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Doi: 10.5212/Uniletras.v.36i1.

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ECOS DE UMA LINGUAGEM (ESCRITA)


ESQUIZOFRÊNICA EM A PAIXÃO SEGUNDO G.
H. DE CLARICE LISPECTOR

ECHOES FROM A SCHIZOPHRENIC (WRITING)


LANGUAGE IN THE PASSION ACCORDING TO
G. H. BY CLARICE LISPECTOR
Jhony Adelio Skeika*
Silvana Oliveira**

Resumo: Este artigo tem por objetivo central refletir sobre como funciona a
linguagem de A Paixão Segundo G. H., livro de Clarice Lispector lançado em 1964.
G. H., personagem principal, está claramente em um processo de criação textual
tentando narrar os acontecimentos do dia anterior, quando foi visitada por sentidos
insólitos provindos de um encontro com uma barata. A narradora encontra-se
destituída de linguagem já que fora desconfigurada da conduta humana de viver.
Agora seu esforço consiste em juntar os fragmentos fonéticos que sobraram para
atualizar os sentidos e acontecimentos, recriar os fatos por meio de uma linguagem
experimental e gaguejante, que aqui, a partir das ideias de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, chamamos de Linguagem Esquizofrênica.
Palavras-chave: A Paixão Segundo G. H.; Esquizofrenia; Linguagem.

Abstract: This article discusses how The Passion According to G. H.’s language operates.
The Passion According to G. H. was published by Clarice Lispector in 1964. The main
character, G.H., in a process of textual creation tries to narrate the previous day’s
events when she had unusual feelings after meeting a cockroach. The narrator has
her language abilities impoverished as she was misconfigured from the human way
of living. Her efforts are now to join her reminiscent phonetic fragments to try to
update the meanings and occurrences, recreate the facts through an experimental
and stuttering language, which based on Gilles Deleuze and Félix Guattari’s ideas, is
called Schizophrenic Language.
Keywords: The Passion According to G. H.; Schizophrenia; Language.

*
Mestre. Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG – jhonyskeika@yahoo.com.br
**
Doutora. Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG – oliveira_silvana@hotmail.com

Uniletras, Ponta Grossa, v. 36, n. 1, p. 11-21, jan./jun. 2014


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Introdução A Linguagem Segundo G. H.

Clarice Lispector se destaca na litera- Com base nas discussões de Deleuze e


tura brasileira, dentre outras característi- Guattari, partimos da noção de que APSGH
cas, por fazer uso de um discurso que abor- é um livro-máquina e, como um agencia-
da aspectos interiores do ser. Tal sondagem mento, só funciona se estiver conectado a
introspectiva, como destaca Benedito Nu- outras máquinas, outros agenciamentos,
nes (1995, p. 13 - 14), é composta de monó- que fazem o motor-livro trabalhar e produ-
logos internos, digressões, fragmentação zir sentido. Esse é nosso movimento, conec-
de episódios, que “sintonizam com o modo tar APSGH às ideias de Deleuze e Guattari
de apreensão artística da realidade na fic- acerca da Esquizofrenia, para que nesta co-
ção moderna”. Esse tipo de abordagem na nexão possamos experimentar possíveis
escrita literária está muito próximo ao que, sentidos para o texto literário, em especial
previamente, James Joyce e Virginia Woolf a abordagem da Linguagem segundo G. H..
já faziam. Fluxo de consciência pode ser um Deleuze e Guattari (1995, p. 12) dizem
nome para esta conduta, mas o objetivo des- que “não se perguntará nunca o que um li-
te estudo seria tentar entender a escrita de vro quer dizer, significado ou significante,
Clarice Lispector, no recorte que diz respei- não se buscará nada compreender num li-
to ao livro A Paixão Segundo G. H.1, lançado vro, perguntar-se-á com o que ele funciona,
em 1964, sob outra ótica. em conexão com o que ele faz ou não passar
G. H., personagem principal do texto, intensidades, em que multiplicidades ele
é desestabilizada ao contato com sentidos se introduz e metamorfoseia a sua”. Inter-
insólitos provindos de uma situação de epi- pretar um texto literário seria atribuí-lo,
fania. A personagem descreve a perda da traduzi-lo; é dar apenas uma forma àquilo
sua configuração humana, o que significa que pode operar pela multiplicidade. Expe-
também perder a proficiência na língua or- rimentar já é uma vivência, e, por essa di-
ganizada dentro de seu projeto formal de nâmica, se instaura como momento atual,
expressão civilizada. Já que não é possível enquanto o ato de interpretar se coloca
permanecer sem linguagem, G. H. inicia
como síntese de uma compreensão passa-
sua busca por uma forma linguística que a
da. No entanto, a experimentação só existe,
represente em seu estado de desorganiza-
enquanto experiência que pode ser descri-
ção e abandono da língua humana. Este tra-
ta, porque há uma apropriação. Uma vez
balho então se preocupa em acompanhar a
concluída, ela apenas propõe e potencializa
protagonista nesse processo de criação da-
movimentos vindouros se for, em suma, o
quilo que, com base nas ideias dos filósofos
resultado de uma leitura, de uma interpre-
Gilles Deleuze e Félix Guattari, chamamos
tação. Em outras palavras, interpreta-se,
de Linguagem (escrita) Esquizofrênica.
sim, literatura, mas esse exercício não deve
ser uma apropriação despótica das possi-
1
Também será usada, no corpo do texto, a abreviação AP- bilidades semânticas do texto; não se pode
SGH para se referir à obra.

