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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

MATHEUS RIOS SILVA SANTOS

A ESCUTA QUALIFICADA A PARTIR DOS MEMBROS DO


MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA - NÚCLEO
FEIRA DE SANTANA - BAHIA

FEIRA DE SANTANA-BA
2018
MATHEUS RIOS SILVA SANTOS

A ESCUTA QUALIFICADA A PARTIR DOS MEMBROS DO


MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA - NÚCLEO
FEIRA DE SANTANA - BAHIA

Trabalho de Conclusão de
Curso apresentado ao
Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia como
requisito para a obtenção de
título de graduação do curso de
Psicologia na Universidade
Estadual de Feira de Santana.

Orientador: Prof. Dr. Carlos


Cesar Barros

FEIRA DE SANTANA
2018
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DEDICATÓRIA

A Iago, Laurise e Denilson, pessoas a quem dedico todo meu amor e admiração. Aos
membros do Movimento Nacional da População de Rua - Núcleo Feira de Santana, os
melhores professores da educação popular.
AGRADECIMENTOS

A Laurise Rios, mãe amorosa, pelo acompanhamento realizado durante toda minha
vida escolar. Impossível contar a quantidade de vezes que ela acordou comigo, às
cinco da manhã, e fomos para o quintal enrolados nas cobertas para revisarmos as
provas juntos. A senhora é um exemplo de ternura, dedicação e cuidado. Sou
imensamente grato por tudo que tem feito por mim.

A Denilson Lima, pai cuidadoso, por me ensinar que ouvir vale muito mais do que
falar em demasia. Sua tranquilidade e paciência me inspiram e me transmitem
sobriedade. O senhor e mainha juntos, me deixam repleto de orgulho dos pais que
eu tenho.

A Iago Rios, irmão sempre presente, por ser um exemplo diário de como me tornar
uma pessoa melhor. Minha admiração e respeito, por você, são imensuráveis.

A todos meus tios, tias, primos, primas e, especialmente, a minhas avós Lindaura e
Raquel; e a meus avôs Delfino e Deusdete. Amo vocês de todo coração!

A Heide Bispo, amiga querida, por toda sua dedicação e convivência ao longo dos
anos. Te respeito muito pelo exemplo de ser humano que você é.

A Lorena Carneiro, companheira afável, por me mostrar o valor inestimável que uma
relação baseada na sinceridade, confiança e respeito mútuo carrega.

A Julipros, amigo inesquecível, por desde a minha adolescência ter plantado as


sementes da curiosidade e do interesse em ser psicólogo. Certamente, foi a partir
das nossas conversas que fui aprendendo a colher os nutritivos frutos que o
conhecimento nos traz.

A Tia Del, Everton, Eberton e família, pessoas acolhedoras, por terem aberto as
portas de sua casa e possibilitado que eu saísse de Mairi e viesse para Feira de
Santana estudar. Vocês são muito importantes para mim.

A Carlos Barros, mais do que um professor, um mestre de vida; por todos os


ensinamentos compartilhados ao longo de seis anos de parceria. Certamente vou
carregar sempre comigo todos os valores, ensinamentos, ​insights ​por causa de um
bom papo, demonstrações de companheirismo e afeição que o senhor me transmitiu
durante todo esse tempo. Sem as suas orientações e leituras atentas, este trabalho
não teria se concretizado. Toda minha gratidão pelo mestre que és.

A Laurenio Sombra, professor querido, pelas boas conversas na cantina e no grupo


de estudos. Sem dúvidas, o senhor teve uma grande contribuição na minha
formação enquanto futuro pesquisador e psicólogo.

A todos os professores e professoras de Psicologia. Especialmente, à professora


Lílian Wanderley, à professora Joelma Oliveira, à professora Shiniata Menezes e ao
professor Magno Macambira, por fazerem da amizade um elemento didático para a
aprendizagem.

Aos queridos amigos e amigas do curso de Psicologia e da vida, especialmente,


Mario Jorge, Philipe Lima, Felipe Oliveira, Leandro Muniz, Luiza Sanches, Moysés
Azevedo, Thaís Almeida, Stefane Machado Ana Paula, Didi, Kinda, Murilo
Fernandes, Bruno Silva, Félix “Morango”, George “Rato”, Jordênia, Inglis e Thayrine.
A amizade, o carinho e o companheirismo de vocês me fazem uma pessoa melhor a
cada dia. Obrigado pelas conversas e por todas boas risadas que damos juntos.

Aos membros do Movimento da População de Rua - Núcleo Feira de Santana,


professores da educação popular, por terem aceitado participar desta pesquisa e
pela dedicação e empenho em compartilhar os seus conhecimentos e vivências.

À turma do Curso Livre 2017 e à turma VER-SUS Inverno 2016, especialmente a


Nadjane Estrela e Itana. Sou muito grato a vocês por terem proporcionado encontros
com pessoas tão especiais.

Ao professor Eliab Barbosa, “​sujeito em terceira pessoa…”, ​por ter assumido o


movimento de vanguarda de parceria da Universidade Estadual de Feira de Santana
com a população de rua. Este trabalho também é fruto do seu esforço para ver o
Movimento da População de Rua - Núcleo Feira de Santana “entrar pela porta da
frente da Universidade”. Só resta dizer: conseguimos!
Muita gratidão a todos e todas!
“A necessidade de ser ouvido é
uma das mais profundas,
senão, a mais profunda
necessidade humana. ​Ser
ouvido é ser legitimado. [...] Ser
legitimado. Agora quem é que
‘tá’ preocupado em legitimar o
outro?” ​(COUTINHO, 2013.
Grifo nosso).
RESUMO

A vida na rua expõe homens, mulheres e crianças a riscos, vivências, experiências e


aprendizagens que fazem com que essa população mereça, sob diversos aspectos,
acolhimento, atendimento e acompanhamento diferenciados por parte dos profissionais de
saúde (BRASIL, 2012b). Diante disso, este trabalho busca investigar como se dá o exercício
de uma escuta qualificada de acordo com quatro membros do Movimento Nacional da
População de Rua - Núcleo Feira de Santana. Mais especificamente, objetivou-se
compreender como foi/é a vida na rua das pessoas entrevistadas; quais os efeitos do
exercício da escuta qualificada e qual a importância do referido Movimento para as pessoas
em situação de rua. Para isso, empreendeu-se uma pesquisa qualitativa, de caráter
exploratório, que recorreu a entrevistas semi-estruturadas para coletar dados. Ao final,
nossos resultados apontaram que o exercício da escuta qualificada para as pessoas em
situação de rua é facilitada quando se adota determinados procedimentos de aproximação,
criação de vínculos e construção de uma relação baseada na confiança.

Palavras-chave: Escuta Qualificada. Pessoas em Situação de Rua. Movimento Nacional da


População de Rua. Políticas Públicas.

ABSTRACT

Living on the street exposes men, women and children to risks, experiences and some
discoveries that make this population worthy, in several aspects, of a different reception, care
practices and follow-up by health professionals (BRASIL, 2012b). In view of this, this work
seeked to investigate how an exercise of a qualified listening according to four members of
the National Movement of Street Population - unit of Feira de Santana. More specifically, it
aimed to understand how the street life of the people interviewed was / is; what are the
effects of the exercise of qualified listening and what is the significance of this Movement for
street people. For this, a qualitative, exploratory research was undertaken, using
semi-structured interviews in order of collecting data. At the end, the findings showed that the
exercise of the qualified listening for street people is facilitated when it is adopted certain
procedures for approaching, creating links and building a relationship based on trust with
those people.

Keywords: Qualified Listening. People in Street Situation. National Movement of Street


Population. Public Policies.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CEBs - Comunidades Eclesiais de Base


CIAMP-Rua - Comitê Intersetorial de Monitoramento da Política Nacional de
População de Rua
MNCR - Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis
MNPR - Movimento Nacional da População de Rua
MNPR-FSA - Movimento Nacional da População de Rua - Núcleo de Feira de
Santana
MST - Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PNH - Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do Sistema Único de
Saúde
SUS - Sistema Único de Saúde
UEFS - Universidade Estadual de Feira de Santana
SUMÁRIO

1​ INTRODUÇÃO​………………………………………………...………………………. ​11

2​ PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA​………………………………………………...​14


3​ A ESCUTA QUALIFICADA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS​……​26

4 ​O MOVIMENTO DA POPULAÇÃO DE RUA E O CONTROLE SOCIAL​………. ​34

5​ METODOLOGIA​………………………………………………...……………………. ​ ​52

6​ RESULTADOS E DISCUSSÃO​……………………………………………………… ​71

6.1 A VIDA NAS RUAS​………………………………………………………………… ​ ​71

6.2 O EXERCÍCIO DA ESCUTA QUALIFICADA E O ATENDIMENTO

REFERENCIADO PELAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA 74

6.3 A IMPORTÂNCIA E OS MODOS DE ATUAÇÃO DO MOVIMENTO

NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA EM FEIRA DE SANTANA​……………….. ​84

7​ CONSIDERAÇÕES FINAIS​………………………………………………………… ​92

8​ REFERÊNCIAS​.……………………………………………………………………… ​95

9​ APÊNDICES​………………………………………………………………………….. ​104
11

1​ INTRODUÇÃO

A vida na rua expõe homens, mulheres e crianças a riscos, vivências,


experiências e aprendizagens que faz com que essa população mereça, sob
diversos aspectos, acolhimento, atendimento e acompanhamento diferenciado por
parte dos profissionais de saúde (BRASIL, 2012b). A questão reside no fato de que,
muitas vezes, a realização de uma prática humanizada incompatível com as reais
demandas das pessoas em situação de rua se dá muito mais pela imperícia do/da
profissional em saber como seria um acolhimento referenciado pelos cidadãos em
situação de rua do que pela falta de empenho em realizar uma acolhida tal qual a
aquela pessoa merece.
Por analogia, é possível inferir que a falta do exercício de uma escuta
qualificada no atendimento voltado para pessoas em situação de rua, muitas vezes,
se deve a imperícia dos profissionais em saber como realizá-la. É importante falar
também que a ausência de trabalhos científicos relacionando o exercício da escuta
qualificada às pessoas em situação de rua tendem a favorecer esse ambiente de
insipiência por parte dos profissionais de saúde de como atender, acolher e escutar
qualificadamente os cidadãos em situação de rua.
A fim de atenuar esse déficit científico de trabalhos que discutem como se
realizar uma escuta qualificada voltada para as pessoas em situação de rua, esta
monografia buscou construir coletivamente com os membros do Movimento Nacional
da População de Rua - Núcleo Feira de Santana referências de como exercer esta
escuta para a população de rua. Mais especificamente, buscamos compreender
como foi/é a vida na rua das pessoas entrevistadas; quais os efeitos do exercício da
escuta qualificada, e qual a importância do referido Movimento para as pessoas em
situação de rua.
Algumas hipóteses foram levantadas ao longo da pesquisa, são elas: a perda
dos vínculos familiares é um dos fatores que corroboraram para a chegada dos
entrevistados na situação de rua; as relações nas ruas são fundamentais para
diminuir a vulnerabilidade das pessoas que estão nessa situação; o exercício da
escuta qualificada é uma das formas para a construção de vínculo com as pessoas
em situação de rua; existem alguns procedimentos que podem facilitar o exercício da
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escuta qualificada para as pessoas em situação de rua; a atuação do Movimento


