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O NEOLIBERALISMO E A VIDA COTIDIANA*

Um dos mais curiosos aspectos da vida contemporânea é a lacuna entre a


crescente deterioração das condições socioeconômicas de uma ampla camada
de trabalhadores assalariados e a virtual ausência de radicalismo político. Na
melhor das hipóteses há um desconforto geral, crescente alienação dos
eleitores, votos contra os que estão ocupando cargos, pesquisas de opinião
pública mostrando a maioria a favor de um terceiro partido, repulsa à “política”,
aos políticos, a Washington, etc. Mas esses são pontos de vista e opiniões que
não se materializam em novos partidos, líderes ou programas que desafiem as
principais instituições políticas e econômicas, que são a fonte da mobilidade
descendente, insegurança no emprego e redução dos serviços públicos,
benefícios sociais e salários. Em realidade, alguns dos políticos mais
conservadores que propõem aprofundar cortes sociais e ampliar a mobilidade
descendente são capazes de manipular este difuso mal-estar eleitoral para
ganhar cargos públicos e punir ainda mais seu eleitorado, assim como tratar de
orientar sua raiva, pelo menos temporariamente, contra grupos abaixo ou
adversários, ou contra seus vizinhos, suas famílias ou eles próprios.

O que ocorre com pessoas que perdem seus empregos ou são confinadas ao
trabalho mal remunerado de meio-expediente ou de tempo integral? Em vez de
simplesmente atribuir a ausência de revolta a processos gerais ou abstratos
(globalização) ou condições estruturais (a fragmentação e dispersão de locais
de trabalho), ou a afinidades ideológicas (conservadores viscerais, machismo,
racismo) ou a identidades históricas (parte do sul dos Estados Unidos), os
quais podem desempenhar um determinado papel, é importante examinar os
efeitos sociopsicológicos destas mudanças negativas induzidas pelo
empresariado nos trabalhadores.

* Escrito em conjunto com Steve Vieux, professor de sociologia na State


University of New York, em Binghamton.

A “globalização” vem ocorrendo há vários séculos e é tanto um efeito como


uma causa: é sabido que a política estatal desempenhou um papel decisivo na
determinação de investimentos de capital “internamente” ou no “exterior”. E a
política estatal é uma função da correlação de forças sociais: a capacidade de
diferentes classes mobilizarem recursos para influenciar a política econômica
do Estado.

Não são forças econômicas globais impessoais que estão operando aqui, mas
uma estratégia econômica enraizada nos interesses da classe alta e das
corporações. Essa estratégia, à qual nos referimos como neoliberalismo, tem o
objetivo de transferir riqueza para cima, ao retirar ou diminuir os benefícios,
proteções, regras de pagamento e de emprego, e enfraquecer organizações da
classe trabalhadora características do período pós-guerra.

No mercado de trabalho isto significa dizer que os empregados estão diante de


uma intensificação da insegurança que é típica da condição da classe
trabalhadora sob o capitalismo. Quarenta anos de trabalho de quarenta horas
por semana com pagamento decente com benefícios e uma pensão segura era
para muitos, uma realidade e, para muitos outros, um sonho que estabilizou e
orientou a vida da classe trabalhadora nos primeiros trinta anos do período
pós-guerra. Durante os últimos vinte anos, um esforço de comum acordo tem
sido realizado nos Estados Unidos — no Congresso, nas agências reguladoras,
nas diretorias das empresas, nos pactos comerciais internacionais —, para
erradicar as certezas e seguranças do período anterior. Neste artigo nós
examinamos as conseqüências psicológico-sociais de três tendências nas
características do mercado de trabalho do período neoliberal: deslocamento de
trabalhadores, trabalho contingente e a disseminação do trabalho de baixa
remuneração. Nossa questão-chave é por que a estratégia da globalização
corporativa não provoca qualquer reação contrária?

Claramente a burocratização dos sindicatos e seu declínio à quase


insignificância são fatores, assim como é um fator importante sua subordinação
ao Partido Democrata voltado para a globalização. Mas e quanto aos próprios
trabalhadores? Antes de entrarmos na discussão de respostas “nacionais” e
“políticas”, é importante examinar as relações “pré-políticas”, em nível individual
e de grupo, tanto primárias quanto secundárias, que resultam da reestruturação
corporativa. É nossa hipótese que os efeitos sociopsicológicos (subjetivos) em
nível micro afetam a capacidade das ciasses — neste caso dos grupos
assalariados —, de responderem com eficácia política aos adversários de
classe.

