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21/04/2017 Beatriz Martin Vidal | Revista Emília

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Beatriz Martin Vidal


POR ANTONIO VENTURA | 20 DE ABRIL DE 2017 | ENTREVISTAS |
Últimas
As palavras
inventadas
:a
Numa de minhas primeiras idas à feira de Bolonha, se eu não me engano em
brincadeir
2005, uma jovem ilustradora cou me esperando no stand para me mostrar seu
a, o
portfólio. Me lembro que não havia lugar e sentamos  e ela abriu a pasta no chão.
inesperado
Ela tinha os esboços de um primeiro livro que estava fazendo para uma editora
eo
australiana. Eram pássaros e mais pássaros em preto e branco de uma beleza
maravilha
incrível. Nunca mais esqueci aquelas imagens. De volta ao Brasil, entrei em
mento
contato com ela e até tentei encomendar um trabalho, mas a distância e a língua POR
não contribuíram para que isso se realizasse. Foi pela mão de Antonio Ventura, ALESSANDRA
STARACE
grande editor espanhol, responsável pelo catálogo da editora Jinete Azul, que eu
a reencontrei. E como da primeira vez, me emocionei com todos os seus
trabalhos, alguns  ao alcance dos leitores brasileiros, publicados pela editora Pulo
Instituto
do Gato. Quando Antonio me disse que tinha feito esta entrevista especial para a
Emília
POR REVISTA
Revista Babar e que ele gostaria de publicar na Emília foi um presente. A ambos EMÍLIA

agradecemos.
Dolores Prades | Revista EMÍLIA
Quem
somos

B eatriz Martín Vidal nasceu na Espanha, em Valladolid. Estudou artes


plásticas na Universidade de Salamanca e desenho na escola de Arte de
POR REVISTA
EMÍLIA

sua cidade natal. Ganhou diversos prêmios nas categorias ilustração e

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quadrinhos. Trabalha como ilustradora para diferentes editoras na Espanha e em Projeto


outros países. Em 2008 publicou Secrets, seu primeiro livro como autora e Pequenos
ilustradora, pela editora Lothian, da Austrália. Atualmente publica pela editora Leitores
POR SANDRA
Thule.
MAYUMI
MURAKAMI
MEDRANO
Há dois anos colabora com o escritor Gustavo Martín Garzo no jornal El Norte de
Castilla. Em relação à Beatriz Martín Vidal se cumpre aquilo que dizia Leonardo
da Vinci, de que todo artista realiza sua obra à sua imagem e semelhança. E não
só pela beleza de seus traços e a exatidão de suas palavras, que re etem Siga-nos.
elmente um pensamento claro e elaborado, fruto de uma observação rigorosa Compartilhe.
do mundo, mas por sua imagem e aparência, pois ela mesma bem poderia ser
um de seus personagens, que escapara de sua obra para conversar de maneira
inteligente e sábia sobre seu trabalho e a ilustração em geral.  FACEBOOK

***
 YOUTUBE

Antonio Ventura – O que te sugere esta frase de Pablo Picasso: “Aos doze anos
sabia pintar como Rafael, mas precisei de toda uma vida para aprender a pintar
como uma criança”.  INSTAGRAM

Beatriz Martín Vidal – Conhecendo a trajetória de Picasso e o virtuosismo


acadêmico de suas obras da adolescência, sempre pensei que essas palavras se
referiam ao seu caso concreto, e, por extensão, à arte do século 20; a como se Boletim Emília
passou de um grande domínio técnico e perfeição formal como objetivo nal da
pintura, a outro paradigma diferente. Ultimamente, existe outra interpretação Cadastre-se e receba
possível que me deixa mais feliz. Essa volta à sinceridade da criança, ao instinto, as novidades

pode se aplicar ao processo de aprendizagem de todas as disciplinas artísticas.


