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Coloquio internacional

Patrimonio cultural y territorio


actas en el Valle del Duero
Zamora, 28, 29 y 30 de marzo de 2007
La colección DOCUMENTOS PAHIS está integrada por las publicaciones promovidas
por la Dirección General de Patrimonio Cultural de la Consejería de Cultura y Turismo
en las que se recopila las líneas estratégicas, los programas y acciones desarrollados sobre
el patrimonio cultural de Castilla y León de acuerdo con las previsiones establecidas en
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vir de difusión y de reflexión de las intervenciones, de las metodologías empleadas y de
las previsiones sobre los bienes culturales en sus diferentes aspectos y tipologías.
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cada uno de los autores, a quienes corresponde su propiedad intelectual.

© 2010, de esta edición


JUNTA DE CASTILLA Y LEÓN
Consejería de Cultura y Turismo
© De textos e imágenes los autores

I.S.B.N.: 978-84-9718-557-8
D. L.: S.740-2010.
Imprime: Gráficas Varona
Diseño y arte final: dDC, Diseño y Comunicación
Coordinación: Milagros Burón Álvarez y Miguel C. Areosa Rodrigues
Actas Coloquio Internacional
“Patrimonio Cultural y Territorio
en el Valle del Duero”

II. Nuevas formas de explotación


y control del territorio:
monasterios y fortificaciones
Actas Coloquio Internacional “Patrimonio Cultural y Territorio en el Valle del Duero”, 2010. Págs. 257/276

TRÁS-OS-MONTES E O ALTO DOURO:


DA DEFINIÇÃO DO TERRITÓRIO DA MONARQUIA PORTUGUESA
NA IDADE MÉDIA À SECUNDARIZAÇÃO DE UM ESPAÇO REGIONAL

Paulo Dordio Gomes

Na documentação do século X relacionada com o avanço costas à faixa litoral, estavam territórios estranhos, não
cristão para Sul realizado a partir do reinado de Afonso III integrados e que os documentos ignoram.
de Leão (866-910), identifica-se um limite que separa, no Na verdade, o intransponível penedo granítico do
troço do vale do Douro mais tarde português, duas áreas de Cachão da Valeira, mergulhando no Douro junto a S. João
relação. Do lado litoral, o movimento de progressão é pro- da Pesqueira, modelou durante séculos duas áreas de relação.
tagonizado com grande autonomia pelos Condes Galego- Obstáculo à navegação até quase ao final do século XVIII,
Portugueses que, ultrapassando o rio, seguem o eixo definia limites à circulação dos homens e dos bens cuja
meridiano e atingem Coimbra (878). Outro movimento penetração para o interior era facilitada pelo rio2. O Douro,
paralelo, mais directamente conduzido pelo rei de Leão, a jusante de S. João da Pesqueira, articula o Norte e o Sul
progride a Este, na Meseta, também ultrapassando o numa mesma direcção, rio abaixo, que procura a integração
Douro. Com a vitória de Ramiro II em Simancas (939) na teia de relações dos homens das terras da faixa litoral.
contra o Califa de Córdova foi possível iniciar o repovoa- Para montante, as relações que os homens procuraram
mento cristão de Salamanca e Ledesma sobre o Rio Tor- tomam outras direcções. O litoral estava já demasiado longe.
mes, afluente do Douro pelo Sul. Entre estes dois Sobre a borda da Meseta, um antigo eixo meridiano, articu-
movimentos de progressão meridional ficou uma região lando os planaltos do Norte, polarizados em torno de Leão,
intermédia, drenada a Sul pelas bacias do Côa, do Àgueda Astorga e Salamanca, e as planícies da Andaluzia ocidental,
e do Huesca, que tardava em cair sob controlo do poder com a antiga cidade de Mérida à cabeça, estruturava uma
cristão. O conhecido testamento da Condessa galaico-por- outra teia de relações. Era na sua direcção que, mais facil-
tuguesa D. Châmoa Rodrigues, datado de 960, situa o mente, as terras do Douro Superior se orientavam, voltando
limite Este da progressão litoral em Numão, Longroiva, as costas ao litoral. A periferia formada entre aquelas duas
Penedono, Moreira de Rei, Trancoso, Caria, Sernancelhe e áreas de relação ofereceu aos poderes em expansão o espaço
outras povoações fortificadas que eram sua herança e aí incerto de uma fronteira.
havia feito repovoar, designando-o por strematura1. As pos- O mapa elaborado por Paulo Merêa e Amorim Girão em
sessões da condessa D. Châmoa, localizadas já no extremo 1943, intitulado “Territórios portugueses no século XI” con-
do território de expansão natural dos Condes, definem duz-nos à delimitação do espaço abrangido, nas palavras dos
aquele limite segundo uma linha de sentido meridiano que autores, “pelos documentos dos nossos arquivos” (Merêa e
cruzava o Douro na zona de S. João da Pesqueira e do Girão 1943, 5). Fica desde logo estabelecido o carácter lito-
Cachão da Valeira. Mais além, voltando cada vez mais as ral daquela memória escrita, preservada nos cartórios dos

1 ... cum alias penellas et populaturas que sunt in ipsa stremadura (PMH, DC 97).
2 ... as barquas que naveguão por este rio do Douro acima aatee São Joam da Pesqueira que he o mays que por elle se navega em tempo d’emchentes d’au-
goa que são desta cidade [do Porto] vynte e tres leguoas Doc. nº 3 de 1545 in DUARTE e BARROS 1997, 115.

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Paulo Dordio Gomes

Mapa 1. Portugal nos séculos IX e X (Fundações monásticas segundo MAT- Mapa 2. Portugal no século XI e 1ª metade do XII (Domínios de Egas Moniz
TOSO 1985: II, 235, Mapa 10; Castros e Castelos segundo BEIRANTE e Fundações monásticas segundo MATTOSO 1985: II, 234, Mapa 9 e 235,
1993: 267, Mapa 17). Mapa 10; Territórios portugueses segundo BEIRANTE 1993: 269, Mapa 87).

A expansão da área “portuguesa” e a formação de Portugal. O Mapa 1 mostra de Leão. No Mapa 2, a expansão portucalense integra já as áreas de Viseu, de
o núcleo original portucalense (sécs. IX-X) confrontando a Sul com os territórios de Coimbra e o Alto Minho. O grupo dos infanções, favorecido pelas reformas de Fer-
Viseu e de Coimbra. As penelas e populaturas referidas no testamento da condessa nando Magno, rei de Leão e Castela, derrota a elite dominante anterior constituída
portucalense D. Châmoa de 960 marcam os limites e a periferia a Este. Os Burgos pelas famílias condais e faz alastrar a senhorialização constituindo novos domínios
ou Portus, localizados sobre os principais eixos de relação com o exterior, contro- e fundando uma miríade de mosteiros. Nesta “sopa” originária emerge uma lide-
lam as trocas de um comércio ainda e apenas baseado em itens de prestígio para rança com ambições supra regionais, o Conde D. Henrique e depois, mais clara-
as elites, por vezes de origem distante, e sobre o qual as cidades do Sul Islâmico mente, seu filho D. Afonso Henriques. O Mapa 3 exibe uma ilustração gráfica do
exercem todo o seu fascínio. O tecido social condiciona uma organização territo- que poderá entender-se como o Reino de Portugal na fase embrionária correspon-
rial particular em que comunidades rurais de villae tecem laços de grupo sob a dente à época de D. Afonso Henriques e de Sancho I: áreas de domínio mais
égide de um reduto fortificado, o castrum. Mais a Sul e a Este, os redutos fortifica- intenso e contínuo, trajectos do poder régio e pontos indicando comunidades que,
dos são designados por castella, indiciando outras formas de ordenamento social e através da concessão de uma carta de foral, firmaram uma aliança com aquele poder
territorial. O grupo dominante das famílias condais desenvolve uma estratégia régio reconhecendo-o como superior.
social mais cosmopolita do que regional, fortemente implicada na política da corte

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NA IDADE MÉDIA À SECUNDARIZAÇÃO DE UM ESPAÇO REGIONAL

naquele mapa, entre os territórios mais arcaicos das civitas


com os emergentes das terras, cuja organização se estabelece
ao longo da 2ª metade do século XI após as reformas imple-
mentadas por Fernando o Magno e a afirmação da nobreza
dos infanções3, fica evidenciada a ausência da região interior
nos registos escritos de posse de que os poderes supra locais
faziam uso. O mesmo mapa seria retomado por Maria
Ângela Beirante na síntese publicada em 1993 sobre o Portu-
gal da reconquista cristã entre os séculos IX e XI4. O comentário
de desalento que redige, reequaciona aquela delimitação
entre o espaço conhecido e o deserto da escrita: “(…) esquema-
ticamente, poderíamos dizer que o território actualmente
português se repartia entre cristãos e muçulmanos por uma
fronteira que, nos finais do século XI, chegava até ao Tejo.
Mas esta divisão parece demasiado simplista. Na realidade,
os documentos dão-nos a conhecer, ainda que com algumas
lacunas, a história de um espaço geográfico que correspon-
dia, grosso modo, às actuais províncias do Minho, Douro e
Beira Litoral, parte de Trás-os-Montes, da Beira Alta e da
Estremadura. Em termos de conhecimento histórico, a faixa
interior de Trás-os-Montes e das Beiras permanece pratica-
mente na sombra. O que se passaria com estas zonas?
Seriam verdadeiramente terras de ninguém? Estariam habi-
tadas por uma população diminuta ou apenas desorgani-
zada? Por ora temos de nos conformar com o silêncio das
fontes e não ultrapassaremos o terreno das conjecturas”
(BEIRANTE, 1993, 255).
Mapa 3. Portugal na 2ª metade do século XII e inícios do XIII (Itinerários
do Rei D. Sancho I (1174-1211) segundo MATTOSO 1985: II, 245, Este tema da opacidade da escrita foi recentemente
Mapa 18; Cartas de Foral atribuídas entre 1160 e 1210 segundo MAT- objecto de nova atenção por Iñaki Martín Viso. Partindo da
TOSO 1993: 100). conceptualização da ideia de fronteira como região ou área
situada na periferia dos poderes centrais contrapõe à
impressão que se colhe do carácter da documentação escrita,
mosteiros da região, desde a origem intimamente relaciona- de se estar diante de um vazio demográfico, a figura de uma
dos com os poderes regionais, sejam eles da nobreza condal distorção “producida por la ausência de elementos que
(imperante até à 1ª metade do século XI) ou os da nova detecten el poder central” (MARTÍN VISO, 2005, 92). A
nobreza dos infanções. Na sombra, jaz toda a área interior, invisibilidade que a região interior localizada ao Norte do
ausente da memória escrita e dos cartórios daqueles poderes Sistema Central patenteia, durante o período alto-medieval,
dominantes (Mapas 1 a 3). À parte o problema da confusão, corresponderia à inexistência de uma autoridade centralizada

