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GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
FEIRA DE SANTANA-BA
2018
MATHEUS RIOS SILVA SANTOS
Trabalho de Conclusão de
Curso apresentado ao
Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia como
requisito para a obtenção de
título de graduação do curso de
Psicologia na Universidade
Estadual de Feira de Santana.
FEIRA DE SANTANA
2018
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DEDICATÓRIA
A Iago, Laurise e Denilson, pessoas a quem dedico todo meu amor e admiração. Aos
membros do Movimento Nacional da População de Rua - Núcleo Feira de Santana, os
melhores professores da educação popular.
AGRADECIMENTOS
A Laurise Rios, mãe amorosa, pelo acompanhamento realizado durante toda minha
vida escolar. Impossível contar a quantidade de vezes que ela acordou comigo, às
cinco da manhã, e fomos para o quintal enrolados nas cobertas para revisarmos as
provas juntos. A senhora é um exemplo de ternura, dedicação e cuidado. Sou
imensamente grato por tudo que tem feito por mim.
A Denilson Lima, pai cuidadoso, por me ensinar que ouvir vale muito mais do que
falar em demasia. Sua tranquilidade e paciência me inspiram e me transmitem
sobriedade. O senhor e mainha juntos, me deixam repleto de orgulho dos pais que
eu tenho.
A Iago Rios, irmão sempre presente, por ser um exemplo diário de como me tornar
uma pessoa melhor. Minha admiração e respeito, por você, são imensuráveis.
A todos meus tios, tias, primos, primas e, especialmente, a minhas avós Lindaura e
Raquel; e a meus avôs Delfino e Deusdete. Amo vocês de todo coração!
A Heide Bispo, amiga querida, por toda sua dedicação e convivência ao longo dos
anos. Te respeito muito pelo exemplo de ser humano que você é.
A Lorena Carneiro, companheira afável, por me mostrar o valor inestimável que uma
relação baseada na sinceridade, confiança e respeito mútuo carrega.
A Tia Del, Everton, Eberton e família, pessoas acolhedoras, por terem aberto as
portas de sua casa e possibilitado que eu saísse de Mairi e viesse para Feira de
Santana estudar. Vocês são muito importantes para mim.
ABSTRACT
Living on the street exposes men, women and children to risks, experiences and some
discoveries that make this population worthy, in several aspects, of a different reception, care
practices and follow-up by health professionals (BRASIL, 2012b). In view of this, this work
seeked to investigate how an exercise of a qualified listening according to four members of
the National Movement of Street Population - unit of Feira de Santana. More specifically, it
aimed to understand how the street life of the people interviewed was / is; what are the
effects of the exercise of qualified listening and what is the significance of this Movement for
street people. For this, a qualitative, exploratory research was undertaken, using
semi-structured interviews in order of collecting data. At the end, the findings showed that the
exercise of the qualified listening for street people is facilitated when it is adopted certain
procedures for approaching, creating links and building a relationship based on trust with
those people.
1 INTRODUÇÃO………………………………………………...………………………. 11
5 METODOLOGIA………………………………………………...……………………. 52
8 REFERÊNCIAS.……………………………………………………………………… 95
9 APÊNDICES………………………………………………………………………….. 104
11
1 INTRODUÇÃO
O poema acima transcrito foi elaborado por Carlos Eduardo Ramos, o Cadú,
uma pessoa em situação de rua. Seus versos, em tom de revolta, representam o
protesto de milhares de pessoas que deixaram de ter sua dignidade de pessoa
humana socialmente reconhecida pelo fato de estarem em situação de rua. Através
das suas palavras, Cadú é categórico na desconstrução de estigmas (“lixos”,
“bichos”, “fantasmas”) e chega a ser pedagógico na demarcação das razões que
preservam a humanidade das pessoas que estão na condição de rua (“Nós
pensamos e agimos, calamos e gritamos”/ “Não somos bicho nem lixo, temos voz”).
A fim de endossar o manifesto de Cadú sobre a humanidade das pessoas em
situação de rua, propomos, neste primeiro capítulo, a adoção das terminologias
“pessoas em situação de rua” e “cidadãos em situação de rua”.
Isso porque não existe, atualmente, um consenso no meio científico sobre
qual é a terminologia mais apropriada utilizar para se referir às pessoas
consideradas pertencentes ao grupo populacional que, segundo Silva (2014),
apresentam três características principais: a pobreza extrema; os vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados; e a carência de moradia convencional-regular, fatores
que influenciam na utilização da rua como espaço de moradia e sustento, por
contingência temporária ou de forma permanente.
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1
A fim de confirmar essa linha argumentativa, exemplificamos, em caráter amostral, a reportagem do
jornal Huffpost Brasil denominada: LAMAS, Julio. Moradores de rua: por trás destes números há
pessoas. Huffpost, 2014. Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/2014/06/30/moradores-de-
rua-por-tras-destes- numeros-ha-pessoas_a_21674802/?utm_hp_ref=br-morador-de-rua. Acessado
em 6 de agosto de 2017.
16
Nisto, somos bárbaros, tal como os outros, uma vez que, pela natureza,
bárbaros e gregos somos todos iguais. Convém considerar as necessidades
que a natureza impõe a todos os homens; todos conseguem prover a essas
necessidades nas mesmas condições; no entanto, no que concerne a todas
essas necessidades, nenhum de nós é diferente, seja ele bárbaro ou grego:
respiramos o mesmo ar com a boca e o nariz, todos nós comemos com o
auxílio de nossas mãos [...] (ANTIFONTE, 1996, apud COMPARATO, 2010,
p. 27, Grifos nossos).
ser visto como a própria substância do ser humano com suas características de
permanência e invariabilidade: “Foi, de qualquer forma, sobre a concepção medieval
de pessoa que se iniciou a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo
ser humano, não obstante a ocorrência de todas as diferenças individuais ou
grupais, de ordem biológica ou cultural.”
A terceira etapa de evolução semântica do conceito de “pessoa” é marcada
pelo pensamento kantiano. A maior contribuição do pensamento de Kant, ainda
segundo Comparato (2010, p. 33), a esse conceito está justamente em ensinar que
todo ser humano existe como um fim em si mesmo e não simplesmente como meio.
“Daí decorre, como assinalou o filósofo, que todo homem tem dignidade e não um
preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua
individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser
trocado por coisa alguma (COMPARATO, 2010, p. 34). Neste sentido, “tratar a
humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível,
o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de
outrem sejam por mim considerados também como meus” (COMPARATO, 2010, p.
35). A compreensão implícita desse fundamento pode ser considerada o alicerce
para a solidariedade entre os seres humanos.
A quarta etapa desse desenvolvimento é considerada por Comparato (2010,
p.37) como a fase da “descoberta do mundo dos valores”. Ou seja, “essa fase marca
o reconhecimento de que o homem é o único ser vivo que dirige sua vida em função
de preferências valorativas” (COMPARATO, 2010, p. 38). Essa compreensão foi
fundamentalmente importante para os direitos humanos uma vez que esses passam
a ser identificados como os valores mais importantes para a convivência humana.
Por fim, a quinta e última fase desenvolveu-se a partir do século XX, baseada
na filosofia da vida e no pensamento existencialista. Esta etapa veio confirmar o
pensamento de Boécio desenvolvido durante a segunda fase de que a essência da
personalidade humana não se confunde com a função social de cada ser humano.
Neste sentido, a identidade de cada ser humano é singular e inconfundível como a
de qualquer outro. Além disso, essa etapa apresenta a noção de pessoa como
realidade inacabada, aquele ente que está em permanente “vir-a-ser”, um contínuo
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convocam para a ação: “as situações não são mudas, elas exigem de nós que
entremos em ação” (JOAS, 1996, p.160). Portanto, mais do que atores é importante
demarcar o papel da pessoa em situação de rua como agentes do meio social.
Dessa forma, compreender a existência dessas pessoas como marcada por
uma situação de estar na rua é de fundamental importância para a percepção de que
a situação de rua se torna parte constitutiva de suas ações na relação consigo, com
os outros e com o ambiente a sua volta. Neste sentido, Joas (1996) traz a
formulação de Dietrich Böhler para apresentar o caráter relacional e dialético entre
situação e ação.
