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DIMENSÃO INTERSUBJETIVA DA

AUTO-REALIZAÇÃO
Em defesa da teoria do reconhecimento*

Ricardo Fabrino Mendonça

A teoria do reconhecimento tem se firmado como caráter relacional e agonístico da construção da


um frutífero quadro conceitual para compreender sociedade.
as lutas sociais. Ela oferece uma matriz interpreta- No entanto, alguns autores operam com a pala-
tiva atenta à dimensão moral dos conflitos sociais vra reconhecimento de modo distinto, como se ela fosse
e capaz de perceber a complexidade de tais con- um novo nome para lutas simbólicas ou um novo
flitos, em suas dimensões materiais, simbólicas e jeito de falar de lutas pela valorização de identidades.
legais. A noção de reconhecimento traz a inter- Seja para defender uma noção alternativa de reco-
subjetividade para o cerne da justiça e destaca o nhecimento – como o fazem Nancy Fraser e Anna
Galleotti – ou para criticá-la – como o faz Patchen
* Agradeço aos integrantes do Grupo de Pesquisa em Mí-
dia e Esfera Pública (UFMG) e do Grupo de Pesquisa Markell –, o que se vê é uma descaracterização das
em Comunicação, Internet e Democracia (UFBA) pelas idéias que Taylor e Honneth buscam em Hegel para
contribuições que fizeram a uma versão preliminar deste renovar a teoria crítica. O reconhecimento é visto simples-
artigo. Sou particularmente grato a Rousiley Maia, Wilson
Gomes, Sivaldo Silva e Francisco Marques. Também sou mente como a luta de grupos minoritários para al-
grato a John Dryzek, Claus Offe e Selen Ayirtman pelos terar sentidos partilhados ou valorizar especificida-
comentários e discussões que contribuíram para a elabora- des culturais.
ção deste artigo. Agradeço, por fim, aos revisores anôni-
mos de RBCS por suas sugestões, bem como à Fapemig e
O objetivo deste artigo é contestar algumas das
à Capes pelo auxílio sob a forma de bolsas.rsal). críticas que emergem desse uso esvaziado da teoria
Artigo recebido em agosto/2008 do reconhecimento. Procuramos mostrar que o re-
Aprovado em fevereiro/2009 conhecimento não é apenas uma estratégia cultural
RBCS Vol. 24 no 70 junho/2009

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para a valorização de identidades grupais. É essa filosófico que vai se delineado em finais da década
visão que leva alguns autores a criticar Honneth e de 1990. Também importante nessa trajetória foi
Taylor por re-essencializar identidades, fomentar a um colóquio realizado em Londres em 1999, que
idéia do self-soberano e negligenciar o fato de ha- contou com a participação de Scott Lash, Mike Feat-
ver reivindicações socialmente injustificáveis. herstone, Zygmunt Bauman, Stuart Hall e Boaventu-
Nesse sentido, iniciaremos com uma breve ra Santos, além de Honneth e Fraser.2 Os anos 2000
contextualização da teoria do reconhecimento e assistem não só ao aprofundamento do debate en-
destacaremos algumas críticas a ela. Ater-nos-emos tre Fraser e Honneth, mas às significativas contri-
a um dos pontos do debate entre Honneth e Fraser buições de James Tully (2000, 2004), Anna Galeotti
e à proposta de acknowledgment advogada por Mar- (2002) e Patchen Markell (2000, 2003, 2006). Tam-
kell. Em seguida, buscaremos evidenciar como algu- bém trazem novo fôlego as idéias de Zurn (2003,
mas das críticas ignoram o alicerce intersubjetivo da 2005), Kompridis (2007), Seglow (2009), Forst (2007),
teoria do reconhecimento e formularemos nossas res- Caillé (2008) e Feldman (2002). No Brasil, além de
postas a partir do próprio marco do reconhecimento. aplicações e leituras do conceito, é importante men-
Importante deixar claro, desde já, que o pre- cionar o rico trabalho de Jessé Souza (2006, 2003)
sente artigo não se propõe a escrutinar todas as di- que investiga a Invisibilidade da desigualdade brasileira e
mensões do debate acerca do reconhecimento e a Construção social da subcidadania.3
nem a afirmar que todos os elementos das propos- Não é nosso intuito, aqui, explicar detalhada-
tas de Taylor e Honneth são inquestionáveis.1 Mais mente as bases conceituais e proposições de cada
modesto, o texto busca refletir sobre a definição da um desses autores. Para tanto, há extensa e consolida-
idéia de reconhecimento, algo que é alvo não ape- da literatura,4 sendo que também já nos dedicamos
nas de contendas teóricas, mas das próprias lutas a essa empreitada em outros artigos (Mendonça,
por reconhecimento (Kompridis, 2007, p. 277). 2007; Mendonça e Ayirtman, 2007). É importante,
todavia, situar alguns elementos fundamentais da
teoria do reconhecimento a fim de facilitar a com-
As bases do reconhecimento em Taylor preensão das críticas a ela dirigidas e das respostas
e Honneth que propomos.
A emergência da idéia de reconhecimento na Como já mencionado, o precursor da teoria
teoria política contemporânea está ligada aos estudos do reconhecimento é o filósofo Charles Taylor
sobre multiculturalismo. Foi marcante, nesse senti- (1994) que revisita a obra de Hegel para propor
do, a palestra proferida por Charles Taylor na inau- uma renovada teoria da justiça. Taylor (1997, 1994)
guração do Princeton University’s Center for Hu- está essencialmente preocupado com os processos
man Values, em 1990, na qual ele mostrou a riqueza de construção do self, defendendo que os indivíduos
da idéia de reconhecimento intersubjetivo para lidar com dependem do reconhecimento intersubjetivo para
os dilemas entre igualdade e diferença. Pouco de- se auto-realizarem. Em uma arqueologia filosófica,
pois, em 1992, Axel Honneth publica Kampf um o autor demonstra como o mundo ocidental cons-
Anerkennung (Luta por reconhecimento), obra em que truiu uma “noção multifacetada de self ” (Taylor,
busca atualizar alguns insights hegelianos por meio 1997, p. 273). Noção essa que é atravessada por
da psicologia social de Mead. categorias como a racionalidade, a autonomia, a
Desde então, a filosofia política tem sido palco interioridade e a autenticidade, que foram construí-
de um frutífero debate. A palestra de Taylor foi das filosófica e praticamente ao longo de séculos.
publicada em um livro editado por Amy Gutmann Caras aos indivíduos ocidentais, essas categorias te-
e analisada por autores de peso como Habermas, riam possibilitado tanto a universalização da noção
Walzer e Appiah. Em 1995, Nancy Fraser se insere de dignidade, como o surgimento da idéia de que
no debate, confrontando a idéia de reconhecimento os indivíduos precisam ser verdadeiros consigo pró-
com a de redistribuição. A mesma autora desen- prios. A idéia é a de que todos merecem respeito,
volve esses insights iniciais em um coerente quadro mas cada um tem uma identidade singular que ganha