3 Ver BARROCA 1990 – 91, 115-118 que publica no Quadro 1 uma listagem onde regista a primeira referência documental a cada um dos territórios medie-
vais portugueses com datas até fins do século XI.
4 BEIRANTE 1993, 269, Mapa 18, Territórios “portugueses” (séculos IX-XI), limites prováveis.

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Paulo Dordio Gomes

que dominasse o território, situação, nalgumas áreas, apenas O limite Este do solar da coroa
alterada já no século XII com as dinâmicas de repovoamento
que as integrariam nas novas formações políticas. O desafio
portuguesa (1128-1130)
será então identificar “pistas que permitan sacarnos de esa Em 1128, o infante D. Afonso Henriques, liderando uma
oscuridad” (idem, ibidem, 93). camada dirigente dos “portugueses”, toma o poder em S.
Segundo Martín Viso, a partir do século VIII, desarticula- Mamede. Se a região onde estabelece plenamente a sua autori-
ram-se naquela região os dois pilares básicos que asseguravam dade, tinha como limite Sul a cidade moçárabe de Coimbra, a
a presença do Estado ao nível local, quer dizer, a tributação e Este, ainda não abrangia os espaços dos actuais distritos de
a administração eclesiástica (idem, ibidem, 94). O que se segue Bragança ou da Guarda (Mapas 1 a 3). A integração dessa
mostra uma sociedade na qual emergem disposições locais for- faixa interior na formação política nascente do reino era um
temente alheadas das formas caucionadas pelos poderes cen- projecto que exigia o reconhecimento daquela autoridade
trais. Esta situação estaria reflectida nas práticas de inumação pelos diversos outros poderes aí constituídos, senhores ou
não canónicas evidenciadas pelas necrópoles de sepulturas comunidades, que em consequência da situação de periferia se
escavadas na rocha ou na religiosidade alternativa para que movimentavam com grande autonomia. As estratégias seguidas
remetem as tradições eremíticas. Por outro lado, a desarticula- tiveram em conta diferentes configurações sociais.
ção da autoridade centralizada permitiu aos poderes locais A Norte do Douro, a documentação faz eco destas
ocuparem um maior espaço no interior do sistema social for- características individualizando populações que designa por
çando a fragmentação política. Estes poderes não utilizaram a “Bregancianos” entre os “Portogaleses”, a ocidente, e os “Leone-
escrita nem executaram grandes obras construtivas fundamen- ses”, a Oriente5. Ao sentido autonómico de Bragança liga-se,
tando a superioridade do respectivo estatuto no reforço do seu já no final do século XI, o carácter dos senhores da região,
papel militar e fazendo construir estruturas de altura defensi- em especial à família dos Bragançãos que dela tomaram o
vas com técnicas relativamente simples, a que os escribas se nome. Fernão Mendes, o primeiro chefe de linhagem docu-
referem por vezes como castella, mas que se afastavam do mentalmente comprovado, era tenente da terra de Chaves
modelo do castelo feudal e deviam ser basicamente refúgios em 1072 e em 1086. Aparece depois, ainda que raramente,
organizados e geridos pelas comunidades (idem, ibidem, 105). a confirmar documentos condais e do infante D. Afonso
Uma terceira característica seria a existência de fortes “canales Henriques. A tradição dos livros de linhagens chega a atri-
de intercambio cultural basados en una relación desigual, en la buir-lhe o matrimónio com uma filha bastarda do rei
que al-Andalus ejercía el papel de foco al que imitar” (idem, ibi- Afonso VI de Leão e Castela o que lhe teria conferido uma
dem, 110). elevada importância, em situação de paridade com o próprio
Assim, se a conquista e repovoamento do Sul islâmico Conde portucalense D. Henrique6.
terá sido determinante na formação do território da Monar- Mais a Sul, sobre a linha do Douro, os avanços dos
quia portuguesa, a configuração desta nova formação polí- senhores portucalenses de Riba Douro, Baião e Paiva
tica jogou-se igualmente numa medida apreciável nas faziam alastrar a senhorialização por ambas as margens,
dinâmicas de repovoamento que se desenvolveram na bacia rio acima. Porém, ainda em meados do século XII, não tin-
do rio Douro ao longo dos séculos XII e XIII. ham conseguido alcançar as terras quentes do Douro Supe-

5 GAMA BARROS, 1945-1954, vol. XI, p. 115, numa referência ao Foral de Salamanca, regista a existência no respectivo território de “parochias fundadas
por Borgonhezes, Castelhanos, Bregancianos, Portugalenses, montanheses d’Asturias e de Leon, e Gallegos”. BARRIOS GARCÍA 1985, 62, refere-se igualmente à pro-
cedência dos repovoadores de Salamanca surgindo na documentação registo de castellanos, portogaleses, toreses e francos como os grupos principais mas aos quais se juntam
também menções de serranos, mozáraves e bregancianos. Ver ainda Julio GONZALES, 1943, 241-245.
6 FERNANDES 1972, p. 236-238.

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Fig. 1. Castelo Mendo (Sabugal, Guarda). A actual aldeia de Castelo Mendo mostra uma primeira cerca de contorno ovalado no centro da qual se implanta a igreja de
Santa Maria. As poucas ruas que ainda aqui se conservam parecem indicar um padrão ortogonal. Um dos cantos deste espaço foi fechado por um muro de silharia, que indi-
vidualizou o pátio do castelo, no qual se mostra uma torre que serviu de menagem e uma cisterna. No exterior da porta que dá acesso a este recinto superior, formou-se um
largo central onde estavam a igreja de S. Pedro, o pelourinho e a antiga Casa da Câmara. Três ruas principais partem deste largo em direcção às três portas da segunda cerca.
A rua Direita, dirigindo-se para a Porta da Vila, é aqui o eixo fundamental. Junto daquela porta, pelo interior, a igreja de S. Vicente estruturou um outro largo. A segunda
cerca foi reforçada com várias torres adossadas, sobretudo junto das portas. É possível que a primeira cintura de muros date do início do séc. XIII decorrendo das iniciativas
repovoadoras do rei de Portugal e que culminam com a concessão do foral por Sancho II em 1229. Já a segunda cintura, rodeando um arrabalde entretanto desenvolvido no
exterior da primeira cerca, deverá datar dos séculos XIV ou XV.

rior. Os domínios de Egas Moniz, o principal senhor de Progredindo sempre para Este, conhece um momento cul-
Riba Douro ao longo da primeira metade do século XII, che- minante no final da década de 90 com o foral da Guarda e
gavam ao Montemuro por Cinfães e Resende, atingiam atinge plenamente a linha do Côa com os termos das vilas de
Lamego e Armamar, desciam as encostas da serra do Mon- Pinhel, Castelo Mendo, Touro e Sortelha, repovoadas já só ao
temuro pelo Sul, em Castro Daire e Vila Nova de Paiva, para longo do primeiro quartel do século seguinte (Mapa 3). Do
se deterem, mais a leste, na serra da Lapa, por Moimenta da lado leonês, o ritmo do repovoamento foi paralelo mas o
Beira e Sernancelhe, mal ultrapassando o rio Távora (Mapa movimento de sentido oposto, progredindo para Oeste. Na
2)7. Para montante de um invisível mas sempre presente década de 60 iniciava-se o repovoamento de Ciudad Rodrigo,
limite, no Douro e na Beira Alta, a moçarabização tinha sido antes uma aldeia periférica do termo de Salamanca, mas as
mais intensa e tinham-se constituído comunidades podero- vilas do Riba Côa como Castelo Rodrigo, Castelo Melhor e
sas. Até às últimas décadas do século XII, os planaltos dre- outras, surgirão apenas no início do novo século.
nados pelo Côa, o Águeda e o Huesca estiveram por isso O solar da Coroa portuguesa não compreendia assim, nes-
entregues a si próprios. Do lado português, o início do ses anos originais do final da década de 1120, toda uma faixa
repovoamento, que era afinal o enquadramento das comuni- de território transversal ao Douro Superior que por outro lado
dades existentes por poderes externos, arranca na década de também não se encontrava bem integrada no espaço leonês.
60 do século XII, ainda e apenas sobre a linha das antigas Num momento em que os próprios poderes estabelecidos
penelas e populaturas da Condessa D. Châmoa. nesta região (a linhagem dos Bragançãos) procuravam linhas

7 MATTOSO 1985, vol. I, p. 169 e vol. II, p. 234, MAPA 9 – Domínios de Egas Moniz segundo FERNANDES 1978, p. 117, 144-145.