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substituir a multiplicidade da narrativa por G. H. pelo ângulo interior da personagem e


significados limitados. o texto, mesmo que totalmente articulado
Logo, o discurso de G. H. é rizomático em 33 blocos, adquire um movimento caóti-
a ponto de, como grama, espalhar-se para co quiçá por sugerir o processo psicológico
além do território da narrativa e nos pos- e subjetivo pelo qual a protagonista vai se
sibilitar acesso aos bastidores do texto da desestruturando.
protagonista, ao seu processo de elaboração G. H. sabe que a experiência insóli-
e significação, que é mais uma introspecção ta do quarto de Janair só pôde acontecer
e desvario subjetivo e pessoal que propria- quando ela livrou-se de valores culturais
mente elaboração de um sentido único para humanos, quando ela passou a viver em
a obra. Entender, compreender, interpretar um nível sensorial/material e não cultural/
A Paixão Segundo G. H., em sentido restrito, social. Para poder voltar à “normalidade” de
é uma tarefa ineficaz e improdutiva que o sentidos a que estava acostumada seria pre-
leitor pode empreitar. ciso esquecer a experiência esquizofrênica
Pois, a história narrada em APSGH é que teve com a barata, mas o simples fato da
muito curta e simples: G. H. é uma mulher protagonista resolver narrar o acontecido
bem sucedida, escultora, financeiramente para reviver já nos é um indício de que ela
independente, moradora de um elegante não quer esquecer e, portanto, seu calvário
apartamento de “cobertura”, que certo dia será no campo da linguagem: como revelar
precisa limpar sua casa, já que a emprega- o inumano por meio do mais humano de
da se despedira. Ao começar a faxina pelo todos os recursos? Ainda mais se a perso-
quarto da servente, G.H. se vê confrontada nagem declara ter perdido sua roupagem
com a limpeza e aridez do cômodo, que de humana, o que esperar da expressão da lin-
forma irônica abriga a vida dita imunda: guagem, sendo esta predicado essencial de
uma barata. A personagem entra em um um estado de humanidade?
processo de reflexão sobre sua vida e se as- “É difícil perder-se. É tão difícil que
susta ao esmagar o inseto contra a porta do provavelmente arrumarei depressa um
guarda-roupa onde ele se encontrava. O epi- modo de me achar, mesmo que achar-
sódio termina com a degustação da massa me seja de novo a mentira de que vivo”
branca que a barata expele. (LISPECTOR, 2009, p. 10). G. H. precisa
Obviamente, esta leitura superficial dar uma forma a si mesma, contornar-se e
desconsidera a riqueza da construção lite- atribuir um confim à sua experiência, mas
rária de Clarice Lispector. O que nos inte- só poderá fazê-lo pela linguagem.
ressa são os entremeios, o itinerário de G. Segundo Deleuze e Guattari, o esqui-
H., acompanhá-la em sua desumanização zofrênico sofre por estar desorganizado,
e seu modo de oferecer a experiência por alheio ao sistema. É muito próximo o so-
meio do relato, o discurso a que o leitor tem frimento de G. H. que se sente desterrito-
acesso. A autora apresenta a experiência de rializada, desarticulada, já que provou por

