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Teoria e prática da avaliação qualitativa

Pedro Demo
Professor titular de Sociologia da UnB (1981); Doutor (PH. D.) em Sociologia pela Universidade de Saarbrueken - Alemanha (1971);
Estudos de Pós-Doutorado nos EUA.
Este artigo foi escrito em 2001.

Resumo
Este paper aborda as dimensões teóricas e práticas da
Avaliação Qualitativa, considerando-a de fundamental importância
para a construção de uma Educação de Qualidade voltada para a
cidadania plena e para a competência formal e política. Discute,
então, a qualidade política na sua articulação com a competência
humana necessária atualmente para a formação do cidadão e para
a elaboração de uma educação realmente democrática e inclusiva.

Correspondência: Palavras-chave
Rua Salvador Correa, 139 - Centro avaliação, qualidade formal, qualidade política, educação, democracia, cidadania.
28035-310 - Campos dos Goytacazes - RJ
Telefone:+55 (22) 2733.1414
Fax: +55 (22) 2722.9677
e-mail: isecensa@isecensa.com.br

PERSPECTIVAS, Campos dos Goytacazes, v.4, n.7, p. 106-115, janeiro/julho 2005


Theory and practice of the qualitative evaluation
Pedro Demo
Titular teacher of Sociology of UnB (1981); D.Sc. in Sociology for the University of Saarbrueken - Germany (1971)
Studies of Pos D.Sc. in the USA.

Abstract
This paper emphasizes the importance of the Qualitative
Evaluation for a democratic Education, and for the construction of
an effective Citizenship. This work search to consider the principal
factors of an Educational process based in the Formal and Political
Quality.

Correspondence: Key works:


Rua Salvador Correa, 139 - Centro Qualitative Evaluation, Citizenship, Democratic Education, Formal Quality,
28035-310 - Campos dos Goytacazes - RJ Political Quality.
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I. Objetivos da avaliação qualitativa poderia comparecer como figura abjeta da
sociedade (Demo, 2001), se, por exemplo,
1 A avaliação qualitativa pretende fosse traficante ou tentasse se impor aos
ultrapassar a avaliação quantitativa, sem outros pela via da truculência.
dispensar esta. Entende que, no espaço
educativo, os processos são mais relevantes 3 Vê-se por aí que “anos de estudo”
que os produtos, não fazendo jus à realidade, indicam a face da instrução, treinamento,
se reduzida apenas às manifestações ensino, não necessariamente educação, se
empiricamente mensuráveis. Estas são mais tomarmos a esta como formação humana
fáceis de manipular metodologicamente, ética. Com efeito, o estudante pode chegar
porque a tradição científica sempre privilegiou ao fim da 8ª série sem saber nada, ou seja,
o tratamento mensurado da realidade, deteria a soma de anos de estudo, mas não
avançando, por vezes, de maneira incisiva em teria atingido a qualidade implicada. Disto não
algumas disciplinas sociais, como a economia há de decorrer que o tirocínio quantitativo já
e psicologia. Todavia, não se pode transferir não interessaria, reduzindo-se o ensino
a limitação metodológica a uma pretensa fundamental a número menor de anos. Pelo
redução do real. Este é mais complexo e contrário. Entretanto, fica desde logo claro
abrangente do que sua face empírica. A que o fracasso quantitativo é menos pungente
avaliação qualitativa gostaria de chegar até que o qualitativo. Olhando para a realidade
à face qualitativa da realidade, ou pelo menos brasileira, podemos já aceitar que o desafio
de se aproximar dela (Demo, 1988; 2001). quantitativo está razoavelmente dominado,
porquanto quase todas as crianças em idade
2 Qualidade não se expressa escolar chegam à escola. Todavia, por volta
diretamente em números, porque não é de pelo menos 1/3 é expulsa prematuramente
precisamente o lado numérico da coisa, mas da escola, o que dá a média de anos de estudo
pode referenciar-se indiretamente através de na população maior de 15 anos de apenas
indicadores, razão pela qual o tratamento cinco. No fluxo escolar perdemos mais de
quantitativo sempre pode ser pertinente. Para 30% dos alunos, como consta dos Relatórios
dar exemplo próximo, podemos indagar pelo sobre Desenvolvimento Humano (PNUD/
conteúdo qualitativo do que seria “boa ONU, 1990/2001). Ademais, as avaliações
educação”. No jargão técnico, bastamo-nos sobre proficiência escolar processadas pelo
com expressões quantitativas, como anos de Sistema Nacional de Avaliação da Educação
estudo (escolaridade). Daí decorreria que o Básica (SAEB) atestam cifras baixíssimas
analfabeto não tem educação, enquanto a de aproveitamento, que se posicionam entre
pessoa com 12 ou mais anos de estudo as piores do mundo, com o agravante de que,
(formação superior incompleta ou completa) na versão publicada ao final de 2000, tais
cifras teriam caído. É preciso cuidar que o
teria boa educação. Pode haver, por certo,
aluno não somente vá à escola, mas
alguma verdade nisso, mas apenas alguma.
sobretudo que a complete e mais ainda que
Observando mais atentamente, o termo “boa
aprenda o que é mister aprender. Parece
educação” inclui virtudes não quantitativas
claro que o Ministério estaria mais
essenciais, como fino trato, atenção,
interessado em resultados quantitativos (úteis
solidariedade, ética, cidadania, que já não
para a politicagem clássica), do que na efetiva
dependem necessariamente de anos de
aprendizagem dos estudantes, o que o levou
estudo. O analfabeto poderia, neste sentido,
a forçar a progressão continuada,
ser bem educado, como pode igualmente ser
transformando-a em progressão automática,
o sábio em comunidade simples ou entre
também a título de regularizar o fluxo
índios, enquanto o professor universitário
(desfazer as distorções idade/série).