Assim, nossa suposição é que uma pré-condição para a ação política é a


existência de indivíduos mentalmente sadios que se voltem contra os abusos
do patrão e os identifiquem como tais, em vez de se fechar em condições
crônicas de depressão ou outras desordens mentais. Segundo, nós
procuraremos demonstrar que os indivíduos que dirigem sua raiva contra os
que vivem com eles são menos inclinados a se engajar na ação política radical.
Inversamente, famílias fortes, solidariedade e lealdade entre parceiros e casais
são pré-condições para dirigir raiva para cima e para fora, contra as fontes de
privações e da mobilidade descendente. Nós não afirmamos que fortes laços
domésticos necessariamente levam à ação política radical; o que estamos
dizendo é que a violência doméstica e o abuso infantil são o resultado de
transmissão da violência da empresa sobre a vítima para o parente próximo ou
para aqueles com quem convive. A vítima se torna o algoz, o que impossibilita
a oposição política e cria laços entre o patrão como algoz e o trabalhador
deslocado como vítima/algoz. Por exemplo, embora os conservadores
proclamem a importância de se apoiar “valores familiares”, suas políticas
sociais impõem enorme pressão sobre a família. O empregado que absorve a
retórica dos “valores familiares” sem ter os meios de sustentar sua família
poderá então tentar forçar o cônjuge a se ajustar à ideologia conservadora
(deveres familiares, educação dos filhos exclusivamente pela família, etc.)
mesmo quando, por exemplo, as mulheres são obrigadas a trabalhar em tempo
integral fora de casa. Finalmente, indivíduos que se afastam dos amigos, dos
antigos colegas de trabalho e do envolvimento na comunidade, ao cair na
escala social, tem menos chance de “socializar” seu drama individual e de criar
os laços elementares que são as pré-condições para a ação política.
Inversamente, indivíduos que se agrupam com outros trabalhadores
deslocados e/ou de baixos salários, ou que retêm laços com sindicatos e
começam a discutir suas condições tem maior probabilidade de procurar
soluções sociais mais amplas, em vez de se culparem, procurar acumular
empregos, etc.

Este ensaio examina justamente as conseqüências socio-psicológicas da


reestruturação para compreender por que a mobilidade descendente não está
associada à revolta política. Este estudo é um “diagnóstico”, e não uma
“receita”; ele olha para o primeiro elo na corrente de causas e efeitos que
conecta aquilo que C. Wright Mills descreveu como “os descontentamentos
privados que levam à ação pública”.

Um elemento-chave na “restruturação neoliberal” é a mobilidade do capital: de


uma região geográfica a outra, de um setor da economia a outro, do trabalho
intensivo ao capital intensivo. O resultado é uma crescente “relação transitória”
entre empregadores e empregados. A experiência dos trabalhadores no
trabalho está constantemente em transição. Há apenas conexões temporárias
e laços com colegas trabalhadores, com patrões, com o trabalho a sua volta e
o ambiente de convivência. Assim, há muitas relações, embora elas sejam
superficiais. A transitoriedade se toma um estilo de vida, no qual não há
comprometimentos profundos e onde existe pouca base para a solidariedade
social. O resultado é o declínio dos sistemas de apoio social, a atomização, e
um crescente sentimento de vulnerabilidade individual. Quando o desastre
ocorre (demissões) o impacto é esmagador.

Durante os anos 1980, vinte milhões de trabalhadores foram deslocados,


demitidos sem possibilidade de serem recon-tratados. Durante a década, a
percentagem de operários entre os demitidos caiu de 65% para 55% (U. S.
Congressional Budget Office, 9). Os mais atingidos foram muitos dos
trabalhadores mais velhos, menos educados, com longo tempo de serviço no
emprego. Eles demoraram mais para encontrar novos empregos, quando
encontraram tiveram reduções de salários maiores do que a média ou foram
totalmente expulsos do mercado de trabalho. Trabalhadores demitidos tendiam
a ficar aproximadamente vinte semanas desempregados, enquanto
trabalhadores velhos, mulheres e trabalhadores não-brancos demoravam ainda
mais (U. S. Congressional Budget Office, 19, 21). Pesquisados de um a três
anos após terem perdido seus empregos, metade dos demitidos ainda estava
sem trabalhar ou ganhando menos de 80% de seus antigos salários e alguns
substancialmente menos (U. S. Congressional Budget Office, xii). Entre os
trabalhadores de escritório demitidos, dois terços dos que desempenhavam
funções de apoio administrativo, como secretárias, foram reempregados em
funções similares, mas menos da metade dos gerentes e executivos puderam
encontrar empregos similares aos seus anteriores (Caves e Krepps, 1993).

