilidade do outro, não é manipuladora; opostamente, é lógica sem ser seca ou
excessivamente fria e analítica, é tolerante, é agradável de ouvir ou ler porque é
linguisticamente irrepreensível e emprega argumentos variados que surpreendem o
receptor), tem em conta o perfil psicológico, social e cultural do destinatário e, por
último, tem em conta o contexto situacional.

Nota: os argumentos não têm que expressar a verdade acerca de uma questão mas, sim,
convencer alguém de que temos razão acerca da questão a ser debatida.

3. Meios de persuasão

O orador ou aquele que argumenta diante de um público ouvinte como é o caso do Pe António
Vieira, tem que passar uma mensagem de credibilidade para quem o ouve/ lê:

mostrar-se sensato e tolerante, parecer sincero, criar um clima de empatia com os ouvintes, ter
boa presença física ou aspecto cuidado, saber usar o tom de voz adequado às partes da sua
argumentação, adequar o discurso ao contexto situacional (quem o ouve? quem o vai ler?, que
cultura têm os ouvintes/ leitores? em que lugar profere o discurso? em que contexto político,
social e económico se insere o que diz?), deve ir ao encontro dos valores morais e éticos da
comunidade para a qual fala ou escreve, deve ser respeitado pela comunidade e reconhecido
pela sua imparcialidade (ainda que aparente), espírito de justiça, inteligência, conhecimentos e
experiência de vida.

Assim, o domínio da arte da Retórica (hoje a Oratória ou arte de falar em público e persuadir
veio tomar o lugar da antiga Retórica) é fundamental na argumentação. Em paralelo com a
organização dos argumentos, são importantes também os processos estético-estilísticos que
contribuem para embelezar o discurso e os códigos para-linguísticos (voz, dicção, entoação e
gestos).

4. O texto argumentativo

As partes de um texto argumentativo são:

- um exórdio- exposição do tema escolhido;


- uma argumentação propriamente dita ou confirmação;
- uma peroração ou conclusão (reforçando a persuasão do auditório).

A organização dos argumentos é rigorosamente premeditada e há ainda a considerar o seguinte:


um argumento que não seja novo não “agarra” os ouvintes;
um argumento que não seja expresso com energia não convence.
para cada tese ou ideia a ser apresentada, é necessário expor um conjunto de argumentos
(razões, provas, ideias) que a sustentem.
o encadeamento lógico dos argumentos é imprescindível porque é graças a ele que os ouvintes
podem acompanhar o discurso.
um argumento deve ser razoável ou credível e nunca arbitrário.

Na construção de um texto argumentativo convém:

- escrever uma introdução: encontrar o problema;


- encadear os argumentos por afinidade ou contraste;
- fazer sobressair os mais importantes;
- realçar a tese que se quer provar;
- adequar o discurso à dimensão comunicativa;
- procurar possíveis contra-argumentos para parecer imparcial;
- redigir um texto coeso e coerente;
- redigir a conclusão do nosso raciocínio.

4.1 A estruturação do discurso – regras a observar:

O discurso escrito exige uma estrutura sintáctica e lexical e uma correcção morfológica
e ortográfica. As palavras isoladas não possuem um verdadeiro sentido comunicativo e, por
esta razão, o significado de uma mensagem decorre da disposição das palavras nas frases e
daarticulação destas em períodos e parágrafos.

Mas há outros factores a ter em conta quando redigimos a nossa mensagem, seja um texto de
tipo argumentativo ou de outro tipo:

- observar a adequação discursiva, isto é, adequar o discurso à situação comunicativa em que


quero comunicar algo a um interlocutor; isto significa que diferentes contextos
situacionais requerem diferentes escolhas linguísticas. Por exemplo, posso optar por
um registo formal ou por um registo informal já que tenho de pensar na pessoa a quem
vou comunicar alguma coisa. O destinatário da minha mensagem (as informações que tenho
sobre ele) é que vai determinar qual dos registos será escolhido por mim, o emissor desse
discurso oral ou escrito. Daqui se infere que as normas de natureza sociocultural devem
ser respeitadas, sobretudo no caso do discurso escrito porque é nele que os desvios são mais
notados e não passíveis de correcção.

- ter em conta a intencionalidade discursiva: de cada vez que produzimos um enunciado


escrito ou oral, as palavras que seleccionamos e a organização das mesmas em frases dependem
da nossa intenção em comunicar algo a um interlocutor/ receptor. Podemos ter a intenção de
contar a verdade, de expressar as emoções que algo despertou em nós, querer influenciar o
receptor a tomar determinada atitude ou a mudar a forma de pensar sobre um assunto, mostrar
a nossa importância na hierarquia social, etc.
Estas intenções que prevalecem ao acto verbal são os actos ilocutórios directos que já
conheces: assertivo, expressivo, directivo, compromissivo, declarativo e declarativo assertivo.
Mas pode acontecer que a comunicação verbal expresse ideias diferentes daquelas que quero
comunicar: neste caso, os actos ilocutórios são indirectos.