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algumas horas um puro fluido de vida, um em posse de uma expressão de linguagem


devir-barata: experimentação potencial e esquizofrênica já que ela parece ter sido
desestruturante. desterritorializada da língua humana?
“Cada vez preciso menos me exprimir.
Estarão as máquinas suficientes
desarranjadas, e suas peças
Também isto perdi?” (LISPECTOR, 2009,
suficientemente desligadas, para p. 19). A linguagem em seu modelo signifi-
se entregarem e nos entregarem cante/significado não seria suficiente para
ao nada? As máquinas desejantes contornar os estados insólitos vividos pela
fazem de nós um organismo: mas, protagonista. Ela mesma admite essa preca-
no seio dessa produção, em sua riedade do signo linguístico: “Será preciso
própria produção, o corpo sofre por coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E
estar assim organizado, por não ter me arriscar à enorme surpresa que sentirei
outra organização ou organização
com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e
nenhuma. (DELEUZE; GUATTARI,
2010, p. 20. Grifo nosso).
terei que acrescentar: não é isso, não é isso!”
(LISPECTOR, 2009, p. 18). A personagem
Deleuze e Guattari afirmam que precisará, então, dizer e desdizer, dizer e
as máquinas desejantes só funcionam redizer, e neste processo a narrativa vai se
desarranjadas, avariadas, quando tornando um labirinto.
desmontam sua integridade maquínica Segundo Deleuze e Guattari (2010,
para se conectar a outra máquina e produ- p. 29), o esquizofrênico “embaralha
zir experimentação. Isso seria, segundo os todos os códigos, num deslizamento
filósofos, uma experiência de Corpo sem rápido, conforme as questões que se lhe
Órgãos, que pode ser entendida como uma apresentam, jamais dando seguidamente
potencialidade de experimentação, possibi- a mesma explicação, não invocando a
lidades de se conectar a outras coisas (uma mesma genealogia, não registrando da
barata, por exemplo) para gerar experiên- mesma maneira o mesmo acontecimento”.
cias; é um devir, uma experimentação não Muito parecido a isso é o movimento de G.
prevista, mas possível, como se o corpo in- H., que fica deambulando pela linguagem,
teligível se projetasse em uma potencialida- fazendo contornos, explicando, refletindo,
de a partir do seu limite. O corpo não tem percorrendo os mesmo sentimentos de
órgãos, mas limiares, níveis, intensidades. diversas formas, usando da língua para
Seria uma experiência de Corpo passear sobre sua experiência, como se
sem Órgãos a que G. H. teve acesso, já procurasse a melhor forma para dizer o que
que experimentou insolitamente a vida deve ser dito e, não encontrando, passasse
crua e neutra da barata, o nó vital, núcleo à prolixidade, “pecando por excesso” de
pulsante, a matéria de Deus? Se o CsO é língua, recriando novamente o que já se
“uma conquista própria da Esquizofrenia” esforçara para dar forma. É no processo
(ZOURABICHVILI, 2009, p. 31), estaria a de deambulação que a experiência vivida
personagem relatando sua experiência