NOME
É, provavelmente, a parte mais prazerosa do processo artístico, o momento em
que se pode esquecer o que foi aprendido, porque foi incorporado.
E-MAIL
Transformou-se em instinto. Talvez seja necessário aprender a desenhar como
Rafael para poder esquecer que aprendemos a desenhar, porque a armadilha da
P R O F I S S ÃO
frase de Picasso é que não se trata se retroceder e desenhar como quando
éramos crianças. Trata-se de desenhar tanto para sair pelo outro lado do
virtuosismo, quanto para atravessar o campo do que sabemos e voltar ao do ASSINAR

instinto. O artista japonês Katsushika Hokusai expressou também este


pensamento quando disse: “Aos 5 anos tinha a mania de desenhar coisas. Aos
50, havia produzido muitos desenhos; contudo, nenhum, até os 70, tinha
verdadeiro mérito. Finalmente, aos 73, aprendi algo sobre a verdadeira forma das Seja amigo da
coisas: pássaros, animais, insetos, peixes, campos e árvores. Portanto, aos 80 Emília
terei feito algum progresso, aos 90 me aproximarei um pouco mais na essência
da arte. Aos 100 terei chegado, nalmente, a um nível excepcional e aos 110, Nós da Emília
cada ponto e cada linha de meus desenhos terão vida própria”. somos
apaixonados por
livros e leitura.
Se você nos
acompanha e é fã
de nosso projeto,

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ajude a mantê-lo
vivo!

Em breve!

AV – Creio que no fundo as duas frases têm o mesmo signi cado. Fiz essa
pergunta porque muitas vezes, diante da obra de alguns jovens criadores –
estou me referindo somente a ilustradores –, as pessoas têm a sensação de que
chegaram à desconstrução sem haver construído nada antes. Sei que uma das
ideias implícitas desse pensamento é quase a da saudade de um cânone, ou
não, talvez esteja simplesmente cando velho.

BMV – Às vezes também me pergunto se é necessário ter passado por uma fase
de domínio do desenho, ajustado ao cânone clássico, antes de estilizar,
desconstruir ou sintetizar. Não tenho uma resposta certa para isso. Mesmo entre
os grandes pintores modernos há divergências. Alguns, como Picasso ou Degas,
dominavam perfeitamente o desenho acadêmico antes de começar a distanciar-
se desse tipo de  representação. Outros não. Simplesmente seus desenhos de
juventude não são tecnicamente bons, mas seu estilo da maturidade, sim. Creio
que dominar o desenho clássico é importante, mais pelo processo que isso
implica do que pelo que isso vai re etir em seu estilo. Ou seja, dominar o
desenho supõe ir assimilando uma série de conceitos e sensações que não
podem ser transmitidos verbalmente. E, por outro lado, um cânone dá um
parâmetro claro para medir o progresso, a sensibilidade, muito importantes em
um processo de aprendizagem. É uma grande pedra que pode ser usada para
a ar as habilidades de cada um. Outra coisa, é que, em algum momento, foi o
único instrumento para avaliar todo resultado artístico. Se alguém tem essa

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sensação de que não construiu nada antes de reconstruir é provavelmente


porque a obra em questão carece de qualidade. E essa sensação, essa
apreciação da qualidade é um cânone muito mais sutil, muito mais
determinante. A falta de rigor, a falta de base, geralmente é percebida, seja qual
for o estilo, porque faltam essas qualidades que se aprimoram precisamente,
batendo de frente uma e outra vez contra um cânone, seja ele qual for.

AV – Você explicou muito bem e concordo plenamente com sua análise. Não
pretendia creditar tudo ao domínio do desenho e da composição, mas nota-se
quando a síntese ou a estilização não é original, mas um simulacro que, a meu
ver, se transforma em maneirismo. Bem, queria que falássemos um pouco desse
elemento tão citado nas análises dos últimos álbuns ilustrados, o componente
narrativo das imagens.