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sua forma moral em associação com o ideal de Honneth (2003a) afirma que o não-reconheci-
autenticidade (Thompson, 2006, p. 23). mento nesses três âmbitos se manifesta por meio da
Segundo Taylor (1994), o reconhecimento en- violência física, da denegação de direitos e da desvalorização
volve, portanto, um misto de políticas universais e po- social de certos sujeitos por seus atributos e modos
líticas da diferença. Para alcançar a possibilidade de de vida. Essas formas de desrespeito impedem a
auto-realização, as pessoas lutam, simultaneamente, auto-realização do sujeito, mas também podem fo-
por dignidade e para que suas particularidades se- mentar uma reflexividade, que nasce da indignação mo-
jam reconhecidas. Fazem-no em esferas íntimas e ral. Tal compreensão reflexiva pode ser coletivizada
públicas de interação social. Taylor sugere que, nessas e se desdobrar em lutas sociais por reconhecimen-
lutas, a diferença profunda deve ser submetida a com- to, que são essenciais para a evolução moral da sociedade.
parações de modo a promover fusões de horizontes, É na força emancipatória da interação que
no sentido gadameriano do conceito. Isso depende Honneth deposita suas esperanças de um mundo
da interação permanente com o outro. melhor. Aos moldes frankfurtianos, ele procura uma
Tal como Taylor, Axel Honneth (2001a, 2003a, instância intramundana de transcendência, en-
b e c) também embasa sua proposta na filosofia de contrando nas lutas por reconhecimento uma pos-
Hegel, recorrendo, especificamente, aos seus escri- sibilidade efetiva de transformação da realidade
tos no período de Jena. Seu modelo teórico assinala (Alexander e Lara, 1996). Essas lutas levariam à edi-
a gramática moral que rege os conflitos sociais, bus- ficação de padrões de interação mais propícias à
cando ultrapassar a idéia de que tais lutas são sim- auto-realização, suscitando ganhos em termos de
plesmente governadas pela razão instrumental e pelo individualidade e inclusão (Honneth, 2003b, p. 187).
desejo de autoconservação. Para Honneth, é por Esta é a base da eticidade formal proposta por
meio do reconhecimento intersubjetivo que os su- Honneth, sendo que sua concepção de boa vida não
jeitos podem garantir a plena realização de suas ca- se apresenta como um fim preestabelecido. Trata-se
pacidades e uma auto-relação íntegra, uma vez que de precondições que podem garantir a integridade
as identidades são construídas relacionalmente. dos sujeitos e que se transformam historicamente.
Segundo o filósofo alemão, o reconhecimento Atualmente, essas precondições envolveriam o
constrói-se em três domínios: o amor, os direitos e a amor, os direitos e a estima, ainda que outras dimen-
estima social. Das relações emotivas fortes adviria um mis- sões possam surgir. Honneth (2003b) cogita, por
to de dependência e autonomia, essencial para que exemplo, que o reconhecimento dos sujeitos como
os sujeitos desenvolvam sua autoconfiança. Os direitos, membros de um grupo cultural pode transformar-
por sua vez, garantiriam uma universalização da se em uma quarta dimensão. A questão é que essas
dignidade, fomentando o auto-respeito, na medida em dimensões devem conduzir à auto-realização, o que
que possibilita aos sujeitos verem-se como dignos transcende especificidades culturais.
do mesmo respeito que os demais. Por fim, a pos-
sibilidade de estima social está enraizada na comu-
nidade de valores e diz respeito à apreciação das A crítica à autodeterminação em Fraser
potenciais contribuições sociais e das realizações de e Markell
indivíduos. Tal possibilidade está no cerne da noção
de auto-estima e da construção da solidariedade.5 As propostas de Taylor e Honneth estão cen-
tradas na auto-realização e na identidade. No cerne
Na sociedade moderna, as condições para a das preocupações deles, estão a formação do self e
auto-realização individual só estão socialmente sua capacidade de manter uma relação saudável
asseguradas quando os sujeitos podem experien- consigo mesmo. Para ambos os filósofos, há uma
ciar o reconhecimento intersubjetivo não ape- gramática moral que rege os conflitos sociais, le-
nas de sua autonomia pessoal, mas também de vando sujeitos a contestar significados, valores e
suas necessidades específicas e capacidades par- padrões interativos desrespeitosos, visto negarem a
ticulares (Honneth, 2003b, p. 189). possibilidade de auto-realização.