Por 'situação' nós – isto é, 'nós' como seres humanos que agimos e
sabemos sobre a ação – compreendemos uma relação entre seres humanos
e objetos, ou entre ser humano e objetos, que já precede a ação particular
sob consideração e que é, portanto, em cada caso já compreendida pela
pessoa ou pessoas envolvidas como um desafio entre fazer ou
alternativamente não fazer alguma coisa. De forma coloquial falamos sobre
'entrar em' situações: elas 'nos acontecem', 'acontecem para' nós e nós nos
encontramos 'confrontados' por elas. Essas são formas de expressar que a
situação é algo que precede nossa ação (ou inação) mas que também
provoca ação porque ela nos 'afeta', nos 'interessa' ou nos 'preocupa'
(BÖHLER, 1985 apud JOAS, 1996. p. 162. Grifo nosso. Tradução nossa).
importância substancialmente maior nos casos das pessoas que permanecem nelas
na totalidade do dia. Se por um lado, o espaço da rua se apresenta como local de
subsistência, de vulnerabilidade, de falta de condições básicas de higiene e
alimentação adequada; por outro, a rua é o espaço onde essas pessoas se
encontram, constrói novos laços de amizades, vivenciam relações amorosas e de
companheirismo. Além disso, a rua é o local das festas populares, da aglutinação de
pessoas que se reúnem para reivindicar seus direitos e/ou protestar contra os
arbítrios de um governo; é o local também onde são montadas as barracas para as
chamadas feiras livres, prática cultural e comercial inerente ao cenário urbano da
maior parte das cidades brasileiras (SOUZA, 2015). Propriamente dizendo, no que
tange à utilização do termo na expressão em destaque, cabe falar que a palavra rua
pode ser compreendida como uma metonímia que se refere a uma série de lugares
do ambiente urbano nos quais as pessoas desprovidas de uma moradia
convencional e permanente utilizam para garantir sua subsistência. Silva (2009, p.
118) elenca mais cuidadosamente esses sítios:
Exemplo desses lugares são os abrigos, albergues, repúblicas e outros tipos
de acolhida temporária oferecidos por organizações públicas ou privadas,
sem fins lucrativos. Outros exemplos são as ruas, praças, avenidas,
viadutos, canteiros, jardins, cemitérios, entre outros, que podem ser
utilizados como acomodação, abrigo e atendimento às necessidades de
higiene, limpeza e alimentação em pontos estratégicos (bancos de praças,
marquises, banheiros públicos, chafariz, bicas, represas, postos de
gasolinas, refeitórios públicos, refeitório de inscrições privadas sem fins
lucrativos etc.).
Com isso, enquanto o termo situação traz uma dimensão temporal para essas
pessoas, o termo rua demarca justamente o caráter espacial dessa dada situação.
Portanto, a partir dos termos pessoa em situação de rua tem-se a construção
sócio-histórica desses sujeitos em estado de vulnerabilidade social. Antes de
delimitarmos mais especificamente a diferenciação entre pessoa em situação de rua
e cidadão/cidadã em situação de rua, façamos uma discussão sobre o termo
cidadão.
Segundo Dallari (1984) , “o conceito de cidadão é mal definido, ambíguo e é
utilizado com diferentes sentidos. Alguns o utilizam com a intenção de eliminar
diferenças entre os seres humanos, ou seja, como expressão de igualdade. Todos
são cidadãos, portanto, todos são iguais.” A diferenciação que esse autor traz é que
21
cidadão seria aquele que tem responsabilidade política, inclusive com direito de
participar das decisões. Neste sentido, o termo “cidadão em situação de rua” está
vinculado com a garantia de direitos para essas pessoas bem como para a sua
participação na tomada de decisões políticas seja individualmente ou através do
controle social exercido pelos membros do Movimento Nacional da População de
Rua (ou alguma outra instância representativa) em fóruns, conselhos e conferências
como veremos no capítulo “O Movimento da População de Rua e o controle social”.
Dito isto, é importante delimitar que o termo pessoa em situação de rua pode
ser comumente utilizado quando a finalidade é expressar o respeito à singularidade,
à dignidade e às escolhas, crenças e valores próprias do sujeito nesta condição e
que são inerentes a existência de qualquer ser humano. Já o termo cidadão/cidadã
em situação de rua está vinculado mais especificamente ao lado político-jurídico
dessa pessoa enquanto sujeito portador de direitos civis, políticos e sociais. Neste
sentido, o direcionamento e participação na construção de políticas públicas estão
vinculados ao cidadão em situação de rua.
A partir dessa discussão conceitual, concebemos que a utilização de ambos
os conceitos demonstram o reconhecimento de que a pessoa/cidadã(o) em situação
de rua deve ser respeitada, ter sua dignidade reconhecida e os seus direitos de
acesso às políticas do Estado garantidos. Dito isso, não podemos perder de vista
que estamos lidando com pessoas concretas que têm boa parte das suas
existências marcadas pela experiência de vulnerabilidade social que a situação de
rua os/as submetem. A fim de traçarmos um perfil e compreender quais as
características desses sujeitos que, como afirma Cadú: por um “desencontro” foram
parar na situação de rua, apresentaremos os dados sociodemográficos de duas
pesquisas relativamente recentes empreendidas na cidade de Feira de Santana, na
Bahia, comparando-as com os dados apresentados por duas pesquisas realizadas
em âmbito nacional sobre a população de rua.
Segundo uma Pesquisa Nacional da Pessoa em Situação de Rua, realizada
em 2010, havia em torno de 237 pessoas em situação de rua na cidade de Feira de
Santana, no estado da Bahia (CARVALHO et al, 2016, p. 32). Silva (2009) comenta
que as principais características das pessoas em situação de rua são
heterogeneidade, pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados
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nome. A imensa maioria não estudava à época em que a entrevista foi conduzida
(95%) e apenas 3,8% dos entrevistados afirmaram que estavam fazendo algum
curso (ensino formal – 2,1%; profissionalizante – 1,7%). Na realidade feirense, tanto
a pesquisa A como a pesquisa B relatam um índice próximo a 88% de pessoas que
declaram ter uma profissão. Entre as profissões que mais aparecem nas pesquisas
estão a de eletricista, servente e flanelinha.
A pesquisa B quis saber se essas pessoas já tiveram atendimento negado ou
foram impedidas de acessar algum serviço público. De acordo CARVALHO et al.,
(2016, p. 62), 78% dos entrevistados responderam afirmativamente a esta questão.
Corrobora com esse índice o cruzamento de dados levantados na Pesquisa Nacional
sobre a População em Situação de Rua que indica que 54,5% das pessoas em
situação de rua entrevistadas já sofreram algum tipo de discriminação ao longo do
país, principalmente por meio do impedimento de sua entrada em estabelecimentos
comerciais, shopping centers, transportes coletivos, bancos, algum órgão público, de
serem atendidos nos órgãos de saúde, além do impedimento na retirada de
documentos. (BRASIL, 2009e, p. 14). Vale lembrar que
apesar de a Política Nacional de População de Rua e de o Plano Operativo
para Implementação de Ações em Saúde da População em Situação de Rua
2012-2015 terem como princípio o acesso integral aos serviços do SUS
(BRASIL, 2009a; BRASIL, 2012a) e de a Portaria do Ministério da Saúde
número 940/2011 determinar que os moradores de rua estão dispensados
da apresentação de comprovante de residência para o cadastramento no
SUS e que a ausência ou inexistência do Cartão Nacional de Saúde não é
impedimento para a realização de atendimento (BRASIL, 2011d), os
participantes dizem que os serviços não deixam de exigir um documento de
identificação (CRP-MG, 2015, p. 63).
de rua bem como cidadão em situação de rua, conceituando mais detidamente cada
uma das palavras que compõem as expressões, apontando também a importância
da utilização destas. Além disso, apresentamos alguns dados sociodemográficos da
população de rua em Feira de Santana, comparando-os com dados de duas
pesquisas realizadas em âmbito nacional. No próximo capítulo, passaremos a
discorrer, mais especificamente, sobre o que é a escuta qualificada, sua importância
para o acolhimento e como esta se insere nas políticas públicas de um modo geral e,
especificamente, nas políticas de saúde.
