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0 - Artigo Revista Uniletras 2014 PDF
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Resumo: Este artigo tem por objetivo central refletir sobre como funciona a
linguagem de A Paixão Segundo G. H., livro de Clarice Lispector lançado em 1964.
G. H., personagem principal, está claramente em um processo de criação textual
tentando narrar os acontecimentos do dia anterior, quando foi visitada por sentidos
insólitos provindos de um encontro com uma barata. A narradora encontra-se
destituída de linguagem já que fora desconfigurada da conduta humana de viver.
Agora seu esforço consiste em juntar os fragmentos fonéticos que sobraram para
atualizar os sentidos e acontecimentos, recriar os fatos por meio de uma linguagem
experimental e gaguejante, que aqui, a partir das ideias de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, chamamos de Linguagem Esquizofrênica.
Palavras-chave: A Paixão Segundo G. H.; Esquizofrenia; Linguagem.
Abstract: This article discusses how The Passion According to G. H.’s language operates.
The Passion According to G. H. was published by Clarice Lispector in 1964. The main
character, G.H., in a process of textual creation tries to narrate the previous day’s
events when she had unusual feelings after meeting a cockroach. The narrator has
her language abilities impoverished as she was misconfigured from the human way
of living. Her efforts are now to join her reminiscent phonetic fragments to try to
update the meanings and occurrences, recreate the facts through an experimental
and stuttering language, which based on Gilles Deleuze and Félix Guattari’s ideas, is
called Schizophrenic Language.
Keywords: The Passion According to G. H.; Schizophrenia; Language.
*
Mestre. Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG – jhonyskeika@yahoo.com.br
**
Doutora. Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG – oliveira_silvana@hotmail.com
se atualiza, é uma escolha que opta por limitada - então que pelo menos eu
ser excessiva, por saturar-se e trazer, de tenha a coragem de deixar que essa
alguma forma, o aroma daquilo que foi forma se forme sozinha como uma
experimentado, mesmo que apenas pela crosta que por si mesma endurece,
a nebulosa de fogo que se esfria em
sugestão possível da palavra.
terra. E que eu tenha a grande cora-
A protagonista tenta criar um discurso
gem de resistir à tentação de inven-
para representar a experiência vivida, mas tar uma forma. Esse esforço que fa-
o que ela viveu é incompreensível, inexpri- rei agora por deixar subir à tona um
mível e não pode ser acabado pela língua sentido, qualquer que seja, esse es-
humana. É a visão de um grande pedaço de forço seria facilitado se eu fingisse
carne, ou melhor, de uma carne infinita que escrever para alguém. (LISPECTOR,
é a visão dos loucos. Ela sabe que se ela “cor- 2009, p. 13. Grifo nosso).
tar a carne em pedaços e distribuí-los pelos Não fica claro se o movimento de G. H.
dias e pelas fomes”, então a carne infinita é o da escrita, e isso explica o fato de colo-
“não será mais a perdição e a loucura”, mas carmos o termo entre parênteses no título
“será de novo a vida humanizada” (Ibid., p. deste artigo, mas de qualquer forma é um
12). Porém, voltar à humanidade nessas con- discurso que se pauta pelo “agora”, pela pre-
dições é uma atitude esquizofrênica, já que sentificação da experiência. G. H. confia,
para a sua experiência vivida, uma carne in- então, nas relações e nas lacunas que sua
finita é verossímil, mas para os moldes da “nova linguagem” oferece já que seu esfor-
linguagem e da cultura humana dar contor- ço será sempre frustrado pela limitação do
no ao incoerente, e assim admiti-lo em seu código organizado. Então lhe resta o desa-
caráter inexpressivo, é sutilmente loucura. fio de agarrar-se às tábulas das palavras e ir
G. H. está nesse impasse, pois cortar experimentando significados e imagens até
a carne e ajustá-la ao tamanho dos olhos e recriar alguns sentidos do que lhe aconte-
da boca é um modo de integrar nela mesma ceu, mesmo sabendo que nunca conseguirá
a sua própria desintegração, mas seria um contar tudo (LISPECTOR, 2009, p. 163); ela
jeito de entender. assume, veladamente, que os significados
Já que tenho de salvar o dia de ama- escapam da palavra humana e por isso é ne-
nhã, já que tenho que ter uma for- cessário recorrer a outros signos.