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se atualiza, é uma escolha que opta por limitada - então que pelo menos eu
ser excessiva, por saturar-se e trazer, de tenha a coragem de deixar que essa
alguma forma, o aroma daquilo que foi forma se forme sozinha como uma
experimentado, mesmo que apenas pela crosta que por si mesma endurece,
a nebulosa de fogo que se esfria em
sugestão possível da palavra.
terra. E que eu tenha a grande cora-
A protagonista tenta criar um discurso
gem de resistir à tentação de inven-
para representar a experiência vivida, mas tar uma forma. Esse esforço que fa-
o que ela viveu é incompreensível, inexpri- rei agora por deixar subir à tona um
mível e não pode ser acabado pela língua sentido, qualquer que seja, esse es-
humana. É a visão de um grande pedaço de forço seria facilitado se eu fingisse
carne, ou melhor, de uma carne infinita que escrever para alguém. (LISPECTOR,
é a visão dos loucos. Ela sabe que se ela “cor- 2009, p. 13. Grifo nosso).
tar a carne em pedaços e distribuí-los pelos Não fica claro se o movimento de G. H.
dias e pelas fomes”, então a carne infinita é o da escrita, e isso explica o fato de colo-
“não será mais a perdição e a loucura”, mas carmos o termo entre parênteses no título
“será de novo a vida humanizada” (Ibid., p. deste artigo, mas de qualquer forma é um
12). Porém, voltar à humanidade nessas con- discurso que se pauta pelo “agora”, pela pre-
dições é uma atitude esquizofrênica, já que sentificação da experiência. G. H. confia,
para a sua experiência vivida, uma carne in- então, nas relações e nas lacunas que sua
finita é verossímil, mas para os moldes da “nova linguagem” oferece já que seu esfor-
linguagem e da cultura humana dar contor- ço será sempre frustrado pela limitação do
no ao incoerente, e assim admiti-lo em seu código organizado. Então lhe resta o desa-
caráter inexpressivo, é sutilmente loucura. fio de agarrar-se às tábulas das palavras e ir
G. H. está nesse impasse, pois cortar experimentando significados e imagens até
a carne e ajustá-la ao tamanho dos olhos e recriar alguns sentidos do que lhe aconte-
da boca é um modo de integrar nela mesma ceu, mesmo sabendo que nunca conseguirá
a sua própria desintegração, mas seria um contar tudo (LISPECTOR, 2009, p. 163); ela
jeito de entender. assume, veladamente, que os significados
Já que tenho de salvar o dia de ama- escapam da palavra humana e por isso é ne-
nhã, já que tenho que ter uma for- cessário recorrer a outros signos.
ma porque não sinto força de ficar Aqui, gostaríamos de chamar de es-
desorganizada, já que fatalmente quizofrênica essa conduta da linguagem de
precisarei enquadrar a monstruosa G. H., já que foge à estrutura de língua, é
carne infinita e cortá-la em pedaços
embaralhada, labiríntica e opera pelo mo-
assimiláveis pelo tamanho de mi-
vimento de experimentação, sendo esta a
nha boca e pelo tamanho da visão
de meus olhos, já que fatalmente lógica linguística mais significativa. Porém,
sucumbirei à necessidade de forma não há modelo a se seguir assim como há na
que vem de meu pavor de ficar inde- expressão de linguagem institucionalizada,

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por isso a personagem afirma que deverá que não faz uso de estruturas estanques de
deixar essa sua língua se formar aleatoria- significação. Se pensarmos a língua como
mente, como uma crosta que por si mesma um código social então temos o esquizo em-
endurece. baralhando seus tijolos (signos), desfazen-
Sua expressão linguística experimen- do ligações lógicas coerentes ao código para
tal é bruta e em estado vivo, como uma fe- encontrar uma nova plurivocidade, novas
rida que vai cicatrizando aos poucos, como vozes que operam por novos sentidos; por
o branco da barata, que se oferece leitoso desejo, os tijolos linguísticos são dispostos
e fresco, mas que já começa a endurecer e das mais inusitadas formas.
amarelar em crosta assim que toca o ar. As- Em A Paixão Segundo G. H. podemos
sim é a linguagem de G. H., nunca é no “ago- perceber a formação de imagens que ope-
ra”, só pode ser presente no justo momento ram na criação de sentidos, mas não podem
em que é processo puro de enunciação; a ser interpretadas de maneira fechada. Um
personagem quer tocar na vida que escapa, exemplo disso é quando a personagem está
descrever com nomes uma manifestação descrevendo o quarto da empregada e afir-
amorfa, a fim de retê-la ao menos nas signi- ma: “O quarto era o retrato de um estômago
ficações da língua, desejando sua imanên- vazio. [...] Tudo ali eram nervos seccionados
cia. Mas a dura verdade é que o momento que tivessem secado suas extremidades em
de comer a massa branca da barata já é um arame” (LISPECTOR, 2009, p. 42). O leitor
instante amarelado. é convidado a experimentar essas imagens
Segundo Deleuze e Guattari (2010, p. desconectadas: a imagem do estômago e
59), dos nervos por si só podem ser significadas
na experimentação da leitura. G. H. cria na
o esquizo está no limite dos fluxos
descodificados do desejo; seria pre-
posse de sua expressão linguística esquizo-
ciso entender, também assim, os có- frênica e o leitor é chamado a experimen-
digos sociais, já que, nestes, um Sig- tar o quente e branco do sol que adentra o
nificante despótico esmaga todas as quarto da empregada, visitar uma caverna
cadeias, as lineariza, as bi-univociza, ou um deserto árido e seus animais, ouvir
e se serve dos tijolos como se fossem sons de guizos de cascavel, vislumbrar uma
elementos imóveis para uma muralha barata grossa ou camadas de baratas como
da China imperial. Mas os esquizo os “o negror de centenas e centenas de perce-
destaca sempre, desliga-os e os leva
vejos, conglomerados uns sobre os outros”
consigo em todos os sentidos para
reencontrar uma nova plurivocidade,
(LISPECTOR, 2009, p. 47). Como por dese-
que é o código do desejo. Toda com- jo, APSGH convida o leitor a criar um CsO,
posição, assim como toda decomposi- imagens e sons que só têm sentido pela ex-
ção, se faz com tijolos móveis. perimentação sensorial que a leitura pre-
sentifica.
Deleuze e Guattari descrevem o com-
portamento esquizofrênico como aquele