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viver. Por fim, a dimensão política nos remete à importância do trabalho em rede, da
equipe multiprofissional e do contato e trocas estabelecidas entre os diversos atores
que praticam sinergicamente o acolhimento dessas pessoas. O acolhimento na
dimensão política nos remete ainda para a importância da atuação, articulação e
protagonismo delas próprias, seja individualmente ou através da nucleação em um
movimento que paute a garantia e o acesso aos seus direitos. Apresentadas essas
características gerais sobre o acolhimento, passamos a discutir então a relação
dessa prática com a escuta qualificada.
Além de ser uma prática que propicia o reconhecimento, dignificação e
potencialização do protagonismo da pessoa humana, o acolhimento pode ser
entendido como uma “ferramenta tecnológica de intervenção na qualificação de
escuta, construção de vínculo, garantia do acesso com responsabilização e
resolutividade nos serviços” (BRASIL, 2010, p. 38. Grifo nosso). Em outras palavras,
uma das funções do acolhimento é o aprimoramento da escuta qualificada no
atendimento. Mas, se por um lado o acolhimento é apresentado na PNH como uma
ferramenta que atua de uma forma ativa em qualificar a escuta, por outro lado, é a
escuta qualificada que gera as condições para a efetivação do acolhimento nas
práticas de saúde, como pode ser concluído a partir do seguinte trecho da cartilha da
PNH: “é importante acentuar que o conceito de acolhimento se concretiza no
cotidiano das práticas de saúde por meio da escuta qualificada e da capacidade de
pactuação entre a demanda do usuário e a possibilidade de resposta do serviço”
(BRASIL, 2010, p. 27). Dessa forma, percebe-se um caráter dialético entre
acolhimento e escuta qualificada de acordo com o que é preconizado pela Política
Nacional de Humanização.
Assim, é importante destacar que consideramos que o exercício da escuta
qualificada acontece quando o processo de escutar se torna ativo, terapêutico,
capaz de produzir efeitos na pessoa que está sendo escutada. Nesta perspectiva, ao
realizarmos uma análise terminológica de como a escuta qualificada é apresentada
na literatura científica e nos documentos governamentais, um dos primeiros
aspectos que nos chama atenção é a inexistência de um único termo que represente
o que estamos chamando de escuta qualificada em nosso trabalho. Essa variedade
de termos já tinha sido constatada por Mesquita e Carvalho (2014) que escrevem:
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para a comunicação não verbal, gestos, se a pessoa escutada faz ou não contato
visual, a natureza do seu olhar, a forma de falar, a linguagem que utiliza. A última
sugestão apresentada por Fuente e Valcárcel (2014) citados por São Paulo (2016) é
respeitar o “timing”, ou seja, o tempo da pessoa, seu ritmo. Esta última já comentada
anteriormente.
Dito isso e após analisar minuciosamente os textos do decreto nº 7.053/20092
(BRASIL, 2009d); das portarias nº 3.088/20113 (BRASIL, 2011a), nº 122/20114
(BRASIL, 2011b); das leis nº 12.947/20145(BAHIA, 2014) e nº 3.482/20146 (FEIRA
DE SANTANA, 2014); do Plano Operativo para Implementação de Ações em Saúde
da População em Situação de Rua 2012-2015 (BRASIL, 2012c); e da Política
Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua (BRASIL, 2008a),
constatamos que em nenhum desses documentos, relativos mais especificamente
às pessoas em situação de rua, foi encontrada a garantia do exercício, ou sequer,
uma referência ao tema da escuta qualificada. Por fim, gostaríamos de registrar que
a produção de conhecimento sobre a escuta qualificada não é prerrogativa somente
da área de saúde pública, como pode ter dado transparecer neste capítulo visto que
este é o nosso enfoque. Pelo contrário, um estudo de revisão bibliográfica sobre o
tema da escuta qualificada, realizado por Mesquita e Carvalho (2014), aponta
contribuições sobre a escuta qualificada em diferentes áreas do conhecimento, tais
como: Psicologia/Psicoterapia; Saúde Ocupacional; Educação em Enfermagem;
Tecnologias em Saúde; Serviço Social; Saúde Materno-Infantil. Além disso, alguns
artigos sobre a escuta qualificada selecionados para o estudo de Mesquita e
Carvalho (2014) foram produzidos no Reino Unido, Estados Unidos da América,
Japão, Suécia e no Canadá. Essa multinacionalidade de produções demonstra a
capilaridade e a importância que a escuta qualificada tem assumido nas mais
2
Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento. Este mais conhecido como CIAMP-Rua.
3
Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS).
4
Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua.
5
Institui a Política Estadual para a População em Situação de Rua e dá outras providências.
6
Institui a Política Municipal para a População em Situação de Rua, e dá outras providências.
33
7
Frase criada meramente a título de exemplificação.
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compreender como se desenvolve a ação política dos indivíduos dentro dos grupos
sociais. Neste sentido, esta autora ainda lembra que isso possibilita que a ênfase da
explicação não esteja pautada pelas atitudes e opiniões dos indivíduos isolados,
mas sim, para os indivíduos como membros participantes de grupos, de coletivos
sociais com uma identidade demarcada. Mais do que isso,
falar de cultura política é tratar do comportamento de indivíduos nas ações
coletivas, é tratar dos conhecimentos que os indivíduos têm a respeito de si
próprios e de seu contexto, é tratar dos símbolos e da linguagem utilizados,
bem como das principais correntes de pensamento existentes. Mas é muito
complicado falar em cultura política de forma isolada do contexto histórico e
de outros conceitos de apoio. Isso porque cada época histórica engendra
determinada cultura política, segundo os valores e crenças que são
resgatados ou construídos, num universo dos temas e problemas com os
quais homens e mulheres defrontam-se naquele momento histórico (GOHN,
2000, p. 32).
Com base no exposto até então, faremos um breve histórico da atuação dos
movimentos sociais no Brasil, concentrando na exposição um pouco antes do
período que marcou a redemocratização do país nos anos 80 do século XX.
Cabe registrar que, ao longo da história do Brasil, diversos grupos sociais
organizaram lutas de resistência contra algum tipo de arbítrio; fosse dos
governantes, fosse da elite econômica deste país. De fato, Gohn (2000, p.15) relata
que “desde os tempos do Brasil Colônia, a sociedade brasileira é pontilhada de lutas
e movimentos sociais contra a dominação, a exploração econômica e, mais
recentemente, contra a exclusão social.” Para fundamentar seu argumento, ela
apresenta diversas lutas de resistência ao longo da história brasileira, tais como:
Zumbi dos Palmares, Inconfidência Mineira, Revolução Pernambucana, Balaiada,
Revolta dos Malês, Canudos, dentre outros. Feito esse registro, passamos agora a
discorrer mais especificamente sobre as décadas de 70, 80 e 90, para só então
adentrarmos no surgimento do Movimento Nacional da População de Rua na
primeira década do novo milênio.
Nesta perspectiva, Gohn (1997a, p. 281) relata que no final dos anos 70 era
amplamente compartilhada a noção de que as pessoas que se referiam aos novos
movimentos sociais urbanos estavam aludindo àqueles ligados às práticas da Igreja
Católica, principalmente às daquela ala vinculada à Teologia da Libertação. Nesse
sentido, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) tiveram um papel preponderante
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Se o mote das lutas sociais dos anos 80 era a conquista de políticas sociais,
Gohn (1995, p. 205) revela que os anos 90 podem ser denominados como a década
das lutas cívicas pela cidadania no Brasil. De fato, o modelo referencial dessa
década enfatizava os valores da ética e da moral. Os movimentos sociais e ações
sindicais com recortes político-partidários explícitos passaram a perder credibilidade.
Na verdade, “a sociedade civil passou a desacreditar da política, dos políticos e das
ações do Estado em geral” (GOHN, 1995, p. 206). Nesse cenário sociopolítico,
muitos movimentos sociais populares se desarticularam, em grande parte, pela
perda do apoio que tiveram nos 70 e 80 da Igreja Católica, em sua ala da Teologia
da Libertação. Segundo Gohn (1997a, p. 314), a Igreja reviu nos anos 90 “suas
doutrinas e práticas sociais, alterando substancialmente os rumos e diretrizes de
suas ações no que se refere à participação popular na política do país”. Desse
modo, os conflitos e contradições inerentes a qualquer coletivo se agravaram na
década de 90 e, nos movimentos sociais acentuou-se a crise interna de militância,
de mobilização, de participação cotidiana nas atividades organizadas e de
credibilidade nas políticas públicas (GOHN, 1997a, p. 304).