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de expansão em direcção a Sul8, a escolha de Coimbra, no dos senhores Bragançãos cuja subordinação a Afonso Hen-
início da década de 1130, como novo centro da futura coroa riques não estava ainda confirmada.
portuguesa, veio a revelar-se crucial e determinante. Só após ter assegurado a aliança com o senhor Bragan-
ção, casando com este a Infanta D. Sancha Henriques, sua
irmã10, é que o monarca português se atreveu a iniciar uma
Estratégias de poder dos senhores nova fase de alargamento e consolidação do seu domínio
da guerra para Este, sobre as comunidades do Alto Douro, conce-
dendo, a partir dos meados da década de 1150 e ao longo
A partir de 1131, as preocupações de D. Afonso Henriques
da década seguinte, cartas de foral a Freixo de Espada à
fixam-se em Coimbra onde procurará assegurar a aliança e a
fidelidade de diversas comunidades em torno daquela Cinta (entre 1155 e 1157), Trancoso, Marialva, Aguiar da
cidade e da de Viseu, na continuidade, aliás, com idênticas Beira, Celorico da Beira e Moreira de Rei (entre 1157 e
iniciativas anteriores dos condes seus pais. Concede então, 1169)11, Trevões (1159) e Mós (1162)12.
ou confirma, entre 1135 e 1137, um grande número de car- A tímida penetração régia de D. Afonso Henriques em
tas de foral naquelas duas áreas9. Delimitavam-se deste Trás-os-Montes porém, não ultrapassaria as margens do
modo as periferias do território onde o infante D. Afonso Douro Superior. Caberia a Sancho I impulsionar um avanço
via reconhecida a sua autoridade bem como a zona de fron- mais profundo em direcção a Norte, procurando criar em
teira com outras formações políticas: para Sul de Coimbra Miranda e Bragança sucessivos pontos de apoio ao seu domí-
o território sob domínio muçulmano; para Este de Viseu nio, o que, numa primeira fase, passaria pela construção de
um espaço onde se expandia em direcção a Sul a autoridade uma rede de castelos cabeças de terra13. Porém, estes ver-se-

8 Com efeito, se em 1128, o senhor Braganção confirma dois documentos do infante D. Afonso sendo “tenente da terra de Bragança”, dois anos depois, em
1130, o mesmo senhor, Fernão Mendes “potestas in Bragança et Lampasas”, sem menção de subordinação ao infante D. Afonso, outorga carta de foral aos habitan-
tes da “ciuitate Noman” (Numão) a Sul do Douro (PMH – Leges, 368-370). E não terá sido esta iniciativa um acto isolado. Pela mesma altura, o mesmo senhor, teria
feito construir ou povoar o vizinho castelo de Longroiva que em 1145, um seu herdeiro, viria a doar à Ordem do Templo (VITERBO 1965-1966, vol. II, p. 587, nota
1). A expansão para Sul da autoridade destes senhores e o seu carácter autónomo devem ser realçados. Ao mesmo tempo, verificamos que o alargamento da sua auto-
ridade nesta área, também se processa através do reconhecimento das fortes comunidades do Alto Douro com a concessão de cartas de foral.
9 Almoinha do Rei, Seia, Miranda do Corvo e Penela, na área de Coimbra, e Ansiães, Sátão, Viseu, Ferreira das Aves e Sernancelhe, na área de Viseu (REIS
1991, pp. 105-140).
10 VITERBO 1965-1966, vol. II, p. 587, nota 1 e DR 222.
11 DR 263 a 267.
12 DR 284.
13 O modelo de domínio seguido inicialmente pelo rei D. Sancho nesta região não utilizou, como aconteceu mais a Sul, a concessão de cartas de foral a
comunidades que por essa via se tornavam dependentes e aliadas. O carácter senhorial da região aconselhava outro tipo de estratégia mais conforme a um povoamento
organizado em comunidades de reduzida dimensão e em que os castelos como cabeças dos territórios (terras) constituíam o enquadramento mais comum. Assim, na
terra de Bragança, antes de 1187, D. Sancho manda construir o castello de Alvelina (castelo de Pinela de acordo com ALVES 1983-1987, vol. IX, p. 149-151). O respon-
sável pela direcção dos trabalhos no local a mando do rei foi donnus Gallecus, pai de Munio Pelagij milite de Trasbaceiro, que receberia diversas propriedades em Bragança como
pagamento do serviço (Inquirições de Afonso III in ALVES 1983-1987, vol. III, pp. 375 e 399). Nas Inquirições de Afonso III, regista-se também o testemunho em como era
a este castelo que levavam o pagamento da parada ao senhor da terra que aí estava em nome do rei antes da vila de Bragança ser povoada (ALVES 1983-1987, vol. III, p. 314). Para além
do curso do Sabor, na terra de Miranda, D. Sancho mandou construir pela mesma altura o castelo de Algoso. O rei encarregou para esse efeito Mendo Bufino a quem
deu depois em pagamento a vila de Vimioso (Inquirições de Afonso III in ALVES 1983-1987, vol. IV, p. 18). Entre 1188 e 1197 era esta mesma vila recuperada pelo rei
D. Sancho I de um familiar de Mendo Bufino, de seu nome Rodrigo Bufino, em troca da vila de Cernadela, em Ledra, sendo então situada in termino de Miranda sub
territorio de meo castello de Vlgoso (DS 103). Ainda segundo o testemunho das Inquirições de Afonso III, o castelo de Algoso teria sido o centro da autoridade régia na terra
de Miranda numa altura em que toda a terra era do Rei e os cavaleiros do Rei pousavam no castelo de Algoso e recebiam aí toda a renda da terra devida ao Rei (in ALVES 1983-1987, vol.
IV, p. 18). Só no reinado de D. Dinis, já no final do século XIII, é que seria povoada a vila que encabeçaria o antigo termo da terra e dela tomaria também o nome de
Miranda. A rede de domínio do território implantada pelo rei D. Sancho I em Trás-os-Montes oriental completar-se-ia com a posse dos castelos de Penas Róias e de
Mogadouro, anteriormente documentando-se como pertencentes à Ordem do Templo. Estes dois castelos, que se situam imediatamente a Sul do de Algoso, teriam
sido doados pelo senhor Braganção à Ordem do Templo, nas décadas de 1140 ou 1150 (Segundo as inquirições de Afonso III in ALVES 1983-1987, vol. IV, pp. 53-

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iam rapidamente ultrapassados pela emergência dos novos territórios e do povoamento, desenvolvido no ambiente
pólos urbanos das vilas como efectivos centros do território urbano das cidades do eixo litoral. Será então possível enten-
(Mapa 3). der as peculiaridades das estruturas do habitat resultantes
Através da fundação de novos centros de carácter urbano, desse processo reordenador, enquanto formas de compromisso
numa região onde o habitat tinha características tradicional- entre um modelo central que propunha a cidade como o pólo
estruturador do território e os modelos tradicionais de organi-
mente rurais, o poder régio procurava a criação ou consolida-
zação das comunidades na periferia que acentuavam menos a
ção de comunidades que pudessem afirmar-se enquanto
centralidade e mais a coesão da comunidade no interior de
poderosos aliados do rei, à semelhança das do Alto Douro,
espaços políticos miniaturizados14. A diversidade das configu-
constituindo um contraponto aos poderes senhoriais que não
rações urbanas que se desenvolveram nas duas regiões periféri-
cessavam de se expandir pelos planaltos de Trás-os-Montes. O
cas, a Norte e a Sul do Douro, será expressão da maior ou
poder régio parece começar por designar estes novos centros
menor capacidade de resistência das comunidades e também
por civitas, expressão que cremos revelar todo o significado da do maior ou menor interesse e capacidade do poder régio para
iniciativa, optando em seguida pela mais corrente designação impor os seus modelos reordenadores.
de vila, despojada que esta se encontrava dos anteriores signifi-
cados rurais e exprimia agora uma realidade urbana que lhe Os reinados de D. Afonso III (1245-1279) e de D.
advinha em primeiro lugar da centralidade política e econó- Dinis (1279-1325) marcariam definitivamente a reorgani-
mica. As vilas que virão depois a fundar-se ao longo dos rei- zação do território em Trás-os-Montes e no Alto Douro,
nados seguintes por todo o Trás-os-Montes, nas terras de dando continuidade e consolidando iniciativas anteriores,
Vinhais, Rio Livre, Chaves, Montenegro, Barroso, Panóias ou ao mesmo tempo que se estendia, de uma forma sistemática,
a zonas que ainda não tinham sido objecto de qualquer
Ledra, irão mostrar uma distribuição predominantemente
intervenção. Significavam todas estas iniciativas o culminar
fronteiriça, ainda que também estejam presentes em zonas
de uma renhida luta pelo controle do território.
interiores, mais afastadas da fronteira. Os seus extensos termos
tem correspondência nas anteriores terras, substituindo as anti-
gas cabeças constituídas por castelos isolados e herdando-lhes
os limites do território. Em alguns casos, chega a haver con-
A consolidação de um modelo
centração de várias terras no termo da nova vila. Em outros, de ordenamento do território
nos limites do antigo território, surgem várias vilas com os Ao triunfo da Monarquia, que o reinado de D. Afonso
respectivos termos. Nem todas estas fundações foram votadas III estabelece depois das incertezas do reinado anterior,
ao êxito, tendo algumas fracassado e consequentemente despo- corresponde a consolidação de um modelo de ordenamento
voado ou não se chegaram mesmo a construir. do território veiculado pelo poder régio que tomava a cidade
O poder régio, como autoridade reordenadora em expan- como o ideal de organização com o qual era imperativo
são, torna-se o veículo de um novo modelo de organização dos fazer preencher todo o espaço disponível.