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A menos que eu pudesse fazer a prece conseguimos acompanhar seu itinerário


verdadeira, e que aos outros e a mim narrativo, atribuímos significados às suas
mesma pareceria a cabala de uma metáforas e explanações. Porém, há trechos
magia negra, um murmúrio neutro. em que a linguagem sucumbe e é impossível
Esse murmúrio, sem nenhum senti-
propor uma interpretação padrão e
do humano, seria a minha identidade
tocando na identidade das coisas. Sei
aceitável semanticamente no contexto da
que, em relação ao humano, essa pre- língua humana, já que a linguagem torna-se
ce neutra seria uma monstruosidade. um emaranhado desordenado de imagens
Mas em relação ao que é Deus, seria: e palavras boiando desconectadas do todo
ser. (LISPECTOR, 2009, p. 134. Grifo orgânico que o romance pretende ser. Um
nosso). exemplo claro de como isso acontece está no
capítulo doze.
Eis a prece verdadeira, a busca secreta
das religiões que desterritorializam suas Finalmente, meu amor, sucumbi. E
línguas para se aproximarem do núcleo tornou-se um agora. Era finalmente
incompreensível do divino. Um murmúrio, agora. Era simplesmente agora. Era
sílabas desconexas, onomatopeias, silêncio. assim: o país estava em onze horas da
manhã. Superficialmente como um
Seria essa a conduta da língua que poderia
quintal que é verde, da mais delicada
ser usada naquele quarto? Grunhidos,
superficialidade. Verde, verde - verde
ruídos, chiados, uma ex-humana se é um quintal. Entre mim e o verde, a
aproximando da identidade neutra da água do ar. A verde água do ar. Vejo
vida, de uma barata, fazendo uma prece tudo através de um copo cheio. Nada
monstruosa àquilo que parecia “ser” o Deus. se ouve. No resto da casa a sombra
“Há três mil anos desvairei-me, e o que está toda inchada. A superficialidade
restaram foram fragmentos fonéticos de madura. São onze horas da manhã no
mim” (LISPECTOR, 2009, p. 20) Brasil. É agora. Trata-se exatamente
de agora. Agora é o tempo inchado
Porém, já que sem linguagem nada
até os limites. Onze horas não têm
é narrável, e ela se propôs ao relato do que
profundidade. Onze horas está cheio
foi vivido, então as horas de perdição no das onze horas até as bordas do copo
quarto de Janair vão sendo recriadas em um verde. O tempo freme como um balão
estilo experimental, traduzidas em sinais de parado. O ar fertilizado e arfante. Até
telégrafo, em uma linguagem sonâmbula, que num hino nacional a badalada das
que não seria linguagem se a protagonista onze e meia corte as amarras do balão.
estivesse acordada (LISPECTOR, 2009, p. E de repente nós todos chegaremos ao
19). meio-dia. Que será verde como agora.
Acordei de súbito do inesperado oásis
Entretanto, o tecido discursivo de G.
verde onde por um momento eu me
H. nem sempre é desordenado. Podemos
refugiara toda plena. (LISPECTOR,
dizer que há picos de esquizofrenia em 2009, p. 79. Grifo nosso).
sua linguagem, há momentos em que