favoreceu o reconhecimento dos entrevistados como cidadã(o)s de direito; o
reconhecimento dos entrevistados enquanto pessoas que possuem direitos os
levaram a buscar mais conhecimentos sobre políticas públicas.
Dessa forma, a parte teórica deste trabalho se dividiu em três capítulos. No
primeiro capítulo, intitulado ​“Pessoas em Situação de Rua​”, realizamos uma
discussão terminológica sobre as expressões utilizadas para se referir à população
de rua na sociedade brasileira. Duas dessas expressões foram melhor definidas por
entendermos que elas denotam o reconhecimento da dignidade e da singularidade
bem como do direito dessas pessoas exercerem suas cidadanias. Antes de terminar
o capítulo, apresentamos alguns dados de pesquisas realizadas na cidade de Feira
de Santana e em âmbito nacional sobre as pessoas em situação de rua.
No segundo capítulo, intitulado “​A escuta qualificada no contexto das políticas
públicas”, ​realizamos uma exposição sobre a Política Nacional de Humanização,
demonstrando como a prática humanizada do acolhimento está inserida nesta
política. Além disso, delineamos a relação entre o acolhimento e a escuta
qualificada. Em seguida, demonstramos como a escuta qualificada é tratada na
literatura científica brasileira bem como a sua inserção nas políticas públicas. Ao
final do capítulo, realizamos uma sistematização sobre como exercer e os efeitos da
escuta qualificada expostos pelos materiais bibliográficos que utilizamos.
No terceiro capítulo, intitulado ​“O Movimento da População de Rua e o
controle social”, ​realizamos uma exposição sobre o papel e a importância dos
movimentos sociais na história do Brasil, principalmente, a partir da década de 80 do
século XX. Além disso, realizamos o levantamento do histórico do surgimento do
Movimento Nacional de População de Rua bem como do seu núcleo em Feira de
Santana. Também apresentamos o conceito de controle social, diferenciamos as
duas concepções existentes sobre este termo, e depois relatamos de que forma o
núcleo do Movimento exerce o controle social em Feira de Santana.
Além da parte de levantamento e apresentação bibliográfica sobre os temas
aqui tratados, esta pesquisa se baseou na abordagem qualitativa para o trabalho de
campo. O método utilizado para realizarmos a coleta de informações e alcançar os
objetivos pretendidos foi a entrevista. Dessa forma, foram realizadas entrevistas
13

semi-estruturadas com quatro membros do Movimento Nacional de População de


Rua, pertencentes ao Núcleo de Feira de Santana. Após realizarmos as entrevistas
e a transcrição destas, recorremos à análise temática como método de
sistematização e tratamento dos dados obtidos.
Tendo realizado a apresentação e discussão dos resultados, concluímos que
a vida nas ruas é encarada de diversas formas por nossos entrevistados, com seu
lado positivo e seu lado negativo; que a escuta qualificada gera efeitos importantes
para a pessoa escutada e que seu exercício para as pessoas em situação de rua
requisita alguns procedimentos que tende a facilitar a construção da relação
profissional-pessoa atendida; e que o Movimento é um importante espaço de
convivência e aprendizagens para seus membros e, principalmente, para as demais
pessoas em situação de rua.
14

2​ PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

Não somos lixo A lucidez e os sonhos da filosofia.


Não somos profanos, somos humanos.
Não somos Lixo nem bicho. Somos Filósofos que escrevem
Somos humanos. Suas memórias nos universos diversos
Se na rua estamos é porque nos urbanos
desencontramos. A selva capitalista joga seus chacais sobre
Não somos bicho e nem lixo. nós.
Não somos anjos, não somos o mal. Não somos bicho nem lixo, temos voz.
Nós somos arcanjos no juízo final. Por dentro da caótica selva, somos vistos
Nós pensamos e agimos, calamos e gritamos. como fantasma.
Ouvimos o silêncio cortante dos que afirmam Existem aqueles que se assustam,
serem santos. Não estamos mortos, estamos vivos.
Não somos lixo. Andamos em labirintos.
Será que temos alegria? Às vezes sim... Dependendo de nossos instintos.
Temos com certeza o pranto, a embriaguez, Somos humanos nas ruas, não somos lixo.
(RAMOS, ? apud BRASIL, 2012b)

O poema acima transcrito foi elaborado por Carlos Eduardo Ramos, o Cadú,
uma pessoa em situação de rua​. Seus versos, em tom de revolta, representam o
protesto de milhares de pessoas que deixaram de ter sua dignidade de pessoa
humana socialmente reconhecida pelo fato de estarem em situação de rua. Através
das suas palavras, Cadú é categórico na desconstrução de estigmas (“​lixos”,
“bichos”, “fantasmas”) e chega a ser pedagógico na demarcação das razões que
preservam a humanidade das pessoas que estão na condição de rua (“​Nós
pensamos e agimos, calamos e gritamos”/ “Não somos bicho nem lixo, temos voz”)​.
A fim de endossar o manifesto de Cadú sobre a humanidade das pessoas em
situação de rua, propomos, neste primeiro capítulo, a adoção das terminologias
“​pessoas em situação de rua”​ e “​cidadãos em situação de rua”​.
Isso porque não existe, atualmente, um consenso no meio científico sobre
qual é a terminologia mais apropriada utilizar para se referir às pessoas
consideradas pertencentes ao grupo populacional que, segundo Silva (2014),
apresentam três características principais: a pobreza extrema; os vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados; e a carência de moradia convencional-regular, fatores
que influenciam na utilização da rua como espaço de moradia e sustento, por
contingência temporária ou de forma permanente.
15

Popularmente falando, a sociedade brasileira utiliza uma grande variedade de


termos para se referir às pessoas em situação de rua. Esses expressam desde a
manifestação explícita de estereótipos, preconceitos e estigmas relacionados à
população de rua, passando por um termo potencialmente neutro, e até mesmo
expressões que denotam a adoção de perspectivas mais humanizadoras através do
reconhecimento do status de pessoa e de cidadão dos sujeitos da população de rua.
Colocando em termos práticos, Silva (2014, p. 119) elenca algumas palavras
comumente utilizadas no seio da sociedade brasileira para se referir às pessoas da
população de rua, tais como: “​mendigos”​; “maloqueiros”​; ​“desocupados”​; “pedintes”​;
“maltrapilhos”​; “encortiçados” ​e “vadios”. ​É mister afirmar que esses termos
comumente se enquadram no espectro daqueles que explicitam os estereótipos e
estigmas que a sociedade brasileira apresenta com relação às pessoas em situação
de rua. Acontece que, conceitualmente falando, esses termos de uso popular, além
de carregar em si o tom pejorativo do estigma, muitas vezes, não condizem com a
heterogeneidade de características da grande maioria da população de rua.
Como alternativa, atualmente, o termo mais corriqueiramente utilizado pelas
pessoas dessa sociedade e que é um termo que pode ser considerado
potencialmente neutro é “​morador(a) de rua”​. Ou seja, para uma parcela da
sociedade, este é o termo a ser considerado “politicamente correto”. Essa inferência
pode ser confirmada pela constância em que o termo é utilizado cotidianamente
pelos mais diferentes atores sociais, a exemplo de jornalistas que, ao realizar
reportagens sobre os sujeitos da população de rua recorrem ao termo “moradores de
rua”, sem que seja notada a intencionalidade de aviltar esses sujeitos1.
Neste trabalho, adota-se duas terminologias diferentes para se referir a esse
grupo populacional, sucintamente caracterizado no parágrafo anterior: “​pessoas em
situação de rua” ​e “cidadã(o)s em situação de rua​. Preliminarmente falando,
entendemos que a utilização do primeiro termo demarca o reconhecimento da
dignidade humana dessas pessoas, enquanto o segundo demarca o reconhecimento

1
A fim de confirmar essa linha argumentativa, exemplificamos, em caráter amostral, a reportagem do
jornal Huffpost Brasil denominada: LAMAS, Julio. ​Moradores de rua: por trás destes números há
pessoas. ​Huffpost​, 2014​. ​Disponível em: ​http://www.huffpostbrasil.com/2014/06/30/moradores-de-
rua-por-tras-destes- numeros-ha-pessoas_a_21674802/?utm_hp_ref=br-morador-de-rua. Acessado
em 6 de agosto de 2017.
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da cidadania delas. A fim de tornar mais elucidativa a nossa linha de raciocínio


apresenta-se, então, uma discussão mais detida sobre os conceitos de “pessoa”,
“cidadão”, “situação” e “rua”.
Com relação ao termo “pessoa”, Comparato (2010) realiza um longo
levantamento tanto etimológico como semântico desse vocábulo, demarcando assim
cinco fases de evolução histórica desse conceito. Esse autor nos ensina que as
origens da palavra “pessoa” remete ao pensamento defendido por Antifonte
(480-411 a.C.) “sobre a existência de uma igual natureza para os homens, em sua
crítica à divisão da humanidade em gregos e bárbaros” (COMPARATO, 2010, p. 27).
De fato, a citação de Antifonte que Comparato apresenta é bastante instrutiva para
compreendermos como começa a se delinear as origens da nossa consciência
ocidental de igualdade entre seres humanos:

Nisto, somos bárbaros, tal como os outros, uma vez que, ​pela natureza,
bárbaros e gregos somos todos iguais. ​Convém considerar as necessidades
que a natureza impõe a todos os homens; ​todos conseguem prover a essas
necessidades nas mesmas condições; no entanto, no que concerne a todas
essas necessidades, nenhum de nós é diferente, seja ele bárbaro ou grego:
respiramos o mesmo ar com a boca e o nariz, todos nós comemos com o
auxílio de nossas mãos ​[...] (ANTIFONTE, 1996, apud COMPARATO, 2010,
p. 27, Grifos nossos).

