Você está na página 1de 9

O Cinema vai à Escola: o filme “Entre os Muros” sob a ótica de Gramsci

Henrique Martins de Morais

Roteiro deanálise do filme

Faculdade de Educação UFMG


Ficha técnica1:

Nome no Brasil: “Entre os Muros da Escola”

Nome Original: “Entre les Murs”

País de origem : França

Ano de lançamento :2008 (2009 no Brasil)

Duração: 128 minutos

Gênero: Drama

Diretor: Laurent Cantet

Prêmios: Ganhador da Palma de Ouro de Cannes 2008

...

Principais personagens/ atores:

François Marin / François Bégaudeau

Esmeralda / Esmeralda Ouertani

Khoumba / Rachel Regulier

Souleymane / FranckKeïta

Boubacar / BoubacarToure

Wei / Wei Huang

Carl / Carl Nanor

1
Retirado de http://www.imdb.com/title/tt1068646/
Resenha do Filme:

O filme é narrado a partir da perspectiva do professor François Marin, que


trabalha como professor de francês em uma escola problemática da periferia de Paris. O
filme tem um certo andamento cronológico na medida em que ele passa vários flashes e
cenas do que se passou naquele ano com uma turma específica nas aulas do professor
Marin. O filme começa mostrando os professores se apresentado uns para os outros e
comentando informalmente as expectativas que eles tem em relação aos alunos, quais
são bons e cooperativos e quais não são. A partir desse ponto as relações se entrelaçam
e o professor se envolve com os dramas pessoais de determinados alunos, ficando em
um dilema entre se apresentar como uma autoridade detentora de um saber superior ou
se colocando como um companheiro que discute seus próprios dramas e defeitos com os
alunos.

Curiosidades:

O filme é baseado no livro de François Bégaudeau, que também escreveu o


roteiro e interpreta o personagem principal do filme, sendo, de certa forma, ele mesmo.
A história é uma mistura de documentário e ficção já que François havia atuado de fato
como professor no ensino público francês e usou dessas experiências para compor o
roteiro. Os alunos do filme eram também alunos na vida real, e não atores profissionais.
Eles viviam personagens livres, conceituais, sem um roteiro ou diálogos determinados.
As falas dos personagens foram surgindo naturalmente, a partir de workshops realizados
semanalmente ao longo do ano.
Análise:

1. Introdução:

No texto a seguir eu pretendo explicar um pouco a teoria de Gramsci sobre a


educação e como ela pode ser aplicada no contexto escolar. Esse contexto é
exemplificado pelo filme “Entre os Muros” que oferece, de uma forma razoavelmente
realista, o dia-a-dia de uma escola de periferia francesa, como as suas especificidades e
particularidades mas que, apesar da distância entre Brasil e França ser mais de um
oceano, há certas questões abordadas no filme que cruzam esse oceano e traçam um
paralelo com as escolas brasileiras. A verdade é que o educador brasileiro que assistir ao
filme vai sentir uma estranha familiaridade com as situações ali expostas e, nesta
análise, vamos nos esforçar para caracterizar aquilo que há de universal no sistema
escolar, da forma como é apresentada pelo filme, e expor as ideias de Gramsci que se
propõem a criticar essa falsa universalidade da escola e a torná-la algo verdadeiramente
plural.

2. Sobre Gramsci e a Educação

Antonio Gramsci (1891- 1937) foi o fundador do partido comunista da Itália e


teve duas fases de produção escrita, uma no calor do fazer revolucionário e outra
quando já estava encarcerado na prisão, onde morreria mais tarde. Os escritos de
Gramsci se diferem de outros de teor marxistas justamente por fazer uma releitura e
reinterpretação do marxismo frente às mudanças sociais econômicas e políticas que se
passaram no século 202. Uma das atualizações que ele faz na teoria de Marx é
justamente repensar a dicotomia entre burgueses e proletários. Segundo Marx, esta
dicotomia existe a partir do momento em que se tem aqueles que detêm os meios de
produção (manifestadamente as fábricas ) e aqueles que, não dispondo de nada que
tenha valor de troca, vendem a sua própria força de trabalho para o burguês. Esses são
os proletários, em particular os trabalhadores fabris. Gramsci propõe uma nova
dicotomia, agora baseada na noção de dirigentes e dirigidos, que se adequa mais à

2
Cf. MORROW, TORRES, 2004. p. 34
sociedade fragmentada da Itália onde ele viveu, que continha uma complexa hierarquia
social, com vários níveis que não se adequavam ao binômio proletário-burguês proposto
por Marx.