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4 No espaço educativo podemos de participar, que implica tanto a organização
compreender qualidade como intensidade de sociedades democráticas, quanto o manejo
da formação humana, para fazer da vida e sustentado da natureza e da economia.
da realidade oportunidade de Educação é o fator mais importante da
desenvolvimento individual e coletivo. Por formação desta capacidade, desde que seja
intensidade entendo a dimensão de qualitativa. Com alguma razão evita-se
profundidade, radicalidade, envolvimento e identificar esta capacidade com
participação do fenômeno educativo, que não “competência”, porque esta pode exalar
pode, por outra, esgotar-se na capacidade de neoliberalismo por todos os poros (Paiva,
competir ou no horizonte da esperteza. 2001). Entretanto, se agregarmos a esta
Tomando como exemplo o associativismo noção de competência o qualificativo de
(capacidade de participar de modo coletivo “humana”, pode ser empregada com proveito
organizado em projeto comum), uma coisa é também.
“estar filiado” (lado quantitativo facilmente
mensurável), outra é “ser militante”, ou seja, 5 Distinguimos duas faces interligadas
estar profundamente envolvido e identificado da qualidade: formal e política. Por
com a causa, ser atuante, estar sempre qualidade formal compreendo a versatilidade
presente e comprometido. Assim, o dos meios, de estilo metodológico, processual,
associativismo extenso indica sua faze científico, com base no manejo e construção
mensurável e quantitativa, enquanto o intenso do conhecimento. Conhecimento é o
busca sinalizar a profundidade participativa, fundamento do processo inovador moderno
algo, ao mesmo tempo, muito mais difícil de e a tática principal de intervenção na realidade,
identificar e de gestar e manter. A “boa tendo-se tornado, por isso, a vantagem
educação” há de referir-se, para além da comparativa primeira. Impacta decisivamente
habilidade de se impor, conquistar espaços a cidadania, como querem os educadores,
próprios pela via do manejo do conhecimento mas igualmente a economia, se esta pretender
e da informação, à ética humana, ser competitiva. Por tratar-se de formação
solidariedade, participação e cidadania. Não da competência humana através do
se exaure esta habilidade apenas em conhecimento, a questão central está no
conceber e realizar projeto próprio de desafio construtivo, nunca na mera
desenvolvimento - já que poderia ser transmissão. Esta faz parte, até porque
estratégia colonialista -, mas precisa atingir conhecemos a partir do conhecido, mas é
tanto mais o compromisso coletivo igualitário insumo. A simples absorção de conhecimento
e democrático. não faz competência, e se ficarmos apenas
Um dos primeiros passos da educação nela, reproduzimos a subalternidade, pois
de qualidade é desfazer toda forma de mantemos o estudante na condição de cópia,
subalternidade, em particular aquela mantida objeto. Hoje podemos definir países
com base na ignorância. Trata-se de formar subdesenvolvidos como marcados pela
consciência crítica, com o objetivo de abrir a condição de cópia, não são capazes de
compreensão da sociedade e da realidade, e construir conhecimento próprio, vivem à
do papel da pessoa humana nelas. Com base sombra dos outros, tanto na dimensão política
nesta consciência crítica, trata-se de (possuem regimes atrelados), quanto na
possibilitar a intervenção alternativa, ao dimensão econômica (trabalham com sucata
mesmo tempo consciente e participativa, para e são tendencialmente sucata). O sistema
se construir sociedade solidária e intervir na educativo não poderia, pois, ser apenas de
natureza de modo ambientalmente adequado. ensino, instrução, treinamento, porque não
Habilidade humana crucial é a capacidade elabora a necessária competência humana

