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Universidade Federal de Alagoas – campus Arapiraca

Curso Medicina – 5º período


Jéssica Luzia de Souza Lôbo
Gastrenterologia

Hepatite autoimune

01. Introdução

A hepatite autoimune (HAI) é uma doença hepática crônica que ocorre


predominantemente no sexo feminino e caracteriza-se pela presença de hipergamaglobulinemia e
autoanticorpos circulantes e pela resposta ao tratamento imunossupressor. Sua etiologia é
desconhecida, mas a hipótese mais aceita é a de interação entre predisposição genética, agente
desencadeador externo (infecciosos, drogas ou toxinas), e resposta imune dirigida contra
autoantígenos, que seria o fator e mecanismo desencadeante e perpetuador da infecção.

No Brasil, é responsável por 5-19% das doenças hepáticas nos grandes centros, por menos
de 5% dos pacientes em lista de transplante e por cerca de 6% dos transplantes realizanos no
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
Afeta mais mulheres do que homens, na proporção de 4:1, ocorrendo em todos os grupos étnicos.
Manifesta-se em qualquer idade, com incidência bimodal observada na faixa de 5-25 anos e entre
a 4ª e 6ª décadas de vida.

A história natural e o prognóstico da HAI dependem do grau de atividade da doença e da


presença ou não de cirrose. Elevação sustentada de aminotransferases séricas (ALT ou AST)
acima de 10x acima do limite superior da normalidade ou acima de 5x juntamente com elevação
de 2x o valor normal de gamaglobulina associam-se a aumento na mortalidade, que pode atingir
90% em 10 anos. A mortalidade chega a 40% nos primeiros 6 meses nos portadores de doença
grave que não receberam terapia imunossupressora.

02. Aspectos clínicos

A apresentação clínica da HAI é muito variável e não há quadro típico, podendo ser
descritos 3 padrões mais comuns:

» Insidioso (50% dos casos): pacientes apresentam fadiga (astenia), náusea,


anorexia, perda ponderal, dor ou desconforto abdominais, artralgias, mialgias,
rash cutâneo e icterícia flutuante (intensidade variável ao longo do tempo). Ao
exame físico, podem estar presentes hepatoesplenomegalia, ascite, eritema
palmar, aranhas vasculares, edema periférico e encefalopatia;

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» Agudo (30-40% dos casos): quadro de icterícia marcada, podendo indicar
exarcebação de doença crônica pré-existente ou ser em virtude de doença aguda
com apresentação indistinguível de uma hepatite viral ou medicamentosa.
» Insuficiência hepática aguda: pode ocorrer, e o diagnóstico deve ser considerado
no diagnóstico diferencial de insuficiência hepática aguda grave. Muitos desses
pacientes apresentam evidências de doença crônica ao exame físico, com aranhas
vasculares, eritema palmar e esplenomegalia, sinais de hipertensão portal ao
exame endoscópico e evidências de hiperesplenismo, hipoalbuminemia, achados
de hepatopatia crônica em suas biópsias hepáticas, o que confirma o curso
subclínico de evolução prolongada.

03. Achados laboratoriais e histológicos

O achado laboratorial que inicialmente chama atenção é o aumento dos níveis de


aminotransferases, que pode atingir valores acima de 50 vezes o limite superior da normalidade.
A hipergamaglobulinemia é policlonal, mas a IgG tem aumento mais pronunciado. O aumento de
gamaglobulina tende a ser maior na HAI tipo 1, nos casos com reatividade para o anticorpo
antimúsculo liso (ASMA), que no tipo 2.

Os autoanticorpos estão presentes em cerca de 90% dos casos, mas não são
patognomônicos. O mecanismo imunopatogênico da doença baseia-se na predisposição genética
do indivíduo, na reatividade a autoantígeno e no desequilíbrio de citocinas e da autoimunidade
mediada por linfócitos T. A positividade dos autoanticorpos permite a classificação da HAI em
subtipos com características bioquímicas, imunogenéticas, clínicas e prognósticas distintas. A
mais aceita divide a doença em dois tipos: HAI-1, com positividade para anticorpo antinúcleo
(ANA) e/ou anticorpo antimúsculo liso (ASMA); e HAI-2, para anticorpo microssoma de fígado
rim tipo 1 (anti-LKM1) e/ou anticorpo anticitosol hepático tipo 1 (anti-LC1).

O ANA é mais inespecífico, podendo ser encontrado em várias outras doenças, podendo
estar relacionado à outra doença autoimune associada, e não à HAI em si. É encontrado em 50-
70% dos pacientes, podendo estar associado ao ASMA ou isolado. O ASMA, no estômago, reage
com a camada muscular, muscularis mucosae e fibras musculares interglandulares; no rim com
vasos, glomérulos e túbulos, determinando os padrões VGT, podendo ser encontrado em 70% dos
casos e, em 30% sendo marcador único. O anti-LKM1 é detectado no citoplasma dos hepatócitos
e nas células de túbulos renais proximais, sendo marcado em até 90% dos casos de HAI-2.

04. Diagnóstico

O escore diagnóstico proposto pelo GIHAI apresenta sensibilidade de 97-100% e


especificidade de 60%, porém, é falho para detectar as formas híbridas. Em 2008, foi sugerido

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um sistema simplificado, com 4 variáveis
independentes: alterações histológicas, reatividade de
autoanticorpos, níveis de IgG e exclusão de hepatite
viral. A cada uma delas, é atribuído 1 ou 2 pontos, sendo
o diagnóstico provável estabelecido quando a soma for
6 e definitivo quando maior ou igual a 7, com 81% de
sensibilidade e 99% de especificidade. Ademais, é
necessário que a biópsia seja realizada em todos os
pacientes, coisa nem sempre factível, ou reatividade
para um autoanticorpo, o que não ocorre em cerca de
10% dos pacientes.