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Essa centralidade da identidade e da auto-reali- ral, mas como o sofrimento de ver sua autenticida-
zação na teoria do reconhecimento é alvo de mui- de negada?
tas críticas. Nancy Fraser (2000, 2001, 2003a) opõe- Se a crítica de Fraser é estrutural e advoga uma
se, diretamente, a esse paradigma identitário e clama grande reformulação na teoria de reconhecimento,
por uma reformulação da idéia de reconhecimento as idéias de Patchen Markell (2000, 2003, 2006) ne-
a partir da noção weberiana de status. Ela propõe gam a própria validade da luta por reconhecimen-
uma guinada da eticidade hegeliana para a morali- to. A tese de Markell é a de que o ideal de reconhe-
dade kantiana, afirmando que o reconhecimento cimento (recognition) está ligado a uma busca de
deve combinar-se à redistribuição como dimensões autoconhecimento que é bastante perigosa. Os sujeitos
analiticamente distintas da justiça. procurariam compreender quem são e lutariam para
Na visão dela, a justiça deve ser medida não promover o reconhecimento respeitoso desse ser.
pela auto-realização, como sugere o paradigma iden- Essa visão trataria a identidade como algo que pre-
titário, mas pela paridade de participação. Este seria o cede a ação dos sujeitos em face de outros.
critério moral para julgar os conflitos sociais. De De acordo com Markell, a luta por reconheci-
acordo com Fraser, a justiça social não deve se ligar mento seria, portanto, uma aspiração à soberania; à
a uma concepção específica de bem viver. De cará- capacidade de definir-se como ser independente e
ter deontológico, ela deve ser norteada pelo certo, autodeterminante. Isso se deve, segundo ele, à for-
em vez do bom; pela moral, em vez da ética; pela ma como os propositores do reconhecimento tra-
paridade de participação, em vez da auto-realização. tam a questão, percebendo-a como um bem reivin-
Para Fraser, perspectivas focadas na identidade dicado, perseguido e almejado por atores políticos
seriam erros teóricos e políticos, que (Markell, 2006, p. 33). Ao vislumbrar um futuro
“em que identidades antes negligenciadas, suprimi-
[...] servem não para promover a interação res- das e subvalorizadas sejam própria e publicamente
peitosa em contextos crescentemente multicul- reconhecidas” (Markell, 2003, p. 56), Taylor, por
turais, mas para simplificar e reificar drastica- exemplo, acabaria por reproduzir o anseio por so-
mente grupos identitários. Elas tendem a berania que ele mesmo critica. Ele reencontraria a
encorajar o separativismo, a intolerância e o possibilidade de soberania na correspondência en-
chauvinismo, o patriarcalismo e o autoritaris- tre a ação dos sujeitos e quem eles realmente são.
mo (Fraser, 2000, p. 108). Para Markell, o problema do reconhecimento
é esta sempre presente aspiração por soberania.
Nessa visão, colocar a identidade no cerne da Com Sófocles, ele lembra que o desejo de auto-
teoria do reconhecimento impede Honneth e Taylor suficiência pode conduzir à tirania. Paradoxalmen-
de discernirem as lutas justificáveis das injustificá- te, a busca por reconhecimento acabaria por pro-
veis (Fraser, 2003a). A perspectiva deles careceria duzir não-reconhecimento, na medida em que gera
de um critério de justiça que se sobrepusesse aos subordinação. Ao procurar uma sensação de maes-
anseios dos sujeitos por realizarem seus desejos. Se tria e invulnerabilidade, algumas pessoas cerceiam
a questão é garantir a auto-realização dos sujeitos, as possibilidades de vida de outras; “e é o caráter
qualquer reivindicação poderia ser tautologicamen- explorador dessa relação, em vez de uma falta de
te defendida como importante desde que almejada correspondência entre o modo como as pessoas
pelos sujeitos. Como argumentar, por exemplo, são vistas e quem elas realmente são, que a faz injus-
contra grupos extremistas e fundamentalistas que ta” (2003, p. 23). A injustiça, nesse viés, encontra
atrelam sua realização à eliminação de outros gru- suas raízes nos privilégios e nas subordinações que
pos? Como negar-lhes o direito de “auto-realiza- emergem da busca pela agência soberana.
rem-se” se a justiça e a evolução moral da socieda- Para se contrapor a essa visão, Markell (2003,
de estão ligadas à auto-realização? Como criticar as 2006) propõe um enfoque centrado na idéia de ação
ações deles se o desrespeito é pensado não em ter- e na compreensão de que os indivíduos não detêm
mos de padrões institucionalizados de desvalorização cultu- o controle sobre suas identidades. Ele recorre a

