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Sob a marca do Dragão

Enquanto avançava pela vila, o dragão que tinha gravado no seu pescoço e face direita
latejava-lhe na pele escondida pelo capuz das suas vestes em tons de branco e cinzento. A sua
experiência dizia-lhe que outro dragão estava por perto, mas quem? Ele tinha conhecido dois,
mas já nenhum deles se encontrava presente na sua vida. No entanto, este latejar tinha um
quê de diferente. Estava curioso. Olhava em volta enquanto passava por uma venda de fruta.
Havia demasiada gente na praça principal da vila. Ninguém em especial lhe atraía a atenção e
ele também não queria dar nas vistas. Naqueles tempos em que a nova fé proliferava, quem
apresentasse marcas e celebrasse rituais da antiga tradição, arriscava-se à tortura e, por vezes,
mesmo à fogueira. A sua marca do dragão era mágica e tinha aprendido a escondê-la com
artifícios mágicos, revelando-a apenas quando desejasse. Teria o outro dragão ali na praça
aprendido a mesma artimanha?

Ele não ligava à magia que se dizia correr-lhe no sangue, embora não tivesse forma de a negar.
Nos seus vinte e quatro anos de vida a magia tinha sido sempre para si uma evidência. No
entanto, não servia ou praticava a Arte. Não mais do que lhe aprouvesse. E quem lhe pagasse,
receberia a sua atenção e os seus préstimos de igual forma, professasse a nova ou a antiga fé.

Decidira deixar a procura pelo dragão para um outro momento com menos movimento em
volta. Rafael procurava informações do paradeiro da sua mais recente tarefa; tinha um novo
trabalho encomendado em mãos. Uma história de vingança familiar tinha-o levado a um
aprendizado de ódio, violência e a uma vida em que vendia o crime e a morte a soldo. Seguia
as pisadas dos homens da sua família. Todos eles serviam a irmandade. Considerava que se as
pessoas têm um caminho a percorrer na vida, aquele era o seu. Viviam-se tempos
tumultuosos, em que a luta pelo poder entre uns e outros se tornava cada vez mais declarada.
Aqueles que como ele serviam a irmandade com as armas, faziam-no cada vez menos para
proteger os que a integravam das barbáries dos povos nómadas, assim como os
conhecimentos que professavam de outras irmandades e da igreja, e cada vez mais para servir
interesses pouco espirituais.

A irmandade do amparo vestia-se com a roupagem do catolicismo, garantindo a sua


autonomia e alguma segurança. No entanto, o seu objectivo último era preservar o
conhecimento dos antigos, face à proliferação de novos costumes e leis impostos pela igreja.
Rafael sentia-se em sintonia com o ideal, mas pensava que, à semelhança de outras
irmandades, os seus membros se deixavam corromper por aquilo que representava e
conseguia a sua independência da lei local. O avô paterno, que não conhecera, havia jurado
lealdade à irmandade e adoptado os seus ideais desde a sua formação. A traição de um
companheiro levara-o à morte, que os seus três filhos juraram vingar, mas essa era uma
história que ele não gostava de lembrar, ou pelo menos o que conhecia dela. Todos eles
serviram a irmandade. O seu pai e um tio, mais novo que este, haviam no entanto se desviado
um pouco destes ideais. Deixando-se levar pelo ódio e o sentimento de vingança, pareciam ter
colocado em questão qualquer tipo de lealdade, vendendo as suas aptidões para o ofício a
quem pagasse bem por elas. Procuravam nos prazeres da vida que os seus feitos lhes
permitiam comprar, aquilo que não tinham obtido com os seus actos de vingança: paz de
espírito!