Destaque-se, entretanto, que nos anos 90 os movimentos que
permaneceram no cenário, ou que foram criados, tornaram-se qualificados.
A quantidade de reuniões, assembléias, atos públicos e o próprio número
de militantes foi substituída por ações qualitativamente mais estruturadas.
Antes os movimentos utilizavam sedes de sindicatos e a própria
infra-estrutura dos partidos políticos. Nos anos 90 - por meio das ONGs -
passaram a ter infra-estruturas próprias, a se utilizar mais de recursos
tecnológicos como computadores e sites da Internet (em alguns casos). As
ações sendo menos de pressão e mais de organização da população,
voltadas para algum programa efetivo, necessitam de suportes materiais
(GOHN, 1997a, p. 315).
8
A expressão ONG foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), na década de 40, para
designar entidades não-oficiais que recebiam ajuda financeira de órgãos públicos para executar
projetos de interesse social, dentro de um filosofia de trabalho denominada “desenvolvimento de
comunidade” (GOHN, 1997b, p. 54)
40
sob a forma de uma instituição da sociedade civil, que se declara sem fins-lucrativos,
com o objetivo de lutar e/ou/ apoiar causas coletivas”. Formadas prioritariamente por
setores da classe média, a atuação das ONGs se dava nesta década em torno de
temas como ética e moralidade; meio ambiente, saúde; lazer; deficiência física e
mental; e discussões relacionadas ao vírus da Aids. Dentre os movimentos e ONGS
que surgiram na década de 90, destacamos: Ética na Política - movimento nacional
contra corrupção (1992); Caras-Pintadas - movimento estudantil (1992); Movimento
Ação da Cidadania, contra a Fome e pela Vida (1993); assim como a chegada do
GreenPeace no Brasil, em 92, mesmo ano em que o país sediou a primeira
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
também conhecida como Eco-92. Destacamos, além disso, que é no último ano da
década de 90 que se articula o Movimento Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR). Este é um importante movimento para história do surgimento
do Movimento Nacional da População de Rua uma vez que o MNCR pode ser
considerado a raiz embrionária do MNPR. Partimos então para uma apresentação
mais detalhada do histórico do Movimento Nacional da População de Rua bem como
suas bandeiras de luta e as diretrizes dessa organização.
No entanto, antes mesmo de darmos o próximo passo, é importante registrar
a dificuldade em encontrar materiais teóricos, trabalhos científicos ou até mesmo
textos escritos com autor, ano e demais informações que possam constar para o
registro bibliográfico com maior exatidão sobre a produção de textos. Gohn (1997a,
p. 274) corrobora com essa percepção ao afirmar que “a maioria dos estudos foi
realizada nos anos 80; nos anos 90, houve um declínio do interesse pelo estudo dos
movimentos em geral, e pelos populares em especial, assim como declinou a
preocupação com seu registro histórico contemporâneo, desde que o resgate
histórico do passado das lutas e movimentos sempre foi uma área de pouca atenção
dos pesquisadores.” Ademais, a maioria das fontes de informações são os próprios
militantes que constroem as ações coletivas cotidianamente sem que
necessariamente transformem cada ação, mobilização ou conquista do Movimento
em produção teórica ou documento. Aqui nos deparamos com um impasse: não
produzir pela escassez ou falta de confiabilidade das fontes escritas “não
publicadas” ou conceder a credibilidade devida às informações apresentadas
41
9
MNCR.História do MNCR, 2011. Disponível em: http://www.mncr.org.br/sobre-o-mncr/sua-historia.
Acessado em 30 de Novembro de 2017.
10
MNCR. Princípios e objetivos do MNCR, 2008. Disponível em: http://www.mncr.org.br/
sobre-o-mncr/principios-e-objetivos/carta-de-brasilia. Acessado em 30 de Novembro de 2017.
42
11
FOLHA ONLINE. Ministro oferece auxílio da PF para esclarecer chacina em SP, 2004..
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98478.shtml?loggedpaywall#.
Acessado em 30 de Novembro de 2017.
12
FOLHA ONLINE. Criminosos matam sete moradores de rua em SP, 2004. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2004/massacreemsp/ . Acessado em 30 de Novembro de
2017.
13
FOLHA ONLINE. Moradores de rua agredidos eram conhecidos na área. 2004. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98443.shtml?loggedpaywall. Acessado em 30 de
Novembro de 2017.
14
FOLHA ONLINE. Morre 4º morador de rua agredido em São Paulo. 2004. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98445.shtml?loggedpaywall. Acessado em 30 de
Novembro de 2017.
15
FOLHA ONLINE. Entidades marcam missa para moradores de rua e cobram apuração. 2004.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98446.shtml?loggedpaywall.
Acessado em 30 de Novembro de 2017.
16
FOLHA ONLINE. Governo federal monitora agressão contra moradores de rua em SP. 2004.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98466.shtml?loggedpaywall.
Acessado em 30 de Novembro de 2017.
17
FOLHA ONLINE. Sobe para seis o número de mortos em ataques a moradores de rua. 2004.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98530.shtml. Acessado em 30 de
Novembro de 2017.
43
segurança nas ruas, dessa população ganharam mais força. A partir de então,
grupos da população de rua em São Paulo e Belo Horizonte começaram a se
mobilizar em prol da construção de um movimento mais unificado que representasse
as pessoas em situação de rua em âmbito nacional. Finalmente,
em setembro de 2005 novamente a história da rua e dos catadores se
cruzaram. Convidadas a participar do 4º Festival Lixo e Cidadania, as
pessoas em situação de rua de Belo Horizonte mobilizaram outros
companheiros do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Cuiabá. Foi neste
encontro que houve o lançamento do Movimento Nacional da População de
Rua (MNPR), como expressão dessa participação organizada em várias
cidades brasileiras. Em 2008, um representante do MNPR entrou para o
Conselho Nacional de Assistência Social, sendo o primeiro representante de
movimento popular eleito. (MNPR, 2010. p. 29).
18
Informações obtidas através de comunicação pessoal realizada por Edcarlos Venâncio Cerqueira
no ano de 2017. Edcarlos é uma das pessoas que ajudou a implantar o Movimento Nacional da
45
admitir que sem essa terceira forma de atuação do MNPR-FSA, o presente trabalho
não teria se concretizado. Realizada a exposição do histórico dos movimentos
sociais no Brasil, do surgimento do MNPR bem como do seu núcleo em Feira de
Santana, passamos agora a tratar sobre a conceituação de controle social, realizar a
diferenciação entre as duas formas de entendimento desse conceito, para só então,
falarmos do controle social exercido pelo MNPR-FSA.
A Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, pode ser considerada
um marco para o sistema democrático brasileiro, principalmente por outorgar o
direito de todo cidadão e toda cidadã participar diretamente da construção,
implementação, acompanhamento, avaliação e fiscalização de políticas públicas,
bem como dos orçamentos públicos. De fato, em seu artigo 1º, parágrafo único, a
Carta Magna defende que todo poder emana do povo e esse pode ser exercido por
meio de representação ou de forma direta. Nesse sentido, a Constituição brasileira
(BRASIL, 2012a) ampara duas formas diferentes (nem por isso excludentes) de
exercício da democracia: a representativa e a direta. Macedo (2008, p. 183) explica
que a democracia representativa (indireta ou deliberativa) é aquela na qual o povo
elege, por um um determinado período de tempo e com determinada frequência,
seus representantes para tomar as decisões políticas. Quanto à democracia direta
ou participativa, Macedo (2008, p. 183), citando José Afonso da Silva (2000), retrata
esse sistema de governo como aquele no qual “o povo exerce, por si, os poderes
governamentais, fazendo leis, administrando e julgando.” Em última análise, Carrion
(2001), citado por Macedo (2008, p.187), explica que “a proposta da democracia
participativa é no sentido de incorporar na prática democrática novos e modernos
instrumentos de controle e de participação no poder, com ênfase nos mecanismos
de controle social”.