Etimologicamente falando, a origem da palavra “pessoa” está relacionada


com as funções próprias da individualidade de cada ser humano exercidas na vida
social. “Essa função social designava-se, figurativamente, pelo termo “​prosopon”​,
que os romanos traduziram por ​persona (​pelo que soa), com o sentido próprio de
rosto ou, também, de máscara de teatro, individualizadora de cada personagem”
(COMPARATO, 2010, p. 27).
Quanto à evolução semântica do termo ​“pessoa​”, Comparato (2010) assinala
a existência de cinco diferentes etapas. A primeira delas tem início durante o concílio
ecumênico, reunido em Nicéia, em 325, quando os padres conciliares debateram
sobre a dupla natureza (divina/humana) da pessoa de Jesus Cristo (COMPARATO
2010, p. 31).
A segunda etapa tem seu início no século VI, com Boécio. Segundo
Comparato (2010, p. 32), foi com Boécio que o conceito “pessoa” deixou de ser
entendido como mera exterioridade tal qual a máscara de teatro grega e passou a
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ser visto como a própria substância do ser humano com suas características de
permanência e invariabilidade: “Foi, de qualquer forma, sobre a concepção medieval
de pessoa que se iniciou a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo
ser humano, não obstante a ocorrência de todas as diferenças individuais ou
grupais, de ordem biológica ou cultural.”
A terceira etapa de evolução semântica do conceito de “​pessoa” ​é marcada
pelo pensamento kantiano. A maior contribuição do pensamento de Kant, ainda
segundo Comparato (2010, p. 33), a esse conceito está justamente em ensinar que
todo ser humano existe como ​um fim em si mesmo e não simplesmente como ​meio​.
“Daí decorre, como assinalou o filósofo, que todo homem tem ​dignidade e não um
preço​, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua
individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser
trocado por coisa alguma (COMPARATO, 2010, p. 34). Neste sentido, “tratar a
humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível,
o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de
outrem sejam por mim considerados também como meus” (COMPARATO, 2010, p.
35). A compreensão implícita desse fundamento pode ser considerada o alicerce
para a solidariedade entre os seres humanos.
A quarta etapa desse desenvolvimento é considerada por Comparato (2010,
p.37) como a fase da “descoberta do mundo dos valores”. Ou seja, “essa fase marca
o reconhecimento de que o homem é o único ser vivo que dirige sua vida em função
de preferências valorativas” (COMPARATO, 2010, p. 38). Essa compreensão foi
fundamentalmente importante para os direitos humanos uma vez que esses passam
a ser identificados como os valores mais importantes para a convivência humana.
Por fim, a quinta e última fase desenvolveu-se a partir do século XX, baseada
na filosofia da vida e no pensamento existencialista. Esta etapa veio confirmar o
pensamento de Boécio desenvolvido durante a segunda fase de que a essência da
personalidade humana não se confunde com a função social de cada ser humano.
Neste sentido, a identidade de cada ser humano é singular e inconfundível como a
de qualquer outro. Além disso, essa etapa apresenta a noção de pessoa como
realidade inacabada, aquele ente que está em permanente “​vir-a-ser​”, um contínuo
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devir. Esta característica da noção de ​pessoa é fundamental para assimilarmos o


termo “​situação”​ que discutiremos logo em seguida.
Em síntese, é basilar assinalar a importância para este trabalho do valor que
a palavra “​pessoa” carrega em seu bojo, nomeadamente: ter em sua própria origem
etimológica um vocábulo (persona) que nos remete ao som da voz humana,
consequemente, da fala humana; o estabelecimento do princípio de igualdade de
todo ser humano; a consciência de toda pessoa é um fim em si mesmo, dotado de
dignidade e com uma história de vida insubstituível; o reconhecimento que as
pessoas dirigem suas vidas pelas suas preferências valorativas e a noção de que a
pessoa é um constante devir sendo marcada por fatores e condições tanto externas
(cultura, economia, emprego) como fatores internos (crenças, decisões, vontade,
impulsos, valores). Dito isso, passamos ao conceito de ​situação.
O conceito de ​situação está relacionado com um estado contextual que
demarca a existência das pessoas. A situação em que cada pessoa está imersa
influencia sua forma de perceber o mundo e os indivíduos, a forma como interage
com os objetos e as pessoas à sua volta bem como a forma como responde e
interpreta cada experiência pessoal.
Para além da questão da percepção, da interação e da interpretação, a Teoria
da Ação Criativa formulada por Hans Joas chama a nossa atenção justamente para
a importância da ​situação na maneira como os sujeitos ​agem cotidianamente. Nas
palavras de Joas (1996, p. 160), “toda ação acontece em uma situação” e, portanto,
“a situação é constitutiva da ação”. A partir desta formulação, passa-se a se
compreender que as ações de cada sujeito são direcionadas, não de uma forma
teleológica e com os meios predefinidos de modo a alcançar as finalidades
almejadas, mas sim, de uma forma que esses meios e finalidades vão sendo
conformados a partir do horizonte de possibilidades que cada contexto e/ou situação
disponibiliza em sua abrangência. Em última instância, podemos considerar que uma
ação criativa não é aquela que resulta em um produto inteiramente novo, mas
aquela que proporciona as condições para a ampliação desse horizonte de
possibilidades. Esta formulação baseia nossa compreensão de que as pessoas em
situação de rua são agentes criativos do meio social em constante adaptação à
diversidade de situações que se apresentam cotidianamente para elas e as
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convocam para a ação: “as situações não são mudas, elas exigem de nós que
entremos em ação” (JOAS, 1996, p.160). Portanto, mais do que atores é importante
demarcar o papel da pessoa em situação de rua como ​agentes do meio social.
Dessa forma, compreender a existência dessas pessoas como marcada por
uma situação de estar na rua é de fundamental importância para a percepção de que
a situação de rua se torna parte constitutiva de suas ações na relação consigo, com
os outros e com o ambiente a sua volta. Neste sentido, Joas (1996) traz a
formulação de Dietrich Böhler para apresentar o caráter relacional e dialético entre
situação e ação.

Por 'situação' nós – isto é, 'nós' como seres humanos que agimos e
sabemos sobre a ação – compreendemos uma relação entre seres humanos
e objetos, ou entre ser humano e objetos, que já precede a ação particular
sob consideração e que é, portanto, em cada caso já compreendida pela
pessoa ou pessoas envolvidas como um desafio entre fazer ou
alternativamente não fazer alguma coisa. De forma coloquial falamos sobre
'entrar em' situações: elas 'nos acontecem', 'acontecem para' nós e ​nós nos
encontramos 'confrontados' por elas. Essas são formas de expressar que a
situação é algo que precede nossa ação (ou inação) mas que também
provoca ação porque ela nos 'afeta', nos 'interessa' ou nos 'preocupa'
(BÖHLER, 1985​ ​apud​ ​JOAS, 1996. p. 162. Grifo nosso. Tradução nossa).

Mesmo com um certo grau de permanência que a expressão “situação de rua”


denota, esta permite invariavelmente uma abertura para o devir da pessoa que está
nesta situação. Neste sentido, a pessoa em situação de rua mantém o caráter de
mudança a partir das experiências positivas e negativas que vivencia por estar na
rua. Este devir pode inclusive gerar condições pessoais, sociais e contextuais, tais
como a formação de novos vínculos familiares, a saída da pobreza extrema e a
obtenção de moradia fixa que permita a sua saída da situação de rua. Passemos,
portanto, a conceituar o que compreendemos como ​rua.
Os dicionários dizem: “Rua, do latim ​ruga​, ‘sulco’. Espaço entre as casas e
as povoações por onde se anda e passeia”. [...] Se a rua é para o homem
urbano o que a estrada foi para o homem social, é claro que a preocupação
maior, a associada a todas as outras ideias do ser das cidades, é a rua
(RIO, 2008).

Os trechos acima transcritos pertencem a obra literária de João do Rio, ​“A


alma encantadora das ruas”. ​Nesta obra, de uma forma lírica e apaixonada, Rio
(2008) recorre à prosopopeia para escrever crônicas que exaltam a importância da
rua na vida urbana. Se o escritor chama prontamente nossa atenção para a
importância da rua na vida dos transeuntes, não é difícil imaginar o grau de
20

importância substancialmente maior nos casos das pessoas que permanecem nelas
na totalidade do dia. Se por um lado, o espaço da rua se apresenta como local de
subsistência, de vulnerabilidade, de falta de condições básicas de higiene e
alimentação adequada; por outro, a rua é o espaço onde essas pessoas se
encontram, constrói novos laços de amizades, vivenciam relações amorosas e de
companheirismo. Além disso, a rua é o local das festas populares, da aglutinação de
pessoas que se reúnem para reivindicar seus direitos e/ou protestar contra os
arbítrios de um governo; é o local também onde são montadas as barracas para as
chamadas ​feiras livres, ​prática cultural e comercial inerente ao cenário urbano da
maior parte das cidades brasileiras (SOUZA, 2015). Propriamente dizendo, no que
tange à utilização do termo na expressão em destaque, cabe falar que a palavra ​rua
pode ser compreendida como uma metonímia que se refere a uma série de lugares
do ambiente urbano nos quais as pessoas desprovidas de uma moradia
convencional e permanente utilizam para garantir sua subsistência. Silva (2009, p.
118) elenca mais cuidadosamente esses sítios:
Exemplo desses lugares são os abrigos, albergues, repúblicas e outros tipos
de acolhida temporária oferecidos por organizações públicas ou privadas,
sem fins lucrativos. Outros exemplos são as ruas, praças, avenidas,
viadutos, canteiros, jardins, cemitérios, entre outros, que podem ser
utilizados como acomodação, abrigo e atendimento às necessidades de
higiene, limpeza e alimentação em pontos estratégicos (bancos de praças,
marquises, banheiros públicos, chafariz, bicas, represas, postos de
gasolinas, refeitórios públicos, refeitório de inscrições privadas sem fins
lucrativos etc.).