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Hannah Arendt e às tragédias gregas para mostrar nas teorias de Taylor e Honneth: a intersubjetivida-
que as identidades se produzem ao longo da ação, de. Ao ressaltar o foco desses filósofos na identida-
podendo assumir rumos inesperados. Ele ressalta, de e na auto-realização, eles parecem esquecer a di-
assim, a dimensão construtiva dessas lutas: por meio mensão intersubjetiva que alicerça a teoria do
delas, identidades não seriam conhecidas, mas mol- reconhecimento. Esvaziando o conceito a uma sim-
dadas e resignificadas (Markell, 2000). ples luta cultural por autodeterminação, Fraser e Ma-
A proposta de Markell é a de uma mudança rkell descaracterizam a teoria de Taylor e Honneth
no conceito de reconhecimento que, na língua in- e constroem perspectivas menos audaciosas do que
glesa, é captada por uma alteração de recognition para as deles para revigorar a teoria crítica contemporânea.
acknowledgment: Nas teorias de Honneth e Taylor, o reconheci-
mento é uma luta intersubjetiva. Isso tem uma série
Acknowledgment é em primeiro lugar autodi- de implicações. Admitir que se trata de uma luta é
rigido (em vez de dirigido ao outro); seu obje- assumir que o reconhecimento não pode ser con-
to não é a própria identidade de alguém, mas cedido, alcançado ou doado. O reconhecimento não
sua condição e circunstância ontológica básica, está restrito a fins específicos, nem é limitado a con-
particularmente sua própria finitude; essa fini- quistas na esfera de direitos garantidos pelo Estado.
tude deve ser entendida como uma questão dos Ele não é um prêmio final que liberta grupos opri-
limites práticos que se enfrenta diante de um midos. A luta por reconhecimento pode ter muitas
futuro contingente e imprevisível, não como manifestações diferentes, na medida em que ela não
uma questão de impossibilidade ou injustiça no é nada mais do que um processo permanente em
conhecimento dos outros; e, finalmente, acknow- que a sociedade reflexivamente se transforma e al-
ledgment envolve reconciliar-se com, em vez tera padrões de relação social. Como lembrado por
de buscar superar, o risco de conflito, hostili- Tully (2004, p. 89), essas lutas assumem muitos for-
dade, mal-entendido, opacidade e alienação que matos, desde o “vai-vem cotidiano de comunicação,
caracteriza a vida (2003, p. 38). interpretação, negociação e ação” até formas mais
organizadas, como “as negociações legais, políticas
A idéia é a de que a subordinação social só pode e constitucionais em legislaturas, cortes e referen-
ser superada se os atores sociais admitirem sua pró- dos” ou “campanhas de desobediência civil”.
pria condição e pararem de buscar a soberania. O Admitir que se trata de uma luta intersubjetiva é
objetivo, para ele, não pode ser a valorização de assumir que ela se constrói na relação com o outro.
uma identidade, já que essas se recriam de modos É perceber que os objetivos, as estratégias e as pró-
imprevisíveis o tempo todo. Mais do que valorizar prias identidades não estão postos de antemão, mas
oprimidos, seria preciso desconstruir as estruturas se constroem na ação conjunta. A idéia chave para a
sociais que reforçam os privilégios de certos gru- teoria do reconhecimento é, portanto, a de relação e
pos. “Aceitar a existência dos outros [...] faz, da im- não as de autodeterminação e soberania, como Fra-
previsibilidade e da falta de maestria, inevitáveis ser e Markell dão a entender.
condições da agência humana. Tal reconhecimento Essa idéia ajuda a contestar o suposto perigo
[acknowledgement] é uma parte crucial da justiça” (Idem, essencializador do reconhecimento, primeiro ponto
p. 180). Lutas sociais deveriam aspirar não a levar que gostaríamos de abordar. Não só Fraser e Mar-
ao conhecimento do outro quem se é, mas a gerar kell, mas também James Tully (2000), afirmam que
uma reflexão sobre auto-entendimentos. a busca pela auto-realização pode gerar um aprisio-
namento de identidades, que se desdobra em secta-
rismos (Fraser, 2003a), na auto-afirmação domina-
A importância da intersubjetividade dora (Markell, 2003) e na busca de um telos voltado
para uma essência (Tully, 2000). Não julgamos, con-
Embora coerentes e interessantes, as críticas de tudo, que um modelo de reconhecimento guiado
Fraser e Markell negligenciam um aspecto central pelo ideal da auto-realização leve, por definição, à