BMV – O elemento narrativo de uma imagem é o que torna qualquer imagem o


que entendemos por ilustração. Nesse sentido, toda imagem que faça referência
a uma história externa é uma ilustração. Isso inclui, digamos, A última ceia, de
Leonardo da Vinci, em comparação com a Gran Vía, de Antonio Lopez. O fato de
conhecer a história a que se refere A última ceia de ne o signi cado dessa
imagem. Se não conhecêssemos a história que essa imagem ilustra como obra
de arte, seria algo totalmente diferente. Quando falamos de um livro, e não de
uma imagem isolada, acrescentamos outro elemento que reforça esse
componente das imagens, que é a sequência. Dependendo do tipo de livro, esse
elemento será mais ou menos importante. Em uma novela ilustrada, a sequência
não entra muito em jogo, uma vez que as imagens cam isoladas umas das
outras, separadas por blocos de texto. Mas um álbum ilustrado é uma sucessão
contínua de imagens dentro das quais se integra o texto. Não abordamos um
álbum ilustrado como abordamos uma novela ou um conto com ilustrações. Não
podemos, porque as imagens são muito grandes, muito invasivas, e porque
formam uma sequência totalmente consistente, sucedendo-se umas às outras
sem interrupção, de modo que não é exatamente uma experiência literária, com
intervenções grá cas, mas uma experiência visual e literária simultaneamente. A
meu ver, é uma conjunção que só se dá, além do álbum, nas histórias em
quadrinhos. Esse enorme peso narrativo faz com que, ao menos no meu caso,
aborde a criação ou a ilustração de um álbum ilustrado de uma forma
totalmente diferente de como enfrentaria qualquer outro trabalho e ilustração.
Preciso saber qual é a história que as imagens vão contar e como essa história
visual vai se articular com o texto, de modo que o resultado nal seja algo que
nem o texto nem as imagens podem contar  separadamente. Creio que é essa
essência do álbum ilustrado, algo que tento respeitar sempre que me deparo
com ele, porque quando você lê os grandes álbuns ilustrados, os que realmente
funcionam, você percebe que transcenderam o formato. Como os quadrinhos,
que se transformaram em outra coisa, que não é exatamente uma forma literária,
nem uma representação visual, tampouco uma simples soma de ambas. É uma
forma diferente de narrar, com tantas possibilidades como qualquer outro meio
de expressão artística.

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AV – Gostaria que você citasse dois exemplos de álbuns que correspondem a


essa forma de narrar, como você bem de ne, um produzido na Espanha e outro
em outro país.

BMV – Um álbum ilustrado abarca várias formas diferentes de narrar,


considerando a maneira como se entrelaçam as ilustrações com o texto. Podem
harmonizar-se e ir, mais ou menos, na mesma direção, podem parecer duas
histórias diferentes que, ao entrelaçar-se, criam uma terceira história e inclusive
contradizer-se. Acho difícil dar exemplos precisos porque não existe um
arquétipo. O álbum El lazo rojo [O laço vermelho], de Antonio Ventura (Edicions
de Ponent, 2003), me parece um exemplo de como as imagens criam uma
narrativa que joga com o texto, acrescentando camadas de signi cado, de
maneira que a união das imagens e do texto não é gratuita. A história nal, o que
esse álbum conta, é a fusão de ambos e não se pode suprimir nenhuma das
duas coisas sem mudar o signi cado. Outro exemplo é The three pigs [Os três
porquinhos], David Wiesner (Clarion Books, 2001). É um caso totalmente extremo
porque leva o jogo entre palavras e imagens até um ponto em que se rompe a
estrutura narrativa e se constrói outra nova. Os protagonistas da história tomam
consciência precisamente da articulação entre palavras e imagens em um
álbum ilustrado e eles, como imagens, decidem ignorar o signi cado do texto.
Além disso, é uma história extremamente divertida, é um livro que deixa clara a
engrenagem de um álbum ilustrado. Uma história que não pode funcionar em
nenhum outro formato e que torna evidente que o álbum ilustrado é uma forma
particular de narração.

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El vampiro e otros cuentos (editora Anaya, 2008)

AV – Obrigado pela referência a O laço vermelho, mas é um álbum com o qual


me sinto muito pouco satisfeito, talvez porque as imagens que eu tinha na
cabeça não têm nada a ver com o que foi criado. Talvez por isso sou incapaz de
ver se texto e ilustração funcionam como você disse. Mas vamos falar um pouco
de sua obra. Sem falar de nenhum livro especi camente, gostaria que nos
dissesse, distanciando-se o máximo possível, quais são suas intenções na hora
de construir uma sequência de imagens.

BMV – Minha intenção, ao enfrentar qualquer trabalho, é que a inclusão das


imagens faça sentido. Que integrem a obra e não se limitem a adornar um texto.