​Com isso, enquanto o termo ​situação ​traz uma dimensão temporal para essas
pessoas, o termo ​rua ​demarca justamente o caráter espacial dessa dada situação.
Portanto, a partir dos termos ​pessoa em situação de rua ​tem-se a construção
sócio-histórica desses sujeitos em estado de vulnerabilidade social. Antes de
delimitarmos mais especificamente a diferenciação entre ​pessoa em situação de rua
e ​cidadão/cidadã em situação de rua, ​façamos uma discussão sobre o termo
cidadão.
Segundo Dallari (1984) ​, “o conceito de cidadão é mal definido, ambíguo e é
utilizado com diferentes sentidos. Alguns o utilizam com a intenção de eliminar
diferenças entre os seres humanos, ou seja, como expressão de igualdade. Todos
são cidadãos, portanto, todos são iguais.” A diferenciação que esse autor traz é que
21

cidadão seria aquele que tem responsabilidade política, inclusive com direito de
participar das decisões. Neste sentido, o termo “​cidadão em situação de rua” está
vinculado com a garantia de direitos para essas pessoas bem como para a sua
participação na tomada de decisões políticas seja individualmente ou através do
controle social exercido pelos membros do Movimento Nacional da População de
Rua (ou alguma outra instância representativa) em fóruns, conselhos e conferências
como veremos no capítulo ​“​O Movimento da População de Rua e o controle social”​.
Dito isto, é importante delimitar que o termo ​pessoa em situação de rua pode
ser comumente utilizado quando a finalidade é expressar o respeito à singularidade,
à dignidade e às escolhas, crenças e valores próprias do sujeito nesta condição e
que são inerentes a existência de qualquer ser humano. Já o termo ​cidadão/cidadã
em situação de rua está vinculado mais especificamente ao lado político-jurídico
dessa pessoa enquanto sujeito portador de direitos civis, políticos e sociais. Neste
sentido, o direcionamento e participação na construção de políticas públicas estão
vinculados ao​ cidadão em situação de rua.
A partir dessa discussão conceitual, concebemos que a utilização de ambos
os conceitos demonstram o reconhecimento de que a pessoa/cidadã(o) em situação
de rua deve ser respeitada, ter sua dignidade reconhecida e os seus direitos de
acesso às políticas do Estado garantidos. Dito isso, não podemos perder de vista
que estamos lidando com pessoas concretas que têm boa parte das suas
existências marcadas pela experiência de vulnerabilidade social que a situação de
rua os/as submetem. A fim de traçarmos um perfil e compreender quais as
características desses sujeitos que, como afirma Cadú: por um “desencontro” foram
parar na situação de rua, apresentaremos os dados sociodemográficos de duas
pesquisas relativamente recentes empreendidas na cidade de Feira de Santana, na
Bahia, comparando-as com os dados apresentados por duas pesquisas realizadas
em âmbito nacional sobre a população de rua.
Segundo uma Pesquisa Nacional da Pessoa em Situação de Rua, realizada
em 2010, havia em torno de 237 pessoas em situação de rua na cidade de Feira de
Santana, no estado da Bahia (CARVALHO et al, 2016, p. 32). Silva (2009) comenta
que as principais características das pessoas em situação de rua são
heterogeneidade, pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados
22

e inexistência de moradia convencional regular. Em última análise, pessoas em


situação de rua podem ser definidas como:
grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema,
os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de
moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as
áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma
temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para
pernoite temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009a).

A fim de compreender a heterogeneidade desse grupo populacional, dois


levantamentos de dados quantitativos foram realizados na cidade de Feira de
Santana. A primeira pesquisa (de agora em diante: Pesquisa A) foi realizada em
2015, por dois professores da Universidade Estadual de Feira de Santana, professor
Doutor Carlos César Barros e Professor Eliab Barbosa Gomes. A segunda pesquisa
(de agora em diante: Pesquisa B), publicada em 2016, foi coordenada por uma
socióloga chamada Jamile Carvalho junto a sua equipe de sociólogo, historiadora,
cientista social, assistentes sociais e antropólogo. A realização dessas pesquisas
presta um importante serviço tanto para os gestores, profissionais de assistência
social e saúde como para a própria população de rua. Primeiro, por seu caráter
pioneiro de fazer um levantamento do perfil sociodemográfico da população de rua
na cidade de Feira de Santana e possibilitar que esses atores sociais tenham um
conhecimento mais apurado sobre quem é a população de rua desta cidade;
segundo, porque a partir delas poderá se realizar novas pesquisas e,
consequentemente, o cruzamento de dados com futuras pesquisas para assim tentar
compreender as mudanças no perfil dessa população e quais fatores
sociais-políticos-econômicos influenciaram nesta transformação; terceiro, por
fornecer dados para auxiliar a partir da realidade concreta na construção de políticas
públicas, programas e projetos que visem garantir os direitos dessas pessoas bem
como atenuar seu estado de vulnerabilidade social. Passemos aos dados.
Os resultados obtidos pelas pesquisas mostram um perfil muito similar com os
dados de outras pesquisas ao redor do Brasil (BRASIL, 2008a; 2009e). De acordo
com a Pesquisa B, a população de rua feirense é predominantemente formada por
homens (85%). Uma porcentagem maior do que a média nacional de 77,87%,
apontada por Silva (2009, p. 146). Segundo essa autora, “histórica e culturalmente
23

no País, a responsabilidade de garantir a renda para o sustento da família é


atribuída aos homens, chefes de família. Da mesma forma, aos jovens do sexo
masculino, a partir dos 18 anos, é atribuída a tarefa de autossustento”. Neste
sentido, a falta de emprego ou de qualquer outra atividade remunerada que forneça
os subsídios financeiros para suporte econômico da família por parte do homem ou
meios pecuniários de autossustento para os jovens são fatores que podem explicar a
predominância da presença de pessoas do sexo masculino em situação de rua
(SILVA, 2009, p. 148).
Quanto à questão racial, da cor da pele ou de etnia, a soma de pessoas
autodeclaradas pretas e pardas é de aproximadamente 88% em ambas as
pesquisas. Este é um dado que revela questões estruturantes da sociedade
brasileira tais como a desigualdade social e o racismo que atinge prioritariamente a
população negra. Desde os anos de escravidão no Brasil, os negros e negras foram
submetidos às condições mais degradantes e aviltantes de subsistência neste país:
baixos níveis de acesso à educação de qualidade, à um sistema de saúde eficaz, a
empregos dignos com salários igualitários. A falta de acesso a esses bens
fundamentais para a subsistência é um dos principais fatores que contribuem para o
aumento da vulnerabilidade social dessa população e/ou, eventualmente, para que
as pessoas “se desencontrem”.
No tocante à idade das pessoas que estão em situação de rua em Feira de
Santana, ambas as pesquisas apontam para a concentração na faixa etária de 20 a
45 anos dessas pessoas (77,5% - Pesquisa A e 68% - Pesquisa B) . Um índice
maior do que o apontado na Pesquisa Nacional que foi de 53%. Silva (2009, p.151)
atribui a concentração nessa faixa etária a fatores que podem estar ligados ao
desemprego.
Quanto às capacidades de leitura e escrita, a Pesquisa A aponta que 73,94%
das pessoas em situação de rua em Feira de Santana sabem ler e escrever. Essa é
uma média praticamente similar à média nacional de 74% apresentada pela Política
Nacional de Inclusão da População de Rua (BRASIL, 2008a, p. 10).
Quanto à formação escolar, a Pesquisa Nacional da População em Situação
de Rua (BRASIL, 2009e) revela que a maior parte (63,5%) não havia concluído o
primeiro grau, 17,1% não sabiam ler e escrever e 8,3% apenas assinavam o próprio
24

nome. A imensa maioria não estudava à época em que a entrevista foi conduzida
(95%) e apenas 3,8% dos entrevistados afirmaram que estavam fazendo algum
curso (ensino formal – 2,1%; profissionalizante – 1,7%). Na realidade feirense, tanto
a pesquisa A como a pesquisa B relatam um índice próximo a 88% de pessoas que
declaram ter uma profissão. Entre as profissões que mais aparecem nas pesquisas
estão a de eletricista, servente e flanelinha.
A pesquisa B quis saber se essas pessoas já tiveram atendimento negado ou
foram impedidas de acessar algum serviço público. De acordo CARVALHO et al​.​,
(2016, p. 62), 78% dos entrevistados responderam afirmativamente a esta questão.
Corrobora com esse índice o cruzamento de dados levantados na Pesquisa Nacional
sobre a População em Situação de Rua que indica que 54,5% das pessoas em
situação de rua entrevistadas já sofreram algum tipo de discriminação ao longo do
país, principalmente por meio do impedimento de sua entrada em estabelecimentos
comerciais, shopping centers, transportes coletivos, bancos, algum órgão público, de
serem atendidos nos órgãos de saúde, além do impedimento na retirada de
documentos. (BRASIL, 2009e, p. 14). Vale lembrar que
apesar de a Política Nacional de População de Rua e de o Plano Operativo
para Implementação de Ações em Saúde da População em Situação de Rua
2012-2015 terem como princípio o acesso integral aos serviços do SUS
(BRASIL, 2009a; BRASIL, 2012a) e de a Portaria do Ministério da Saúde
número 940/2011 determinar que os moradores de rua estão dispensados
da apresentação de comprovante de residência para o cadastramento no
SUS e que a ausência ou inexistência do Cartão Nacional de Saúde não é
impedimento para a realização de atendimento (BRASIL, 2011d), os
participantes dizem que os serviços não deixam de exigir um documento de
identificação (CRP-MG, 2015, p. 63).

Por fim, gostaríamos de indicar que, segundo a pesquisa B, ​um percentual de


70% dos entrevistados relatam já terem ouvido falar do Movimento da População de
Rua de Feira de Santana. Carvalho ​et al​. (2016, p.74) destaca o trabalho realizado
pelo Movimento em Feira de Santana de fomentar a instrumentalização tanto dos
membros como de pessoas que estão em situação de rua a fim de fortalecer sua
autonomia, habilidades para dialogar e negociar suas demandas com o poder
público.
Recapitulando, nesta primeira parte do trabalho, apresentamos alguns termos
e expressões utilizadas pela sociedade brasileira para se referir à população de rua.
Realizamos uma discussão terminológica sobre as expressões ​pessoa em situação
25

de rua bem como ​cidadão em situação de rua, ​conceituando mais detidamente cada
uma das palavras que compõem as expressões, apontando também a importância
da utilização destas. Além disso, apresentamos alguns dados sociodemográficos da
população de rua em Feira de Santana, comparando-os com dados de duas
pesquisas realizadas em âmbito nacional. No próximo capítulo, passaremos a
discorrer, mais especificamente, sobre o que é a escuta qualificada, sua importância
para o acolhimento e como esta se insere nas políticas públicas de um modo geral e,
especificamente, nas políticas de saúde.
26