55. O mesmo aconteceu em 1145 ao Castelo de Longroiva situado a Sul do Douro). Foram então reconstruídos segundo os novos cânones do castelo românico com
cerca e torre de menagem. Comemorando a obra durante o Mestrado de D. Gualdim Pais, conserva-se uma inscrição na torre de menagem de Penas Róias datada de
1166 o que a faz um dos mais antigos exemplos daquele tipo de arquitectura em território hoje português (Em conjunto com outros castelos igualmente mandados
construir pela Ordem do Templo: Tomar (1160), Pombal (1171), Almourol (1171) e Longroiva (1174) BARROCA 1990-91, 121). O controle régio destes dois cas-
telos da terra de Miranda seria finalmente obtido em 1197 com a doação da cidade de Idanha-a-Velha à Ordem do Templo em atenção aos bons serviços prestados
e à cedência dos castelos de Mogadouro e de Penas Roías (DS 100) ainda que, já em data anterior (Em Maio ou Junho de 1187) D. Sancho I tivesse dirigido ao
Concelho do Castelo de Penas Róias uma carta de foral e confirmando-lhe os seus foros bonos (DS 23). Mais uma vez, o testemunho das Inquirições de Afonso III regista
o domínio do rei D. Sancho I sobre aquelas duas fortificações (pena Roya fuit domini Regis et (...) stabant ibi milites Regis donnj Sancii ueteris, ou, em relação a Mogadouro: quod
uidit ibi stare milites domini Regis in ipso Castello de mugadoyro et vidit ibi stare Concilium de Stremadura de manu regis donnj Sancij ueteris (in ALVES 1983-1987, vol. IV, pp. 53-55) as
quais completaram a rede de castelos cabeças de território criada pelo poder régio em terras de Bragança e Miranda.
14 “Os concelhos medievais do interior tem uma capacidade de expansão limitada. Quando alargam o seu território tendem a fragmentar-se em concelhos
menores.” (MATTOSO 1992a, 18); ver tb. HESPANHA 1986.

263
Paulo Dordio Gomes

Fig. 2. Numão (Vila Nova de Foz Côa, Guarda). A organização alti-medieval (séc. IX - XI) do povoado, já referido num documento de 960, deveria ter um
carácter acentuadamente roqueiro, sobranceiro à igreja de S. Pedro e à necrópole anexa de sepulturas escavadas na rocha. Outros núcleos de sepulturas do mesmo tipo
registam-se ao longo do caminho que desce deste ponto em direcção à actual aldeia, junto das ruínas da igreja de Santa Maria e ocultas sob o adro da matriz actual de
N. S. da Assunção. A vila baixo medieval (sécs. XIII - XV) foi rodeada com uma cerca defensiva que teve de se ajustar ao acidentado do terreno e às construções pré-
existentes, reforçada pela barbacã e por várias torres, com acesso por três portas. Junto de duas destas localizavam-se as igrejas: S. Pedro, no exterior da porta que
tomava a direcção do Douro; Santa Maria, do lado de dentro, quase cortada pela inflexão do muro da cerca, ao pé da porta orientada à aldeia actual. Ao longo do
caminho que se iniciava nesta última porta, desenvolveu-se um arrabalde que era habitado em 1527 por 41 moradores enquanto à altura, dentro da cerca, só exis-
tiam 15. No final do séc. XVII já não havia moradores dentro dos muros habitando todos os vizinhos, que eram em número de 60, no arrabalde. Entretanto, neste,
tinha-se constituído um novo núcleo, mais para Sul, em torno da nova igreja paroquial de N. S. da Assunção, na origem da aldeia actual.

A Monarquia portuguesa, originária de uma base rural O próprio processo de centralização régia poderia assim
situada no litoral a Norte do Douro, cedo se deu conta que ser visto como a extensão à periferia da mentalidade
era nas cidades, as maiores situadas mais a Sul nessa mesma urbana16, assumindo aqui a palavra “periferia” um duplo
faixa litoral, que poderia encontrar as estruturas necessárias sentido geográfico e social. Na verdade, os itinerários régios
à expansão e perduração do poder aglutinador que era a sua ao longo da 1ª dinastia mostram que era nos principais cen-
razão de existir. O Rei, a partir de Afonso II e Sancho II, tros urbanos da faixa mais litoral, que incluía Braga, Guima-
torna-se um citadino, propagando activamente a mentali- rães, Porto, Coimbra, Santarém, Lisboa e Évora, onde o rei
dade urbana e fazendo-se servir por gente que procede da se deslocava e permanecia com maior frequência, conferindo
cidade. A administração e legislação régias, sobretudo com carácter central ao eixo Norte-Sul que os ligava a todos17.
Afonso III e D. Dinis, são concebidas por funcionários Era a partir daquelas cidades que os poderes do centro se
imbuídos de mentalidade urbana, largamente ignorantes do exerciam sobre as outras áreas mais vastas do interior18.
mundo rural15. Estas, e em especial a faixa montanhosa e interior a Norte

15 MATTOSO 1985, vol. I, p. 312.


16
“Se o que se tem chamado a história «nacional» não é, afinal, apenas a da centralização régia, e se esta não constitui pouco mais do que o prolongamento
da uniformização citadina”, MATTOSO 1985, vol. I, p. 312.
17 MATTOSO 1985: vol. II, p. 186-7 e Mapa 18 (Itinerários régios. Fluxo das ligações: Sancho I, Afonso III e D. Dinis). Uma análise cartográfica desenvolvida relativa
aos itinerários de D. Dinis, D. Pedro e D. Fernando em GALEGO, GARCIA, e ALEGRIA 1988.
18 MATTOSO 1985: vol. II, p. 189.

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TRÁS-OS-MONTES E O ALTO DOURO: DA DEFINIÇÃO DO TERRITÓRIO DA MONARQUIA PORTUGUESA
NA IDADE MÉDIA À SECUNDARIZAÇÃO DE UM ESPAÇO REGIONAL

do Tejo constituída pela Beira e por Trás-os-Montes, reve- nos termos, do pagamento de pesadas contribuições destina-
lava-se no arcaísmo das suas formas próprias de organização das a custear as dispendiosas obras de construção das cercas
social, no seu atrofiamento urbano e nos seus peculiares urbanas, seja em trabalho ou em moeda (a anúduva ou adua).
modos de vida, uma periferia que a tendência expansiva da À vila ou cidade competia, por seu lado, amparar e defender as
autoridade do centro procurou aculturar segundo os seus populações do termo. As estratégias militares demonstravam
esquemas e modelos reordenadores, os quais incluíam a também o significado destas povoações amuralhadas como
cidade como estruturadora do território. Por seu lado, as eli- centros de territórios cuja posse dependia agora da conquista
tes locais, interessadas numa proximidade e participação do da cidade ou vila que o encabeçava21. As cidades e villas seriam
poder, que a autoridade régia representava, mostravam-se então realidades não muito distantes dos senhorios, reve-
receptivas a novos modelos de organização. No entanto, era lando porém uma muito variável capacidade para exercer
precisamente a sua posição de periferia e fronteira, que lhes aqueles direitos22.
conferia autonomia e capacidade acrescida de negociação
com os poderes externos e enquadradores. Os resultados
revelariam por isso o compromisso entre as formas tradicio- Os repovoamentos tardios
nais de organização na periferia e os modelos propagados no Norte da Península Ibérica
pela autoridade do centro.
No Norte da Península Ibérica, entre o Cantábrico e o
Na verdade, apesar do peso das diferenças, uma contínua
Douro, a reconquista e os repovoamentos realizados maiorita-
realidade urbana revela-se perante nós desde as grandes cida- riamente nos séculos IX e X, estão na origem de uma organi-
des do litoral até às pequeníssimas vilas do interior. Cidades e zação caracterizada pela predominância de aldeias e
villas, ainda que parecendo cumprir de modo muito diverso pequenos lugares, as villae. Esta organização incluía ainda
os requisitos que as diferenciariam das simples aldeias –con- locais fortificados, aglomerações urbanas ou fortificações
centração populacional, existência de muro da cerca, diversi- isoladas, as civitates, urbes, castra e castella, respondendo às
ficação profissional, domínio sobre o espaço rural próximo, preocupações defensivas e de controlo das zonas repovoadas.
estatuto jurídico singular– participam de um mesmo ideal de Porém, a articulação das primeiras em conjuntos mais vas-
ordenação que reconhecia na condição de cidade ou de villa tos, referidos como alfoz, suburbium, territorium ou terminus,
uma idêntica qualidade de titular de direitos sobre um centrados nas segundas, é pouco nítida ou mesmo inexis-
espaço –o termo-e sobre umas pessoas– os habitantes do tente. Entre o Douro e a Cordilheira Central, a reconquista
termo19. Nisso se distinguem das aldeias que, constituindo os e os repovoamentos realizados nos séculos XI e XII, conduziram
núcleos populacionais onde habitam as populações do a uma diferente estrutura de habitat em que pequenos
termo, se lhes subordinam. Servir como sua aldeia, é a fórmula núcleos de povoamento rural, as aldeas, se encontram estrei-
que identificava aquela relação entre a vila ou cidade e as tamente subordinados, jurídica, económica e militarmente, a
comunidades rurais do seu termo, implicando todo um con- uma aglomeração urbana fortificada, a villa, constituindo
junto de obrigações20. O peso maior destas obrigações inci- vastos territórios, os alfoces. A comunidade de povoadores habi-
dia sobre as exigências de abastecimento da vila ou cidade em tando no interior destas aglomerações equipadas com uma
alimentos e matérias-primas mas também na utilização dos cerca defensiva delimitando uma área elevada, intra muros,
pastos para os rebanhos dos seus vizinhos. Esta servidão estava constituía o concilium ou concejo, um dos pólos da autoridade.
também marcada pela exigência às populações que habitavam O representante do rei, habitando o castellum ou alcázar que

19 CORTÁZAR 1988, 201.


20 DALCHÉ 1989: 339-342, sobre este tipo de relações entre o centro urbano e as suas aldeias.
21 ALMEIDA 1992: 139; SILVA 1991: 62-63.
22 CORTÁZAR 1988: 201.