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G. H. se entrega ao “agora” como uma sentido e o leitor é convidado a acompanhar


sonâmbula sai desesperada ao encontro da essa experiência que é apenas fonética (grá-
experiência e sua linguagem perde a noção fica) e não semântica, pois o que está sen-
de unidade, coesão, coerência em favor da do narrado é “inegavelmente uma verdade
experimentação de sensações que vão sendo anterior a nossas palavras” (LISPECTOR,
descritas por imagens inusitadas. Essa 2009, p. 118 – 119. Grifo nosso):
linguagem quer gerar inusitados sentidos
Lembro-me de minhas dores de
que não foram ainda convencionados
garganta de então: as amídalas in-
na lógica do mundo, como por exemplo chadas, a coagulação em mim era
experimentar a sensação de ser um copo rápida. E facilmente se liquefazia:
arfante, inchado e cheio de onze horas verdes minha dor de garganta passou, di-
de um balão. É a tentativa de superação da zia-te eu. Como geleiras no verão, e
relação significante e significado e de seu liquefeitos os rios correm. Cada pa-
condicionamento no contexto semântico, lavra nossa - no tempo que chamá-
sintático e morfológico da língua, o que nos vamos de vazio - cada palavra era
tão leve e vazia como uma borbole-
autoriza a criar signos novos que podem
ta: a palavra de dentro esvoaçava de
ser incorporados, sem nenhum prejuízo, à
encontro à boca, as palavras eram
maquina da linguagem. Eis uma língua que ditas mas nem as ouvíamos porque
não está descrevendo simples construções, as geleiras liquefeitas faziam muito
o desejo é sê-las ao mesmo tempo em que barulho enquanto corriam. No meio
elas são. A linguagem esquizofrênica é a do fragor líquido, nossas bocas se
materialização do próprio tempo presente, mexiam dizendo, e na verdade só
pois “trata-se exatamente de agora” e víamos as bocas se mexendo mas
“agora é o tempo inchado até os limites” não as ouvíamos - olhávamos um para
a boca do outro, vendo-a falar, e pouco
(LISPECTOR, 2009, loc. cit.).
importava que não ouvíssemos, oh
Talvez pudéssemos sugerir um tempo em nome de Deus pouco importava.
verbal de enunciação dessa linguagem (es- E em nome nosso, bastava ver que
crita) esquizofrênica: o presente do indica- a boca falava, e nós ríamos porque
tivo, já que sempre que G. H. tenta dele se mal prestávamos atenção. E no en-
aproximar é sucumbida por uma expressão tanto chamávamos esse não ouvir
caótica e experimental. de desinteresse e de falta de amor.
G. H. sugere, pelo desprezo da orga- Mas na verdade como dizíamos! di-
nização linguística, uma adesão completa zíamos o nada.
a uma conduta de linguagem esquizofrêni- Essas imagens nos conduzem a pensar
ca, como se sua mais profunda prece fosse que a desterritorialização da língua acontece
feita em tons inaudíveis de sons descone- até em seus constituintes fisiológicos, como
xos e desterritorializados. Neste protocolo o aparelho fonador, as zonas de articulação
linguístico, o que ela disser não pode fazer e as cavidades internas da boca. É porque na

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língua humana e organizada as palavras se quarto de Janair. A dicção atonal do deserto