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intolerância, ao sectarismo e à dominação intragru- sua base na teoria democrática de Dewey, o que
pal (Zurn, 2003, p. 531). mostra que esse telos é uma constante busca. Ele
Nesse sentido, ressaltamos que a defesa da no- assume o formato de uma espiral, que se transfor-
ção gadameriana de fusões de horizontes evidencia o ma continuamente.
cuidado de Taylor de evitar a proposição de um co- Isso nos dirige a uma segunda crítica que, a nos-
munitarismo sectário. Aliás, vale lembrar que o filó- so ver, encontra pouco fundamento, qual seja: a idéia
sofo canadense vê a fragmentação da comunidade de que o reconhecimento não é um operador sufi-
política como uma patologia da modernidade. Tanto cientemente acurado para distinguir as demandas
que ele se opõe, política e teoricamente, às iniciati- justas das não justificáveis (Fraser, 2003a; Benhabib,
vas nacionalistas que buscavam a independência do 2002; Kalyvas, 1999). Fraser (2003a), por exemplo,
Quebec, como bem analisado por Mattos (2006). defende que somente seu modelo de status poderia
A proposta dele é a de “vencer a fragmentação pela oferecer um critério para avaliar as lutas justificá-
fomentação de um senso de ação política comum” veis, isto é, aquelas que conduzem à paridade de
(Mattos, 2006, p. 102). Cabe ressaltar, ainda, a base participação.
pragmatista da filosofia de Taylor, sendo implausível Essa crítica incorre, todavia, em uma série de
supor que a identidade precederia a ação na teoria dele. equívocos. Ela pressupõe, em primeiro lugar, que o
A idéia de que a identidade se refaz na ação, defen- critério da paridade é eticamente neutro (Kompri-
dida por Markell (2003), não só está presente em dis, 2007; Thompson, 2006; Honneth, 2003b).
Taylor, como é uma das bases de seu pensamento. Como bem apontado por Pinto (2008, p. 41), as-
Também na obra de Honneth, o foco na dimen- sim como a noção de “boa vida”, tal princípio é
são intersubjetiva das lutas por reconhecimento de- negociado historicamente. A crítica presume, em
monstra a cautela do autor em se distanciar de uma segundo lugar, a possibilidade de antever quais ações
postura reificadora e essencialista. A idéia de que os levarão à paridade de participação. Ela sugere, em
sujeitos constroem-se em relação lhe é muito cara. terceiro lugar, que esses autores defenderiam um
A busca por reconhecimento não envolve, por de- relativismo em que tudo seria válido na defesa da
finição, a projeção de uma imagem coerente e aca- identidade. Honneth é categórico quando afirma
bada de self em um telos de realização. A possibilidade que “é óbvio que não podemos endossar qualquer
de auto-realização só se faz possível como um pro- revolta política como tal – que não podemos con-
jeto sempre inacabado e dialógico. É no jogo re- siderar toda demanda por reconhecimento como
cursivo e sem fim do encontro com o outro que as moralmente aceitável” (2003b, p. 172).
identidades se constroem e que a própria idéia de O maior equívoco de Fraser é, contudo, e em
auto-realização se configura. quarto lugar, assumir que, na visão de Taylor e Hon-
Isso posto, lutas por reconhecimento, como neth, a luta por reconhecimento seja uma simples
lutas intersubjetivas, só podem ser pensadas sem um promoção pública da forma como se quer viver.
final. Trata-se de processos abertos, revisáveis e Nesse ponto, ela é acompanhada por Markell. Os
contínuos (Kompridis, 2007; Tully, 2000, 2004). Para autores desconsideram o caráter mútuo do reconhe-
que fique claro que tais lutas não implicam a reifica- cimento, que é essencial na compreensão da justifi-
ção de identidades é preciso enfatizar que ela não cabilidade de demandas.
tem um objetivo final. O reconhecimento não é algo É preciso entender que lutas por reconheci-
que se conquista de uma vez por todas, nem um mento são intrinsecamente intersubjetivas. Para
bem a ser distribuído. Conflitos acerca de reconhe- Honneth, “reconhecimento e respeito são atitudes
cimento não podem ser resolvidos, por exemplo, morais que nós somos mutuamente obrigados a
apenas com políticas estatais que valorizem minorias. adotar, porque elas possibilitam as condições com
Lutas por reconhecimento fazem parte da própria base nas quais nós mantemos, conjuntamente, nos-
ação democrática, devendo ser permanentes e aber- sa integridade como seres humanos” (1997, p. 316).
tas (Thompson, 2006). Se Honneth, seguindo He- Lutas não são, pois, somente uma busca por sobe-
gel, fala da existência de um telos, é preciso perceber rania e autodeterminação. Elas requerem a consi-