As demissões continuaram no início dos anos 1990 em um ritmo rápido. Entre


o começo da recuperação econômica na primavera de 1991 e a primavera de
1994, as maiores empresas nos Estados Unidos haviam anunciado planos para
eliminar mais de 1,8 milhão de empregos (Forbes, 25 de abril de 1994, 242-
243). Entre as firmas que relataram cortes à Associação Americana de
Administração, a percentagem de empresas industriais que cortaram empregos
caiu à medida que a década avançava, enquanto a percentagem de empresas
de serviços (financeiros, negócios e profissionais, etc.) cresceu
acentuadamente (AMA, 1994, 1). Demissões permanentes gradualmente
vieram a ser consideradas não como um acontecimento singular, conjuntural,
mas como um reflexo de uma “mudança estrutural profunda” numa “prolongada
era de perdas de empregos” (Fortune, 20 de setembro de 1993, 54-56; Wall
Street Journal, 16 de março de 1993).

O desemprego é uma fonte de stress psicológico que tem conseqüências sobre


a saúde mental do desempregado. O significado e experiência do desemprego
registrado por pesquisadores — pressão financeira, a desestabilização de
rotinas diárias, atividades e identidades e a destruição de planos e esperanças
—, contribuíram para o stress crônico. Trabalhadores desempregados tem sido
mostrados como sofrendo níveis mais altos de sintomas psicológicos se
comparados com trabalhadores empregados. Como afirma um acadêmico,
“...indivíduos desempregados tem desempenho inferior aos indivíduos
empregados em virtualmente todos os aspectos do funcionamento psicológico”.
(Barling, 1990, 1992) Os sintomas variam de um estado de espírito
crescentemente negativo a aumentos da ansiedade e depressão logo após a
demissão, assim como um maior número de queixas psicossomáticas e níveis
mais altos de paranóia e hostilidade (Liem e Liem, 1990, 184-185). A maioria
de vinte ou mais estudos de séries temporais sobre suicídio concluíram que o
desemprego tem conseqüências negativas (Dooley e Catalano, 1988, 5). As
taxas de mortalidade eram geralmente mais altas para os desempregados. Um
estudo feito na Inglaterra e no País de Gales, por exemplo, concluiu que “o
desemprego aumentava o risco de mortalidade de 20 a 23%”. (Barling, 1992,
192)
Considerando o grande número de executivos e gerentes que foram forçados
para fora da área de gerência e transferidos para setores de apoio
administrativo ou vendas, as conseqüências psicológicas do subemprego —
trabalhar abaixo de suas qualificações —, deve ser registrado. O subemprego
tem efeitos psicológicos adversos. Um estudo dos subempregados concluiu
que um quinto dos pesquisados consideravam suas vidas como tendo piorado
seriamente como resultado de sua condição (Barling, 1992, 221).

Em muitos aspectos — tanto os pequenos como os grandes —, o stress do


desemprego tem conseqüências adversas para a vida familiar. O estudo
longitudinal de Ross e Sawhill com cinco mil famílias encontrou um relação
positiva entre o desemprego e a instabilidade conjugal (Ross e Sawhill, 1975).
O stress econômico também pode aumentar os níveis de conflito conjugal,
mesmo quando não chega à separação e ao divórcio (Moen, Kain, et al, 1983).
Aumentos na taxa de desemprego estão associados a aumentos nas taxas de
divórcio (Barling, 1990, 204).

Há forte evidência de uma conexão entre o abuso infantil e o desemprego. Por


exemplo, um estudo examinou todos os casos de abuso de crianças
denunciados às autoridades dos Estados Unidos durante 1967 e 1968: treze
mil casos. Estes dados foram complementados com uma amostragem de
incidentes em 39 cidades e condados. O número de pais desempregados na
época do abuso era maior que entre a população em geral e quase metade dos
pais estavam desempregados no ano anterior ao incidente (Gill, 1971, discutido
em Barling, 1990, 206; Jones, 1990). Uma variedade de estudos, usando
diferentes métodos, indica uma conexão entre violência conjugal e
desemprego. Tanto estudos sobre mulheres em abrigos para mulheres
espancadas e salas de emergência e grandes pesquisas baseadas em
amostras aleatórias indicam níveis mais altos de violência conjugal que a
média nas famílias em que o pai de família está desempregado (Barling, 200,
1990).