Há de se registrar, no entanto, que diversos autores e autoras (ALESSIO,
2016; PEREIRA, 2008; SILVA, FERREIRA, BARROS, 2008) chamam a atenção
para a bivalência que esse termo pode ensejar: se por um lado, o controle social é
entendido como o controle da sociedade sobre as ações do Estado, por outro, ele
Ainda sobre o conceito de controle social, Correia (2003, p. 71) especifica que
esse “envolve a capacidade que os movimentos sociais organizados na sociedade
civil têm de interferir na gestão pública, orientando as ações do Estado e os gastos
estatais na direção dos interesses da maioria da população”. Para que o exercício do
controle social fosse efetivado pela sociedade civil, incluindo as pessoas ligadas aos
movimentos sociais, foram criados e/ou aprimorados vários canais de diálogos,
espaços deliberativos e instrumentos de participação popular, tais como: os fóruns,
as conferências e os conselhos nos mais diferentes níveis de governos (municipal,
estadual e nacional).
Nessa perspectiva, podemos citar o Fórum Nacional de Educação, instituído
em 2014 com o propósito de participar do processo de concepção, implementação e
avaliação da Política Nacional de Educação; e o Fórum Social Mundial que surgiu
em 2001, em Porto Alegre, como “um espaço de encontro aberto para o pensamento
reflexivo, debate democrático de idéias, formulação de propostas, troca de
experiências e interligação para ações efetivas, por grupos e movimentos da
sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e à dominação do mundo pelo
capital e qualquer forma de imperialismo”19 (WORLD SOCIAL FORUM
INTERNATIONAL COUNCIL, 2001).
Faria (2012, p. 249) apresenta as conferências de políticas públicas como
espaços institucionais de participação e deliberação acerca de uma determinada
política pública. Faria (2012, p. 260) ainda explicita que as primeiras conferências
surgiram no governo de Getúlio Vargas pela lei 378/1937. Segundo o artigo 90 desta
lei, as conferências nacionais de Educação e de Saúde foram criadas a fim de
“facilitar ao Governo Federal o conhecimento das actividades concernentes à
19
WORLD SOCIAL FORUM INTERNATIONAL COUNCIL. About the World Social Forum, 2001.
Disponível em: https://fsm2016.org/en/sinformer/a-propos-du-forum-social-mondial/. Acessado em: 16
de dez. de 2017 (Tradução nossa).
47
20
BRASIL. Lei nº 378, de 13 de jan. de 1937. 1937 (*ano da publicação original). Reproduzida em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-378-13-janeiro-1937-398059-publicacaooriginal-
1-pl.html. Acessado em 17 de dezembro de 2017. Optamos por transcrever o texto tal como a
publicação original da legislação informatizada apresentada no site da Câmara Federal dos
Deputados.
21
Parágrafo Único da Lei supracitada encontrada na mesma fonte da nota anterior. Na lei está
grafado dessa forma “Território da Acre”.
48
22
BRASIL, Lei nº 8.142, de 28 de dez. de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na
gestão do Sistema Único de Saúde (SUS} e sobre as transferências intergovernamentais de
recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília-DF. Disponível em:
http://conselho.saude.gov.br/legislacao/lei8142_281290.htm. Acessado em 17 de dezembro de 2017.
49
23
Comunicação pessoal de Edcarlos Venâncio Cerqueira, 2017.
24
A Defensoria Pública garante aos seus assistidos a representação perante a Justiça, por meio dos
defensores públicos, que poderão, conforme o caso, propor ações, acionar acusados, fazer defesas,
atuar junto às unidades prisionais e ao consumidor, dar orientações, fazer acordos, conciliações e
termos de conduta, entre outras medidas. A Defensoria pode prestar seus serviços de assistência
jurídica às associações de bairro e organizações, desde que estas comprovem não terem condições
de pagar as despesas do processo, propondo ações civis públicas. (DEFENSORIA PÚBLICA BAHIA,
?). Informações disponíveis em: http://defensoria.ba.def.br/seus-direitos/. Acessado em: 17 de
dezembro de 2017.
25
A Associação Cristã Nacional é uma instituição sem fins lucrativos que tem objetivo a realização de
projetos sociais. Seu objetivo é promover cidadania a partir de tecnologias sociais, como também,
proporcionar serviços assistenciais às pessoas em vulnerabilidade. Informações prestadas pela
própria Associação na rede social Facebook. Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/associacaocristanacional/about/?ref=page_internal. Acessado em: 17
de dezembro de 2017.
26
O Grupo Sou Ubuntu é uma organização sem fins lucrativos formado por jovens que, segundo sua
definição na rede social Facebook, se reúnem com o intuito de realizar ações para ajudar o próximo
de alguma forma. Informações obtidas a partir da página oficial do Grupo Sou Ubuntu no Facebook.
50
Conversa que teve como tema: “Minha Casa, Minha Luta: Acesso à Moradia”
aconteceu no dia 29 de novembro do referido ano em um dos auditórios da UEFS.
Essas rodas têm o objetivo de ser um espaço de voz para o Movimento dentro da
Universidade; discutir os temas propostos pelo Movimento entre os mais diferentes
atores sociais que participavam das Rodas, além de tentar disponibilizar à
comunidade acadêmica da UEFS e feirense como um todo, o acesso ao
conhecimento gerado a partir dos debates. Dessa forma, é possível relacionar as
rodas de conversa à segunda frente de atuação do Movimento que está relacionada
justamente com a formação tanto interna quanto externa de militantes e demais
pessoas que interesse em conhecer mais sobre a realidade das pessoas em
situação de rua. Dito isso, passamos a apresentar a metodologia deste trabalho.
52
5 METODOLOGIA
Ainda segundo Gil (2002, p. 41 apud Selltiz et al., 1967, p. 63), “na maioria dos
casos, essas pesquisas envolvem: levantamento bibliográfico; entrevistas com
pessoas que tiveram experiências práticas com o problema pesquisado; e análise de
exemplos que "estimulem a compreensão". Efetivamente, tal como indicado por esse
autor, buscamos através da técnica da entrevista chegar às experiências práticas
dos membros do Movimento relativas à escuta qualificada. A partir dessas
experiências pretendemos compreender os possíveis efeitos do exercício de uma
escuta qualificada para a vida dos nossos entrevistados. Dito isso, discorremos mais
detidamente sobre a técnica utilizada nesta pesquisa.
Minayo (2007, p. 57) relata que a entrevista é o procedimento mais comum no
trabalho de campo. É com a entrevista que o pesquisador busca obter informes
contidos na fala dos atores sociais. Por menos estruturada que seja, a entrevista
com propósitos científicos não se caracteriza como uma conversa despretensiosa e
neutra, uma vez que se insere como meio de coleta dos fatos relatados pelos atores.
Nesse sentido, ela assume o caráter de “uma conversa a dois com propósitos bem
definidos”. Nesse mesmo sentido, Marconi e Lakatos (2010, p. 179) compreende a
entrevista como “uma conversação efetuada face a face, de maneira metódica”.
Essas autoras também citam Goode e Hatt (1969, p. 237 apud Marconi e Lakatos,
2010) para explicar que a entrevista “consiste no desenvolvimento de precisão,
focalização, fidedignidade e validade de certo ato social como a conversação”.
Tanto Gil (2008) como Marconi e Lakatos (2010) apontam vantagens e
limitações que a entrevista apresenta quanto à coleta de informações. Sobre as
vantagens Gil (2008, p. 110) destaca que a entrevista possibilita a obtenção de
dados referentes aos mais diversos aspectos da vida social; é uma técnica muito
eficiente para obter dados em profundidade sobre o comportamento humano; e os
dados obtidos são suscetíveis de classificação e quantificação. A entrevista ainda
pode ser realizada com atores sociais não alfabetizados, possibilita captar a
expressão corporal do entrevistado bem como sua tonalidade de voz durante as
respostas. Já Marconi e Lakatos (2010) apontam como vantagens o fato da
entrevista permitir que o entrevistador esclareça algumas falas, formule de forma
diferente o que foi dito, ou especifique algum significado como garantia de que está
sendo compreendido; e dar a oportunidade para a obtenção de informações que não
55
32
MP3LOUDER. Aumentar o Volume do MP3 Online. ?. Disponível em:
http://www.mp3louder.com/pt/. Acessado nos dias 7 e 16 de dezembro de 2017.
33
SPEECHLOGGER. Reconhecimento Automático De Voz E Tradução Instantânea Disponível
em: https://speechlogger.appspot.com/en/. Acessado diariamente entre os dias 7 de dezembro e 22
de dezembro de 2017.