A educação é muito mais do que a simples formação de novos indivíduos para


serem inseridos na sociedade. Ela é, antes de tudo, um desdobramento da esfera política
e um dos pilares que sustentam a sociedade contemporânea. O que Gramsci propõe é
uma total reformulação da sociedade e da relação do homem com o seu semelhante. Em
seus escritos no cárcere ele propõe um outro tipo de reforma da sociedade que não seja
pela via insurrecional, mas sim uma série de mudanças na maneira de pensar e agir que,
gradualmente vão levar à mudanças profundas na sociedade. Nesse aspecto, uma
mudança no sistema educacional é crucial para se formular essa nova sociedade, já que
a escola é da época e mesmo a escola de hoje funcionam, na prática, como um lugar
onde se molda e se imprime nas crianças uma série de valores e conceitos tidos como
dogmas e verdades universais mas que, na verdade, não passam da expressão de um
determinado grupo de pessoas que pensa e impõe de forma vertical seus valores sob o
sistema escolar na esperança de que os pequenos alunos saiam da sala de aula
reproduzindo esses valores. A escola visa formar dirigentes e outros que possam mover
as massas. Os saberes que são ensinados ali, sob um verniz de universalidade, são na
verdade direcionados a essa classe que Gramsci chama de dirigentes.

A escola é o instrumento para elaborar os dirigentes de diversos níveis. A


complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser
objetivamente medida pela quantidade das escolas especializadas e pela
sua hierarquização: quanto mais extensa for a área escolar... tão mais
complexo será o mundo cultural, a civilização... (GRAMSCI, 1968, p.9)

O que Gramsci propõe nos seus escritos é a criação de uma nova escola, uma
escola humanística que desenvolvesse a inteligência e as capacidades do aluno, que não
fosse uma mera reprodução de saberes já pré-determinados. Uma escola que fizesse
com que o trabalhador soubesse do lugar dentro da história, que quebrasse com a
dicotomia teoria versus prática. Também deveria ser um lugar em que o aluno pudesse
se expressar e discutir aquilo que foi aprendido, um lugar de dialogo onde o professor
aprende e ensina com o aluno.
"Essas orientações visam a promover a formação de um
intelectual diretamente ligado às massas. Formar dirigentes para dar a
todos a possibilidade de serem dirigentes exige a mudança tanto da
escola quanto da atitude do professor; para que ele possa despertar a
consciência nestes indivíduos, é essencial conhecer seu universo, sua
história, partir da realidade enfrentada por esses alunos, sem deixar de
lado a autonomia e a liberdade de cada um." (GAGNO, Roberta
Ravaglio. FURTADO, Andréa Grarcia. p.4)

Essa quebra da dicotomia entre dirigentes e dirigidos promovida pelo sistema


educacional resultaria numa total reformulação da sociedade, que o objetivo final do
marxismo. Gramsci inova por ver na cultura popular e na educação um meio de atingir
esse estágio final do marxismo, meio esse que se difere muito do que é proposto por
grupos que valorizam a luta armada e a guerrilha.

3. O Filme “Entre os Muros” e Gramsci

De certa forma, o filme Entre os Muros oferece uma quantidade muito grande de
contraexemplos e de razões pelas quais a escola deve ser reformada. Principalmente se
pensarmos no caso da França, país multicultural e cheio de nuances sociais, com suas
desigualdades raciais, como podemos ver no filme, em que a classe se divide claramente
entre três grupos: brancos, negros e árabes. Por outro lado, apesar dessa divisão da
sociedade francesa em grupos divergentes, a educação se baseia em um modelo
autoritário, de imposição de valores e modelos de um grupo historicamente privilegiado
sobre o resto da população. O filme exemplifica isso bem, na cena em que Khoumba
questiona o professor Marin sobre o porquê de ele utilizar para os seus exemplos de
frases somente nomes europeus, manifestadamente ingleses, como “Bill”. Ela, assim
como outros alunos, gostaria de ver frases e textos em francês em que o protagonista
tivesse nomes africanos ou árabes. Ela gostaria de se ver e se identificar nas frases. Mas,
na visão do professor Marin, a pessoa indeterminada que se usa para ilustras frases em
francês é sempre esse “Bill”, sempre um europeu indeterminado que preenche o lugar
de um “homem universal”, de onde provêm todos os valores e exemplos.
Sobre o filme, este se concentra em uma espécie de luta interior do professor
Marin, que tem por missão transmitir um conhecimento acumulado e erudito sobre a
língua francesa para alunos que vivem a língua de uma outra forma, alunos que
consideram o saber livresco disponibilizado pela escola como inútil e irrelevante. O
professor tem esse dilema, de abrir espaço para os alunos, lhes dando voz e discutindo
com eles, mas chegando a um ponto final em que ele, como posição de autoridade, está
correto.

Um conflito interessante se dá quando ele tenta ensinar o passado do subjuntivo


aos alunos. Ele cria uma frase e a recita solenemente. Os alunos, como Khoumba e
Boubacar argumentam que ninguém fala daquele jeito, que aquela flexão verbal
específica simplesmente não é usada na linguagem oral. O professor contra-argumenta
que ele mesmo estava usando aquela frase ontem, quando tomava café. Os alunos então
decretam que isso é “coisa de burguês”, que ninguém das classes baixas fala assim.