Trabalho de tempo parcial

A força de trabalho em disponibilidade dos Estados Unidos está composta de


trabalhadores de tempo parcial, trabalhadores temporários e subcontratados. O
total da força de trabalho em disponibilidade está calculado em 25% da força
de trabalho. Trabalhadores de meio-expediente — aqueles que trabalham
menos de trinta e cinco horas por semana —, são a maior parte dos
trabalhadores ocasionais (Belous, 1989, 20). A maior parte do crescimento do
desemprego de meio-expediente desde 1979 vem do crescimento de
trabalhadores de meio-expediente involuntários — trabalhadores que
prefeririam trabalho em tempo integral (Tilly, 1991, 10). A percentagem de
trabalhadores de meio-expediente na força de trabalho cresceu de 2,1% em
1957 para 18% em 1991. Dois terços dos trabalhadores de meio-expediente
estavam em ocupações de escritório, vendas e serviços. O trabalho de meio-
expediente cresceu num ritmo enorme nos anos 1980: “Entre 1979 e 1987,
aumentou aproximadamente quatro vezes mais rápido que o emprego de
tempo integral ou de meio-expediente voluntário”. (Levitan e Conway, 1992, 48)
Aproximadamente 17% estavam em posições gerenciais, profissionais e
técnicas (Levitan e Conway, 1992, 45). O desejo dos empregadores em cortar
custos trabalhistas tem sido a força motriz por trás do crescimento do trabalho
em tempo parcial, e não a preferência dos empregados (Tilly, 1991, 10).

As mulheres representam dois terços dos trabalhadores de meio-expediente.


Os homens são em grande parte trabalhadores aposentados ou adolescentes.
Os trabalhadores em tempo parcial tipicamente recebem salários mais baixos
do que os trabalhadores de tempo integral. Em 1992 empregados contratados
por hora ganhavam 62,3% do salário dos trabalhadores em tempo integral (U.
S. Senate Hearing, 1993, 26). Um quarto dos trabalhadores de tempo parcial
ganham salário mínimo, comparado a um em vinte entre os trabalhadores de
tempo integral (Tilly, 1991). Enquanto 8% dos trabalhadores de tempo integral
que trabalham o ano inteiro tinham seguro de saúde, aproximadamente um
terço dos trabalhadores de meio-expediente não tinham este benefício. Em
1985 aproximadamente a metade dos trabalhadores de tempo integral que
trabalhavam durante todo o ano participavam de planos de aposentadoria,
enquanto menos de 20% dos trabalhadores de meio-expediente estavam
cobertos (Levitan e Conway, 1992: 53). Os trabalhadores de meio-expediente
tem muito menos chance de receber férias pagas, feriados, licença por motivos
pessoais ou funerais em empresas de médio e grande porte nos Estados
Unidos. Em companhias menores, em que grande número de empregos tem
sido criados em anos recentes, a situação é muito pior, assim como o é a
cobertura do seguro saúde e planos de pensão nessas áreas. (U.S. Senate,
1993: 26-27)

Apesar do rápido crescimento do trabalho de tempo parcial, o estudo de suas


conseqüências sociopsicológicas para o indivíduo e a vida familiar ainda não
está muito avançado (Rotchford e Roberts, 1982; Barling, 1990, 239). Nos
Estados Unidos a taxa de crescimento da participação em trabalho em tempo
parcial por homens foi maior do que para as mulheres, apesar de que, em
números absolutos, a participação feminina no trabalho em tempo parcial ser
muito maior que a dos homens (ILO, 1993, 20). Em termos internacionais, há
indicações do início de uma queda na participação das mulheres no trabalho
em tempo parcial. Uma grande pesquisa patrocinada pelo governo entre
entrevistados auto-selecionados no Canadá revelou muita insatisfação de
trabalhadores com as pensões e outros benefícios e um forte sentimento de
que os trabalhadores de tempo parcial eram tratados pior do que os
trabalhadores em tempo integral e que eram explorados pelos patrões para
poupar benefícios e outros custos (Canadá, Commission of Inquiry, 1983, 85).
Um levantamento muito amplo de empregadores europeus e representantes de
sindicatos cobrindo grandes empresas em oito países concluiu que os
representantes dos empregados em geral criticavam a falta de oportunidades
de carreira, falta de segurança no emprego e falta de vantagens adicionais
quando lhes pediram para descrever as desvantagens para os empregados do
trabalho de tempo parcial (European Foundation, 1993: 122-123).