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Em um conto ou novela ilustrada a entrada é mais sutil, se somam matizes, as


imagens criam algo como um ltro através do qual se contempla a história,
como um vitral. Mas no álbum ilustrado, como já falamos antes, as imagens têm
uma função diferente. Do meu ponto de vista, a única maneira de desenvolver
gra camente um álbum é criar uma narração paralela à trama principal. Por isso,
para um álbum, é imprescindível desenvolver primeiro um storyboard. Minha
intenção quando crio uma sequência para um álbum é desenvolver uma história
que não necessariamente coincida com a que desenvolve o texto. A narração é
dupla, e é no jogo entre essas duas narrações que reside a alma do álbum; de
tal forma que, quando estabeleço a sequência das  imagens, tenho diante dos
olhos todo o quadro criado, não só para o texto que aparecerá junto a cada uma
das ilustrações, mas o efeito conjunto que ambos produzirão.

AV – Em um álbum ilustrado, do meu ponto de vista, esse discurso grá co a que


você se refere supõe uma mudança no texto, por menor que seja. Quero dizer: o
ilustrador é o leitor privilegiado que enfrenta o texto antes do público e, de
alguma maneira, o modi ca, de tal modo que o escrito deixa de ser o que foi. Por
exemplo, em El pacto del bosque [O pacto do bosque, Gustavo Martín Garzo, El
Jinete Azul, 2010] sua intervenção propicia uma história que rede ne o conto.
Não sei se estou sendo claro …

BMV – Sim, perfeitamente. Falei disso antes quando falava do quão invasivas são
as imagens em um álbum. A mudança pode ser leve ou mudar drasticamente o
signi cado do texto. A melhor forma de abordar a criação de um álbum ilustrado
é entendê-lo de uma forma parecida com as histórias em quadrinhos. Isto é,
entender que o autor tem de escrever um texto e, por outro lado, construir um
roteiro grá co. No mundo dos quadrinhos há duas maneiras: ou bem o autor
escreve os diálogos e descreve brevemente o que deveria aparecer nas
imagens, ou descreve com precisão, de nindo número de  vinhetas, o tamanho,
a disposição, detalhando o que aparece em cada imagem. Naturalmente, isso só
pode ser feito por um autor com bom conhecimento da narrativa grá ca, o que,
em todo caso, não é o usual. De qualquer forma, histórias em quadrinhos e
álbuns não são a mesma coisa, pois o texto tem muito mais peso no álbum e,
trabalhando assim, o ilustrador pode sentir que lhe tiraram das mãos a parte
fundamental de seu trabalho, mas se o autor quiser ter um controle
praticamente total da história, essa seria a forma. Sinceramente, não aceitaria
trabalhar dessa maneira, porque a alma de uma ilustração é sua parte da
narrativa e me sentiria como um instrumento de desenho, não como uma
ilustradora, mas esta é outra questão. Quando se é o autor do texto e das
ilustrações, não há problema, o processo é bastante natural, pois se pode pensar
ao mesmo tempo em imagens e texto, inclusive e fundamentalmente em
imagens, porque nos casos em que autor e ilustrador são a mesma pessoa,
normalmente se trata de ilustradores que preferiram escrever seus próprios
textos e não de escritores que decidiram ilustrar. Quando se trata de duas
pessoas, o autor do texto deveria procurar alguém cujo mundo criativo de que
ele gosta coincidisse com o seu para estabelecer um pacto, colocar o texto em
suas mãos e con ar que o ilustrador saiba o que está fazendo, entendendo que
a obra nal não vai ser só seu texto ilustrado, mas outra história, melhor, pior,
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parecida ou não com a que ele queria contar, mas, em todo caso, diferente.
Ainda que nunca tenha visto o caso inverso, seria uma experiência interessante.
Ou seja, partir de uma série de ilustrações e passá-las a um escritor para que
realize essa segunda narrativa. Pessoalmente eu acharia bastante inquietante
fazer isso, de modo que compreendo a hesitação de um escritor ante a ideia de
dividir sua narrativa e compreendo que pode se sentir incomodado com o
resultado nal.

O pacto do bosque (editora Pulo do Gato)

AV – Não creio que, nesse caso, o escritor tenha se sentido incomodado com
seu trabalho, por mais que tenha destoado um pouco do texto. Gostaria, agora,
que me contasse um pouco de seu trabalho com o conto “Chapeuzinho
Vermelho”. Diria que a sua Chapeuzinho e a que criou Carmen Segovia, a quem
tive o prazer de editar, são duas representações, digamos, espanholas, que mais
me inquietam.