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para fazer o futuro da sociedade e da construir a capacidade de reconstruir
economia. conhecimento, para que o sujeito domine a
arma mais potente de inovação e intervenção
6 Por qualidade política compreendo a na sociedade e na realidade; de outro,
intensidade democrática e ética frente ao fundamentar e exercitar a cidadania. Uma
desafio dos fins e valores sociais. Sem coisa não vai sem a outra, embora uma seja
qualidade política, conhecimento é apenas meio e a outra fim. Para visualizarmos melhor
arma, para o bem ou para o mal. É essencial esta interdependência, podemos focalizar o
saber discutir a função social e política do problema da ideologia. Para inovar a história
conhecimento, sobretudo a sociedade e a e a realidade é mister engajamento político,
economia que nos interessam, solidárias e com certeza. Entretanto, o que inova não é o
democráticas, éticas e humanas. É engajamento, mas a intervenção com base
fundamental que não se destrua o meio em conhecimento. Engajar-se na inovação
ambiente, em nome do direito das novas ainda não quer dizer saber inovar. Daí
gerações, como é fundamental que se inferimos que a qualidade da educação
imponha ao sistema produtivo, por ser meio, precisa atingir tanto o horizonte da
a desconcentração da renda e, ao sistema competência formal (manejo e construção de
político, o controle democrático. conhecimento), quanto a competência política
Qualidade política atinge, portanto, o (tipicamente educativa, da formação do
horizonte da cidadania, direitos humanos, sujeito solidário, democrático, participativo,
organização associativa da sociedade, ético).
primazia do bem comum. Frente à educação, Ademais, qualidade política não
conhecimento é apenas meio, um dos meios. garante, de si, que se dirija ao bem comum.
Por ser a arma mais potente de inovação e Não poderíamos negar que a proposta
intervenção, não está garantido, de antemão, maquiavélica tenha “qualidade política”, ou
que seja usada para o bem comum. Educação que o conhecimento europeu, ao colonizar
teria a pretensão de conjugar, no mesmo todas as outras culturas, o tenha feito com
diapasão, o lado formal e político da habilidade política inconteste e efetiva.
competência humana, razão pela qual Qualidade política precisa ser visualizada no
costuma-se usar o binômio “educação e contexto da definição pós-moderna de poder,
conhecimento” (Demo, 2001a). É essencial à la Foucault (1971) (“arqueologia” do saber)
que conhecimento se faça ou à la Popkewiz (2001) (conhecimento
caracteristicamente no ambiente educativo, como efeito de poder). Pode é fenômeno
para que a modernidade não venha de fora dialético não linear, ambivalente, cuja
para dentro e de cima para baixo. Se dinâmica não se esgota apenas na direção
buscamos projeto moderno e próprio de de cima para baixo. Embora os “dominados”
desenvolvimento, precisamos da se encontrem em posição subalterna,
competência humana formal e política para possuem margem de manobra, podendo
tanto, ou seja, de educação e conhecimento ocorrer até mesmo a virada de mesa, como
(CEPAL/OREALC, 1982). a história atesta, seja no assim dito controle
democrático (a população pode ser
organizada de tal modo que os mandantes
II Educação de qualidade não façam o que bem entendem) (Demo,
2001b), seja nas revoluções políticas. Ainda,
7 Podemos definir melhor o que seria de modo coerente é preciso reconhecer que,
educação de qualidade. Deveria dispor de se os dominados um dia chegarem a dominar,
duas virtudes mais frontais: de um lado, não significa necessariamente que implantem