Imagina que, no decurso de uma conversa telefónica que se alonga, tu dizes a certa altura ao teu
interlocutor que lhe telefonas mais tarde para acabar a conversa pela razão de que alguém está a
tocar à porta.
O que tu de facto queres dizer é: Estou farto/a desta conversa interminável! No entanto, para
preservar a tua imagem social, é improvável que digas a verdade ao interlocutor. O teu discurso
será, então, um acto ilocutório indirecto já que afirmas algo diferente daquilo que
efectivamente dizes.

Depois, cabe ao interlocutor inferir aquilo que não dizes, isto é, reconhecer a mensagem
implícita/ subentendida na interacção verbal e, respeitando os princípios de cortesia e de
cooperação necessários à vida em sociedade, vai responder à situação de acordo com a
mensagem implícita, ou seja, vai respeitar a tua decisão.

4.4 Coerência Textual

- A coerência textual é a propriedade do texto que permite que ele seja compreendido. A
coerência manifesta-se tanto na frase como na globalidade do texto. O texto que não revela esta
propriedade (a coerência) não é texto, mas um amontoado de frases sem nexo lógico. Então, o
texto é coerente quando respeita 3 princípios:

a) o princípio da não tautologia (o texto não repete constantemente as mesmas informações)


b) o princípio da não contradição (as ideias expressas respeitam a lógica)
c) o princípio da relevância (respeita uma ordem temporal e linear do tipo: a – b – c – d –
….introdução – desenvolvimento- conclusão)

Para além destes 3 princípios, a coerência textual manifesta-se também na continuidade e


progressão das ideias.

Conceito de continuidade: o enunciador, ao produzir um texto, vai retomando os tópicos


discursivos que estruturam o discurso, contribuindo, deste modo, para a sua
coesão; as anáforas linguísticas são, como já sabes, um meio linguístico de assegurar a
compreensibilidade do texto e exemplificam os tópicos discursivos que são repetidos (ex. A
Ana – ela – viu – a jovem – disseram-lhe – a rapariga – ficou chocada – …);

Além da continuidade, há a considerar a progressão textual; este processo de progressão


textual consiste na informação nova que vai sendo acrescentada às informações repetidas (caso
assim não fosse, o texto diria sempre a mesma coisa e não seria um texto, propriamente dito).

No mini-texto seguinte os elementos responsáveis pela progressão textual estão sublinhados:

As flores do jardim (tópico discursivo) estão bem tratadas; o jardineiro rega-as com
cuidado. Gosto de passear no jardim florido quando chega a Primavera. Nas noite de
Verão, o cheiro das rosas e do jasmim (hipónimos do hiperónimo “flores”) sente-se por
toda a parte.

5. Onde se encontram os textos de tipo argumentativo?

Os ensaios, as teses académicas, os discursos políticos, os textos publicitários, palestras,


conversas, sermões religiosos recorrem ao texto argumentativo.
Nenhum texto é apenas argumentativo. A componente argumentativa pode ser
predominante e então falamos em tipo de texto argumentativo. No entanto, a maioria dos textos
ditos argumentativos são, de facto, expositivo-argumentativos.

6. Exemplos de argumentação no Sermão de Santo António

6.1 capítulo II

O pregador vai dirigir o seu discurso aos peixes: porquê?


Argumentos a favor da escolha do auditório (peixes):
ouvem e não falam;

O pregador decide elogiar e repreender os peixes. Porquê?

Argumentos a favor desta pregação bipartida (elogia e repreende): Santo António assim
procedeu; o grande doutor da Igreja, S. Basílio, está de acordo; no Evangelho, os
apóstolos de Cristo (pescadores) recolheram os peixes bons e devolveram ao mar
os que não prestavam; assim sendo, «há que louvar e que repreender».

Argumentos a favor dos louvores aos peixes em geral:

Argumento 1: foram os primeiros animais a ser criados;


Arg. 2: os peixes existem em maior número e têm maiores dimensões que os
restantes animais.
Arg.3: Moisés, “cronista da criação”, distinguiu-os exclamando: «Peixes graúdos e
tudo o que se move nas águas bem dizei ao Senhor»
Arg.4: os peixes são obedientes, ordeiros, sossegados e atentos à palavra de Deus
difundida nos sermões de Sto António.
Arg.5: os peixes parecem ter inteligência, ao contrário dos homens que sendo
racionais não o querem mostrar.
Arg.6 Uma baleia salvou Jonas da maldade dos homens que o atiraram ao mar.
Arg.7 O filósofo Aristóteles disse que entre todos os animais eles são os mais
independentes (não se domam nem domesticam)
Arg.8 Os peixes não se deixam inflenciar porque vivem isolados dos outros
animais.
Arg.9 Quando se deu o Dilúvio, os peixes salvaram-se todos; Santo Ambrósio disse
que esta salvação se ficou a dever ao facto de habitarem longe dos homens.
Arg.10 Deus decidiu castigar os animais que viviam perto dos homens e poupar os
que viviam longe deles.
Arg.11 Santo António também procedeu como os peixes, afastando-se da família e
indo viver num deserto.

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