60
34
Segundo Clemente (2012) citando Travaglia (2006), a gramática normativa é responsável por ditar
as regras do bem falar e do bem escrever. Nessa concepção, a variante oral da língua fica em
segundo plano, priorizando os fatos da língua escrita na modalidade padrão (oficial). Essa gramática
tem um poder legislador sobre a língua, uma vez que prescreve ao falante o uso da norma “culta”.
61
Andreval Santos, Edcarlos Venâncio, Silvia Bonfim e Renildo (Renny) Santos. Após
recebermos a aprovação do Comitê de Ética da UEFS, Certificado de Apresentação
para Apreciação Ética (CAAE) 72699917.0.0000.0053, começamos a realizar as
entrevistas no mesmo dia. Passamos a descrever mais detidamente cada entrevista,
assim como quando utilizamos aquelas técnicas de intervenção em entrevistas
semi-estruturadas sugeridas por Xavier (2017).
Assim, a primeira entrevista foi realizada com Andreval Santos na sede da
Cáritas, no dia 7 de dezembro de 2017. Durante o contato inicial, Andreval revelou
que já tinha colaborado com outras pesquisas. Ele já apresentava alguns
conhecimentos sobre os procedimentos de pesquisa: leitura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido e a possibilidade de gravação para facilitar as
transcrições posteriormente. Para estimular Andreval a falar da sua situação de rua,
começamos solicitando a Andreval que falasse sobre quanto tempo ele está na rua.
Durante a entrevista, Andreval demonstrou uma capacidade bastante acurada para
lembrar de datas, inclusive com citação do dia em que determinado evento ou
situação ocorreu. Quando Andreval relatou as suas voltas temporárias para casa,
recorremos à intervenção da pergunta. Nosso propósito naquele momento era
explorarmos alguma forma de acolhimento exercido pela família. Em outro momento,
Andreval relatou que tinha desistido de realizar tratamentos nos centros de
recuperação. Buscamos os motivos dessa desistência a fim de compreender “o que
não deveria ser feito” no exercício do cuidado pela equipe de saúde ou assistência
social. Nessa perspectiva, também tentamos entender como era a relação dele com
os profissionais dos centros. Após falar de algumas relações com assistentes sociais
que não deram certo, Andreval comentou uma relação bem-sucedida. Com isso,
começamos a explorar com perguntas os motivos que levaram à construção dessa
relação bem-sucedida. Isso começou a nos aproximar de forma indireta do nosso
objetivo geral de captar alguns elementos da escuta qualificada. No entanto, como já
relatamos anteriormente, nesse momento, ocorreu uma falha no programa que
estava sendo utilizado para captar o áudio, e só nos demos conta após ter
transcorrido um tempo de entrevista. Com isso, Andreval se mostrou compreensivo e
complacente em marcamos outra entrevista.
62
que ele detinha. Recorremos também à reformulação síntese para explorarmos mais
e confirmamos o raciocínio de Renny sobre como deu o processo de saída dele das
ruas. Além dessas, em alguns momentos recorremos a perguntas também a fim de
introduzir um dos tópicos do nosso roteiro. A entrevista se encerrou em um clima
divertido, com entrevistador e entrevistado comentando sobre a importância das
informações que Renny tinha apresentado durante a entrevista. Após a transcrição,
consultamos Renny sobre como ele queria fazer para verificar a transcrição das
falas. No entanto, não obtivemos a resposta dele.
Nesse sentido, é importante falar que uma das maiores dificuldades que
encontramos para a realização das entrevistas foi a falta de tempo disponível dos
militantes do Movimento. Normalmente, as tarefas da militância requerem várias
horas do seu dia e, inclusive, boa parte de horas da noite também. Além do mais,
algumas dessas tarefas aparecem inesperadamente. Assim, precisamos de cautela
para que as entrevistas não interrompessem ou atrapalhassem as atividades
cotidianas dos membros do Movimento. Além dessa, outra dificuldade foi encontrar
um local que não exigisse um deslocamento excessivo por parte dos integrantes do
Movimento. Nesse sentido, a localização da sede da Cáritas foi um fator bastante
favorável, dada a sua centralidade urbana. No entanto, para utilização desse espaço
precisávamos também da disponibilidade de Edcarlos Venâncio, uma vez que ele
que tinha a chave do local. É importante falar que o espaço das ruas, para a
finalidade da entrevista, não se mostrava favorável porque não favorecia a captação
do áudio, dado o barulho dos automóveis e transeuntes; tendia a atrapalhar a
sequência do raciocínio tanto do entrevistado quanto do entrevistador dada a
quantidade de estímulos e eventos que poderia acontecer durante a realização das
entrevistas; como também tendia a possibilitar interrupções das demais pessoas em
situação de rua que se aproximassem para cumprimentar ou falar com os/a
entrevistados/a.
Após termos realizado as entrevistas e as transcrições das mesmas,
passamos para as etapas de pré-análise, exploração do material e tratamento dos
resultados. Esta última compreende os processos de codificação, categorização e
inferência (BARDIN, 1977) das informações cedidas durante as entrevistas pelos
66
35
O corpus é o conjunto dos documentos tidos em conta para serem submetidos aos procedimentos
analíticos (BARDIN, 1977, p. 96).
67
36
Em contraposição ao procedimento “por caixas” que acontece quando o sistema de categorias já é
previamente estabelecido e os elementos são repartidos à medida que esse vão sendo encontrados.
(BARDIN, 1977, p. 119).
69
que continham as respostas sobre eles já terem sido atendidos na rua e relatos de
atendimentos que consideraram assertivos. A segunda categoria desta dimensão, foi
denominada de “escuta qualificada”. Nessa categoria ficaram organizados os temas
que os entrevistados faziam referência direta ou indireta ao exercício da escuta
qualificada e a importância de ter sido escutados, apontando para possíveis efeitos
que essa escuta pode ter promovido. A terceira categoria sistematizada a partir
dessa dimensão foi intitulada “procedimentos”. Os temas relacionados a essa
categoria estavam vinculados à apresentação de uma sequência de
comportamentos, procedimentos ou atividades para a realização da aproximação,
acompanhamento, atendimento e escuta qualificada das pessoas em situação de
rua. Somente Edcarlos e Andreval apresentaram falas que foram nesse sentido. A
última categoria foi denominada “condição de saída das ruas”. Nessa categoria
agrupamos temas que apresentavam elementos ou experiências que se mostraram
ou se mostram importantes para que os entrevistados saíssem/saiam da situação de
rua. A justificativa para ter sido enquadrado na dimensão Acolhimento foi a
recorrência da relação desses temas com o ato ou da escuta qualificada ou de um
atendimento que a pessoa recebeu.
No que tange à dimensão Movimento, obtivemos três categorias. A primeira
delas foi “como conheceu o Movimento”. Essa categoria estava relacionada a uma
das perguntas do nosso roteiro. Portanto, continha temas que relataram como os
entrevistados tiveram o primeiro contato com o Movimento. Na segunda categoria,
denominada “Movimento” estiveram organizados os temas que continham menções
diretas ao MNPR-FSA, sua forma de atuação, conquistas e parceiros. A última
categoria da dimensão Movimento foi denominada “Importância”. Essa categoria
estava relacionada a uma das perguntas do nosso roteiro. Os temas nela
organizados estavam relacionados à relevância do Movimento para as pessoas em
situação de rua.
É pertinente falar que é compreensível, dada a opção de utilizar entrevistas
semi-estruturadas, o fato de nem todas as pessoas entrevistadas apresentaram falas
que estivessem de acordo com os temas relativos a cada categoria. Dito isso e
realizada etapa de categorização dos temas a partir das falas das pessoas
70
6 RESULTADOS E DISCUSSÃO
algo que foi sendo corroído ao longo do tempo. Isso nos remete para a perda dos
vínculos familiares. Similarmente, Silvia também cita a perda dos vínculos familiares
no seu processo de chegada às ruas. Nas palavras dela: “Aí quando eu me deparei
já estava afastada dos meus laços familiares e me encontrava com novos laços
familiares nas ruas”. Chamamos atenção para o fato de Silvia utilizar o verbo
“deparar”, que nos remete a uma descoberta repentina da perda dos laços
familiares. De igual modo, Renny retrata sua chegada nas ruas a partir de “uma
grande dificuldade com a família. Em outro trecho da entrevista, Renny é enfático: “a
condição da rua foi o vínculo da família mesmo.” Tal como Andreval e Silvia, Renny
relata o uso de drogas como um dos fatores que contribuíram para a perda do
vínculo com sua família adotiva. Diz ele: “...a outra família não me agregava porque
eu chegava bebo e chegava bebendo muitas vezes.” Chamamos atenção para o
verbo “agregar” que está presente nessa frase e aparece em diversas outras falas
de Renny. De acordo com o Dicionário Online de Português37, um dos significados
de agregar é ocasionar o agrupamento de indivíduos. Dessa forma, é possível inferir
que Renny não se sentia integrado àquele agrupamento (sua família adotiva).
