Você está na página 1de 3

polêmica

Judicialização da saúde
cresce como bola de neve
Processos por falta de cobertura do SUS agravam ainda
mais os problemas dos cofres públicos; cifras são milionárias
Bruna Cenço conhecida a prática, é um tema po- saúde de bem comum para financiar

A
lêmico. Se, por um lado, o Ministério tratamentos para alguns poucos. O
cada ano aumenta expo- da Saúde não tem recursos suficien- governo argumenta que muitos dos
nencialmente o número tes para bancar todo esse custo, por remédios requisitados possuem pre-
de ações judiciais contra o outro, o acesso à saúde é um direito ços abusivos e também que a maio-
governo a fim de que pacientes con- constitucional. “Até a Constituição ria dos lançados mais recentemente
sigam remédios e procedimentos de 1988, que estabeleceu a saúde não tem eficácia comprovada ou
pelo Sistema Único de Saúde (SUS). como um direito de todos e um dever registro na Agência Nacional de Vi-
De acordo com a Advocacia Geral do Estado, havia poucos processos, gilância Sanitária (Anvisa).
da União, foi de R$ 2,4 milhões, em alegando o princípio da dignidade; De acordo com o Ministério da Saú-
2005, o valor gasto pelo Estado com o artigo 196 deu argumentos para de, 60% das ações judiciais poderiam
os chamados “medicamentos de alto esse aumento do número de ações”, ser resolvidas com produtos simila-
custo”, aqueles cujo fornecimento diz Vidal Serrano, procurador de Jus- res, disponíveis pelo SUS, enquanto
não é padronizado ou que estejam tiça, professor de Direito da Pontifí- os outros 40% são os chamados “de
em falta no estoque público. No ano cia Universidade Católica (PUC) de última geração”, e, por isso, muitos
passado, essa quantia, que já havia São Paulo e presidente do Conselho ainda não estão registrados no país.
subido para R$ 52 milhões em 2008, Diretor do Instituto Brasileiro de De- Os dados, entretanto, são contesta-
chegou aos incríveis R$ 95 milhões, fesa do Consumidor (Idec). dos por alguns especialistas, segun-
verba não prevista no orçamento e Apesar do embasamento teórico, do os quais o número de processos
que dificulta ainda mais o alcance da existem questionamentos de diver- desnecessários é irrelevante. “A cada
salubridade econômica do setor. sos setores sobre o quão justo é reti- mil casos, um ou dois consistem
A judicialização da saúde, como é rar recursos que seriam investidos na em exageros”, argumenta Serrano,
polêmica

namentais. É de ressaltar que os pri- esse, o Judiciário recebe muitas críti-

Fotos: Osmar Bustos


meiros pedidos de liminares vieram cas, mas tem agido corretamente. Se
junto com o aparecimento do HIV. a função do Estado é dar o medica-
“Essas ações pressionaram o gover- mento e existe laudo médico confiá-
no, que, por fim, passou a distribuir os vel atestando que o paciente precisa
antirretrovirais gratuitamente”, con- dele, não há que ter dúvida. Não se
ta Serrano, lembrando que já havia pode falar da questão orçamentária”,
discussões semelhantes às de hoje argumenta Vidal Serrano, para quem
sobre a legitimidade do pagamento. o setor funciona quase como uma
“Autoridades estatais da época criti- “tábua dos afogados”, dada a urgên-
cavam que a Aids era doença da clas- cia da maioria dos processos.
se alta, já que os primeiros infectados “Se dois medicamentos têm efei-
a contraíram no exterior.” tos semelhantes, mas um apresenta
reações adversas extremamente su-
Contra abusos periores às do outro, seria desuma-
A fim de diminuir a quantidade de no fazer o paciente sofrer mais por
“Normalmente, processos, o governo divulgou, em questões financeiras”, justifica Bisol.
juízes não possuem maio, decisão de atualizar todo ano
a lista de medicamentos fornecidos
O diretor adjunto de Comunicação
da APM, Leonardo da Silva, lembra
conhecimento pelo SUS. Assim, espera diminuir os que a eventual economia com a res-