Rafael, no entanto, aceitava apenas os trabalhos que considerasse serem justos. Considerava-o
uma questão de honra! Os tempos eram outros e ele dedicava à irmandade uma obediência
que não era cega. Se a situação o pedisse, não hesitava em agir contra esta, desde que o ideal
de quem o contratasse lhe parecesse mais nobre. Uma espada de dois gumes com que
procurava lidar com o maior dos cuidados. Ainda assim, apesar da corrupção que muitas vezes
testemunhava e as tarefas que lhe eram entregues e considerava pouco coerentes com o que
era defendido pela antiga tradição, não deixava de servir a irmandade. Quanto mais não fosse
por carregar a marca do dragão. Na formação desta e para proteger a informação de tudo o
que estava para vir no mundo dos homens, os deuses, a seu pedido, concederam-lhes uma
protecção especial: o poder do dragão. Este foi distribuído em seis partes e por seis homens,
cada um deles possuindo o poder de um dragão. Eram estes os dragões: da água, da terra, do
fogo, do ar, do sol e da lua. Cada um destes homens, que havia demonstrado a sua lealdade á
irmandade, continha em si a magia e sabedoria do seu dragão, representado na sua pele de
uma forma mágica, legado que era continuado através do filho varão. A magia que Rafael
transportava em si era a do dragão do sol.

Um vislumbre de quem procurava levou a sua atenção dos seus pensamentos. Tinha acabado
de passar por si o homem que o levaria a quem havia escutado o que não devia. Deveria segui-
lo. Não podia arriscar perder-lhe o rasto, pois levá-lo-ia a quem poderia expôr os reais
propósitos da Irmandade do Amparo. Procurava segui-lo de longe, mas a quantidade de
pessoas que se encontrava na praça àquela hora do dia, obrigava-o a aproximar-se mais do
que gostaria. O homem que seguia olhava em volta e pareceu-lhe desconfiado, olhando para
trás por diversas vezes. Numa delas, teve de desviar-se para uma rua que saía da praça para
não dar demasiado nas vistas. Viu que, um pouco mais à frente, uma escada encostada
proporcionava um acesso fortuito ao telhado de uma casa, ao qual subiu num ápice. Preferiu
aquele ponto de vista previligiado. Foi seguindo os seus passos por cima dos telhados, vendo-
se forçado a saltar sempre que uma rua se atravessava no meio. Parecia-lhe que o homem já
não olhava para trás com tanta insistência. Parecia-lhe certo de que ninguém o seguia. Mais à
frente, viu-o parar junto ao ferreiro, olhou em volta e, calmamente, entrou na rua ao lado. Era
uma pequena rua sem movimento, onde um homem parecia aguardá-lo. Rafael estava logo
acima deles e, não havendo ninguém por perto, podia facilmente ouvir o que diziam.

- Mensageiro?

- Sim.

- Preciso que uma missiva chegue com urgência à aldeia de Cabo. Que nada se atravesse no
teu caminho. Ela deve chegar ao seu destino.

- E quanto vale essa entrega?


- Um saco de moedas. – disse, soltando uma bolsa da sua cintura e atirando-a na direcção do
outro.

O mensageiro abriu a bolsa, olhou para esta e de novo para o outro homem.

- Disseram-me que podia confiar que seria entregue.

- E será.

- Óptimo! Deverá ser entregue ao padre Carlos, no templo de Santa Catarina. – disse
entregando-lhe uma carta.

O outro anuiu e guardou-a, juntamente com a bolsa.

Era definitivamente ele. Não podia deixar aquela mensagem ser entregue, nem perder o seu
emissor de vista, pelo que tinha de agir de imediato. Olhou em volta. Ninguém por perto.
Saltou do telhado para uma carroça que estava um pouco mais à frente e daí para o chão. Ao
ouvir algo, os dois homens olharam na sua direcção. Viram-no aproximar-se e pareciam não
perceber de onde ele tinha saído. Ao vê-lo, o emissor da mensagem soube de alguma forma
que ele era um enviado da irmandade. Precipitou-se na direcção oposta, mas Rafael já o tinha
alcançado e desferiu um golpe de espada deixando-o prostrado no chão. O outro homem
correu para alcançar a rua principal, que levava à praça, mas um punhal certeiro apanhou-o
antes de o conseguir. O homem nada parecia saber sobre o assunto, mas para além de não
poder deixar aquela carta seguir caminho, tinha o cauteloso hábito de não deixar
testemunhas. Rafael apressou-se a chegar até ao mensageiro. Guardou a carta e a bolsa e
arrastou o corpo para junto do outro. Tudo continuava calmo em volta. Lembrava-se de ter
visto guardas não muito longe dali. Seria uma questão de tempo até os encontrarem. Tinha de
sair dali. Colocou de novo o capuz sobre a cabeça, voltou à rua principal e misturou-se no meio
dos aldeões.