3​ A ESCUTA QUALIFICADA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A valorização do exercício da escuta qualificada pode ser melhor


compreendida quando inserida nos contextos de promoção de práticas humanizadas
a partir de políticas públicas ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse
sentido, cabe falar que a lei 8.080/90, que regulamenta a organização e o
funcionamento do SUS, instituiu que “a humanização do atendimento do usuário
será fator determinante para o estabelecimento das metas de saúde previstas no
Contrato Organizativo de Ação Pública de Saúde” (BRASIL, 2015, p. 104). No
entanto, somente em 2003, com o surgimento da Política Nacional de Humanização
da Atenção e Gestão do SUS (mais conhecida como Política Nacional de
Humanização, HumanizaSUS ou, simplesmente, PNH) é que as práticas de
humanização são melhor especificadas e passam a ser fomentadas dentro das
instituições de saúde pública, desde atenção básica ao atendimento de alta
complexidade. Antes de falarmos especificamente sobre as práticas de humanização
do SUS, é importante compreender melhor a Política Nacional de Humanização.
Assim, vale destacar que HumanizaSUS sustenta que a humanização desse
Sistema perpassa por uma séries preceitos e valores, dentre eles: a valorização dos
diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários,
trabalhadores e gestores; o fomento da autonomia e do protagonismo desses
sujeitos; o aumento do grau de co-responsabilidade na produção de saúde; a defesa
de um SUS que reconhece a diversidade do povo brasileiro e a todos oferece a
mesma atenção à saúde, sem distinção de idade, raça/cor, origem, gênero e
orientação sexual; a proposta de um trabalho coletivo para que o SUS seja mais
acolhedor, mais ágil, e mais resolutivo; por lutar por um SUS mais humano,
construído com a participação de todos e comprometido com a qualidade dos seus
serviços e com a saúde integral para todos e qualquer um (BRASIL, 2008b, p. 8).
Diante do exposto, é possível perceber que o respeito à diversidade, a participação e
a integração dos mais diferentes atores sociais é a tônica desses preceitos e
valores.
Seguindo a mesma linha de apresentação da PNH, dentre as diretrizes dessa
política estão a clínica ampliada; ​o acolhimento​; a valorização do trabalho e do
27

trabalhador; a defesa dos direitos do usuário; o fomento das grupalidades, coletivos


e redes e construção da memória do SUS que dá certo. Por diretrizes de uma
política pública entende-se as orientações gerais desta (BRASIL, 2008b, p.10). Por
ora, nos interessa destacar as práticas de acolhimento como uma das orientações
gerais da PNH por ser o caminho que nos levará a entender a escuta qualificada
dentro desta política.
Na perspectiva de uma prática humanizada, o acolhimento “expressa, em
suas várias definições, uma ação de aproximação, um “estar com” e um “estar perto
de”, ou seja, uma atitude de inclusão” (BRASIL, 2010, p. 7). De fato, o documento
intitulado “​Acolhimento nas práticas de produção de saúde” ​(BRASIL, 2010)
apresenta o acolhimento como uma das diretrizes mais importante do PNH, uma vez
que é a partir da prática deste que a Política Nacional de Humanização revela a sua
importância nas dimensões ética, estética e política:
Ética no que se refere ao compromisso com ​o reconhecimento do outro, na
atitude de acolhê-lo em suas diferenças, suas dores, suas alegrias, seus
modos de viver, sentir e estar na vida; estética porque traz para as relações
e os encontros do dia-a-dia a invenção de estratégias que contribuem para ​a
dignificação da vida e do viver e, assim, ​para a construção de nossa própria
humanidade​; política porque implica o compromisso coletivo de envolver-se
neste “estar com”, ​potencializando protagonismos e vida nos diferentes
encontros (BRASIL, 2010, p.7. Grifos nossos).

A partir da exposição dessas três dimensões que devem estar no bojo do


acolhimento preconizado pela PNH, ressaltamos o grau de importância que o
acolhimento apresenta no cuidado com as pessoas em situação de rua. Ao adotar o
acolhimento na sua dimensão ética, tal qual o exposto, estamos reconhecendo a
singularidade da pessoa que está na situação de rua. Em outras palavras, estamos
inclinados a perceber a pessoa acolhida para além da sua situação atual; inclinados
em compreender sua história de vida, as crenças e valores, o que permeia seu
imaginário a respeito da sua condição, bem como o horizonte de possibilidades que
ela mesma constrói e aquele que lhe está dado. Ao adotar o acolhimento na sua
dimensão estética, estamos assumindo uma atitude de estar com a pessoa em
situação de rua a partir da sua autodeterminação enquanto pessoa humana. Ou
seja, inclinados a fomentar práticas e ações dignificantes para que essas pessoas
possam resistir ao aviltamento constante e, assim, tentar ressignificar sua vida e seu
28

viver. Por fim, a dimensão política nos remete à importância do trabalho em rede, da
equipe multiprofissional e do contato e trocas estabelecidas entre os diversos atores
que praticam sinergicamente o acolhimento dessas pessoas. O acolhimento na
dimensão política nos remete ainda para a importância da atuação, articulação e
protagonismo delas próprias, seja individualmente ou através da nucleação em um
movimento que paute a garantia e o acesso aos seus direitos. Apresentadas essas
características gerais sobre o acolhimento, passamos a discutir então a relação
dessa prática com a escuta qualificada.
Além de ser uma prática que propicia o reconhecimento, dignificação e
potencialização do protagonismo da pessoa humana, o acolhimento pode ser
entendido como uma “ferramenta tecnológica de intervenção na ​qualificação de
escuta​, construção de vínculo, garantia do acesso com responsabilização e
resolutividade nos serviços” (BRASIL, 2010, p. 38. Grifo nosso). Em outras palavras,
uma das funções do acolhimento é o aprimoramento da escuta qualificada no
atendimento. Mas, se por um lado o acolhimento é apresentado na PNH como uma
ferramenta que atua de uma forma ativa em qualificar a escuta, por outro lado, é a
escuta qualificada que gera as condições para a efetivação do acolhimento nas
práticas de saúde, como pode ser concluído a partir do seguinte trecho da cartilha da
PNH: “é importante acentuar que o conceito de acolhimento se concretiza no
cotidiano das práticas de saúde por meio da escuta qualificada e da capacidade de
pactuação entre a demanda do usuário e a possibilidade de resposta do serviço”
(BRASIL, 2010, p. 27). Dessa forma, percebe-se um caráter dialético entre
acolhimento e escuta qualificada de acordo com o que é preconizado pela Política
Nacional de Humanização.
Assim, é importante destacar que consideramos que o exercício da escuta
qualificada acontece quando o processo de escutar se torna ativo, terapêutico,
capaz de produzir efeitos na pessoa que está sendo escutada. Nesta perspectiva, ao
realizarmos uma análise terminológica de como a escuta qualificada é apresentada
na literatura científica e nos documentos governamentais, um dos primeiros
aspectos que nos chama atenção é a inexistência de um único termo que represente
o que estamos chamando de ​escuta qualificada ​em nosso trabalho. Essa variedade
de termos já tinha sido constatada por Mesquita e Carvalho (2014) que escrevem:
29

“algumas expressões são utilizadas para nomear ​a escuta ​enquanto processo


terapêutico: escuta ativa, escuta integral ou atenta, ouvir reflexivamente, escuta
compreensiva, escutar ativamente e escuta terapêutica.” Observamos ainda a
existência de termos tais como: “escuta sensível” (BAHIA, 2016, p. 20) e “escuta
qualificada” (BRASIL, 2009b; 2010). Neste trabalho, a opção pelo termo escuta
qualificada aconteceu em virtude da manutenção de uma coerência conceitual já que
este é o termo mais frequentemente utilizado nos textos das políticas públicas no
Brasil.
Há de se observar ainda a multiplicidade tanto de formas de exercer como de
finalidades/efeitos da escuta qualificada (mesmo que apresente denominações
diferentes) nos mais variados textos. Os documentos da PNH, por exemplo,
apresentam uma gama de finalidades relacionadas à aplicação da escuta qualificada
com o propósito de produzir saúde nos usuários, trabalhadores e gestores do SUS.
Vejamos o que apresenta o documento intitulado “​O HumanizaSUS na atenção
básica”: ​“o encontro entre usuário e profissional, uma escuta qualificada, faz com
que diminua a distância entre o que é prescrito pelos profissionais e o que é
realizado pelos usuários em relação a dietas, uso de medicamentos, exercícios, etc
(BRASIL, 2009b. p. 51). Como é possível perceber, a escuta qualificada desponta a
partir do texto como ferramenta que possibilita uma maior adesão do usuário àquilo
que é prescrito pelo profissional de saúde. Essa é uma primeira finalidade
apresentada nos textos do PNH. Outra finalidade apresentada pelos documentos
relacionados às práticas de acolhimento recorre à escuta qualificada, ​escuta atenta
tal como está registrado no documento​, como uma ferramenta que facilita a
aceitação do encaminhamento/diagnóstico por parte do paciente:

Para cada usuário que procura um serviço, deve-se chegar a uma


conclusão sobre a conduta a ser tomada: admiti-lo naquele serviço ou
encaminhá-lo a outro mais adequado para ele; atendê-lo imediatamente, se
o caso é grave, ou marcar um outro horário, se pode esperar. Contudo, a
resposta que damos ao usuário, seja ela qual for, costuma ser bem recebida
quando se baseia numa escuta atenta e numa avaliação cuidadosa do seu
problema. (MINAS GERAIS, 2006, p. 40 ​apud​ MINAS GERAIS, 2015, p. 38)

Em outro trecho desse mesmo documento, é possível observar a escuta


qualificada apontada como um instrumento que leva o protagonismo e a autonomia
das pessoas que estão sendo escutadas. Tal como está escrito, o relato a seguir nos
30

apresenta uma intervenção pautada em uma abordagem de escuta e aproximação


do sujeito que avança nos limites da prática da proteção social. “​Trata-se de uma
escuta ativa e de um fazer que contribui para que o próprio sujeito encontre
alternativas para sua vida​, entre outros, de forma a ampliar seu acesso a direitos e
sua participação política” (MINAS GERAIS, 2015, p. 50. Grifo nosso). Vale registrar
que o trecho descrito nos remete para uma representação da escuta qualificada
muito próxima a da terceira dimensão do acolhimento, o político.
Ao analisarmos o livro “​Corra pro Abraço: o Encontro para o cuidado na rua”,
nos deparamos com dois enfoques diferentes dados à escuta qualificada, ou
sensível, como o próprio livro a denomina em uma das suas passagens. O primeiro
enfoque tratava a escuta como o caminho de aproximação do outro e, portanto, um
processo preliminar na construção de empatia, confiança e vínculo. Já no segundo
enfoque, a escuta qualificada é tratada como uma ferramenta “que promove reflexão
dos sujeitos sobre suas trajetórias de vida, estimulando-os e orientando-os a buscar
respostas para suas necessidades” (BAHIA, 2016, p.33; p. 70). Ou seja,
depreendemos mais duas finalidades da escuta qualificada a partir desse livro:
construir vínculo e confiança e promover a reflexão de quem é escutado sobre suas
próprias trajetórias de vida. De um modo geral, pode-se afirmar que a escuta
qualificada está envolta na dimensão ​do cuidado, do acolhimento e da sensibilidade.
Tendo apresentado algumas finalidades que a literatura aponta, passamos a
demonstrar algumas formas de exercício da escuta qualificada relatadas também
pela literatura.
De acordo com Raimundo (2011) citando ​Sclavi (2000), a escuta ativa
apresenta sete regras. São elas:

1) Não ter pressa de chegar às conclusões. As conclusões são a parte mais


efêmera da pesquisa; aquilo que você vê depende de seu ponto de vista. 2)
Para conseguir se dar conta de seu ponto de vista, você deve mudar de
ponto de vista. 3) Se você quer compreender o que o outro está dizendo,
deve assumir que ele tem razão e pedir-lhe para que o ajude a ver as coisas
e os eventos pela perspectiva dele. 4) As emoções são instrumentos de
conhecimento fundamentais, se soubermos compreender sua linguagem.
Um bom ouvinte é um explorador de mundos possíveis. 5) Os sinais mais
importantes são aqueles que se apresentam à consciência como
insignificantes e desconfortáveis, marginais, porque incongruentes com
suas próprias certezas; um bom ouvinte assimila prazerosamente os
paradoxos do pensamento e da comunicação. 6) Enfrentar o dissenso como
31

ocasião para exercitar-se em um campo que o apaixona: a gestão criativa


do conflito. 7) Para tornar-se especialista na arte de escutar, precisa-se
adotar uma metodologia humorística. Mas quando você aprende a escutar,
o humor apresenta-se naturalmente.

Essas regras da escuta elencadas por Sclavi (2000) e apresentadas por


Raimundo (2011) são bastante instrutivas para pensarmos algumas habilidades
significativas para o exercício da escuta qualificada, principalmente em se tratando
das pessoas em situação de rua. Tais como: respeitar o ritmo própria da pessoa que
está sendo escutada; praticar a alteridade na escuta; praticar a tolerância e ter a
humildade de manifestar as próprias limitações de compreensão referente ao que a
outra pessoa deseja comunicar; desenvolver o autoconhecimento das reações e
sensações que se manifestam corporalmente diante das mais variadas situações;
relacionar o pensamento e as ideias que se apresentam à consciência com a
situação vivenciada no momento da escuta; tornar-se resiliente e parcimonioso
diante de uma fala mais brusca ou até mesmo em tom de ameaça; desafiar-se a
tornar o desenvolvimento da escuta qualificada um processo que traga algum tipo de
satisfação pessoal.
Nesta mesma perspectiva, Fuente e Valcárcel (2014) citados por São Paulo
(2016) listam mais algumas sugestões vinculadas ao exercício da escuta mais
voltado para pessoas em situação de rua, são elas: ​produzir uma relação com
hierarquia plana​, dito de outra forma, agir no sentido da construção de uma relação
de horizontalidade entre profissional e paciente. Para que isso se efetive, os autores
sugerem que os profissionais se desafiem a colocar em suspenso valores,
julgamentos e verdades relacionadas à pessoa em atendimento. Isto é reforçado
pela segunda sugestão: ​ver a pessoa como alguém novo e único​, ou seja, deixar de
lado toda a informação que nos chega acerca da pessoa e escutar sua história sem
pré-julgamentos permite-nos identificar vulnerabilidades e potencialidades que
podem ser trabalhadas. ​Conciliar demandas e desejos ​é a terceira sugestão. Nas
palavras dos próprios autores (2014 citados por SÃO PAULO, 2016) ,“o profissional
tem como desafio ajudar a pessoa a encontrar sentidos para todas essas demandas
dentro de sua própria vida e ajustá-las a seus desejos”. A sugestão posterior é
respeitar o espaço físico e manter distância emocional. ​A partir dela, os autores
chamam a nossa atenção para a importância da comunicação verbal mas também
32

para a comunicação não verbal, gestos, se a pessoa escutada faz ou não contato
visual, a natureza do seu olhar, a forma de falar, a linguagem que utiliza. A última
sugestão apresentada por Fuente e Valcárcel (2014) citados por São Paulo (2016) é
respeitar o “timing”, ou seja, o tempo da pessoa, seu ritmo​. Esta última já comentada
anteriormente.
Dito isso e após analisar minuciosamente os textos do decreto nº 7.053/20092
(BRASIL, 2009d); das portarias nº 3.088/20113 (BRASIL, 2011a), nº 122/20114
(BRASIL, 2011b); das leis nº 12.947/20145(BAHIA, 2014) e nº 3.482/20146 (FEIRA
DE SANTANA, 2014); do Plano Operativo para Implementação de Ações em Saúde
da População em Situação de Rua 2012-2015 (BRASIL, 2012c); e da Política
Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua (BRASIL, 2008a),
constatamos que em nenhum desses documentos, relativos mais especificamente
às pessoas em situação de rua, foi encontrada a garantia do exercício, ou sequer,
uma referência ao tema da escuta qualificada. Por fim, gostaríamos de registrar que
a produção de conhecimento sobre a escuta qualificada não é prerrogativa somente
da área de saúde pública, como pode ter dado transparecer neste capítulo visto que
este é o nosso enfoque. Pelo contrário, um estudo de revisão bibliográfica sobre o
tema da escuta qualificada, realizado por Mesquita e Carvalho (2014), aponta
contribuições sobre a escuta qualificada em diferentes áreas do conhecimento, tais
como: Psicologia/Psicoterapia; Saúde Ocupacional; Educação em Enfermagem;
Tecnologias em Saúde; Serviço Social; Saúde Materno-Infantil. Além disso, alguns
artigos sobre a escuta qualificada selecionados para o estudo de Mesquita e
Carvalho (2014) foram produzidos no Reino Unido, Estados Unidos da América,
Japão, Suécia e no Canadá. Essa multinacionalidade de produções demonstra a
capilaridade e a importância que a escuta qualificada tem assumido nas mais

2
Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento. Este mais conhecido como CIAMP-Rua.
3
​Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS).
4
Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua.
5
​Institui a Política Estadual para a População em Situação de Rua e dá outras providências.
6
Institui a Política Municipal para a População em Situação de Rua, e dá outras providências.
33

diferentes áreas de produção do conhecimento bem como a abrangência que esse


tema tem ganhado em vários países do mundo.
Em síntese, neste a capítulo apresentamos a Política de Humanização do
SUS e suas práticas, dentre elas, demos especial destaque ao acolhimento.
Comentamos também que o acolhimento tem três dimensões (ética, estética e
política) e que a prática deste é considerada uma ferramenta de qualificação da
escuta. Em seguida, apontamos que a escuta qualificada também é instrumento de
efetivação do acolhimento, sendo construída, portanto, uma relação dialética entre
essas duas práticas. Ao falarmos, especificamente, sobre a escuta qualificada
demonstramos o seu exercício tem a finalidade de: facilitar a adesão da prescrição
do tratamento bem como a aceitação do encaminhamento/diagnóstico por parte do
usuário do SUS; gerar o protagonismo e a autonomia de quem é escutado; servir
como um caminho de aproximação entre profissional e usuário; gerar a reflexão no
sujeito sobre si mesmo, permitindo que ele obtenha melhores orientações como agir;
criar vínculos com os usuários. Além disso, comentamos que a escuta qualificada
apresenta três dimensões: acolhimento; cuidado e sensibilidade. Por fim, orientamos
que o exercício da escuta qualificada é melhor desenvolvido quando se respeita o
tempo da pessoa que fala, presta-se atenção a sua linguagem não verbal, aplica-se
a gestão criativa do conflito e tem-se a capacidade de desempenhar a empatia; além
de desconstruir a hierarquia existente entre profissional e paciente. No próximo
capítulo, apresentaremos o histórico do Movimento Nacional da População de Rua,
suas bandeiras de luta e diretrizes, bem como o histórico do seu núcleo em Feira de
Santana. Também falaremos sobre a forma de atuação do núcleo do Movimento em
Feira de Santana e, principalmente da sua atuação através do controle social.
34

4​ O MOVIMENTO DA POPULAÇÃO DE RUA E O CONTROLE SOCIAL

O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) publicou, em 2010,


uma cartilha intitulada “​Conhecer para Lutar: cartilha para formação política”​. Nessa
cartilha, o próprio Movimento destaca que “na história do mundo e do Brasil, as
mudanças sociais e as conquistas dos direitos somente ocorreram porque aqueles
que tiveram seus direitos violados uniram forças, organizaram estratégias de ação e
mobilizaram pessoas” (MNPR, 2010, p.24). A importância da mobilização e
aglutinação das pessoas em um agrupamento também é ressaltada por Gohn (2011)
ao afirmar que os movimentos são o coração e o pulsar da sociedade; expressam
energias de resistência ao velho que oprime ou de construção do novo que liberte;
canalizam energias sociais antes dispersas por meio de suas práticas em “fazeres
propositivos”; realizam diagnósticos sobre a realidade social, constroem propostas;
constroem ações coletivas que agem como resistência à exclusão e lutam pela
inclusão social; constituem e desenvolvem o chamado empowerment ​de atores da
sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos sociais para atuação em
rede; contribuem para organizar e conscientizar a sociedade; apresentam conjuntos
de demandas via práticas de pressão/mobilização; tematizam e redefinem a esfera
pública, realizam parcerias com outras entidades da sociedade civil e política; têm
grande poder de controle social e constroem modelos de inovações sociais.
Mais do que o exposto por essa autora, os movimentos sociais são
instrumentos fundamentais para a própria efetivação e consolidação do sistema de
democracia participativa. Através da participação em movimentos, sujeitos que
estavam anteriormente isolados, politicamente falando, quase sempre passam a
formar consciência coletiva sobre a importância de lutar pela efetivação tanto dos
seus próprios direitos como também dos seus pares. A partir disso, constroem e/ou
ajudam na construção de ações coletivas e propositivas que visam intervenções
diretas nos instrumentos de tomada de decisões políticas, consequentemente, na
forma como o poder é exercido pelos representantes eleitos democraticamente.
Dito isso, é importante falar que o foco deste capítulo é mostrar de que forma
o Movimento Nacional da População de Rua - Núcleo Feira de Santana
(MNPR-FSA) pratica o controle social nesta cidade. Para isso, apresentaremos o
35