265
Paulo Dordio Gomes

Fig. 3 Freixo de Espada à Cinta (Freixo de Espada à Cinta, Bragança). No séc. XVI, a primitiva cerca ovalada, possivelmente em alvenaria de xisto, estava transfor-
mada num forte castelo de silharia de granito com numerosas torres adossadas e rodeado pelo muro baixo da barbacã tendo as principais obras de transformação decorrido nos
reinados de D. Dinis, D. Fernando (1376) e D. Manuel I (1513). Intra-muros já não vivia senão o alcaide enquanto a população, que constituía a 3ª maior concentra-
ção em Trás-os-Montes, habitava no extenso arrabalde em expansão a partir do largo da igreja de S. Miguel. Nos altos sobranceiros à vila destacavam-se a ermida de Santa
Maria do Vilar (onde estão hoje as ruínas do convento de S. Filipe de Néri), a ermida da Senhora dos Montes Ermos (ainda existente) e o Cabeço da Forca (que conserva a
memória na designação por que é ainda conhecido).

Fig. 4. Planta de Vila Real. A área da Vila Velha corresponde à implantação original da
cerca da vila nova medieval. Progressivamente abandonada com o desenvolvimento do arra-
balde a Norte, deu lugar a um espaço em ruína e desertificado que a construção do Cemi-
tério e Jardim Público no século XIX não chegaria a reabilitar. Em 1995-1996, uma
intervenção arqueológica de emergência, da responsabilidade da Direcção Regional do Porto
do IPPAR, revelou vestígios de construções medievais da alcáçova e da cerca muralhada.
Entre o final de 2002 e 2006, no âmbito do Programa Polis, trabalhos arqueológicos da
responsabilidade da empresa Arqueologia & Património puseram a descoberto novos troços
da muralha urbana, incluindo a localização da porta Norte e uma melhor caracterização da
Porta Franca, localizada a Oeste, ao mesmo tempo que permitiram identificar novos ele-
mentos relativos ao traçado urbano ortogonal. 1. Alcáçova e Cisterna; 2. Cerca urbana; 3.
Porta Franca; 4. Porta Norte; 5. Muralha e torre; 6. e 7. Arruamentos e edifícios; 8. Igreja
de S. Dinis e Capela de S. Brás (Planta gentilmente cedida por Arqueologia e Património,
Lda. Porto).

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TRÁS-OS-MONTES E O ALTO DOURO: DA DEFINIÇÃO DO TERRITÓRIO DA MONARQUIA PORTUGUESA
NA IDADE MÉDIA À SECUNDARIZAÇÃO DE UM ESPAÇO REGIONAL

completava o sistema defensivo da aglomeração, constituía o incremento do povoamento, é numa multiplicidade de


palatium, o outro pólo da autoridade local23. A partir dos outros significados que adquire toda a sua dimensão histó-
finais do século XI nos vastos espaços da fronteira Sul, o rica de modo de reorganização e hierarquização de um terri-
modelo repovoador inicial viu-se assim substituído por tório já povoado e portanto de criador do espaço de
outro baseado no principio de que o território devia ser exercício do poder da Monarquia emergente.
organizado a partir de capitais, isto é núcleos urbanos, a Os principais e mais dinâmicos novos núcleos urbanos
cada um dos quais se outorgava um termo vasto e no qual então criados em Trás-os-Montes e no Vale do Douro mos-
tinham assento um conjunto de aldeias subordinadas. tram uma intenção e plano que decorre do poder régio. São
Este modelo de organização do espaço procurou depois os centros estruturadores do território como Bragança, Vila
aplicar-se nas terras de velha colonização a Norte do Real, Chaves ou Miranda do Douro. Noutros exemplos
Douro, nos finais do século XII e sobretudo nos séculos XIII observamos uma persistente atenção régia na reorganização
e XIV, ocasionando a ruptura da antiga igualdade entre as de um território específico, no interior do qual se sucedem
aldeias com a elevação de algumas destas ao estatuto de vilas as iniciativas conducentes à criação dos novos centros
e cidades por decisão do poder político. Foi sobretudo nas durante um espaço de tempo relativamente curto. São os
terras menos aculturadas da Coroa de Castela –Asturias, Viz- casos de Mirandela, Torre de D. Chama e Lamas de Orel-
caya e Guipúzcoa– e da Coroa de Portugal –Trás-os-Montes e hão que emergem na antiga terra de Ledra sob a acção de D.
Alto Douro–, as periferias do Norte, que este modelo Dinis ou das vilas de Torre de Moncorvo, Vila Flor e Alfân-
alcançou maior êxito, configurando uma rede de póvoas e dega da Fé que, igualmente sob iniciativa de D. Dinis, reor-
vilas de nova criação, utilizando uma planificação racional ganizam o anterior termo da Santa Cruz da Vilariça entre
do urbanismo, mas cujos termos mostravam contudo meno- 1285 e 1295. Porém, casos há em que a iniciativa parece
res dimensões do que os situados a Sul do Douro24. As difi- estar mais do lado das comunidades as quais procuram no rei
culdades com que depararam, estes intentos de apenas um apoio necessário. Estes casos, em que a primeira
hierarquização das antigas unidades homólogas, no espaço iniciativa parece pertencer às comunidades, surgem mais fre-
entre o Cantábrico e o Douro, testemunham a resistência quentes num momento tardio, talvez mostrando comunida-
das aldeias, nunca completamente subordinadas aos núcleos des que teimavam em não ficar de fora do processo global
urbanos, “acabando por cristalizar uma rede de municípios de redistribuição do poder sobre o território. Verifica-se
mais numerosos e minúsculos do que em qualquer outra também serem muitas vezes votados ao fracasso como
área da Península”25. sucede com São João da Lomba (actual concelho de Vinhais) ou
Vila Boa de Montenegro (actual concelho de Chaves).

A iniciativa de fazer villa


A escolha de uma nova implantação
Mando fazer villa no lugar de... é a expressão que tão frequente-
mente vemos utilizada em cartas expedidas pelas chancela-
e a construção da cerca e do castelo
rias de D. Afonso III e D. Dinis assinalando o local e a Fazer vila obrigava na maior parte dos casos à escolha de uma
vontade régia na criação de um novo núcleo urbano. Se fazer nova implantação. Escolhem-se então locais que, para além de
villa tinha, obviamente, um significado demográfico de mostrarem favoráveis condições naturais de defesa, se procura

23 Sistematização de Jean Gautier DALCHÉ 1988 sobre a existência na Península Ibérica de três grandes tipos de estruturas de habitat, cuja origem se encon-
traria nas diferentes modalidades de “repovoamento” que se seguiram à reconquista.
24 SOPENA 1992 e 1995.
25 CORTÁZAR 1985: 80.

267
Paulo Dordio Gomes

destacados, facilmente identificáveis à distância e possuindo Uma nova concentração de população