ma porque não sinto força de ficar Aqui, gostaríamos de chamar de es-
desorganizada, já que fatalmente quizofrênica essa conduta da linguagem de
precisarei enquadrar a monstruosa G. H., já que foge à estrutura de língua, é
carne infinita e cortá-la em pedaços
embaralhada, labiríntica e opera pelo mo-
assimiláveis pelo tamanho de mi-
vimento de experimentação, sendo esta a
nha boca e pelo tamanho da visão
de meus olhos, já que fatalmente lógica linguística mais significativa. Porém,
sucumbirei à necessidade de forma não há modelo a se seguir assim como há na
que vem de meu pavor de ficar inde- expressão de linguagem institucionalizada,
por isso a personagem afirma que deverá que não faz uso de estruturas estanques de
deixar essa sua língua se formar aleatoria- significação. Se pensarmos a língua como
mente, como uma crosta que por si mesma um código social então temos o esquizo em-
endurece. baralhando seus tijolos (signos), desfazen-
Sua expressão linguística experimen- do ligações lógicas coerentes ao código para
tal é bruta e em estado vivo, como uma fe- encontrar uma nova plurivocidade, novas
rida que vai cicatrizando aos poucos, como vozes que operam por novos sentidos; por
o branco da barata, que se oferece leitoso desejo, os tijolos linguísticos são dispostos
e fresco, mas que já começa a endurecer e das mais inusitadas formas.
amarelar em crosta assim que toca o ar. As- Em A Paixão Segundo G. H. podemos
sim é a linguagem de G. H., nunca é no “ago- perceber a formação de imagens que ope-
ra”, só pode ser presente no justo momento ram na criação de sentidos, mas não podem
em que é processo puro de enunciação; a ser interpretadas de maneira fechada. Um
personagem quer tocar na vida que escapa, exemplo disso é quando a personagem está
descrever com nomes uma manifestação descrevendo o quarto da empregada e afir-
amorfa, a fim de retê-la ao menos nas signi- ma: “O quarto era o retrato de um estômago
ficações da língua, desejando sua imanên- vazio. [...] Tudo ali eram nervos seccionados
cia. Mas a dura verdade é que o momento que tivessem secado suas extremidades em
de comer a massa branca da barata já é um arame” (LISPECTOR, 2009, p. 42). O leitor
instante amarelado. é convidado a experimentar essas imagens
Segundo Deleuze e Guattari (2010, p. desconectadas: a imagem do estômago e
59), dos nervos por si só podem ser significadas
na experimentação da leitura. G. H. cria na
o esquizo está no limite dos fluxos
descodificados do desejo; seria pre-
posse de sua expressão linguística esquizo-
ciso entender, também assim, os có- frênica e o leitor é chamado a experimen-
digos sociais, já que, nestes, um Sig- tar o quente e branco do sol que adentra o
nificante despótico esmaga todas as quarto da empregada, visitar uma caverna
cadeias, as lineariza, as bi-univociza, ou um deserto árido e seus animais, ouvir
e se serve dos tijolos como se fossem sons de guizos de cascavel, vislumbrar uma
elementos imóveis para uma muralha barata grossa ou camadas de baratas como
da China imperial. Mas os esquizo os “o negror de centenas e centenas de perce-
destaca sempre, desliga-os e os leva
vejos, conglomerados uns sobre os outros”
consigo em todos os sentidos para
reencontrar uma nova plurivocidade,
(LISPECTOR, 2009, p. 47). Como por dese-
que é o código do desejo. Toda com- jo, APSGH convida o leitor a criar um CsO,
posição, assim como toda decomposi- imagens e sons que só têm sentido pela ex-
ção, se faz com tijolos móveis. perimentação sensorial que a leitura pre-
sentifica.
Deleuze e Guattari descrevem o com-
portamento esquizofrênico como aquele
uma reprodução que uma expressão, mais regressar ao mundo inteligível da linguagem
fragmentos fonéticos desarticulados que para poder ser significada. A língua esquizo
um discurso, mais esquizofrenia que signi- é apenas uma experimentação ao longo do
ficação. relato territorializado de G. H.