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a democracia que antes reclamavam. Pois Varela, 1997. Demo, 2001d).
podem facilmente incidir na mesma tentação Em quarto lugar, não pode basear-se
de coibir ou eliminar a oposição. Assim, é em didáticas movidas a aulas copiadas para
mister sempre acrescentar ao conceito de copiar. Embora a aula faça parte natural do
qualidade política o signo ético (Buarque, ensino, é expediente apenas supletivo de
1994). Na Escola de Frankfurt tornou-se aprendizagem, tornando-se equívoco
emblema intrigante e mesmo incômodo a clamoroso fazê-la tática central didática. Não
reação de Horkheimer ao fim da vida, quando se trata apenas de “melhorar” a aula, para
anunciou que “política, sem teologia, é puro que se torne mais motivadora, mas sobretudo
negócio”. Queria simplesmente dizer que, de a “superar”, para que se privilegie a
sem padrão ético, a política apenas busca aprendizagem, não a simples instrução.
vantagens.
9 A competência humana atual, diante
8 Podemos, no outro lado da mesma dos desafios da inovação e da cidadania,
medalha, definir o que não seria educação lança pretensões específicas, que supõem
de qualidade. Em primeiro lugar, será falso sempre atitude reconstrutiva diante da vida,
permanecer apenas na quantidade, ou sem necessariamente ser construtivista
separar dicotomicamente a face formal da (Grossi/Bordin, 1993, 1993a). No lado formal,
política. Podemos, por exemplo, colocar todos são alguns critérios de qualidade da educação:
os estudantes com idade superior às a) capacidade de pesquisa, para ler
respectivas séries nas séries próprias, sem a criticamente a realidade;
devida aprendizagem. Produzimos números b) elaboração própria, para saber
mais agradáveis, sobretudo para os reconstruir projeto próprio;
“políticos”, mas não estamos cuidando da c) teorização das práticas, para
aprendizagem como tal. saber intervir criativamente;
Em segundo lugar, não pode ser d) atualização permanente, para
apenas ensino e treinamento. O estar à frente dos tempos;
instrucionismo é avassalador em sala de aula, e) saber pensar, argumentar,
porque esta se reduz tendencialmente a fundamentar, aprender.
procedimentos reprodutivos (Demo, 2001c).
O estudante é “condenado” a apenas escutar, O contrário disso é a condição de cópia
tomar nota e fazer prova, perdendo a copiada, com base em didáticas reprodutivas,
oportunidade de desenvolver o saber pensar marcadas pelo instrucionismo. São, pelo
e o aprender a aprender (Demo, 1999a). menos em parte, imbecilizantes, porque
Em terceiro lugar, não se restringe à tolhem a competência fundamental da
transmissão de conhecimento. Como capacidade de construção autônoma do
mostram as teorias mais contemporâneas da conhecimento. São indicadores clássicos
aprendizagem, mesmo que se quisesse, não negativos deste tipo de didática a aula
é possível “transmitir” conhecimento, porque repetitiva, a prova reprodutiva, a “decoreba”
sempre o interpretamos de alguma forma. como tática central de absorção, a avaliação
Aprender supõe posição de sujeito, não de pela mera freqüência e disciplina moralista e
objeto que apenas engole, recebe. A assim por diante.
argumentação hermenêutica sempre apontou
para este fato humano, mas dispomos hoje 10 No lado político, são alguns critérios
de farta argumentação biológica em favor da de qualidade da educação:
tessitura reconstrutiva política da a) politicidade do processo
aprendizagem (Maturana/Varela, 1994. reconstrutivo de conhecimento, à