coagulam para poderem ser proferidas, mas do quarto da empregada de G. H. era como
a linguagem esquizofrênica quer, antes que a de um cântico monótono, uma ladainha,
o branco amarele, os espermatozoides mor- um oratório todo cantando de bocas fecha-
ram e o sangue coagule, tocar no que é vivo das. “E ia para essa loucura promissora”
no presente do indicativo. Não falar com a (LISPECTOR, 2009, p. 59). O som do silêncio
boca, desorganizar os sons, não articulá-los, daquele quarto era a manifestação de uma
deixando a palavra voar como uma borbole- linguagem esquizofrênica e G. H. é movida
ta sem peso significativo: os signos não têm a desterritorializar a articulação fonética do
mais sua função de representação, é um in- código até “chegar a gaguejar na sua própria
seto alado de voa na cavidade articulatória língua” (DELEUZE; PARNET apud DINIS,
do aparelho fonador, batendo em suas pa- 2001, p. 16).
redes mucosas, esvoaçando significantes É muito difícil destituir-se da
sem significado. Experiência de Corpo sem linguagem, já que é nossa pata humana,
Órgãos, desterritorialização do organismo nosso esforço sensível de transcendência.
produtor de sons, máquina-boca desejante, Conhecemos o mundo pelas construções
avariada, desregulada e descontrolada, ar- arquitetadas na/pela língua, por isso é
fando palavras-borboleta não programadas. então intenso o sofrimento de G. H., sua
Seria a dicção neutra do silêncio Paixão é depor a língua e toda a significação
esta expressão de que G. H. faz uso? Uma transcendente que ela evoca – talvez seja
linguagem esquizofrênica, desestruturada, esse um dos sentidos a que o título do livro
desconexa, sem sentido, como um cão que possa se referir. O caminho do calvário
cava buracos, ratos rizomáticos se tocando percorrido é sua rota para o assassinato
freneticamente em suas tocas, a língua profundo da língua como intermediária
lamuriante dos anjos, fragmentos fonéticos constante entre a personagem e o mundo,
desarticulados proferidos num êxtase um crime contra si mesma já que G. H. é
espiritual que por si só não tem significado linguagem e esforçou-se a vida toda para
e antes é uma ladainha sinestésica: “A enquadrar-se nela.
vibração do calor era como a vibração Esse é seu caminho de sofrimento e ela
de um oratório cantado. Só minha parte não resiste às quedas, sua salvação contra
auricular sentia. Cântico de boca fechada, a dor é recorrer novamente à língua para
som vibrando surdo como o que está preso se significar e assim a narrativa vai sendo
e contido, amém, amém. Cântico de ação de construída e é só por isso que a narrativa
graças pelo assassinato de um ser por outro existe, porque G. H. não resistiu ao vício
ser”. (LISPECTOR, 2009, p. 81. Grifo nosso). humano de nomear. Ela precisou voltar de-
O seu aparelho auricular é desterri- sesperadamente ao uso da língua, mesmo
torializado da função de audição e passa a que agora sua expressão de linguagem seja
sentir a ressonância do som inaudível do mais um grafismo que uma escrita, mais

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Jhony Adelio Skeika, Silvana Oliveira

uma reprodução que uma expressão, mais regressar ao mundo inteligível da linguagem
fragmentos fonéticos desarticulados que para poder ser significada. A língua esquizo
um discurso, mais esquizofrenia que signi- é apenas uma experimentação ao longo do
ficação. relato territorializado de G. H.
Representar o mundo por uma lingua- Segundo Deleuze, em Crítica e Clínica
gem desarticulada fez parte da agonia de G. (1997), não se trata do desejo de destruição
H. em sua Paixão, bem como sua desestru- da linguagem humana, tampouco separa-
turação dos valores humanos e sua aproxi- damente o de fundação de uma nova língua
mação à selvageria do mundo, comungando desconhecida:
da vida neutra que se manifesta em todos os
Ambos os aspectos se realizam
seres. segundo uma infinidade de
tonalidades, mas sempre juntos: um
Algumas considerações limite da linguagem que tensiona
toda a língua, uma linha de variação
Literatura e esquizofrenia aqui estão ou de modulação tensionada que
associadas, já que uma linguagem (escrita) conduz a língua a esse limite. E assim
esquizofrênica poderia potencializar a con- como a nova língua não é exterior à
duta literária de criar agenciamentos, ex- língua, tampouco o limite assintático
perimentação, CsO, devires, pois opera na é exterior à linguagem: ele é o fora da
linguagem, não está fora dela. É uma
desterritorialização do código linguístico,
pintura ou uma música, mas uma
como tentamos discutir neste estudo. Nos- música de palavras, uma pintura de
so objetivo aqui foi o de aproximar a noção palavras, um silêncio nas palavras,
de Literatura a um princípio esquizofrêni- como se as palavras regurgitassem
co, antes até a uma dinâmica esquizofrêni- seu conteúdo, visão grandiosa ou
ca, não só na linguagem, mas também no audição sublime. O específico nos
jogo do mundo, de modo a reconhecer essa desenhos e pinturas de grandes
dinâmica no funcionamento do discurso es- escritores (...) não é que essas obras
sejam literárias, pois não o são em
quizo no texto de APSGH.
absoluto; elas chegam em puras
Embora Clarice Lispector se propo-
visões, que não obstante referem-se
nha, pelo funcionamento deste livro, a ainda à linguagem na medida em que
exercitar a criação de uma nova linguagem, dela constituem a finalidade última,
isso não significa que estivesse almejando um fora, um avesso, mancha de tinta
também a destruição da antiga língua em ou escrita ilegível. As palavras pintam
favor da estruturação da nova expressão, e cantam, mas no limite do caminho
caso contrário sua produção desejante não que traçam dividem-se e se compõe.
se sustentaria em um contexto de tradição As palavras fazem silêncio. (DELEUZE
apud GURGEL, 2001, p. 35).
literária. Além do mais, como vimos, a
própria narrativa já é uma desistência da Eis o estatuto dessa nova linguagem que
experiência esquizofrênica, que precisa opera pela experimentação da articulação