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deração do outro. Se a auto-realização é uma con- mos implicados envolvem mudanças em nós
tínua construção dialógica, ela não pode ser enten- mesmos” (Idem, p. 309).
dida nem como imposta de fora nem como a mera Honneth constrói sua idéia de reconhecimento
expressão de desejos individuais. Ela depende de a partir dessas premissas. Em sua perspectiva:
um diálogo – ou multiálogo, como prefere Tully
(2004) –, em que os atores envolvidos operam em Somente demandas que potencialmente contri-
conjunto, sendo transformados pela simples exis- buem para a expansão das relações sociais de
tência do outro. reconhecimento podem ser consideradas nor-
Isso fica muito claro quando se presta atenção mativamente embasadas, na medida em que
à influência que Mead exerce sobre Honneth. O apontam na direção de um incremento no ní-
sociólogo norte-americano afirma que, vel moral da integração social (Honneth, 2003b,
p. 187).
Do mesmo modo sociopsicológico que um
indivíduo humano se torna consciente de si-mes- Demandas válidas devem ser produzidas em
mo, ele também se torna consciente de outros uma relação intersubjetiva que leve em considera-
indivíduos; e sua consciência tanto de si mes- ção o outro. Isso demonstra a injustificabilidade,
mo como de outros indivíduos é igualmente por exemplo, de reivindicações como as de funda-
importante em seu próprio desenvolvimento mentalistas e neonazistas. Honneth (Idem, pp. 121-
pessoal e para o desenvolvimento da socieda- 122) critica, explicitamente, as formas de identity po-
de ou do grupo social ao qual ele pertence litics que perseguem seus objetivos por meios que
(Mead, 1934, p. 253). fomentam a exclusão social. Elas não são reivindi-
cações por reconhecimento, porque não reconhe-
Fica patente que a luta por reconhecimento cem os outros atores sociais no interior da gramáti-
demanda um reconhecimento do outro. Ela não é ca que propõem. Não se trata de lutas morais por
uma simples defesa de uma entidade preconcebi- reconhecimento, mas da propulsão dos próprios
da. Ela é um produto da relação e essa relação re- anseios por soberania. Nessa perspectiva, a auto-
quer a consideração do outro. Honneth evidencia realização só se desenvolve dialogicamente em um
esse aspecto ao abordar o segundo domínio do processo mútuo que afeta a própria identidade da-
reconhecimento. O sujeito só pode ver-se respeita- quele que reivindica algo.
do porque é alvo dos mesmos direitos que atribui Forst (2007, p. 298) capta bem essa questão ao
aos outros. Como percebe Thompson, em sua aná- destacar que a reciprocidade é o a priori básico da jus-
lise da teoria do reconhecimento, a “razão pela qual tificação de demandas. “Não deve haver relações
eu devo ser respeitado é uma razão para que todo políticas e sociais que não possam ser recíproca e
mundo também seja respeitado” (2006, p. 48). genericamente justificadas para todos aqueles que
Mead defende que a democracia depende de fazem parte de um contexto sociopolítico” (Idem,
uma premissa segundo a qual “o indivíduo só se man- p. 295). Em Honneth, a injustiça está ligada à injus-
tém como cidadão no grau em que reconhece os tificabilidade normativa de algumas formas de re-
direitos de todos os outros que pertencem a essa lações sociais, sendo que a desconsideração dos
mesma comunidade” (1934, p. 286). Em Mead, a ci- outros em demandas não geraria uma evolução
dadania transforma o sujeito em membro da comu- moral, mas a reafirmação de injustiças.
nidade política na medida em que esse membro O terceiro e último aspecto que gostaríamos de
internaliza as atitudes dos outros e controla sua con- abordar se liga à interpretação de que Honneth e
duta a partir dessa trama intersubjetiva. No interior Taylor definiriam reconhecimento em termos da
de uma democracia, os indivíduos só podem se valorização positivada de identidades. 6 Fraser
realizar se reconhecem os outros como pertencentes (2003a) ironiza a idéia de que todos possam ser es-
a uma comunidade partilhada. Desse modo, “as timados, enquanto Markell (2003) teme que a busca
mudanças que fazemos na ordem social em que esta- pela valorização de cada identidade esteja no próprio

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cerne da subordinação social. Essa crítica só faz sen- mas que o pertencimento a esses grupos não pode
tido se o reconhecimento é visto como luta unilate- implicar uma prévia negação de estima:
ral (isto é, não intersubjetiva) pela valorização de
um grupo em sua essencialidade. Nota-se que, nes- [...] um ambiente sócio-cultural que é hostil à
se ponto, o principal alvo de Fraser e Markell é a consideração do que um faz como significati-
noção de estima que Honneth coloca como funda- vo é desmoralizante. Por causa do modo como
mental em sua teoria da justiça. podem minar a auto-estima, padrões sistemá-
No entanto, Taylor e Honneth não definem a ticos de depreciação apresentam uma ameaça
política do reconhecimento como uma política de não somente à felicidade ou identidade, mas à
valorização de identidades grupais. Como já destaca- agência dos afetados (Anderson e Honneth,
do, Taylor (1994) afirma que culturas não devem ser 2005, p. 137).
valorizadas aprioristicamente, mas submetidas a um
processo comparativo em que horizontes se fundem. Diferentes sociedades, todavia, valorizam dife-
Honneth, por sua vez, diz explicitamente que consi- rentes contribuições de modos distintos. E Honne-
dera a “restrição do conceito de reconhecimento às th (2001b, 2003b), recorrendo a Dewey, mostra
demandas feitas por minorias culturais como algo como a divisão do trabalho é fundamental para criar
altamente problemático” (2003b, p. 160). Seu mo- uma cooperação social em que cada indivíduo se
delo não busca promover a valorização de grupos sente motivado a participar da construção conjunta
culturais, até porque a estima que ele tem em mente da sociedade.7
se destina a indivíduos por suas realizações e por Lutas por estima buscam deslocar os quadros
suas contribuições sociais (Seglow, 2009). interpretativos vigentes para que outras atividades e
A proposta de Honneth é diferente da de Ga- contribuições sejam percebidas como estimáveis e
leotti (2002, p. 18), que transforma em sinônimos para que pessoas sistematicamente desrespeitadas
politics of recognition e identity politics, defendendo tra- sejam vistas como passíveis de estima. O que é va-
tar-se de conflitos voltados para a valorização de lorizado muda ao longo do tempo, e Honneth “es-
identidades minoritárias. Honneth não diz que to- pera que, à luz dos horizontes de valor pluralizados
dos devem ser igualmente estimados por todos. “Em das sociedades contemporâneas, todos tenham a
vez disso, ele insiste que a estima seja ‘simétrica’, o chance de ganhar estima” (Thompson, 2006, p. 93).
que quer dizer que cada indivíduo tem uma chance O reconhecimento revela-se na construção de gra-
igual de ser estimado” (Thompson, 2006, p. 76). A máticas morais em que a conquista do valor se apre-
idéia é que cada um possa vir a ser estimado por sente como possibilidade.
seus feitos e eventuais contribuições sociais.
No centro da idéia de estima defendida por
Honneth está a defesa de que os sujeitos não querem Considerações finais
se ver como partes indiferenciadas de uma massa
amorfa e homogênea. Por isso, a simples garantia O presente artigo buscou ressaltar a centralida-
de direitos não é a totalidade do reconhecimento. de da noção de intersubjetividade na teoria do reco-
“Nem todas as formas de protesto coletivo se con- nhecimento tal como proposta por Taylor e Hon-
formam à lógica de reivindicações de direitos; nem neth. Para tanto, fizemos uma sucinta apresentação
todas objetivam assegurar a ‘identidade política per- das teses centrais desses autores e discutimos algu-
manente ou status constitucional’ de grupos subordi- mas críticas a eles. Defendemos que algumas críti-
nados” (Patrick, 2002, p. 37). Sentir-se estimado tem cas que embasam os modelos alternativos advoga-
uma dimensão política para além da posse de direitos. dos por Fraser e Markell esvaziam a teoria do
Sujeitos precisam ver-se como indivíduos es- reconhecimento, descaracterizando o oponente que
pecíficos capazes de serem estimados. Isso não quer buscam desqualificar.
dizer que devam ser apreciados porque são mem- Nesse sentido, procuramos responder a três
bros de uma determinada etnia ou grupo social, grandes críticas dirigidas à teoria do reconhecimento:

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1) a de que ela pode essencializar identidades, geran- 2003b; Hartmann e Honneth, 2006).8 Ainda que
do sectarismos e uma luta dominadora por sobera- vejamos problemas em suas propostas distributivas,
nia; 2) a de que faltam a esta teoria mecanismos julgamos inadequado afirmar que ele desconsidera
para distinguir reivindicações justificáveis das injusti- a questão. Julgamos, ainda, que essa inadequação
ficáveis; e 3) a de que a o reconhecimento visaria nasce de uma compreensão distinta de reconheci-
apenas a uma valorização de grupos sociais. Defen- mento, que, como analisado ao longo do presente
demos que a atenção ao foco intersubjetivo de artigo, reduz o reconhecimento a uma luta cultural.
Taylor e Honneth ajuda a contestar essas críticas. A As diferenças entre Honneth e Taylor também
dimensão relacional da identidade explicita que essas não puderam ser tratadas aqui por razões de escopo
lutas: 1) conformam-se continuamente ao longo das e foco. Apesar das diferenças, entendemos que o
ações reivindicatórias; 2) não visam à autodetermi- ponto comum entre eles (isto é, a ligação que pro-
nação unilateral do ser, mas propõem gramáticas põem entre auto-realização e justiça social) é extrema-
morais aplicáveis também aos outros; e 3) não aspi- mente rico. Essa ligação oferece uma contribuição
ram simplesmente à autovalorização, mas à transfor- importante na revitalização da teoria crítica. Uma re-
mação da sociedade para que a estima seja simétrica. vitalização cujos embriões se insinuavam nas obras
Com essas respostas, não afirmamos que Fraser de Hegel e dos pragmatistas norte-americanos (sobre-
e Markell negligenciem a dimensão intersubjetiva dos tudo Dewey e Mead), mas que só se fizeram compre-
conflitos sociais. Fraser defende abertamente que o ender com as transformações das sociedades con-
reconhecimento seria uma condição intersubjetiva para temporâneas. Uma revitalização que ainda requer,
a paridade de participação, e Markell mostra como as contudo, pesquisas empíricas que evidenciem o va-
identidades se transformam de maneiras imprevisí- lor dessas categorias na compreensão de conflitos
veis na interação com o outro. A questão é que, na sociais e da transformação reflexiva da sociedade.
ânsia por propor alternativas à teoria do reconheci-
mento, eles negligenciam as bases intersubjetivas e
pragmatistas dos escritos de Taylor e Honneth, o Notas
que retira a força de suas proposições. 1 Duas recentes edições do European Journal of Political
Ressaltamos, ainda, que o presente artigo não Theory (vol. 6, n. 3, 2007 e vol. 8, n. 1, 2009) mostram
se debruçou sobre todas as dimensões do debate que o debate acerca da noção encontra-se vivo e é re-
do reconhecimento. Salientamos, especificamente, pleto de nuanças.
que não enfocamos, aqui, a crítica freqüentemente 2 Cf. Lash e Featherstone (2001).
dirigida a Taylor e a Honneth de negligenciarem a
3 Para mais alguns exemplos de pesquisadores brasilei-
questão da justiça distributiva. Compreendemos, ros que lidam com a teoria do reconhecimento, ver
contudo, que também a referida crítica nasce da Mattos (2006), Feres Júnior (2006), Neves (2005),
adoção de uma perspectiva diferente de reconheci- Bernardino (2002), Costa (2002), Lopes (2000), Mar-
mento. Ainda que Taylor (1994, 1997) não discuta a ques (2003), Assis (2006), Cruz (2007), Garcêz (2008),
questão material explicitamente e que Honneth Mendonça (2007).
(2003a) não a aborde em profundidade em Luta 4 Para didáticas e competentes apresentações das idéias
por reconhecimento, entendemos que as perspectivas de de Taylor, Honneth e Fraser, ver, por exemplo, Thomp-
ambos os autores podem ser empregadas para pen- son (2006), Mattos (2006) e Souza (2000).
sar questões distributivas (Mattos, 2006; Mendon- 5 É importante ressaltar que, embora Honneth, às ve-
ça, 2007). Lembramos que Jessé Souza (2006) tem zes, fale de grupos, sua idéia de estima está centrada
Taylor como um dos pilares de sua profunda aná- no indivíduo (Thompson, 2006; Neves, 2005). Isso
lise das desigualdades sociais brasileiras. A trajetória fica claro em seus textos mais recentes que focam na
acadêmica de Honneth, desde os anos de 1980, tam- idéia de achievement (realização) e a ligam à esfera do
bém é centralmente marcada por uma análise críti- trabalho.
ca do capitalismo, das relações de trabalho e das 6 A bem da verdade, há defensores do reconhecimento
desigualdades sociais (Smith, 2009; Honneth, 2001a, que o transformam em uma valorização simbólica de