Com a perda dos vínculos familiares e com a passagem para a situação de
rua, Silvia e Renny, de uma forma mais direta, e Edcarlos, de uma forma mais de
geral, nos fornecem um panorama das relações construídas nas ruas. Silvia relata
um relacionamento amoroso vivido por ela com outra pessoa em situação de rua. As
palavras que Silvia utiliza para descrever o relacionamento são carregadas de
afetividade. Separamos alguns trechos:
Eu tive...eu tive um momento muito bom na minha vida, foi um
relacionamento que eu tive com um...um morador de rua também. Foi uma
pessoa que eu gostei muito, muito, muito mesmo. [...] Tudo que aprendi, foi
ele que me ensinou, tá entendendo? E eu vivi uma alegria imensa ao lado
dele; uma felicidade sem limite; uma coisa que eu nunca tinha sentido na
minha vida do lado daquele homem.
em 13 de Janeiro de 2018.
73
relação de apadrinhamento nas ruas. Segundo ele, quem ensinou a viver mais
rápido na rua foi o seu “pai-véi”. Ele explica: “a gente chama de pai-véi porque é a
pessoa mais velha da rua”. Renny expõe também que sua situação atual é o de
aposentado da maloca porque ele se afastou, mas que não é ex-maloqueiro.
Segundo ele, quando a pessoa se afasta é chamado de “puta-véia”:
Eu sou aposentado. O meu-meu-meu vulgo...o nosso nome quando é dado
quando a gente se afasta que a gente para, que se afasta um pouco da
maloca mas não é ex-maloqueiro, é sempre maloqueiro: é o chamado
“puta-véia”.
que esta fechou. No caso de Edcarlos, ele relata que não buscou o atendimento de
saúde e também não via, em Salvador, a realização de atendimentos dos
profissionais do SUS voltados para população em situação rua, e que ao precisar de
atendimento normalmente recorria às unidades de saúde. Renny foi o único
entrevistado que respondeu afirmativamente ao questionamento se já tinha sido
atendido por profissionais de saúde ou da assistência social no período que esteve
em situação de rua. Ainda assim, Renny não detalha a forma como se deu esse
atendimento. Na sequência da sua fala, Renny passa a relatar a forma como
conheceu um equipamento, que antigamente acolhia as pessoas em situação de
rua, mas com a mudança da direção, deixou de ser um local que as pessoas em
situação de rua se sentiam acolhidas. Diz Renny: “Em vez do lugar nos aceitar, ele
nos coloca pra fora. A forma do atendimento que eles faz é muito ruim. Hoje muitos
prefere tá na rua do que tá nesse lugar pra ser atendido pelo equipamento”. O que
podemos inferir diretamente dessa fala de Renny é a que a qualidade do
atendimento é precondição para que as pessoas em situação de rua frequente e/ou
busque os equipamentos de saúde.
Um dos primeiros passos para o exercício da escuta qualificada que
destacamos, a partir dos temas apresentados pelos nossos entrevistados é a criação
de vínculos. Quem aponta para esse elemento de uma forma mais direta é Edcarlos
quando fala: “Você precisa criar vínculos. E o profissional, às vezes, não cria vínculo
com a pessoa porque ele fala que é a neutralidade”. De forma bastante similar, mas
utilizando o termo “formar uma ponte”, Andreval aponta a criação de vínculos como
condição para o desenvolvimento de um bom trabalho entre profissional e pessoa
em situação de rua. Nas palavras dele: “Então, nessas coisinhas vai puxando
alguma coisinha aqui e ali, outra coisa ali, pra você formar uma ponte pra você
trabalhar com aquele cidadão, tendeu?” Antes de entrarmos na discussão dessa
condição para o exercício da escuta, é importante lembrar o processo de chegada
nas ruas de três dos nossos entrevistados (Andreval, Renny e Silvia) foi marcado,
justamente, pela perda de vínculos familiares. Com isso em mente, é interessante
notar como a criação de vínculos aparece nas falas de Edcarlos e de Andreval como
condição para o bom desempenho do trabalho entre profissional e usuário. Nesse
sentido, a escuta qualificada aparece como um método de (re)construção dos
77
É...eu acho assim, em primeiro lugar, tem que ter o olhar, né? “Qual o
olhar?” De uma pessoa sentar pra conversar pra entender como passou a
semana, o final de semana, o dia. Que muitas vezes você chega pra pegar
o encaminhamento...o profissional só lhe dá o encaminhamento, né? Não
pára pra lhe ouvir; saber suas demanda; procurar saber se você tá
inserido no CAD-Único. Se você tá inserido no Programa Minha Casa Minha
Vida. Se você tá passando por algum problema na saúde. Se você está com
algum problema na área de...de...psicológica, pra mandar pro psicólogo. Se
você quer...tem interesse em ir pro de Centro de Recuperação (Grifos
nossos).
38
Disponível em: https://www.dicio.com.br/olhar/. Acessado em 25 de janeiro de 2018.
39
Disponível em: https://www.dicio.com.br/sentar/. Acessado em 25 de janeiro de 2018.
80
sou uma só. Mas as pessoas divide. E aí, a maior importância também foi
essa (Grifo nosso).
Os efeitos disso que Carla falou para Renny é explicado nos seguintes
trechos:
ela que conseguiu mudar meu pensamento, mudar meu jeito de ser, meu
jeito de pensar; porque quando uma palavra que ela lançou eu agarrei e ela
é uma pessoa de grande importância na minha vida porque foi ela que
conseguiu, a única pessoa do mundo inteiro, que conseguiu me tirar
daquele lugar das ruas, do mundo das drogas. [...] E aí, ela fez...me ajudou
a dividir esses pensamentos; me ajudou a escolher um caminho: se eu
queria continuar ali bebendo naquela sarjeta ali, dormindo nas calçadas,
passando mal[...]. E eu tentava mudar isso mas sem força. E, ela me dava
essa força. [...] Então ela é de grande importância na minha vida porque ela
me ensinou a viver de novo.
Como é possível inferir até então, Renny explica a sua saída das ruas a partir
daquilo que Carla falou para ele e que resultou em três consequências, segundo ele:
fez com que ele mudasse seu jeito de ser e pensar; ajudou no discernimento das
suas escolhas; e por fim, trouxe força para ele. Essas consequências nos remetem
diretamente ao enfoque apresentado na parte teórica no qual a escuta qualificada
era tratada como uma ferramenta que tem a finalidade de promover a reflexão dos
82
E ainda:
Por uma palavra, pela escuta que ela fez, pelo que ela me ouviu; só me
ouviu. Quando ela me ouviu e ela lançou uma palavra, essa palavra fez uma
revolução de três anos e até hoje tá decorrendo. Toda vez que eu lembro de
fazer uma besteira, de fazer alguma coisa, eu lembro do que ela me falou.
Automaticamente, fica aceso: “Ei! Tu lembra onde tu tava? Tu lembra
quando e falaram que tu tinha como e que tu podia...e pode agora?! Ó onde
tu tá!” (Grifo nosso).
ela te ver ela vai saber teu nome. E quando você não para pra conversar,
você dá encaminhamento, você viu a pessoa mas não sabe nem o nome.
[...] Quem dorme na rua não sabe se essa noite ele ficou bem na rua, se
sofreu alguma violência por parte da Segurança Pública. Se sofreu alguma
violência pela própria pessoa em situação de rua, pela Maloca. Ou... se foi
bem a noite. Então tudo isso é um vínculo que é construído através...a partir
da conversa, do parar pra ouvir. Então isso é muito importante pra gente
(Grifo nosso).
mundo sistemático. E dentro desse contexto, nós temos levado que nós não somos
objetos de estudo. Aqui, nessa pesquisa, nós somos o sujeito!”