amplo controlo visual do espaço envolvente, características
adequadas a um centro de território. Implantações de altura A fundação de uma vila representava também uma nova
portanto, porém, oferecendo amplas plataformas capazes de concentração de população. Para a povoação da vila de
Santa Cruz da Vilariça, sabemos que, por iniciativa do
albergar áreas de habitação suficientemente dimensionadas a
mordomo do Rei, foram levados os homens das aldeias de
uma população que se pretendia numerosa, rodeadas obrigato-
Cernadela e Cortiços, situadas alguns quilómetros a Norte,
riamente por um muro de cerca. já no exterior do que viria a ser o extenso termo daquela
A expressão fazer vila era sinónimo de fortificar uma vila nova. Na fundação de Vila Real pelo rei D. Dinis reu-
povoação. A responsabilidade da construção das fortificações, niram-se os homens e as propriedades das aldeias de Sémi-
obras que implicavam sempre uma larga despesa só compatí- res, Parada de Cunhos, da veiga toda do Cabril, de
vel com grandes disponibilidades financeiras, era do Rei. Em Montezelos, Tempieira e Vilalva acrescentando-lhe ainda
alguns casos, porém, em que a iniciativa da fundação da vila mais tarde a aldeia de Vila Seca. Estas aldeias constituíam
surgiu da parte das próprias comunidades, estas obrigaram-se os aglomerados populacionais que ocupavam toda a envol-
vente próxima da plataforma em esporão situada entre os
a fazer huma cerca de muro à ssa custa. São exemplo desta situação
rios Torto e Cabril, escolhida para a fundação de Vila Real.
as tentativas já referidas de criação da Vila Boa de Montenegro,
Na carta de foral de 1289 pretendia-se que o número de
em 1301, de São João da Lomba, em 1324, ou de Lamas de povoadores assim reunidos fosse de mil. Na nova carta de
Orelhão no reinado de D. Sancho II. Ao facto de serem todas foral de 1293, já esse número havia sido reduzido para
ensaios frustrados de fundação de novas vilas não será alheio o quinhentos e, na carta posterior, de 1304, não mais se
peso financeiro implicado nas obras de fortificação que se obrigava a um número de povoadores determinado. Em
obrigavam a custear. A iniciativa régia surge bem documentada, relação à póvoa de Montalegre de Barroso, cuja primeira
por exemplo, quando D. Dinis decide recomeçar o repovoa- fundação foi ensaiada por D. Afonso III, concedendo-lhe
mento de Vila Real e lhe outorga em 1289 um novo foral. Faz foral em 1273, sabemos pelo texto da segunda carta de
então mencionar que a ele competia fazer seu muro logo e bóó para foral, concedida por D. Dinis em 1289, que, sendo então
o guardar depois o conçelho assy come costume do Reyno. Distingue- erma, determinou aquele rei que se partissem os terrenos
se também a construção, mais urgente e necessária, do muro da da vila por cem moradores, todos de novo, assim como foi da pri-
meira vez. Uma última indicação do número de moradores
cerca da vila da do castelo ou alcácer que, se o rei o quisesse
encontra-se no pedido que Alva, comunidade autónoma
fazer, deveria aí meter seu alcayde sendo que este nada teria a ver
que entretanto havia sido subordinada por Sancho II à vila
com a administração das justiças mas apenas e exclusivamente de Freixo de Espada à Cinta –como sua aldeia–, endereçou ao
com guardar seu castelo. Idênticas disposições surgem no texto do rei D. Dinis solicitando licença para aumentar a sua povoação
novo foral outorgado pelo mesmo rei, apenas quatro anos com quatrocentos moradores27, numa clara estratégia de
depois, quando afirma eu deuo fazer o muro da vila bóó e cercala toda recuperação do antigo estatuto. Pedido aliás não concedido
acrescentando de seguida que sse perventura eu ou meus successores por oposição de Freixo.
fezermos hy Alcacer devemos hy meter Alcayde que o guarde. Porém, ainda Estes escassos dados quantitativos parecem no entanto
em 1304, não estava nem uma nem outra obra sequer come- mostrar mais os excessos da afirmação de uma vontade do
çadas declarando o mesmo rei D. Dinis que lhe ficava de fazer que a realidade dos factos. Com efeito, estabelecendo uma
o muro em essa vila quando o poder fazer querendo deus!26. comparação com as quantificações do Numeramento de Trás-

26 AZEVEDO 1899.
27 ANTT, Chancelaria de D. Dinis, livro 3, fol. 74 ref. por TABORDA 1948: 62.

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TRÁS-OS-MONTES E O ALTO DOURO: DA DEFINIÇÃO DO TERRITÓRIO DA MONARQUIA PORTUGUESA
NA IDADE MÉDIA À SECUNDARIZAÇÃO DE UM ESPAÇO REGIONAL

Fig. 5. Torre de Moncorvo (Torre de Moncorvo, Bragança). Até finais do séc. XIII, Torre de Moncorvo era uma aldeia do termo da vila da Santa Cruz da Vilariça. A
elevação a vila e a reformulação urbana dionisinas obrigaram à procura de uma nova implantação onde, no interior de um muro de cerca de contorno alongado, foi estabele-
cido um traçado regular com três eixos longitudinais e diversas travessas perpendiculares. Junto da porta do lado Sul, uma das três existentes, ergueu-se o castelo da vila, de
planta quase rectangular, hoje completamente entulhado e transformado numa plataforma elevada mas que recentes escavações arqueológicas trouxeram de novo à luz do dia. O
castelo dominava o largo central (actual Praça da República) formado no exterior da porta Sul, onde esteve o pelourinho e a antiga Casa da Câmara, e donde partiam os dois
principais caminhos de saída que se transformaram nas duas ruas estruturadoras do arrabalde. Foi numa delas, a que tomava a direcção da barca do Douro passando no local
da antiga aldeia e igreja de Santiago, que se construiu a nova igreja matriz de Santa Maria, terminada no séc. XVII, reflectindo a pujança da vila e sede de comarca.

os-Montes realizado em 1530, observamos que nesse período Hierarquização e Territorialização


de recuperação demográfica, após as incertezas dos dois sécu-
los anteriores, a maior concentração populacional, que era Mas era acima de tudo um processo de hierarquização das
Bragança, não ultrapassava os quatrocentos e oitenta e um comunidades que se encontrava implicado na criação de
moradores seguida, ainda na casa dos quatrocentos, apenas uma vila nova. Pretendia-se criar cabeças de território que
por Vila Real e Freixo de Espada à Cinta. Em sessenta sedes concentrassem e polarizassem as justiças, a recolha das ren-
de concelho apenas doze possuíam mais de cem moradores. das, as trocas, a circulação e a defesa. Um exemplo deste
Estes números poderão ser tanto mais significativos para modelo que se pretende implementar colhe-se nos textos
uma aproximação às realidades demográficas da 2ª metade dos sucessivos forais outorgados a Vila Real por D. Dinis,
do século XIII e 1ª do XIV quanto, após as incertezas da em 1289 e em 1293. Começam aqueles textos por deter-
segunda metade do século XIV e do século XV, estávamos de minar que os dois juizes eleitos pelo concelho de Vila
novo diante de uma fase de recuperação e incremento demo- Real seriam juizes em toda a terra de Panóias devendo os
gráfico. seus moradores virem hy ao julgado assy come viynam ante a

269
Paulo Dordio Gomes

Constantim28 acrescentando adiante para reforço da dispo- dradores os capitais políticos suficientes para a criação de uma
sição, que esta vila Real seia cabeça de toda a terra de Panoyas e venha Vila veremos aparecer tão só uma Povoação Arruada. As dinâ-
hy a seu Joyzo e a ssa iustiça e que nom aia Tabliões em toda a terra de micas económicas e de relação são suficientes para a emergên-
Panoyas saluo os de vila Real29. A recolha de todas as rendas, cia de uma Povoação arruada mas para a edificação de uma
direitos e foros devidos ao rei na terra de Panóias passa Vila é sobretudo necessário uma forte intenção política hierar-
para a responsabilidade do concelho de Vila Real que por quizadora do território.
ela passaria a pagar, de acordo com a segunda daquelas car- Neste processo de subordinação de umas comunidades a
tas régias, o valor global fixo de três mil e quinhentas libras outras os interesses de cada uma chocavam necessariamente
da moeda velha husada de Portugal30. Nos dois textos deter- com os das vizinhas desenvolvendo-se fenómenos de con-
mina-se também a criação em Vila Real de uma feira anual flito entre comunidades como os que opuseram no reinado
por Santa Maria de Agosto e uma feira mensal três dias de D. Dinis a vila de Chaves à pretensão autonomizadora
depois da de Chaves, as quais eram as únicas feiras realiza- dos homens de Montenegro ou as vilas de Mirandela e de
das em toda a terra de Panóias. Para reforço desta centra- Torre de D. Chama entre si ou ainda a vila de Freixo de
lidade das trocas determina ainda o texto mais antigo que Espada à Cinta à sua aldeia de Alva cuja vontade era a de recu-
non aia venda de Regatia nenhuma nem Méésteyrááes ata huma legua perar o antigo estatuto de autonomia. Com efeito, a ideia de
a cada parte de vila Real31. Era a mesma centralidade que se hierarquização era estranha ao mundo das formas primitivas
procurava estabelecer na circulação de pessoas e bens das comunidades. Esta parece ter sido a principal dificul-
quando se ordena que o caminho que vae de Panoyas para Ama- dade com que este processo deparou, na origem dos aban-
rante que váá per essa vila de vila Real e nom per alhur32 assegu- donos e desertificações a que foram votadas muitas das
rando-se assim que a portagem da passagem se tirasse na novas fundações quando, mais tarde, o poder régio se desin-
vila assy como sse tirou ata aqui en Mondrões33. teressou de continuar a investir na sua manutenção.
As próprias designações de muitas das vilas novas de fun-
dação régia ao adoptarem o nome da antiga Terra ao mesmo
tempo que tomavam para seu termo os limites daquela ante- Morfologia urbana das vilas e póvoas
rior organização do território, mostram que o objectivo era de fundação régia
substituir um modelo de antigas centralidades por outro. Nas
antigas Terras, o lugar central dissociava-se entre o castelo e o As funções urbanas resultam da cidade ser o lugar da con-
burgo. O primeiro é o castelo cabeça de Terra, centro político e centração do poder político obtendo assim jurisdição
sobre um determinado território34. As características de
militar, localizado num ponto isolado, enquanto o segundo é
concentração demográfica, concentração de artesãos e
o lugar da feira, a Rua ou Estrada em que se transforma um
comerciantes ou dos funcionários, intelectuais e institui-
troço particular do caminho mais percorrido. Temos assim ções religiosas, que marcam, em maior ou menor grau, o
Penafiel e Arrifana de Sousa, Castelo de Paiva e Sobrado, Cas- tecido social mas também físico dos núcleos urbanos
telo de Mouçós e Constantim de Panóias. A concentração de medievais tem origem na função política que estes exercem.
ambos num mesmo local dará origem à Vila. Mas se as dinâ- A monumentalidade das construções –muros da cerca, cas-
micas locais não conseguem reunir junto dos poderes enqua- telos, torres, templos, praças, pórticos– será uma das mar-

28 AZEVEDO 1899: 60-61.


29 AZEVEDO 1899: 63.
30 AZEVEDO 1899: 63.
31 AZEVEDO 1899: 53..
32 AZEVEDO 1899: 50.
33 AZEVEDO 1899: 51.
34 MATTOSO 1992a: 15.