A sua tatuagem começou a latejar de novo. Pensou que fora algures por ali que a sentira
anteriormente. Olhou em volta. Pareceu-lhe que o seu dragão o levava em direcção à venda.
Parou para observar a rapariga que arranjava a fruta na banca. Algo nela lhe chamava a
atenção. Ficou atento. Era uma jovem bonita, morena, que aparentava ter quase vinte anos. O
seu olhar descansou, então, nas suas mãos. Do seu pulso esquerdo parecia-lhe sair uma garra,
brilhando, escondida por baixo de um largo punho em pele. Ele chegou perto, agarrou-lhe a
mão, virando-a ligeiramente e empurrando com os dedos a pele que lhe cobria o antebraço.
Apanhada desprevenida, ela não conseguiu evitá-lo. A sua mão direita foi em auxílio da outra,
segurando no pulso e procurando esconder a sua marca. Mas ele já tinha visto parte do que
queria; era um dragão. No entanto, o punho de cabedal não permitira ver se igual ao seu.
Continuou a segurar aquela mão, olhando a rapariga, procurando descortinar algo. Ela
percebeu com aflição que ele tinha visto a sua marca.

- Qual é o teu nome? – o estranho perguntou.

- Diana, mas... por favor, senhor...! – o seu olhar suplicava que ele não revelasse o seu segredo.
O facto de ele usar armas à vista não lhe parecia bom augúrio.
Ele olhava-a fixamente, usando as suas aprendizagens para captar o que ia pela mente dela.

- ... por favor, senhor! – suplicava ela.

Percebendo a imagem do seu receio, ele libertou a sua mão, que ela escondeu de imediato, ele
colocou o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio e virou um pouco a face, passando o dedo
pelo rebordo do capuz. O gesto foi subtil, mas suficiente para permitir antever a sua face
tatuada.

Ele também tinha uma marca, pensou ela. O seu queixo descaiu com a surpresa e a
curiosidade suplantou o receio de ser acusada de bruxaria. Ela levantou a mão com a intenção
de afastar o seu capuz e ver melhor aquela marca. Ele percebeu e segurou-a a meio caminho.
Tirou uma moeda da bolsa que tinha à cintura, colocando-a na mão da rapariga. E ao mesmo
tempo que a libertava, pegava numa maçã para levar,afastando-se então.

- Senhor...!

Ele não parou e ela não quis chamar a atenção sobre si ou sobre ele, já que ambos pareciam
carregar aquilo que muitas vezes considerava como uma maldição. Ela pensou que a sua
marca podia ser escondida com a roupa, mas a dele... Para ele devia ser mesmo uma maldição
carregá-la! O latejar da pele debaixo do seu dragão afastou-a daqueles pensamentos, levando-
a a ajeitar o punho de pele e a olhar em volta.

A morte dos seus pais, da qual pouco sabia devido à sua tenra idade, levara-a a um início de
vida numa casa que a acolhera junto a outros órfãos. Na sua adolescência, voltou a perder a
figura materna, acometida por uma doença que lhe fora mortal. Lutando com dificuldades,
fazia o que podia para seguir a sua vida em frente e procurava sempre fazê-lo com um sorriso.
Vendia fruta na praça da vila para ajudar a levar comida para casa, onde vivia com o seu pai de
acolhimento e mais dois irmãos de criação, um rapaz e uma rapariga; ele mais velho e ela mais
nova do que Diana. Da sua marca também nada sabia, apenas que era algo de família.

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Autoria de: Sofia Morgado

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