Pesquisadores norte-americanos concluíram que os trabalhadores de tempo


parcial estão particularmente insatisfeitos com a questão da estabilidade no
emprego, o tratamento impessoal recebidos dos empregadores e a
subutilização de suas qualificações e competências. (Feldman e Doerpinghaus,
1994)

A grande maioria dos trabalhadores de tempo parcial agora é de mulheres e


esse tipo de trabalho causa sérios problemas tanto para elas como para a vida
familiar. Os trabalhadores de tempo parcial disseram que se sentiam excluídos
no emprego a acesso às “áreas organizativas, interpessoais e de
aperfeiçoamento”. Curiosamente, considerando o que é conhecido sobre a
remuneração e as vantagens concedidas no trabalho de tempo parcial, há
indícios contraditórios sobre a satisfação dos trabalhadores no emprego de
meio-expediente. Alguns estudos concluíram que as mulheres em tempo
parcial tinham mais satisfação e prazer no trabalho do que as que trabalhavam
em tempo integral, enquanto outras pesquisas descobriram substancialmente
menos satisfação entre as de tempo parcial (Cf. Baker, 1993, 52 e McGinnis e
Morrow, 1990). Como veremos, as mulheres em trabalho de tempo parcial tem
importantes pontos de conflito entre suas funções na família e no trabalho
(conflito de funções), assim como sobrecarga de suas funções. Pode-se
especular que os altos níveis de satisfação no trabalho podem refletir
satisfação com uma divisão cuidadosamente construída e delicadamente
balanceada entre os horários de trabalho e as responsabilidades caseiras — e
uma relutância em se modificar a atual distribuição de trabalho —, mais do que
satisfação com as condições, remuneração e vantagens do emprego per se.
(Para um argumento similar usado em um contexto diferente, ver McRae, 1989.
50)

Há boas razões para pensar que as mulheres sofrem mais stress que os
homens por causa dos conflitos entre suas funções no trabalho e em casa
(conflito de funções) assim como a sim-ples magnitude das tarefas que são
forçadas a tentar realizai (sobrecarga de funções) (Emmons et al, 1990, 86;
Piotrkowski, Rapaport e Rapaport, 1987: 256). Enquanto há um certo aumento
na participação do marido no trabalho de casa, as esposas ainda realizam uma
parcela desproporcional deste trabalho (Emmons et al, 1990: 86). As mulheres,
assim, vivenciam mais conflitos entre seus papéis; mulheres casadas
empregadas vivenciaram mais conflitos de papéis do que mulheres que eram
donas-de-casa (Emmons et al, 1990: 86). Famílias mais pobres, e
particularmente as mulheres nestas famílias, que não possuíam os recursos
para administrar os conflitos entre a casa e o trabalho, valendo-se de
empregadas domésticas, por exemplo, estavam propensas a sofrer de stress
na medida em que as tensões do trabalho eram levadas para o ambiente
familiar e vice-versa (McRae, 1989, 42). O stress ocupacional tem sido
associado, entre os operários do sexo masculino, com uma variedade de
sintomas psicológicos e desordens, incluindo problemas ligados ao álcool.
Embora haja menos estudos sobre as operárias, há evidências que sugerem
que esta associação é válida para elas também (Bromet et al, 1990: 135).
Estudos sobre operárias concluíram que havia uma forte relação entre o stress
na família e o conflito conjugal de um lado, e depressão e sintomas
depressivos de outro (Bromet et al, 1990: 136). De acordo com um estudo
recente sobre mulheres e trabalho de tempo parcial, as trabalhadoras não
demonstraram ter menos conflitos de funções ou sobrecarga de funções
(Barker, 1993). Por quê isto deveria ser assim, e suas consequências para a
vida das mulheres e das famílias, são áreas importantes de investigação para
futuros estudos, considerando o que se sabe sobre o stress no emprego e em
casa.