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TRÁS-OS-MONTES E O ALTO DOURO: DA DEFINIÇÃO DO TERRITÓRIO DA MONARQUIA PORTUGUESA
NA IDADE MÉDIA À SECUNDARIZAÇÃO DE UM ESPAÇO REGIONAL

Fig. 6. Santa Cruz da Vilariça (Torre de Moncorvo, Bragança). A vila da Santa Cruz da Vilariça, abandonada na passagem do século XIII para o XIV, implantava-
se na coroa de uma colina que, não apresentando uma cota muito elevada, destaca-se na paisagem dominando as terras baixas e planas do amplo Vale da Vilariça. Uma cerca
amuralhada de alvenaria de xisto circuitava a coroa da colina existindo uma única entrada a NO. ladeada por duas torres tronco-cónicas maciças. No espaço delimitado pela
cerca (com uma área aproximada de 1.2 ha) são visíveis vestígios de casas e arruamentos observando-se no topo da colina as ruínas da igreja com um pequeno adro e neste
uma torre arruinada.

cas do tecido urbano exprimindo, na permanência e soli- cidades havia ocasionado, a cerca impõe consciência de
dez da sua materialidade, aquela concentração do poder. O unidade aos diferentes grupos de vizinhos que tendiam a
investimento na individualização urbana do lugar onde manter a sua pluralidade, muitas vezes constituindo-se em
habita a oligarquia, a vila, como superior ao das aldeias do bairros e paróquias distintas35.
termo, foi particularmente notável na construção das cer- A morfologia das póvoas de fundação régia mais antigas,
cas urbanas que marcaram profundamente a diferença entre correspondendo às iniciativas implementadas durante os rei-
a vila e as aldeias do termo. E se, para o exterior, o princi- nados de D. Sancho I a D. Sancho II (de c.1180 a c.1230),
pal significado dos muros da cerca era marcar a relação de não é facilmente perceptível. Das posteriores transforma-
subordinação entre o centro urbano e as aldeias do seu ções da estrutura urbana que a maioria dos povoados sofreu,
termo, para dentro, ao delimitarem um espaço comum de resultou o apagamento daqueles elementos originais mas a
vida e habitação às populações de diversas origens que a observação e valorização de alguns exemplos melhor preser-
concentração demográfica decorrente do surto das vilas e vados permite a individualizar um mesmo tipo urbano36. A

35 Carlos Alberto Ferreira de Almeida as designa por “cercas reunião”, acrescentando que esta “parece ter sido uma das fundas motivações do seu surto”
(ALMEIDA 1992: 139). DALCHÉ 1989: 299-324 e em especial 309-313 sobre a estrutura em bairros-paróquias apartados e que o muro da cerca unifica, nas cidades
criadas na Meseta após a reconquista e repovoamento.
36 A antiga vila de Alva (Freixo de Espada à Cinta), que conheceu uma situação de abandono precoce com a consequente fossilização da estrutura original,
poderá servir de guia na procura dos principais elementos definidores daquele tipo. Implantada sobre uma colina destacada na encosta do Douro, dominando a pas-
sagem no rio onde existiu a barca do mesmo nome, observam-se ainda hoje nesse local as ruínas da povoação abandonada como vila na década de 1230: muralhas de
alvenaria que rodeiam um cabeço destacado na paisagem, delimitando uma reduzida área. O plano é ovalado deixando no exterior próximo a igreja de Santa Maria.
Observam-se os vestígios de apenas uma torre defendendo o que parece ter sido a única porta. O mesmo modelo que se percebe também estar presente nas pequenas
vilas vizinhas da de Alva como Mós, Santa Cruz da Vilariça (Torre de Moncorvo), Castelo Melhor (Vila Nova de Foz Côa) ou mesmo em Freixo de Espada à Cinta.

271
Paulo Dordio Gomes

muralha da cerca caracteriza-se por um plano de dimensão uma “defesa activa” que obrigava à multiplicação dos pon-
circunscrita e linhas arredondadas, sem nunca fazerem ângu- tos de tiro37. Entre as soluções encontradas regista-se o
los, tendendo para um desenho ovalado. Verifica-se, por incremento do número de torres adossadas aos panos de
vezes, a existência de torres circulares, ligeiramente tronco- muralha e o seu espaçamento regular. Ao mesmo tempo
cónicas, protegendo a porta. A construção é de alvenaria, observa-se, no desembaraço com que se lançam a direito
com pedra miúda, não se observando ainda a utilização da longos troços de muro, uma superior capacidade construtiva
pedra de cantos trabalhados.
das cercas urbanas que mostram agora muralhas mais espes-
As póvoas que se fundam na segunda metade do século sas e com aparelhos de construção que abandonam definiti-
XIII, nos reinados de D. Afonso III e D. Dinis, mostram nor- vamente a irregularidade para adoptarem o tipo quadrado,
malmente áreas superiores e uma estrutura mais evoluída. O isódomo ou pseudo-isódomo. Estas soluções arquitectóni-
plano estendeu-se mantendo a forma ovalada ou tendendo cas, que representavam um importante reforço das fortifica-
já para o rectângulo ou o quadrado, embora ainda não se ções para uma eficaz defesa activa, não parecem porém
concretizem traçados absolutamente rectilíneos. Na organi- encontrar correspondência nas estratégias seguidas pelos
zação urbana é agora recorrente o padrão ortogonal, com exércitos combatentes: “ao assalto dos muros prefere-se a
eixos longitudinais estruturadores cortados em ângulo batalha campal”, a escaramuça no exterior dos muros ou o
quase recto por ruas travessas mais estreitas, indiciando um cerco prolongado38. O valor militar das fortificações era
superior cuidado na planificação dos novos núcleos. As assim sobretudo dissuasório e, mais do que isso, torna-se
torres continuam a concentrar-se nas portas que surgem em evidente que o esforço construtivo das cercas urbanas góti-
maior número. Para além do muro da cerca, a construção de cas assumia outros significados ultrapassando em muito os
um castelo ou alcáçova parece neste momento completar em militares e bélicos, sendo, acima de tudo, a expressão da
muitos casos o sistema de defesa das vilas e póvoas. Nesta
nova importância política dos núcleos urbanos enquanto
fase, a construção de alvenaria surge em paralelo à utilização
estruturadores do território.
ainda não sistemática da pedra de cantos trabalhados.
Duas distintas tendências de reforço gótico das estrutu-
Nos séculos finais da Idade Média, as crescentes áreas
ras de fortificação parecem acompanhar a evolução urbana
urbanizadas viram-se muitas vezes envolvidas por novos tro-
das vilas e póvoas caracterizadas ainda por uma expansão e
ços de muros rectilíneos ligando pontos distantes entre si a
crescimento generalizados. Com efeito, acompanhando o
que se adossam torres quadrangulares assistindo-se também
movimento geral que, durante os reinados de D. Afonso IV
à construção sistemática com pedra de granito de cantos
trabalhados. e de D. Fernando, viu construir os muros das novas cercas
dos principais núcleos urbanos do Reino como Évora, Beja,
Porto, Viana do Lima, Braga, Ponte de Lima, Santarém,
Reformulações do final Coimbra, Óbidos e Lisboa, as novas áreas urbanizadas
viram-se muitas vezes envolvidas por novos troços de muros
do séc. XIV e séc. XV rectilíneos ligando pontos distantes entre si a que se adossa-
Os séculos finais da Idade Média, assinalam o desenvolvi- ram torres quadrangulares recorrendo sistematicamente à
mento das soluções da arquitectura militar gótica que construção com pedra de granito de cantos trabalhados.
correspondiam a novos princípios da arte da guerra. A Este modelo de desenvolvimento surge de forma muito clara
“defesa passiva”, típica das fortificações românicas, em que na planta da cerca da vila de Ansiães (actual concelho de
os objectivos consistiam sobretudo em resistir, evolui para Carrazeda de Ansiães) onde o arrabalde formado no exte-

37 ALMEIDA 1978: 9-10; ALMEIDA 1986: 137-138; BARROCA 1990/91: 125-6.


38 SILVA 1991: 59-63.

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TRÁS-OS-MONTES E O ALTO DOURO: DA DEFINIÇÃO DO TERRITÓRIO DA MONARQUIA PORTUGUESA
NA IDADE MÉDIA À SECUNDARIZAÇÃO DE UM ESPAÇO REGIONAL