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indivíduos e/ou grupos, como Galeotti (2002) e Caillé dissertação de mestrado em Comunicação So-
(2008). cial. Faculdade de Filosofia e Ciências Huma-
7 Esse é um dos pontos que alicerça a discussão de nas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Honneth sobre a justiça distributiva nas sociedades FELDMAN, Leonard C. (2002), “Redistribution,
capitalistas contemporâneas. A esse respeito, ver Hon- recognition, and the state: the irreducibly politi-
neth (2001a e b; 2003b) e Zurn (2005). cal dimension of injustice”. Political Theory, 30
8 Honneth é enfático quando argumenta que não há (3): 410-440.
discordância entre ele e Fraser acerca da necessidade de FERES JUNIOR, J. (2006), “Aspectos semânticos
atenção à justiça distributiva: “A crescente tendência da discriminação racial no Brasil: para além da
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ção; a emergência de uma nova ‘subclasse’ que não
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tem acesso a recursos econômicos e socioculturais; o
persistente aumento da riqueza de uma pequena mi- recognition and justification”. European Journal
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capitalismo quase totalmente incontrolado faz pare- FRASER, N. (1997), “From Distribution to Recog-
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 187

A DIMENSÃO INTERSUBJETIVA THE INTERSUBJECTIVE LA DIMENSION


DA AUTO-REALIZAÇÃO: EM DIMENSION OF SELF- INTERSUBJECTIVE DE
DEFESA DA TEORIA DO REALIZATION: IN DEFENSE L’AUTORÉALISATION: EN
RECONHECIMENTO OF THE ACKNOWLEDGEMENT DÉFENSE DE LA THÉORIE DE
THEORY LA RECONNAISSANCE

Ricardo Fabrino Mendonça Ricardo Fabrino Mendonça Ricardo Fabrino Mendonça

Palavras-chave: Reconhecimento; Keywords: Recognition; Intersub- Mots-clés: Reconnaissance; Intersubjec-


Intersubjetividade; Auto-realização; jectivity; Self-realization; Honneth; So- tivité; Autoréalisation; Honneth; Con-
Honneth; Lutas Sociais. cial Struggles. flits sociaux.

O presente artigo busca discutir a teoria This paper seeks to discuss the theory of Cet article aborde la théorie de la recon-
do reconhecimento, defendendo, na li- recognition and to defend, as Taylor and naissance, en défendant une perspective
nha de Taylor e Honneth, uma perspecti- Honneth do, a perspective steered by the centrée sur la notion d’autoréalisation,
va centrada na noção de auto-realização. notion of self-realization. Dealing with suivant la thèse de Taylor et Honneth.
Enfocando as propostas de Fraser e the propositions of Fraser and Markell, En analysant les propositions de Fraser
Markell, procura-se contestar três gran- it aims at challenging three major criti- et Markell, trois objections fréquemment
des ressalvas dirigidas ao chamado para- cisms directed to the so-called identity dirigées contre le “modèle identitaire”
digma identitário do reconhecimento: 1) a model of recognition: 1) the critique that it de la reconnaissance sont contestées : 1)
de que ele essencializa identidades; 2) a de essentializes identities; 2) the critique that la réification des identités ; 2) le man-
que lhe faltam mecanismos para distin- it lacks mechanisms for distinguishing que de mécanismes de différenciation en-
guir reivindicações justificáveis das injus- warranted claims from unjustifiable de- tre les demandes justifiables et les injus-
tificáveis; e 3) a de que lutas por reco- mands; and 3) the critique that struggles tifiables ; 3) celle selon laquelle la lutte
nhecimento visariam apenas a uma valo- for recognition would only seek a valori- pour la reconnaissance ne chercherait que
rização de grupos sociais. Acredita-se que zation of social groups. These criticisms la valorisation des groupes sociaux. Nous
essas críticas partem de um uso distinto are based on a distinct notion of recog- sommes persuadés que ces critiques se
da noção de reconhecimento que o re- nition, which reduces it to a cultural sont basées sur un usage restreint du con-
duz a uma luta cultural voltada à valori- struggle for the valorization of identi- cept de la reconnaissance, en le réduisant
zação de identidades. Defende-se que a ties. The paper argues that an attention à une dispute culturelle pour la valorisa-
atenção ao foco intersubjetivo das pro- to the intersubjective grounds of Taylor’s tion d’identités. Dans cette perspective,
postas de Taylor e Honneth ajuda a con- and Honneth’s propositions helps to un- nous nous appuyons sur l’approche in-
testar essas críticas. dermine these criticisms. tersubjective des réflexions de Taylor et
Honneth.

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