que entendemos por movimento social, falaremos do histórico de luta social no


Brasil, apresentaremos a história do surgimento do Movimento Nacional da
População de Rua bem como a do seu Núcleo em Feira de Santana, discorreremos
sobre o controle social e suas diferentes formas, delimitando qual a nossa
compreensão no presente trabalho e, por fim, chegaremos ao cerne deste capítulo
que é a forma que o MNPR-FSA exerce o controle social nas instâncias
representativas da sociedade civil.
Apesar da grande importância acima descrita, Gohn (2000, p. 11) admite a
dificuldade em conceituar o que, de fato, se caracteriza como movimento social,
visto que, “um conjunto díspar de fenômenos sociais tem sido denominado como
movimentos sociais”. A fim de transpor essas dificuldades e prestando sua
contribuição para o tema, Gohn (2000, p. 11) afirma que existem dois modelos de
análise sobre os movimentos: um culturalista, que foca suas análises nos
movimentos sociais; e outro classista, que foca suas análises nas estruturas
econômicas, nas contradições sociais e conflitos de classes. A autora apresenta
uma terceira via de análise fruto da junção entre as duas anteriores. Este terceiro
modelo destaca a importância da cultura na construção da identidade de um
movimento, mas concebe os movimentos segundo um cenário pontuado por lutas,
conflitos e contradições, cuja origem está nos problemas da sociedade dividida em
classes, com interesses, visões, valores, ideologias e projetos de vida diferenciados.
Transposto o modelo de análise utilizado para conceber os movimentos sociais,
essa autora passa a apontar algumas diferenças que podem comprometer a
compreensão do que são os movimentos sociais. Gohn (2000, p. 12) explica que
mais que interesses comuns entre os membros de um coletivo, este grupo para ser
considerado um coletivo social precisa ter uma identidade que o caracteriza. A
autora considera essa identidade uma base na qual os membros de um movimento
criam e renovam seus repertórios de ações, ideias, crenças, valores. Uma segunda
diferença apresentada pela autora é a própria terminologia da palavra “movimento”.
Gohn (2000, p. 12) distingue dois sentidos dados a essa expressão para designar a
ação histórica de grupos sociais. Um sentido mais restrito e específico relacionado a
uma ação em particular, a exemplo de “​O Movimento de Pequenos Agricultores da
Bahia realizou um movimento de aceitar a contribuição dos demais coletivos na
36

construção das suas ações7”. ​O outro sentido é o dialético e dinâmico, inerente à


construção das ações. Neste sentido, é a assunção de que ​o grupo está em
movimento. ​A terceira diferença tratada pela autora é entre o próprio movimento
social e os modos de estruturação de suas ações coletivas. Dessa forma, uma
ocupação, um protesto, uma rebelião, o fomento à produção científica sobre os
temas caros ao movimento, uma disputa de eleição para tornar um membro do
coletivo conselheirista ou ter cadeira cativa em locais deliberativos nos fóruns e
assembléias são estratégias de ação do movimento e não o movimento em si. Por
fim, Gohn (2000, p. 12) defende que os espaços nos quais ocorre a ação coletiva
dos movimentos são não-institucionalizados e situam-se na esfera pública
não-governamental ou não-estatal. Explicitada a importância dos coletivos sociais
bem como realizada a diferenciação que a palavra “movimento” enseja quando
relacionada ao campo das lutas coletivas, entendemos que os

movimentos sociais são ações coletivas de caráter sociopolítico,


construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas
sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força
social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios
criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e
disputas. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que
cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em
comum. Esta identidade decorre da força do princípio da solidariedade e é
construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos
compartilhados pelo grupo (GOHN, 2000, p. 13).

A aglutinação desses valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo e


seus indivíduos se torna a base para a formação da chamada cultura política. A
análise histórica e/ou de conjuntura de determinada cultura política na qual certo
movimento social, ora está imerso, ora contribui para sua construção/modificação, é
de fundamental importância para uma compreensão mais abrangente das bases nas
quais se assentam as construções das ações coletivas. Nesse sentido, para Bobbio
et al. (1991, p.306 apud GOHN, 2000, p. 32) cultura política é "o conjunto de
atitudes, normas e crenças mais ou menos partilhadas pelos membros de uma
determinada unidade social". Por nossa parte, a análise da cultura política ganha
ainda mais importância quando Gohn (2000, p. 36) afirma que essa é a chave para

7
Frase criada meramente a título de exemplificação.
37

compreender como se desenvolve a ação política dos indivíduos dentro dos grupos
sociais. Neste sentido, esta autora ainda lembra que isso possibilita que a ênfase da
explicação não esteja pautada pelas atitudes e opiniões dos indivíduos isolados,
mas sim, para os indivíduos como membros participantes de grupos, de coletivos
sociais com uma identidade demarcada. Mais do que isso,
falar de cultura política é tratar do comportamento de indivíduos nas ações
coletivas, é tratar dos conhecimentos que os indivíduos têm a respeito de si
próprios e de seu contexto, é tratar dos símbolos e da linguagem utilizados,
bem como das principais correntes de pensamento existentes. Mas é muito
complicado falar em cultura política de forma isolada do contexto histórico e
de outros conceitos de apoio. Isso porque cada época histórica engendra
determinada cultura política, segundo os valores e crenças que são
resgatados ou construídos, num universo dos temas e problemas com os
quais homens e mulheres defrontam-se naquele momento histórico ​(GOHN,
2000, p. 32).

Com base no exposto até então, faremos um breve histórico da atuação dos
movimentos sociais no Brasil, concentrando na exposição um pouco antes do
período que marcou a redemocratização do país nos anos 80 do século XX.
Cabe registrar que, ao longo da história do Brasil, diversos grupos sociais
organizaram lutas de resistência contra algum tipo de arbítrio; fosse dos
governantes, fosse da elite econômica deste país. De fato, Gohn (2000, p.15) relata
que “desde os tempos do Brasil Colônia, a sociedade brasileira é pontilhada de lutas
e movimentos sociais contra a dominação, a exploração econômica e, mais
recentemente, contra a exclusão social.” Para fundamentar seu argumento, ela
apresenta diversas lutas de resistência ao longo da história brasileira, tais como:
Zumbi dos Palmares, Inconfidência Mineira, Revolução Pernambucana, Balaiada,
Revolta dos Malês, Canudos, dentre outros. Feito esse registro, passamos agora a
discorrer mais especificamente sobre as décadas de 70, 80 e 90, para só então
adentrarmos no surgimento do Movimento Nacional da População de Rua na
primeira década do novo milênio.
Nesta perspectiva, Gohn (1997a, p. 281) relata que no final dos anos 70 era
amplamente compartilhada a noção de que as pessoas que se referiam aos novos
movimentos sociais urbanos estavam aludindo àqueles ligados às práticas da Igreja
Católica, principalmente às daquela ala vinculada à Teologia da Libertação. Nesse
sentido, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) tiveram um papel preponderante
38

para a organização e formação política de militantes. Nesse período, o papel dessas


entidades estava para além da formação dessas pessoas; de fato, “as CEBs eram a
porta de entrada nos movimentos sociais urbanos de luta por creches, transportes,
postos de saúde, moradia” (GOHN, 2011, p. 347). Gohn (2007, p. 70) também
ensina que é no final da década de 70 que o conceito de “sociedade civil” passa a
se consolidar como o sinônimo de participação e organização da população do país
contra o regime militar. Como resultado da mobilização desses agentes da
sociedade civil, Gohn (1997a, p. 379) destaca alguns movimentos que surgiram na
década de 70 e estiveram engajados nas lutas pela redemocratização do país, tais
como: Movimento pela Anistia (1977); Custo de Vida - Carestia (1974); CEBs -
Comunidade Eclesiais de Base da Igreja Católica: (1972); CPT - Comissão Pastoral
da Terra (1974); e o MST - Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (1979), esses
dois últimos com atuação maior na área rural.
Com a chegada dos anos 80, as lutas passam a gravitar em torno do eixo de
mudanças político-sociais, de ordem estrutural (GOHN, 1995, p. 205). Nesse
cenário, começam a surgir movimentos ligados à luta pela moradia, movimento de
desempregados e um dos mais expressivos e de maior impacto na luta pela
redemocratização do país que foi o movimento Diretas Já (1984). Segundo Gohn
(1997a, p. 285), esse movimento “surgiu no momento de pico de um ciclo de
protestos contra o regime militar e a política excludente de desemprego, e demarcou
o início de um novo ciclo de protestos, então centrado na questão da Constituinte”.
Além desses, cabe destacar o surgimento da Central Única dos Trabalhadores
(1983); o Movimento Nacional Pró-Constituinte (1985) e o MNMMR - Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua; este, apesar de não partir da organização
deliberada dos seus atores, apresenta-se como um dos primeiros movimentos a
chamar atenção para cidadãos em situação de rua. Sobre esse movimento, Gohn
(1995, pp. 134-135) escreve:

Criado em 1985 a partir de uma rede composta por pessoas e instituições


engajadas em programas alternativos de atendimento a meninos e meninas
de rua. Considerado como o primeiro interlocutor de âmbito nacional sobre
a problemática, o MNMMR surgiu com um propósito muito claro: lutar por
direitos de cidadania para crianças e adolescentes. Começou a denunciar a
violência institucionalizada, provocada pela estrutura social caracterizada na
omissão completa por parte do Estado em relação às políticas sociais
39

básicas. Enfatizou, porém, a violência exercida pelos aparatos de repressão


e controle do Estado: policiais e delegacias de polícia.

Se o mote das lutas sociais dos anos 80 era a conquista de políticas sociais,
Gohn (1995, p. 205) revela que os anos 90 podem ser denominados como a década
das lutas cívicas pela cidadania no Brasil. De fato, o modelo referencial dessa
década enfatizava os valores da ética e da moral. Os movimentos sociais e ações
sindicais com recortes político-partidários explícitos passaram a perder credibilidade.
Na verdade, “a sociedade civil passou a desacreditar da política, dos políticos e das
ações do Estado em geral” (GOHN, 1995, p. 206). Nesse cenário sociopolítico,
muitos movimentos sociais populares se desarticularam, em grande parte, pela
perda do apoio que tiveram nos 70 e 80 da Igreja Católica, em sua ala da Teologia
da Libertação. Segundo Gohn (1997a, p. 314), a Igreja reviu nos anos 90 “suas
doutrinas e práticas sociais, alterando substancialmente os rumos e diretrizes de
suas ações no que se refere à participação popular na política do país”. Desse
modo, os conflitos e contradições inerentes a qualquer coletivo se agravaram na
década de 90 e, nos movimentos sociais acentuou-se a crise interna de militância,
de mobilização, de participação cotidiana nas atividades organizadas e de
credibilidade nas políticas públicas (GOHN, 1997a, p. 304).
Destaque-se, entretanto, que nos anos 90 os movimentos que
permaneceram no cenário, ou que foram criados, tornaram-se qualificados.
A quantidade de reuniões, assembléias, atos públicos e o próprio número
de militantes foi substituída por ações qualitativamente mais estruturadas.
Antes os movimentos utilizavam sedes de sindicatos e a própria
infra-estrutura dos partidos políticos. Nos anos 90 - por meio das ONGs -
passaram a ter infra-estruturas próprias, a se utilizar mais de recursos
tecnológicos como computadores e sites da Internet (em alguns casos). As
ações sendo menos de pressão e mais de organização da população,
voltadas para algum programa efetivo, necessitam de suportes materiais
(GOHN, 1997a, p. 315).