rior da cerca ovalada original se encontra envolvido por uma ramento de 1527-32 descreve a vila de Freixo com um bõo cas-
segunda cerca de perímetro irregular cujo desenho se adapta tello, forte, cerqado, omde nam vyve mais que o alcayde. O número de
ao terreno e à nova área urbana. Aqui, é de particular inte- moradores na vila e arrabaldes atingia a elevada soma de
resse a carta régia de 19 de Junho de 138439 ao referir-se à 447 (apenas ultrapassada, na Comarca de Trás-os-Montes,
obra de grande dimensão que o concelho de Ansiães fazia por Bragança e Vila Real respectivamente com 481 e 478).
na cerca da vila no final do século XIV: o concelho e homens Quase contemporâneas, as vistas da vila desenhadas por
bons de Ansiães tinham enviado dizer a D. João que a vila Duarte D’Armas, mostram a antiga cerca ovalada transfor-
era cercada a mor parte dela de pedra miuda E que ora acercam de mada num forte castelo de silharia de granito com numero-
camto talhado e de torres para o que as terças das igrejas da vila, sas torres adossadas e rodeado pelo muro baixo da barbacã
concedidas pelo rei D. Pedro I para a manutenção das suas ao mesmo tempo que um já extenso arrabalde desprotegido
fortificações, não constituíam rendimento suficiente. Este de qualquer estrutura fortificada que o circunscreve-se,
padrão de desenvolvimento que se documenta em relação a expandia-se a partir da igreja de S. Miguel.
Ansiães nos finais do século XIV está igualmente bem
patente nas plantas das cercas urbanas de Castelo Mendo,
um pouco mais a Sul no vale do Côa. Padrões urbanos nos séculos XV e XVI:
Os muros das cercas urbanas das vilas de Marialva e de expansão ou desertificação urbanas
Numão ilustrando traçados tendencialmente rectilíneos
unindo pontos distantes e ao mesmo tempo paramentos de As vilas da fronteira representadas nos desenhos de Duarte
bom aparelho quadrado reforçados por torres, parecem de Armas mostram frequentemente a formação de arrabal-
corresponder igualmente a esta fase tardia. No mesmo sen- des no exterior das cercas. Ao contrário das cercas de época
tido aí se observa a sobreposição do traçado dos muros a românica, as Baixo-Medievais tendem a possuir um grande
estruturas pré-existentes como a igreja de Santa Maria em número de portas que recebem, normalmente, o nome da
Numão ou a torre sineira da desaparecida igreja de São João vila vizinha cuja direcção tomavam41. A expansão urbana
em Marialva, a qual acabaria integrada no próprio muro. para fora das cercas inicia-se ao longo destes acessos dando
Porém, esta opção de envolvimento fortificado dos arra- origem a arrabaldes inicialmente individualizados. A partir
baldes entretanto formados, foi em outros casos preterida daqui os destinos da morfologia urbana destas vilas frontei-
em relação a uma concentração e adensar de estruturas for- riças tornar-se-ão acentuadamente divergentes. Algumas,
tificadas sobre o perímetro da cerca primitiva, que se via apresentando um padrão de crescimento, tenderão ao pro-
desta forma convertida numa alcáçova ou castelo de tipo gressivo encobrimento dos muros da cerca, pelo adossa-
gótico. O exemplo da vila de Freixo de Espada à Cinta mos- mento de casas e outras construções, em resultado da
tra-se paradigmático em relação à última opção. As fortifi- densificação da malha urbana. É possível observar, nestes
cações desta vila parecem ter sido alvo da intervenção de D. casos, a formação de circunvalações do perímetro urbano,
Dinis afirmando Rui de Pina na Crónica daquele rei que ele único testemunho muitas vezes nos nossos dias, do traçado
povoou de novo, e fez o castelo de Freixo. Mas o adensar das dos antigos muros das cercas. Outras, numerosas, parecem
estruturas fortificadas góticas que se observa posterior- mostrar desde cedo um padrão de decadência e despovoa-
mente deverá ter-se iniciado com D. Fernando o qual, numa mento ocasionando um movimento clássico de desloca-
carta datada de 1376, se refere à construção de hum aparta- mento e transferência dos moradores para novas
mento da alcaçere40. Chegados ao início do século XVI, o Nume- concentrações que se desenvolvem no sopé de encosta.

39 Doc. nº 58 in ALVES 1983-1987: IV, 215.


40 Doc. nº 96 in ALVES 1983-1987: IV, 281.
41 ALMEIDA 1992: 140.

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Paulo Dordio Gomes

A formação dos arrabaldes extra muros nas diferentes litoral assumiram uma estratégia expansionista com o objec-
vilas mostra um esquema de desenvolvimento muito tivo de delimitar o território de um Reino.
semelhante. No exterior da principal porta do muro da Entre a Ribeira e a Montanha localizam-se cristas mon-
cerca forma-se habitualmente um largo de configuração tanhosas (como o Marão, a Serra da Freita, o Caramulo)
variada. Aí se parece concentrar grande parte da actividade
atravessadas a espaços por vias de penetração constituídas
pública e de relação realizada no povoado. Aí se localiza
por caminhos e rios navegáveis sobre as quais se desenvolve
normalmente a igreja matriz. Será também aí que vemos
toda uma rede de específicas Povoações de Caminho ou de
muitas das vezes serem construídos a Casa da Câmara, o
Pelourinho ou a nova Igreja da Misericórdia. Desse largo Beira da Estrada. O rio Douro, até onde era navegável, mos-
partem depois os principais eixos de saída, os troços iniciais tra-se um dos principais destes eixos que facilitavam o rela-
dos caminhos que ligam às vilas vizinhas, os quais estrutu- cionamento entre a Ribeira e a Montanha. Já entre a
ram o desenvolvimento e expansão do arrabalde. Montanha e a Periferia, estrutura-se um Limes, para além do
qual estão espaços a dominar e que através dessa dominação
A formação de extensos arrabaldes no exterior dos muros
externa acabarão arrancados às suas ligações tradicionais
liga-se frequentemente à rarefacção demográfica ou mesmo à
configurando a prazo um espaço desarticulado, periférico,
desertificação do espaço no interior das cercas. A concessão de
dependente e incapaz de se subtrair por si só a uma lógica
privilégios aos que optassem por morar muros adentro será
por isso uma preocupação régia nestes séculos finais da Idade de subdesenvolvimento.
Média. Entre os reinados de D. Pedro I e de D. Duarte multi- Numa primeira fase, o poder régio procurou na criação
plicam-se as cartas régias isentando-os de determinados paga- de uma rede micro urbana de vilas e póvoas uma estratégia
mentos ou serviços e concedendo-lhes certos privilégios. de dominação claramente extensiva. Impôs então modelos
Neste fenómeno estava também o anúncio de uma crise do estranhos à região que, no compromisso possível com as for-
poder e da autoridade que as muralhas das cercas representa- mas de organização tradicionais das comunidades locais,
vam. Em algumas vilas este despovoamento do interior das apenas perseveraram enquanto perseverou o interesse e o
cercas será levado ao extremo do incremento em substituição investimento régio na sua manutenção. Numa segunda fase,
de uma aldeia do termo que assume então uma posição demo- que se inicia com o fim da Idade Média, o poder régio parece
gráfica destacada e obtém em seguida, em maior ou menor começar a desenvolver uma outra aproximação a toda esta
grau, muitas das funções centrais da antiga vila. região periférica. A Fronteira começava a deixar de ser enten-
dida como uma região e um conjunto de comunidades peri-
féricas. Era agora cada vez mais uma linha bem definida e
Da periferia à fronteira: um modelo cartografada sobre a qual se abriam determinadas “Entradas
das relações entre o centro e a periferia Geográficas” na feliz expressão de António Sérgio (1978:
A Norte do Sistema Central, o território português estrutu- 185), as rotas que permitiam o acesso à capital do Reino.
rou-se na longa duração segundo três subregiões meridianas: a O mapa dos castelos que foram palco das principais operações milita-
Ribeira das cidades litorais e da ligação fácil ao Sul, que já nas res entre 1367 e 1449, publicado por João Gouveia Monteiro
descrições dos mais antigos geógrafos surgem individualizadas (1999: 31, Mapa 2), deixa já claramente perceber um
como as Turdulorum Oppida; a Montanha correspondendo às áreas padrão que as guerras dos séculos XVII, XVIII e inícios do
do Barroso, Chaves, Vila Real de Panóias, Lamego e Viseu, cuja XIX (iniciando-se na Guerra da Restauração, passando pela
individualidade não impede que as ligações preferenciais se Guerra da Sucessão e culminando nas Invasões Francesas)
estabeleçam com a região litoral; e a Periferia, a região mais inte- instalariam definitivamente. O interesse e o investimento do
rior de Trás-os-Montes e da Beira Alta, já longe do litoral e poder régio sobre a organização do território nas Terras de
que procura nos caminhos da Meseta o espaço privilegiado de Fronteira tenderão a concentrar-se sobre aquelas “Entradas
relacionamento. A história desta região nos últimos mil anos Geográficas”. Aí, algumas das antigas vilas transformar-se-
mostra um espaço a organizar como fronteira e uma área a ão em imensos quartéis militares (como Almeida) enquanto
repovoar e dominar quando os poderes estabelecidos na região o restante território da periferia se verá abandonado à sua

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TRÁS-OS-MONTES E O ALTO DOURO: DA DEFINIÇÃO DO TERRITÓRIO DA MONARQUIA PORTUGUESA
NA IDADE MÉDIA À SECUNDARIZAÇÃO DE UM ESPAÇO REGIONAL

sorte, coarctado das suas ligações tradicionais e incapaz por


si só de inverter o caminho da pauperização e do subdesen-
volvimento (Cortés Cortés, 1990). Despovoamento e pres-
são militar seriam doravante os resultados de uma relação
desequilibrada com um longínquo centro a cujas decisões os
interesses específicos da periferia são alheios.
Fig. 7. Planta de Cedovim (Vila Nova de Foz Côa, Guarda). Actual aldeia do
concelho de Vila Nova de Foz Côa, a planta exibe um padrão muito regular de vila
nova provavelmente de construção contemporânea da carta de foral que obteve de D.
Afonso III, datada de 1271. A observação da planta permite facilmente reconhecer
o traçado ovalado de uma cerca desaparecida. No interior, é muito nítido um plano
urbano planificado ortogonal com um eixo maior longitudinal e diversos outros
transversais que o cruzam em ângulos próximos dos 90º. Parte do quarteirão for-
mado no cruzamento dos dois principais eixos, corresponde a um largo rectangular
onde se veio a localizar o pelourinho e a Casa da Câmara. O encontro dos dois eixos
maiores com a cerca devia dar lugar a 4 portas, na origem dos principais caminhos
de saída. Todo este conjunto se implanta no topo de uma colina pouco elevada de con-
torno ovalado e de topo aplanado. Em 1320-21 já se regista a existência das igre-
jas de S. João Baptista e da nova paroquial de Santa Maria. Ambas se localizavam
junto de dois dos caminhos de saída tendo originado a formação de arrabaldes em
torno dos largos formados pelos respectivos adros.

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