05. Tratamento

A HAI não tratada apresenta mau prognóstico, com taxas de sobrevida em 5 e 10 anos de
50 e 10%, respectivamente. As indicações absolutas para tratamento da HAI são níveis de AST
maiores ou iguais a 10x o valor normal, aumentos dos valores de aminotransferases maiores ou
iguais a 5x o valor normal da normalidade associados a níveis de gamaglobulinas maiores que 2x
vezes o valor normal ou achados histológicos de necrose em ponte ou necrose multiacinar. É
sempre importante pesar os riscos e os benefícios advindos da imunossupressão em longo prazo.
O tratamento deve ser questionado apenas nos casos de cirrose hepática descompensada sem
atividade inflamatória importante, em pacientes em lista de transplante, pelo risco de mortalidade
associado à infecção.

A remissão caracteriza-se por ausência de sintomas, normalização dos níveis de


bilirrubinas e gamaglobulina, ALT e AST abaixo do limite superior da normalidade e melhora
histológica com no máximo infiltrado portal e ausência de hepatite de interface. As melhoras
clínica e bioquímica precedem a melhora histológica em 3 a 6 meses, sendo essencial a
comprovação da remissão histológica antes da interrupção do tratamento. Em adultos, utilizam-
se as doses preconizadas na Tabela 3. Em crianças, as doses iniciais recomendadas são de 2 mg/kg
de prednisona (dose
máxima de 60 mg/dia),
sendo possível a
associação de azatioprina
como medida para
redução da dose de
corticosteróide.

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→ Esquema para falha do tratamento de indução da remissão
Deve-se iniciar com prednisona em monoterapia (60 mg/dia) ou prednisona (30 mg/dia)
associada à azatioprina (150 mg/dia). As doses são reduzidas mensalmente enquanto houver
melhora laboratorial (redução de 10 mg/mês para prednisona e de 50 mg/mês para azatioprina)
até atingir-se a dose de 10 mg/dia de prednisona e de 50 mg/dia de azatioprina ou 20 mg/dia de
prednisona em monoterapia, quando os pacientes devem ser tratados como os que se encontram
em regimes de tratamento convencional.

→ Esquema para resposta incompleta ou a partir da segunda recaída

A manutenção com prednisona em doses baixas é preconizada para resposta incompleta


ou a partir da segunda recaída. Após remissão clínica e bioquímica com a terapia de indução,
reduz-se a dose de prednisona (2,5 mg) enquanto houver estabilidade clínico-laboratorial até
encontrar-se a dose mínima eficaz para manter o paciente assintomático e AST 5 vezes abaixo do
limite superior da normalidade. A maior vantagem da estratégia de monoterapia com
corticosteroide em doses baixas é a prevenção da teratogenicidade de azatioprina em mulheres
em idade fértil.

A manutenção com azatioprina em monoterapia tem as mesmas indicações da


manutenção com prednisona em doses baixas. Após remissão clínica e bioquímica com a terapia
de indução, a dose de azatioprina é aumentada gradualmente (até 2 mg/kg/dia), permitindo
redução da dose de corticosteroide. A maior vantagem da estratégia de monoterapia com

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azatioprina é a prevenção dos efeitos adversos dos corticosteroides, em especial nas pacientes
pós-menopáusicas.

→ Tratamento nas gestantes

Com relação ao tratamento da HAI na gestação, o uso da azatioprina, que atravessa a


barreira placentária, ainda é controverso. Em filhos de mães que utilizaram azatioprina e
prednisona durante a gestação, foram encontrados linfopenia, hipogamaglobulinemia e hipoplasia
tímica, alterações reversíveis após o nascimento. De acordo com as orientações da AASLD, a
azatioprina deve ser suspensa, sempre que possível, durante toda gestação, devendo-se antecipar
a possibilidade de recidiva puerperal com a reintrodução do tratamento convencional duas
semanas antes da data prevista para o parto.

No pós-parto, a azatioprina, até o momento, está contraindicada para pacientes que estão
amamentando, já que é excretada pelo leite materno. Como não existe definição da melhor opção
terapêutica na gestação, a conduta do HC-FMUSP é a de suspender a azatioprina durante a
gestação, período em que a paciente recebe prednisona 20 mg/dia em monoterapia, e reintroduzi-
la após suspensão do aleitamento. Nos casos de recidiva puerperal, a prednisona é aumentada para
doses de até 60 mg/dia e, nos casos refratários, são discutidos com a paciente os benefícios da
suspensão precoce do aleitamento, ou mesmo de sua manutenção, para reintrodução da
azatioprina, na tentativa de melhor controle da doença de base.

Referências:

1. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à saúde. Protocolo Clínico e


Diretrizes Terapêuticas da Hepatite Autoimune. Portaria SAS/MS nº 457, de 21
de maio de 2012. Disponível em:
http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2014/abril/02/pcdt-hepatite-
autoimune-livro-2012.pdf
2. LOPES, A. C. Tratado de Clínica Médica. 2ed. vol. III. São Paulo: Roca, 2009.
3. ZATERKA, S.; EISIG, J.N. Tratado de Gastrenterologia. Da Graduação à pós-
graduação. 2ª ed. São Paulo: Atheneu, 2016.

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