Temos aqui um conflito entre o saber escolar que o professor Marin deve passar
aos alunos, no caso o modo subjuntivo, que entra em conflito com as experiências reais
dos alunos que sabem que isso não lhes diz respeito, que é um saber livresco e que não
condiz com a sua realidade. Isso confirma um pouco aquilo que Gramsci fala sobre o
papel da escola como formadora de dirigentes. O francês ensinado nas escolas é o
francês falado e, sobretudo, lido pelos dirigentes. Os alunos são perspicazes ao
identificar esse tipo de linguagem com o atributo “burguês”, pois o que estão
aprendendo na escola é o tipo de saber útil para se ler romances clássicos ou se redigir
textos jurídicos, mas não se aprende ou se estuda a linguagem ou a comunicação usada
pelos alunos, em sua maioria filhos de dirigidos, pois se considera que o que é falado
pelas classes baixas não é digno de ser estudado na escola e, portanto não vai figurar
entre os tópicos a serem estudados numa aula de francês.

Em outras duas cenas do filme, vemos como a hierarquia escolar da relação


professor-aluno reproduz o que seria a hierarquia chefe-empregado na vida adulta, onde
a escola se torna um meio de preparar o jovem para se comportar adequadamente no
mundo verticalizado da vida profissional. Em dado momento, Souleymane pergunta ao
professor se ele gosta de homens, isto é, se ele é gay. Temos aí um dialogo que
estabelece um conflito que vai além da pergunta em si, mas da relação professor-aluno.
Cria-se uma situação em que há um diálogo da esfera pessoal do professor com a classe,
o que é inaceitável de uma perspectiva profissional, onde cabe ao empregado dividir os
espaços trabalho-casa-lazer e não se envolver ou discutir coisas pessoais no local de
trabalho. Por outro lado, o que Gramsci e outros educadores propõem é que a escola de
torne um lugar de vivência, em que o professor e o aluno aprendem um com o outro
quebrando a dicotomia dirigente-dirigido e estabeleçam relação humanas, onde o
professor é aquele intelectual orgânico que atua junto às massas, que compartilha com
ela de seus anseios e temores. O professor Marin passa por esse conflito, entre encerrar
a conversa de uma forma ríspida, invocando a hierarquia escolar e separação entre o
público e o privado ou ceder ao aluno e discutir abertamente a sua sexualidade com a
classe, se colocando em uma posição de horizontalidade com os alunos.

A escola do filme tenta, através de alguns mecanismos, quebrar um pouco a


enorme divisão entre professor e aluno. Um desses procedimentos é aceitar dois alunos
como ouvintes no conselho de classe, para que se assegure que nada de injusto será
falado ou cometido neste evento. Assim, Esmeralda e Khoumba assistem enquanto os
professores descrevem e classificam os alunos da sala. No entanto, apesar da tentativa
de horizontalizar as relações e de criar um espaço para os alunos no sistema avaliativo
da escola, percebe-se claramente o desconforto que os professores têm frente à presença
das duas, em particular o professor Marin. Mais tarde no filme esse desconforto vas
explodir em uma cena dramática, em que a relação do professor com as duas vai se
abalar para sempre.

O fato é que o sistema escolar da forma como ele é exibido no filme já incorpora
certas inovações propostas por Gramsci, existe um certo desconforto por parte dos
professores em usar de sua posição hierarquicamente superior para exercer autoridade
sobre os alunos. O conselho de classe com a presença de alunos e certos diálogos
francos entre o professor e os alunos evidenciam essas tentativas tímidas de
horizontalização. No entanto, o papel do professor, como é evidenciado na parte de
transmitir certos conteúdos como o modo subjuntivo já exemplificado, ainda é o de
alguém que detém um conhecimento superior e que deve iluminar os alunos com esse
conhecimento sem que isso tenha qualquer referência com o cotidiano de cada um. A
educação, através do currículo escolar ainda tem a função de moldar um dirigente dentre
do metier, da linguagem e dos saberes que a classe alta julga relevantes e necessários.
Uma reforma da escola poderia começar à partir disso: o que é importante que o aluno
aprenda? Um saber livresco ou algo mais cotidiano?
Referências Bibliográficas:

GAGNO, Roberta Ravaglio; FURTADO, Andréa Garcia. Antônio Gramsci e a


Educação. Disponível em:
http://www.nufipeuff.org/seminario_gramsci_e_os_movimentos_populares/trabalhos/A
ndrea_Gracia_Furtado-Roberta_Ravaglio_Gagno.pdf (acessado em 27/09/2013)

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Volumes 1, 2, 3, 4, 5, 6. Tradução: Carlos


Nelson Coutinho.3ª ed, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2004.

MORROW, Raymond; TORRES, Carlos Alberto. Gramsci e a Educação


Popular na América Latina: percepções do debate brasileiro. Currículo sem fronteiras,
vol. 4, n. 2. 2004. Disponível
em:http://www.curriculosemfronteiras.org/vol4iss2articles/morrow.pdf(acessado em
27/09/2013)

Informações sobre o filme:

http://www.imdb.com/title/tt1068646/ (acessado em 29/09/2013)

Filme:

Entre os Muros da Escola (Entre LesMurs_França_2008), Laurent Cantet

Você também pode gostar