técnico para decidir gastos em processos, envio de me-


dicamentos e possivelmente conse-
trição de tratamentos considera-

se determinado guir melhor negociação com labora-


tórios. “Temos um sistema judicial
procedimento praticamente esfolado e essa ava-
apresenta resultados lanche de recursos traz um trabalho
ainda maior”, comenta o promotor
satisfatórios” de Justiça do Ministério Público do
Álvaro Atallah Distrito Federal e Territórios e titular
da 1ª Promotoria de Justiça de Defe-
sa dos Direitos da Saúde, Jairo Bisol.
acrescentando que, na maioria das Outra medida partiu do próprio
vezes, os pedidos referem-se a me- Judiciário, com a recente publicação
dicamentos comuns, principalmente da Recomendação 31 pelo Conselho
de quimioterapia, não disponíveis no Nacional de Justiça (CNJ), sugerindo
estoque dos hospitais. mais prudência em relação à judicia-
Os casos de câncer são os que lização da saúde. Em abril, o mesmo
mais têm desencadeado processos CNJ aprovou a criação do Fórum Na-
ultimamente. Isso por causa dos
altos preços dos remédios importa-
cional do Judiciário, cuja função é mo-
nitorar e ajudar nas demandas relati-
“Temos um
dos. “Além de caros, muitos são no- vas à assistência à saúde, em especial sistema judicial
vos e de eficácia discutível, o que faz ao fornecimento de remédios e servi-
planos de saúde e SUS se recusarem ços. O Fórum, cujo primeiro encontro praticamente
a custear a aquisição. Os pacientes, será em agosto, terá a presença de esfolado e essa
então, buscam o Judiciário”, resu- magistrados, especializados ou não,
me o desembargador, presidente que tratem de temas relacionados à avalanche
da Associação dos Magistrados do
Paraná e membro da Comissão Na-
saúde, além de autoridades e espe-
cialistas no tema da judicialização.
de recursos
cional de Revisão do Código de Éti- Na maioria das vezes, os magis- traz um trabalho
ca Médica, Miguel Kfouri Neto. trados decidem em prol do paciente,
Historicamente, a judicialização sob o argumento da intangibilidade
ainda maior”
tem servido para criar políticas gover- da vida humana. “Num cenário como Jairo Bisol

 REVISTA DA APM – Julho DE 2010


de que seja seguro, não há por lecimento de prioridades. “Desenvol-
que recomendá-lo”, explica. ver campanhas preventivas e em prol
Atallah, professor titular e da qualidade de vida, além de propor-
chefe da disciplina de Urgên- cionar um bom atendimento médico,
cia e Medicina Baseada em não só nos programas de saúde da
Evidências da Unifesp, espe- família, como também em especia-
ra que a cartilha, cujo uso foi lidades médicas, são de extrema im-
incentivado pelos juristas, portância”, continua Kfouri Neto.
seja um instrumento a mais Por fim, a consagração de um mo-
também para os pacientes, delo que privilegie a saúde preven-
que não têm conhecimen- tiva, em vez de hospitalocêntrico, é
to necessário para escolher defendida por Bisol, para quem o não
entre um ou outro proce- cumprimento da política pública pe-
dimento. “Hoje há mais de los governos que vieram após a nova
seis mil estudos no site do Constituição é a principal causa da ju-
Cochrane, que podem ser dicialização. “Ainda que deficitário, o
acessados gratuitamente. SUS provocou uma revolução nos ín-
Só falta decidir quais ou- dices de saúde pública do país inteiro
tros devem ser resumidos e provou que esse é o caminho perfei-
e incorporados à cartilha”, to. Os governos precisam de coragem
finaliza o professor. para assumi-lo plenamente.”
dos onerosos, além de prejudicar o O material, baseado em litera-
paciente, pode ter efeito contrário. tura científica, é um auxílio para a
“Por conta das prováveis complica- tomada de decisão, principalmente
ções daquele quadro de saúde, o Es- quando houver divergências entre
tado gasta ainda mais.” os profissionais de medicina consul-
Já Kfouri pondera que é preciso tados. “Os próprios médicos podem
agir com bom senso e cautela. “Os ter opiniões diferentes sobre deter-
recursos, tanto dos planos de saúde, minados casos. A existência de uma
quanto do poder público, são limita- comissão isenta, de cunho estrita-
dos. Não existe milagre.” mente científico, para subsidiar o Ju-
Do lado dos médicos, o Centro Co- diciário nesses conflitos, seria opor-
chrane do Brasil, juntamente com tuna”, propõe Miguel Kfouri Neto.
representantes do sistema judiciário “Mas esse acatamento deve princi-
e professores da Universidade Fede- piar pelos tribunais superiores.”
ral de São Paulo (Unifesp), criou a
cartilha “Apoio Médico e Científico Subfinanciamento
ao Judiciário” especialmente para A falta de recursos para atender
auxiliar as determinações na área de
saúde. Segundo o diretor científico
aos princípios de universalidade, inte-
gralidade e equidade do SUS é, una-
“Além de caros,
da Associação Paulista de Medicina nimemente, a questão-chave desse muitos remédios
(APM), Álvaro Atallah, também dire- debate, na opinião dos especialistas.
tor do Cochrane, o material apresen- “Colocar mais medicamentos na importados são
ta, de maneira simples e resumida, lista do SUS ajuda, mas não aca- novos e de eficácia
os principais estudos sobre técnicas ba com o problema. Mesmo os que
e procedimentos. “Normalmente, constam hoje não são fornecidos em discutível, o que faz
juízes não possuem conhecimento
técnico para decidir se determinado
quantidade adequada”, diz Serrano,
segundo o qual “as ações judiciais
planos de saúde e
procedimento apresenta resultados são necessárias até que se tenha SUS se recusarem
realmente satisfatórios. Se, ao final uma sensibilização de que a saúde
da análise, não houver evidências precisa de mais investimentos”.
a custeá-los”
de que o procedimento funciona ou Outra questão refere-se ao estabe- Miguel Kfouri Neto

Você também pode gostar