Representar o mundo por uma lingua- Segundo Deleuze, em Crítica e Clínica
gem desarticulada fez parte da agonia de G. (1997), não se trata do desejo de destruição
H. em sua Paixão, bem como sua desestru- da linguagem humana, tampouco separa-
turação dos valores humanos e sua aproxi- damente o de fundação de uma nova língua
mação à selvageria do mundo, comungando desconhecida:
da vida neutra que se manifesta em todos os
Ambos os aspectos se realizam
seres. segundo uma infinidade de
tonalidades, mas sempre juntos: um
Algumas considerações limite da linguagem que tensiona
toda a língua, uma linha de variação
Literatura e esquizofrenia aqui estão ou de modulação tensionada que
associadas, já que uma linguagem (escrita) conduz a língua a esse limite. E assim
esquizofrênica poderia potencializar a con- como a nova língua não é exterior à
duta literária de criar agenciamentos, ex- língua, tampouco o limite assintático
perimentação, CsO, devires, pois opera na é exterior à linguagem: ele é o fora da
linguagem, não está fora dela. É uma
desterritorialização do código linguístico,
pintura ou uma música, mas uma
como tentamos discutir neste estudo. Nos- música de palavras, uma pintura de
so objetivo aqui foi o de aproximar a noção palavras, um silêncio nas palavras,
de Literatura a um princípio esquizofrêni- como se as palavras regurgitassem
co, antes até a uma dinâmica esquizofrêni- seu conteúdo, visão grandiosa ou
ca, não só na linguagem, mas também no audição sublime. O específico nos
jogo do mundo, de modo a reconhecer essa desenhos e pinturas de grandes
dinâmica no funcionamento do discurso es- escritores (...) não é que essas obras
sejam literárias, pois não o são em
quizo no texto de APSGH.
absoluto; elas chegam em puras
Embora Clarice Lispector se propo-
visões, que não obstante referem-se
nha, pelo funcionamento deste livro, a ainda à linguagem na medida em que
exercitar a criação de uma nova linguagem, dela constituem a finalidade última,
isso não significa que estivesse almejando um fora, um avesso, mancha de tinta
também a destruição da antiga língua em ou escrita ilegível. As palavras pintam
favor da estruturação da nova expressão, e cantam, mas no limite do caminho
caso contrário sua produção desejante não que traçam dividem-se e se compõe.
se sustentaria em um contexto de tradição As palavras fazem silêncio. (DELEUZE
apud GURGEL, 2001, p. 35).
literária. Além do mais, como vimos, a
própria narrativa já é uma desistência da Eis o estatuto dessa nova linguagem que
experiência esquizofrênica, que precisa opera pela experimentação da articulação
de outros signos: conduta iconográfica, com o indizível do silêncio. Essa não é uma
atonal, musical, esquizofrênica, permitindo busca frustrada, porque, segundo G. H., o
que seu usuário, em nosso caso G. H., possa inexpressivo é a carga semântica da vida
rebatizar o mundo por seus agenciamentos neutra, sua dicção, e é só pelo fracasso da
e significados e ser rebatizado por eles. linguagem limitada que a protagonista sabe
Deleuze afirma que essa nova lingua- que poderá tocar nesse nó vital para enfim
gem não é exterior à língua institucionali- poder dizer “a vida se me é” (LISPECTOR,
zada, não está fora dela, embora seu movi- 2009, p. 179). Mas nada disso ainda faz sen-
mento tencione a criação de um lado avesso, tido, e não é preciso tudo compreender para
uma mancha de tinta, uma desafinação, experimentar tudo o que é viver: essa é a
uma escrita ilegível em meio a um contexto Paixão e a adoração de G. H.
linguístico maior. Sua maior característica
é a desterritorialização dos significantes REFERÊNCIAS
que agora regurgitam significados não con-
vencionados, misturando os signos a ponto DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs:
de criar uma expressão híbrida e inusitada, capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Tradução
de Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa.
uma língua experimental, esquizofrênica,
São Paulo: Ed. 34, 1995.
polissêmica, múltipla.
______. O Anti-Édipo: capitalismo e
Eu tenho à medida que designo - e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São
este é o esplendor de se ter uma lin- Paulo: Ed. 34, 2010.
guagem. Mas eu tenho muito mais à
DINIS, N. A arte da fuga em Clarice Lispector.
medida que não consigo designar.
Londrina: Ed. UEL, 2001.
A realidade é a matéria-prima, a lin-
guagem é o modo como vou buscá-la GURGEL, G. L. A procura da palavra no escuro
- e como não acho. Mas é do buscar – uma análise da criação de uma linguagem
e não achar que nasce o que eu não na obra de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: 7
conhecia, e que instantaneamente Letras, 2001.
reconheço. A linguagem é o meu es- LISPECTOR, C. A Paixão Segundo G. H.. Rio
forço humano. Por destino tenho que de Janeiro: Rocco, 2009.
ir buscar e por destino volto com as NUNES, B. O Drama da Linguagem – uma
mãos vazias. Mas - volto com o indizí-
leitura de Clarice Lispector. 2 ed. São Paulo:
vel. O indizível só me poderá ser dado
Ática, 1995.
através do fracasso de minha lingua-
gem. Só quando falha a construção, é ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de
que obtenho o que ela não conseguiu. Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro:
(LISPECTOR, 2009, p. 176). Relume Dumará; Sinergia; Ediouro, 2009.