BMV – É um conto maravilhoso. É curioso, pois quando somos pequenos não


apreciamos a qualidade literária dos contos clássicos. Uma das melhores coisas
de ser ilustradora é que redescubro histórias que achava que já conhecia.
Chapeuzinho nem era meu conto favorito, mas quando terminei de ilustrá-lo,
houve algo que jamais me aconteceu com um texto: quis que me
encarregassem de fazer Chapeuzinho outra vez. Não porque não estivesse
satisfeita. Ao contrário. Estou muito contente com o resultado. Mas gostei de
ilustrar as Chapeuzinhos em sequência porque a história permite isso e, talvez,
mais. Havia mais Chapeuzinhos na minha cabeça quando terminei o trabalho e
gostaria de trazê-las para a luz algum dia. Quanto à natureza inquietante das
ilustrações, a maioria dos contos clássicos é muito inquietante. Há um fundo que
não foi domesticado devido ao que se criou e re nou em uma tradição oral de
séculos. É mais mitologia do que literatura. Na história de Chapeuzinho
Vermelho, concretamente, há uma escuridão terrível. As adaptações modernas
de Cinderela, por exemplo, podem dar lugar a comédias amáveis, porque suas
partes mais cruéis não são parte de sua essência, mas as histórias que inspiram
Chapeuzinho caem no campo do terror, porque a alma desta história é muito
escura. O medo é a chave deste conto. Embora acredite que as ilustrações

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permitam muitas liberdades em relação ao texto de uma obra, ainda mais uma
tão elaborada quanto Chapeuzinho, é necessário respeitar esse espírito.
No que diz respeito ao meu trabalho, não digo que houve um esforço consciente
para adaptar imagens à história. É algo mais orgânico que isso. Acredito que
qualquer leitor pode entendê-lo se perguntarmos a ele que sabor lhe ca na
boca depois de ler uma história. Não importa se com nal feliz ou não, todas as
histórias têm uma marca, que é o que recordamos quando pensamos nelas
depois de um tempo. No caso de  Chapeuzinho, a marca que ca é a da
inquietação, da ameaça. Sabemos que ela acaba bem, sabemos que o lobo
perde e que Chapeuzinho volta para casa, mas o que ca na memória é o medo,
do bosque, do monstro disfarçado.
Todas as imagens surgem dessa sensação. Logo vem toda a parte plástica, o  
planejamento das cenas, a aparência de Chapeuzinho e do Lobo, as cores,
en m, a realização das ilustrações. É precisamente essa parte plástica que
poderia ser totalmente diferente. Talvez algum dia eu desenhe outra versão de
Chapeuzinho, que tenha uma aparência diferente, mas nunca poderia desenhar
uma versão que não seja inquietante.

Caperucita Roja (editora Oxford, 2010)

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AV – E falando em inquietações, não posso deixar passar, seu trabalho que, para
mim, é o mais arriscado e, me perdoe a grandiloquência, fascinante. Me re ro à
sequencia de imagens de Birgit, o texto de Gudrun Mebs.

BMV – Na verdade, é também para mim um dos trabalhos que me trouxe mais
satisfação;  principalmente considerando o resultado nal, a edição impecável
da El Jinete Azul, em que a impressão das ilustrações foi trabalhada com uma
delicadeza que eu não tenho palavras para agradecer. Minha primeira ideia em
relação às ilustrações era muito menos arriscada. Birgit é uma novela e no início
eu a considerei como tal, tentando me aproximar de cada imagem
separadamente. Sabia que seriam oito imagens no total, então tentei imaginar
oito cenas, oito momentos diferentes. No entanto, quando comecei a ir por esse
caminho, percebi que não era o que a história pedia. A história de Birgit é muito
direta, muito linear, não é uma história que promove nenhuma virada, mudança
de cenários, ou situações diferentes. A beleza do texto é a sua simplicidade.
Uma menina narra a morte de sua irmã. Somente se ouve a voz da menina e só
se conhece o seu ponto de vista. Cheguei em um ponto onde pensei que só
tinha uma escolha: ou as imagens re etiam somente a menina narradora, ou
representavam Birgit. E a partir daí tudo uiu com certa rapidez. Se
representasse apenas a narradora, o ponto de vista grá co seria oposto ao texto,
de certa maneira as imagens te colocariam para fora da história, pois o narrador
seria visto de fora. Portanto quem tinha aparecer era Birgit; mas Birgit, a menina
doente, na realidade só aparece realmente na história. O que está realmente
presente são os pensamentos sobre ela, sobre o que a doença pode estar
fazendo nela. Os pensamentos quase mágicos de uma criança pequena que
tenta imaginar, traduzir o que os adultos contam para poder entender. Acho que
foi isso que me levou à sequência de imagens que resultaram no nal. Nunca
tinha feito nada parecido.