Talvez a conseqüência mais perturbadora do trabalho de tempo parcial seja a


alta taxa de abuso infantil e conjugal em famílias em que o marido trabalha
meio-expediente. Uma amostragem nacional de probabilidade realizada nos
Estados Unidos nos anos 1980 enfocada em parte no status do emprego e
violência doméstica concluiu que “o abuso físico infantil ocorria em 26% dos
lares nos quais o pai era empregado em base parcial, a mais alta de todas as
taxas registradas”. Já no caso da violência conjugal: “a violência conjugal foi
mais alta quando o marido estava empregado em base de tempo parcial”.
(Barline 1990: 206)

Uma importante característica do trabalho em tempo parcial nos Estados


Unidos é a grande participação de adolescentes neste tipo de trabalho. Em
anos recentes, entre metade e dois terços de todos os alunos dos primeiros
anos do segundo grau tiveram empregos de meio-expediente em algum
momento durante o ano. Comumente, eles trabalham em horários pesados:
mais de metade dos secundaristas do penúltimo ano, e quase um quarto de
todos os novos alunos empregados trabalhavam mais de vinte horas por
semana.

Psicólogos que estudaram este fenômeno encontraram consequências


adversas para esses adolescentes em relação a seu desempenho e
envolvimento na escola e participação na vida familiar, quando trabalhavam
mais de 20 horas por semana. Os estudantes tendiam a fazer menos deveres
de casa, a tomar menos parte em atividades escolares, a beber e tomar drogas
mais freqüentemente e a assumir um grau de independência e autonomia
maior em relação a seus pais, assim como a se engajar em atos de
delinqüência. Estudos posteriores repetiram os primeiros resultados. Além
disso, estudos longitudinais demonstraram que os adolescentes que mais tarde
foram trabalhar 20 ho-ras por semana ou mais, já estavam afastados da escola
e eram independentes de seus pais, mas o trabalho de tempo parcial acentuou
essas características, além de promover a delinqüência o o uso de drogas
(Steinberg, Fegley e Dornbusch, 1991).

Trabalho de baixo salário

Uma das características mais perturbadoras da economia neoliberal é a


expansão do trabalho de baixos salários. A percen-tagem da força de trabalho
no trabalho com baixos salários, empregada durante todo o ano em tempo
integral, caiu de 24,1% ern 1964 para 12% em 1974. A proporção de
trabalhadores em trabalhos de baixo salário ficou estável entre 1974 e 1979.
Em 1990 a percentagem havia voltado a subir para 18%. Em números
absolutos 7, 8 milhões eram trabalhadores de baixos salários em 1979, em
comparação com 14,4 milhões em 1990 (Mishel, 127). O sentido geral destas
tendências era o mesmo para todas as raças, mas com maior crescimento do
trabalho de baixo salário para negros e hispânicos (Mishel, 128).

Enquanto a taxa daqueles que recebem baixos salários aumentou para todas
as faixas etárias a partir de 1979, trabalhadores jovens tem maior probabilidade
de receber salários baixos. A percentagem de trabalhadores permanentes em
tempo integral na categoria dos 18 aos 24 anos de idade que recebem baixos
salários cresceu de 22,3 % em 1974 para 39,2 % em 1989. A expansão de
empregos de baixos salários contribuiu para o que tem sido descrito como “um
dos mais significativos acontecimentos na questão da renda nas últimas
décadas”: a queda na renda familiar nas famílias mais jovens tentando criar os
filhos.

Lares encabeçados por pessoas com menos de 25 anos de idade tiveram uma
queda na renda familiar de 26,3% entre 1973 e 1986. Como um economista
especializado em questões trabalhistas afirmou, “a posição relativa da renda na
famílias mais jovens da nação se deteriorou acentuada e continuamente
durante as duas últimas décadas (1967-1986)”. (William T. Grant Foundation:
16, 18) Os casais perderam 11% de suas rendas no período de 1973-86
enquanto famílias encabeçadas por mulheres sem marido sofreram uma perda
de 32,4% de sua renda. As famílias brancas perderam 19,4% de sua renda real
no período, comparados com 46,7% de perda para as famílias negras
encabeçadas por uma só pessoa nessa faixa etária.