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medida que, sabendo pensar e de qualidade, de modo algum, confunde-se
aprender, forjam-se as condições com as propostas da “qualidade total”, a
básicas de intervenção alternativa; começar pela contradição nos próprios
termos desta, pois, sendo qualidade conceito
b) constituição da autonomia do eminentemente dialético, jamais poderia ser
estudante, à medida que, sabendo “total”. Esta designação lhe retira, desde logo,
pensar, tornar-se cada vez mais sua processualidade e dinâmica crítica,
capaz de conduzir sua emancipação; transformando-a em produto mercadológico
isto pode aparecer em virtudes da (AEC, 1994).
elaboração própria e da pesquisa;

c) parte fundamental desta III. Objetivos da avaliação qualitativa


autonomia está em saber elaborar
projeto próprio, num primeiro plano,
textos próprios, e, ao longo do 11 Para garantir qualidade formal do
trajeto, projeto alternativo de vida; processo educativo, a avaliação qualitativa
sabendo ler crítica e criativamente a busca saber, para mudar:
realidade, pode desenhar futuro a) até que ponto a didática é
alternativo, combatendo e superando reconstrutiva, no sentido específico
a pobreza política; de mobilizar o aluno a ser o sujeito
central do processo educativo;
d) práticas mais participativas de
aprendizagem, aprendendo a b) até que ponto o professor é capaz
trabalhar em equipe, sem desfigurar de manejar e produzir conhecimento,
a necessidade de trabalho individual, para poder organizar o mesmo
tornando-se mais solícito com os processo no aluno;
companheiros, assumindo tarefas
coletivas e comuns; c) até que ponto, a avaliação do
desempenho do aluno privilegia o
e) desenvolvimento de noções e processo reconstrutivo próprio, e não
práticas de cidadania, direitos aula, prova e cola;
humanos, desenvolvimento
sustentável, solidariedade; d) até que ponto os apoios didáticos
que facilitam a atitude reconstrutiva
O contrário disso é a condição de estão presentes e são efetivados na
massa de manobra, objeto de manipulação própria escola (biblioteca, videoteca,
alheia, resto e sucata, com base em didáticas material didático próprio, eventos
repressivas que mantêm no aluno a condição mobilizadores como feiras de
de mero objeto de aprendizagem copiada. ciência, ambientes de pesquisa,
São tipicamente imbecilizantes, porque laboratório, experimentação etc.);
coíbem o sujeito competente, atrelando-o à
função ideológica e degradante de insumo e) até que ponto a escola é
instrumentalizado a serviço dos privilégios das atualizada em termos de
elites. Indicador típico é a “moral e cívica”, conhecimento e atinge desempenho
entendida como adestramento conservador, competente nos alunos e
ou, na linguagem de Orlandi (1996, 2001), o professores;
discurso autoritário do professor. Educação