Íris (editora Pulo do Gato)


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Nunca tinha pensado criar uma sequência tão consistentemente para uma
novela, mas assim que tive a ideia de que as imagens tinham que representar
um processo, soube que a sequência tinha que ser muito precisa. O resultado
nal é bom porque foi a história que me conduziu até ali. E é curioso, porque
esteticamente pode parecer o contrário. Assim que eu tive a idéia da sequência,
a abordagem grá ca que me veio não era nada realista. É evidente que as
ilustrações são simbólicas, mas me parecia que equilibravam muito bem o
realismo do texto e também sugeriam o ponto de vista de uma menina tentando
descobrir um processo tão perturbador, cujas consequências só pode intuir. Este
é, em linhas gerais, o caminho mental que levou às imagens de Birgit. Porém,
quando cheguei a essa solução relutei um pouco na hora de fazer a proposta,
pois me parecia que eu tinha me afastado muito do que se poderia esperar
quando te dão um texto como o que eu tinha, e porque não tinha certeza de
poder explicar coerentemente por que queria ir por esse caminho. A única forma
que me ocorreu para explicar o que eu queria fazer era mostrar, e já que era
uma sequência, fazer ela completa. De tal maneira que no m mandei as oito
ilustrações nalizadas, se bem me lembro; e a recepção positiva e a
compreensão do que eu queria fazer foi uma das maiores satisfações
pro ssionais que já tive. Na verdade, este é o tipo de trabalho que depende
inteiramente do editor para quem você está trabalhando, não pelas possíveis
objeções, mas porque, se estivesse trabalhando para alguém em quem não
tivesse tanta con ança, eu não teria sugerido essa proposta grá ca.

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Ilustração para El norte de Castilla

AV – Para terminar, quais são teus projetos futuros nos quais você já está
trabalhando?

BMV – Neste momento estou terminando um livro de imagens. É um projeto


baseado nos contos de fadas clássicos. O texto é meu e não foi feito sob
encomenda para nenhuma editora. Trata-se de um projeto absolutamente
pessoal. Era algo que eu precisava fazer, depois de trabalhar tanto com textos
de outros autores. Consiste numa série de imagens, cada uma das quais se
apoia em um texto muito curto. Este texto de ne o conceito de cada imagem,
lhe dá uma interpretação e completa seu signi cado. O título provisório é O livro
das perguntas. Cada ilustração é uma pintura a óleo, de modo que o processo
de realização foi longo e bastante complicado, mas agora que está quase
nalizado, acho que valeu a pena apostar nessa técnica. Por outro lado, colaboro
regularmente com o escritor Gustavo Martín Garzo, ilustrando seus artigos para
o jornal El Norte de Castilla; são quase dois anos de colaboração e começo a

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considerá-lo como um projeto de desenvolvimento contínuo. Para o próximo


ano tenho sobre a mesa de trabalho um romance, Drácula. Uma obra como esta
é uma oportunidade incrível para qualquer ilustrador. Acho que já me referi que
é necessário apropriar-se das histórias para ilustrá-las. Você as lê, se apropria
delas e quando assimiladas, você pega as imagens que surgem e as põe no
papel. É como semear textos para colher imagens. Raramente você tem a
oportunidade de fazer isso com uma obra tão importante como Drácula. Estou
ansiosa para ver como começam a se materializar as imagens. Finalmente, algo
que eu quero continuar fazendo é trabalhar em projetos pessoais. Para o outro
ano, minha intenção é fazer pelo menos mais um livro ilustrado. É um formato de
livro que pelo qual estou fascinada e gostaria de continuar explorando as
possibilidades que oferece.

Os últimos lançamentos da autora ilustradora

             

Editora Thule

Entrevista publicada originalmente na Revista Babar, em 9/12/2011, atualizado


em abril 2017.

www.beavidal.com | beatrizmartinvidal.blogspot.com

TRADUÇÃO: THAIS ALBIERI

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