Consideradas estas tendências, não é surpresa que a pobreza tenha


aumentado ao longo do tempo nesta faixa etária e que famílias mais jovens
tenham taxas de pobreza mais altas que as famílias em geral. A percentagem
de famílias pobres encabeçadas por uma só pessoa com menos de 25 anos de
idade aumentou de 15,3% para 32,6% em 1986. Em 1989, a percentagem de
todas as famílias com renda abaixo da linha de pobreza era de 10,9%, e a
percentagem de famílias jovens era de 32,6%.

A disseminação de trabalho de baixos salários não significa automaticamente


um aumento no número de famílias abaixo da linha de pobreza. A renda
familiar da família com dois trabalhadores de baixos salários pode ser o
suficiente para elevar a família acima da linha de pobreza. O que isto significa é
a disseminação das agruras econômicas e insegurança. Uma enfermidade —
já que alguns destes trabalhadores não são segurados —, um emprego perdido
ou uma redução de horas de serviço pelo patrão podem facilmente afundar a
família na pobreza.

As agruras econômicas têm sido relacionadas a um aumento de tensões


conjugais e, eventualmente, a níveis mais altos de instabilidade conjugal
(separação e divórcio) (Liker e Elder, 1983).

O divórcio é mais provável entre pessoas de baixa renda, uma constatação que
se tem provado verdadeira durante várias décadas de pesquisa. O trabalho
não-qualificado também tem sido associado com maior instabilidade conjugal
(Raschke, 1987: 603). Pode ser que experiências de trabalho estressantes e
insatisfatórias sejam transplantadas para os lares, onde acabem levando a
conflitos (Piotrowski, Rapoport e Rapoport, 1987: 266).

Há considerável evidência que condições de vida estressantes incluindo


desemprego, baixa renda e/ou discriminação -, estão associadas com abuso
infantil e abandono (Kadushin: 16-19). A noção comum de que o abuso infantil
e abandono ocorrem na mesma proporção em todos os níveis da estrutura de
classes é falsa. Como comenta um pesquisador: “Cada levantamento nacional
de incidentes oficialmente relatados de negligência infantil e abuso tem
indicado que a preponderância de relatos envolve famílias dos níveis
socioeconômicos mais baixos”. (Pelton, 1981: 24; Starr, 1988: 132; Kadushin,
1981: 16)

Isso não é simplesmente o resultado de uma maior vulnerabilidade dos pobres


à exposição e a denúncias. Particularmente significativo é o fato de que “a
maioria das vítimas fatais de abuso infantil e negligência são de famílias
pobres". (Pelton, 29, 1981) Por causa da maior visibilidade e maior exposição,
fatalidades por abuso são prova contra as alegações do viés das denúncias,
que, argumenta-se, infesta as estatísticas de abuso infantil. O fato de que a
incidência é muito maior entre os pobres é, assim, de amplo significado para se
compreender a incidência social do abuso.

Conclusão

Nosso breve levantamento dos dados disponíveis sobre os efeitos do


desemprego, subemprego e empregos de baixo salários revela que há uma
forte tendência dos que caem na escala social dirigirem sua raiva para dentro,
a se tornarem deprimidos, hostis em relação à família e a se afastar dos
vizinhos, amigos, e dos antigos colegas trabalhadores. Este comportamento é
favorecido e induzido pelos maiores partidos políticos, a mídia de massas e os
autores acadêmicos, que assinalam a inevitabilidade da “globalização”, as
virtudes da “competitividade do mercado e a necessidade da flexibilidade
trabalhista; o que apresenta o problema da vítima individual como produto de
forças impessoais que escapam a seu controle. Na medida em que inexista
uma ideologia (e instituições para transmiti-la) que identifique os resultados
negativos como sendo o produto de uma maquinação empresarial baseada nos
interesses de classe em oposição àqueles dos trabalhadores, os trabalhadores
em descenso têm como seus únicos grupos de referência seu círculo imediato
— eles próprios, suas famílias e conhecidos. Quaisquer agressões e
frustrações que se acumulem são dirigidas para baixo e para dentro em vez de
para fora, como a grande quantidade de dados que citamos mostra.

O problema dos que apóiam os trabalhadores em descenso então é como


"acompanhar” a queda com os canais de comunicação e com uma ideologia
que crie novos locais de atividade fora de casa e propicie atividade no tempo
extra disponível voltada para uma ação construtiva dirigida contra a fonte dos
problemas. Isso ensina valores familiares de solidariedade baseados na
necessidade comum de combater o abuso empresarial em lugar da violência
doméstica e abuso infantil.

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