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Ecos de uma linguagem (escrita) esquizofrênica em a paixão segundo g. H. De clarice lispector

de outros signos: conduta iconográfica, com o indizível do silêncio. Essa não é uma
atonal, musical, esquizofrênica, permitindo busca frustrada, porque, segundo G. H., o
que seu usuário, em nosso caso G. H., possa inexpressivo é a carga semântica da vida
rebatizar o mundo por seus agenciamentos neutra, sua dicção, e é só pelo fracasso da
e significados e ser rebatizado por eles. linguagem limitada que a protagonista sabe
Deleuze afirma que essa nova lingua- que poderá tocar nesse nó vital para enfim
gem não é exterior à língua institucionali- poder dizer “a vida se me é” (LISPECTOR,
zada, não está fora dela, embora seu movi- 2009, p. 179). Mas nada disso ainda faz sen-
mento tencione a criação de um lado avesso, tido, e não é preciso tudo compreender para
uma mancha de tinta, uma desafinação, experimentar tudo o que é viver: essa é a
uma escrita ilegível em meio a um contexto Paixão e a adoração de G. H.
linguístico maior. Sua maior característica
é a desterritorialização dos significantes REFERÊNCIAS
que agora regurgitam significados não con-
vencionados, misturando os signos a ponto DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs:
de criar uma expressão híbrida e inusitada, capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Tradução
de Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa.
uma língua experimental, esquizofrênica,
São Paulo: Ed. 34, 1995.
polissêmica, múltipla.
______. O Anti-Édipo: capitalismo e
Eu tenho à medida que designo - e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São
este é o esplendor de se ter uma lin- Paulo: Ed. 34, 2010.
guagem. Mas eu tenho muito mais à
DINIS, N. A arte da fuga em Clarice Lispector.
medida que não consigo designar.
Londrina: Ed. UEL, 2001.
A realidade é a matéria-prima, a lin-
guagem é o modo como vou buscá-la GURGEL, G. L. A procura da palavra no escuro
- e como não acho. Mas é do buscar – uma análise da criação de uma linguagem
e não achar que nasce o que eu não na obra de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: 7
conhecia, e que instantaneamente Letras, 2001.
reconheço. A linguagem é o meu es- LISPECTOR, C. A Paixão Segundo G. H.. Rio
forço humano. Por destino tenho que de Janeiro: Rocco, 2009.
ir buscar e por destino volto com as NUNES, B. O Drama da Linguagem – uma
mãos vazias. Mas - volto com o indizí-
leitura de Clarice Lispector. 2 ed. São Paulo:
vel. O indizível só me poderá ser dado
Ática, 1995.
através do fracasso de minha lingua-
gem. Só quando falha a construção, é ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de
que obtenho o que ela não conseguiu. Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro:
(LISPECTOR, 2009, p. 176). Relume Dumará; Sinergia; Ediouro, 2009.

É por essa nova linguagem que G. H.


admite ir atrás da matéria-prima da vida,
Recebido para publicação em 17 de fev. 2014
e, embora volte de mãos vazias, retorna
Aceito para publicação em 4 de abr. de 2014

Uniletras, Ponta Grossa, v. 36, n. 1, p. 11-21, jan./jun. 2014


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