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f) até que ponto saber pensar e até que ponto manifestam
aprender a aprender estão presentes autonomia, argumentação,
na prática escolar dos estudantes. fundamentação, raciocínio coerente,
além de perspectiva crítica, original,
12 Por ser questão qualitativa, a aferição alternativa;
é particularmente árdua, além de supor
inovações por vezes penosas sobretudo no b) interesse persistente em discutir
professor. É indispensável que ele mesmo fins e valores, ética e compromisso
saiba reconstruir conhecimento e se social, tendo em vista orientar para a
mantenha atualizado permanentemente, vida autônoma e solidária;
assumindo como função principal orientar o
mesmo processo reconstrutivo no aluno. c) construção e reconstrução
Haverá aula, mas é expediente instrumental. constante do projeto pedagógico, que
A transmissão de conhecimento é conjugue com sabedoria meios e
fundamental, mas é insumo. Importante será fins, em particular a formação do
mudar o sistema de avaliação, ultrapassando sujeito histórico competente formal e
os cuidados em torno da aula como show, politicamente;
para garantir que o aluno consolide a
competência formal de manejo e reconstrução d) ambiente sadio, produtivo e
de conhecimento. É preciso motivá-lo a democrático de todos os recursos
pesquisar, a elaborar com mão própria, a humanos envolvidos na escola,
argumentar e a contra-argumentar, a procurar diretores, professores, técnicos,
conhecimento com autonomia e reconstruí- servidores, alunos, de tal sorte que
lo, a ler criticamente de modo sistemático, e democracia seja discutida e
assim por diante. Apoios advindos da praticada, sem prejuízo da qualidade
instrumentação eletrônica podem ser muito formal, mas em consonância mútua;
úteis.
Será, também, pertinente introduzir e) organização constante de eventos
testes de conhecimento, em pontos e processos, curriculares e
estratégicos do fluxo escolar (por exemplo, paracurriculares, que fomentem o
ao terminar a 4ª série, a 8ª série), tendo em exercício da competência política,
vista garantir que a competência formal sobretudo nos alunos;
prevista no currículo se efetive. O
investimento na qualidade do professor, tanto f) promoção sistemática de
em termos de atualização permanente, iniciativas próprias dos estudantes,
quanto de valorização sócio-econômica, é que aliem capacidade crescente de
considerado a peça-chave da qualidade. manejar conhecimento com
capacidade intensa de intervenção
13 Para fomentar a qualidade política do alternativa na realidade.
processo educativo, a avaliação qualitativa
busca acompanhar e garantir: 14 Nesta parte, a aferição é ainda mais
a) marca especificamente educativa árdua, por tratar-se de processos muito
da ambiência escolar, ou tipicamente complexos, profundos e lentos, como é, por
formativa, para além do mero ensino exemplo, o ritmo da preparação para a vida.
e da mera aprendizagem; expediente Favorecem a qualidade política certamente,
sugestivo pode ser a elaboração de o diálogo aberto entre todos, que permite não
textos próprios, para poder averiguar encobrir problemas ou evita impor ideologias

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e privilégios, o ambiente ético e produtivo de em particular a escola pública. Não dispõe
trabalho, a dedicação dos professores para de quantidades mínimas (mal equipada, mal
superar, coletivamente, todos os riscos de conservada, sem apoios assistenciais etc.).
fracasso no aluno, a lógica do bom exemplo Nela aprende-se pouco e mal, de tal sorte
em todos, e assim por diante. que dificilmente se pode garantir que a
A discussão crítica dos fins e valores competência formal seja realidade. Também
da escola é talvez o expediente mais seguro nas escolas privadas, onde o desempenho
para promover o processo de formação da funcional é bem mais evidente, a didática da
competência política, colocando sempre sob “decoreba” domina o processo, e produz, em
o crivo da consciência e da busca incessante penca, “idiotas especializados”. Passam no
os objetivos da educação e do conhecimento. vestibular, para poderem estudar melhor e de
Faz parte da qualidade política não graça, mas de modo algum preparam-se para
unilateralizar os termos, sacrificando a a vida.
qualidade política à formal (como se domínio Quanto à qualidade política, a própria
técnico dispensasse democracia), ou a realidade do fracasso escolar majoritário fala
qualidade formal à política (como se ideologia por si. Em vez de lugar principal da
substituísse conhecimento). É preciso evitar equalização de oportunidades, a escola
democratismos, corporativismos, bem como continua seletiva, em primeiro lugar contra
autoritarismo e ambiências tecnicistas. Como os pobres, e, depois, contra os que são menos
a árvore se conhece pelos frutos, a qualidade aptos a decorar matéria. O atraso mais
política pode, muitas vezes, ser mais comprometedor do país está no atraso em
facilmente apercebida depois, quando os educação e conhecimento. Se quiser ter e
alunos deixaram a escola e estão na vida. fazer oportunidade de desenvolvimento,
Vê-se, então, se estão de fato preparados. precisa resolver este problema de vez. A
Mesmo assim, é fundamental que toda escola avaliação qualitativa colabora em desvendar
saiba monitorar o desenvolvimento da o problema e propor soluções que
qualidade política de seus estudantes, tendo ultrapassam expressões quantitativas, e
em vista que a formação à cidadania é sua atingem o âmago da competência humana
razão maior de ser. histórica em termos de construção do
conhecimento e realização da cidadania (Saul,
15 Pode-se afirmar, hoje, que a escola 1988. Triviños, 1987. Lüdke/André, 1986.
padece, como regra, de todos os problemas, Haguette, 1987).

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