Edcarlos demonstrou-se exultante em falar que, dentre outras, uma das
maiores conquistas do Movimento foi a lei municipal 3.482 de 2014, que institui a
política municipal para a população em situação de rua e dá outras providências;
também o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política
Nacional para População em Situação de Rua (CIAMP-Rua) que começou a ser
implantado no Município em 2016. Por fim, Edcarlos menciona seis territórios
mapeados pelo Movimento onde, à época dessa pesquisa, esse coletivo conseguia
atuar.
Hoje nós temos: o primeiro, Matriz; o segundo, é... fundo do Tênis; o
terceiro, Kalilândia; o quatro, o Centro de Abastecimento; o quinto,
rodoviária; e o sexto, Cidade Nova. Então a gente mapeia os principais
pontos que as pessoas estão. Aí você tem uma grande avenida que é a
Getúlio Vargas e Presidente Dutra. A gente vê como uma grande avenida
que você vai passar lá e vai encontrar em vários pontos ali pessoas.
Que que a gente oferece pra essa galera? Conhecimento, é...a educação,
como ele se comportar diante das pessoas, como a gente reivindicar
nossos direitos, né. Porque, muitas vezes, a pessoa tem a noção de que é
só chegar nos órgão gritando. Não! O Movimento ensina a como a gente
chegar pela porta da frente, né. “Bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”,
independente do horário. Cumprimentar desde o porteiro até a hora que a
gente sair, todos que nos atender procurar saber o nome, o que faz, qual a
profissão ali dentro… Todos que passar pela gente em qualquer
estabelecimento, em qualquer órgão. Pra que depois a gente saiba
quem...de quem a gente falar. Onde foi negado o nosso direito. O
Movimento ensina o que pra gente: a redução de danos. O Movimento
não fala: “Ói, pare de usar droga!” Não! O Movimento fala: “Reduza ao
uso das droga. Preserve sua saúde! [Incompreensível]...sua vida! Isso
vale pra seu empoderamento. Isso é uma evolução: quando você começa
a reduzir o uso de droga, seja lá qual for a substância, ou droga psicoativa,
ou álcool, que quando você está reduzindo, melhor pra você. Todo mundo
vai ver, perceber, tendeu?” E outra coisa que eu acho muito interessante e
importante no Movimento...ele ensina pra pessoa em situação de rua uma
coisa muito..., pra mim mesmo, uma coisa muito importante: que nós
temos identidade! Que nós somos um ser que temos identidade!
Somos ser humano. Aonde nós chegarmos, e colocar nossa identidade.
Nós somos cidadão. Independente da qual situação [incompreensível]
naquele momento. Você está na rua? Tá, isso é fato. “Mas você quer ficar
na rua? Agora depende do problema seu. Você quer sair? Atitude sua. Você
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precisa de ajuda?” Pronto! Tem que correr atrás dos órgão competente. “O
que fazer? O Movimento pode ajudar em que nisso aí?” Orientar. Pro
Centro Pop, aí o Centro Pop: “- Ninguém fala nada”. “- O Movimento pode
me dizer alguma coisa?” Fala: “Não! Você [incompreensível] documento
assim, assim…” Você conversa com a assistente social e fala com ela tal
coisa. Então, é a importância do Movimento é essa aí: que foi o
Movimento que deu orientação (Grifos nossos).
Registramos ainda que Andreval apresenta uma fala muito similar à referência
de Renny de que o Movimento não dá nem casa nem comida. Nas palavras do
próprio Andreval, quando eles procuram o Movimento, a gente deixa bem claro para
eles. “Nós, do Movimento…” [...] “Nós, do Movimento, a gente não oferece casa,
trabalho, comida. A gente não oferece nada dessas coisas. Por fim, também
gostaríamos de deixar registrado que Renny representa a militância como “uma
forma de missão” e demonstra uma forte ligação com o Movimento Nacional da
População de Rua. É o que se pode depreender do seguinte trecho da fala de
Renny:
E, o fim, só minha morte vai dizer dentro do Movimento. Hoje, eu
determinei que o Movimento é minha vida. É minha bandeira. É a única
bandeira de defesa; nem de facções, nem de bandeira política, nem
de...não! A única bandeira, que eu carrego no meu peito e que vai ser do
meu caixão, é o Movimento da População de Rua. Esse movimento, ele
nunca vai ter que cair e vai ter que sempre que tá de pé. [...] E eu, como
militante de responsabilidade ao meu povo, eu tenho que dever essa
resposta pra eles (Grifo nosso).
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
trabalho. Com isso, nada mais pertinente do que encerrar com as palavras de Renny
no final da entrevista dele:
“Nada! Pode vir aí. Pode... se tiver mais pessoas, aí, pode mandar vir que a gente tá aí junto.
Eu quero mais conhecimento da população de rua. Expandir aí pra o Brasil todo!”
95
8 REFERÊNCIAS
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análise desta relação sob a perspectiva do conceito gramsciano de estado
ampliado. IV Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais - Porto Alegre, 2016.
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SOUZA, Carolina Rezende de. As feiras livres como lugares de produção
cotidiana de saberes do trabalho e educação popular nas cidades: alguns
horizontes teóricos e analíticos no campo trabalho-educação. Trabalho
Necessário. Rio de Janeiro. ano 13, número 22, 2015.
Você está sendo convidado(a) a participar, se tiver vontade, da pesquisa: “A escuta qualificada
segundo integrantes do Movimento de População de Rua de Feira de Santana”, proposta pelo
estudante de Psicologia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Matheus Rios Silva Santos e
orientada pelo Prof. Dr. Carlos César Barros. Nós temos a intenção de compreender, segundo suas
palavras, o que é a “escuta qualificada” para você. Para isso, vamos realizar uma entrevista sobre o
tema da escuta qualificada que deve durar entre 30 minutos e 1 hora e no local que você achar mais
adequado desde que este seja um ambiente favorável para realização da entrevista. Para que se tenha
uma maior confiança entre as informações dadas na entrevista, a conversa poderá ser gravada em
áudio através de celular. Mas só vamos fazer isso se você estiver completamente de acordo com a
gravação. Após escrevermos o que você disse e te mostrarmos, você ainda vai poder pedir para tirar ou
modificar alguma informação. Os riscos desta pesquisa são você se emocionar, ficar com vergonha ou
incomodado em lembrar e falar alguma situação sobre esse tema. Nesses casos, você pode não
responder o que te incomodar. Ainda assim, se acontecer algumas dessas situações, os pesquisadores
se comprometem a prestar todo auxílio psicológico e de ordem financeira, se necessário, a você,
inclusive, garantindo o seu direito de buscar indenização pelos danos causados e se comprometendo a
pagar por esses danos eventuais. A pesquisa pode trazer benefícios para as pessoas em situação de rua
de forma geral, ajudando os profissionais de saúde na hora de realizar a escuta qualificada com as
pessoas em situação de rua. Fique à vontade para tirar a dúvida que quiser sobre a pesquisa. Você é
livre para não participar, desistir ou interromper sua participação a qualquer momento sem prejuízos
ou perda de benefícios. Os pesquisadores se comprometem a manter seu anonimato em relação às
informações fornecidas, a não ser que você expresse o desejo de revelar sua identidade. Se quiser
conhecer os resultados da pesquisa, vai ser possível receber informações com o orientador antes,
durante e depois da pesquisa pelo e-mail: carlosbarros@uefs.br, pelo telefone: (75) 3161-8097 ou no
Colegiado do Curso de Psicologia do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade
Estadual de Feira de Santana, na Avenida Transnordestina, S/N, módulo 7, onde uma cópia deste
documento vai ser deixada. Outra cópia vai ficar com você. Esta pesquisa passou pela aprovação do
Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos que é a instituição responsável para dizer que
estamos te respeitando eticamente. Se quiser mais informações sobre este Comitê, você pode
encontrá-lo no Módulo 1, MA 17, que se localiza dentro da Universidade Estadual de Feira de Santana
na Avenida Transnordestina, S/N, pelo e-mail: cep@uefs.br ou pelo telefone: (75) 3161-8067.
Garantimos que esses dados vão ser utilizados apenas nesta pesquisa. Ao término desta, você será
informado(a) e convidado(a) a participar da apresentação dos resultados na banca de defesa do
Trabalho de Conclusão de Curso. Te damos conhecimento e garantimos que você vai ficar com uma
via deste documento.
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Nome Assinatura ou Polegar do Participante Data