Um dos fatos mais marcantes da década de 90 em se tratando de atuação e


construção de ações que tinham o objetivo de conquistar melhorias sociais foi a
expansão numérica e de atividade das Organizações Não-Governamentais (ONGs8).
Segundo Gohn (1997b, p. 60), “o termo ONG refere-se a um tipo peculiar de
organização da sociedade. Trata-se de um agrupamento de pessoas, organização

8
A expressão ONG foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), na década de 40, para
designar entidades não-oficiais que recebiam ajuda financeira de órgãos públicos para executar
projetos de interesse social, dentro de um filosofia de trabalho denominada “desenvolvimento de
comunidade” (GOHN, 1997b, p. 54)
40

sob a forma de uma instituição da sociedade civil, que se declara sem fins-lucrativos,
com o objetivo de lutar e/ou/ apoiar causas coletivas”. Formadas prioritariamente por
setores da classe média, a atuação das ONGs se dava nesta década em torno de
temas como ética e moralidade; meio ambiente, saúde; lazer; deficiência física e
mental; e discussões relacionadas ao vírus da Aids. Dentre os movimentos e ONGS
que surgiram na década de 90, destacamos: Ética na Política - movimento nacional
contra corrupção (1992); Caras-Pintadas - movimento estudantil (1992); Movimento
Ação da Cidadania, contra a Fome e pela Vida (1993); assim como a chegada do
GreenPeace no Brasil, em 92, mesmo ano em que o país sediou a primeira
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
também conhecida como Eco-92. Destacamos, além disso, que é no último ano da
década de 90 que se articula o Movimento Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR). Este é um importante movimento para história do surgimento
do Movimento Nacional da População de Rua uma vez que o MNCR pode ser
considerado a raiz embrionária do MNPR. Partimos então para uma apresentação
mais detalhada do histórico do Movimento Nacional da População de Rua bem como
suas bandeiras de luta e as diretrizes dessa organização.
No entanto, antes mesmo de darmos o próximo passo, é importante registrar
a dificuldade em encontrar materiais teóricos, trabalhos científicos ou até mesmo
textos escritos com autor, ano e demais informações que possam constar para o
registro bibliográfico com maior exatidão sobre a produção de textos. Gohn (1997a,
p. 274) corrobora com essa percepção ao afirmar que “a maioria dos estudos foi
realizada nos anos 80; nos anos 90, houve um declínio do interesse pelo estudo dos
movimentos em geral, e pelos populares em especial, assim como declinou a
preocupação com seu registro histórico contemporâneo, desde que o resgate
histórico do passado das lutas e movimentos sempre foi uma área de pouca atenção
dos pesquisadores.” Ademais, a maioria das fontes de informações são os próprios
militantes que constroem as ações coletivas cotidianamente sem que
necessariamente transformem cada ação, mobilização ou conquista do Movimento
em produção teórica ou documento. Aqui nos deparamos com um impasse: não
produzir pela escassez ou falta de confiabilidade das fontes escritas “não
publicadas” ou conceder a credibilidade devida às informações apresentadas
41

oralmente pelo membros do Movimento e aliá-las ao conhecimento encontrado nos


outros materiais teóricos aos quais tivemos acesso. Para nós, em um trabalho sobre
a importância da escuta qualificada, nos parece mais coerente a segunda opção.
Dito isso, agora sim, passemos à história do Movimento Nacional da População de
Rua.
Segundo o MNPR (2010, p. 28), desde a década de 1960, já era possível se
observar iniciativas de organização das pessoas em situação de rua em algumas
cidades brasileiras. Essas organizações juntamente a outras pessoas que também
trabalhavam na catação de material reciclável formaram as primeiras associações e
cooperativas de catadores. A articulação dessas associações resultou no Movimento
Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Segundo o site do MNCR9,
este Movimento surgiu a partir do 1º Encontro Nacional de Catadores de Papel em
1999, no entanto, o marco para sua fundação é o 1º Congresso Nacional dos
Catadores(as) de Materiais Recicláveis em Brasília, que aconteceu no dias 4, 5 e 6
de junho de 2001. Neste Congresso já é notória a presença massiva das pessoas
em situação de rua através da 1ª Marcha Nacional de População de Rua que
aconteceu no dia 7 de junho de 2001 e do apoio do Fórum Nacional de Estudos
sobre a População de Rua. De fato, a Carta de Brasília10 apresenta-se como um
marco reivindicatório inicial dos direitos dos cidadãos em situação de rua. Essa
Carta (MNCR, 2001) apresenta sete reivindicações específicas da população de rua
e estão dispostas na seção três denominada “​Em vista da cidadania dos
Moradores(as) de Rua​”​. É bastante interessante notar que a primeira reivindicação
apresentada é o “re​conhecimento​, ​por parte dos governos, em todos os níveis e
instâncias, da existência da População de Rua​, incluindo-a no Censo do IBGE e
garantindo em lei a criação de políticas específicas de atendimento às pessoas que
vivem e trabalham nas ruas” ​(MNCR, 2001. Grifo nosso)​. Ou seja, não é nossa
intenção sermos redundante, no entanto, é muito relevante destacar o fato de que, à
época, a principal reivindicação por parte dos cidadãos em situação de rua é o
reconhecimento da sua existência por parte dos governos. ​Dentre as outras

9
MNCR.​História do MNCR​, 2011. Disponível em: ​http://www.mncr.org.br/​sobre-o-mncr/sua-historia.
Acessado em 30 de Novembro de 2017.
10
MNCR. ​Princípios e objetivos do MNCR, ​2008. Disponível em: ​http://www.mncr.org.br/
sobre-o-mncr/principios-e-objetivos/carta-de-brasilia​. Acessado em 30 de Novembro de 2017.
42

reivindicações estão a integração da população de rua na política habitacional; o


acesso a direitos trabalhistas; a promoção de políticas públicas de incentivo às
associações e cooperativas para e com as pessoas em situação de rua; a ​garantia
de acesso à educação em creches e escolas; a inclusão das pessoas em situação
de rua no Plano Nacional de Qualificação Profissional; e a garantia de atendimento
no Sistema Único de Saúde às pessoas em situação de rua.
Cinco anos depois, em 2004, acontece o episódio no qual 7 pessoas em
situação de rua foram mortas a pauladas e outras oito ficaram gravemente feridas
em diferentes pontos da capital de São Paulo. Este lamentável episódio ficou
conhecido como o “Massacre da Sé” (em referência à Praça da Sé em São Paulo
onde a maioria das pessoas violentadas dormiam). O caso ganhou repercussão
nacional, inclusive, com oferta do então Ministro da Justiça de auxílio da Polícia
11
Federal para investigar o ocorrido . À época, o então presidente da Ordem dos
Advogados de São Paulo denominou o Massacre da Sé de “marco da barbárie”
(FOLHA DE SÃO PAULO, 2004). Ainda hoje é possível ler uma série de
reportagens, disponíveis no site virtual do Jornal Folha de São Paulo Online12 13 14 15
16 17
que relatam a horrenda atrocidade cometida entre os dias 19 a 22 de agosto de
2004. A partir desse episódio, as movimentações para a articulação e formação de
um movimento nacional que pautasse as demandas e reivindicações, inclusive de

11
FOLHA ONLINE. ​Ministro oferece auxílio da PF para esclarecer chacina em SP​, 2004.​.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98478.shtml?loggedpaywall#.
Acessado em 30 de Novembro de 2017.
12
FOLHA ONLINE. ​Criminosos matam sete moradores de rua em SP​, 2004. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2004/massacreemsp/ . Acessado em 30 de Novembro de
2017.
13
​FOLHA ONLINE. ​Moradores de rua agredidos eram conhecidos na área​. 2004. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98443.shtml?loggedpaywall. Acessado em 30 de
Novembro de 2017.
14
FOLHA ONLINE. ​Morre 4º morador de rua agredido em São Paulo. ​2004. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98445.shtml?loggedpaywall. Acessado em 30 de
Novembro de 2017.
15
FOLHA ONLINE. ​Entidades marcam missa para moradores de rua e cobram apuração​. ​2004.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98446.shtml?loggedpaywall.
Acessado em 30 de Novembro de 2017.
16
FOLHA ONLINE. ​Governo federal monitora agressão contra moradores de rua em SP​. 2004.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98466.shtml?loggedpaywall.
Acessado em 30 de Novembro de 2017.
17
FOLHA ONLINE. ​Sobe para seis o número de mortos em ataques a moradores de rua​. ​2004.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98530.shtml. Acessado em 30 de
Novembro de 2017.
43

segurança nas ruas, dessa população ganharam mais força. A partir de então,
grupos da população de rua em São Paulo e Belo Horizonte começaram a se
mobilizar em prol da construção de um movimento mais unificado que representasse
as pessoas em situação de rua em âmbito nacional. Finalmente,
em setembro de 2005 novamente a história da rua e dos catadores se
cruzaram. Convidadas a participar do 4º Festival Lixo e Cidadania, as
pessoas em situação de rua de Belo Horizonte mobilizaram outros
companheiros do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Cuiabá. Foi neste
encontro que houve o lançamento do Movimento Nacional da População de
Rua (MNPR), como expressão dessa participação organizada em várias
cidades brasileiras. Em 2008, um representante do MNPR entrou para o
Conselho Nacional de Assistência Social, sendo o primeiro representante de
movimento popular eleito. (MNPR, 2010. p. 29).

Dessa forma, 2005 é o ano que, de fato, marca o surgimento do Movimento


Nacional da População de Rua. A partir de então, o MNPR se torna autônomo em
relação ao MNCR e passa a definir seus próprios princípios e bandeiras de lutas.
Como princípios o MNPR (2010, p. 30) apresenta a democracia; a valorização do
coletivo; a solidariedade; a ética; o trabalho de base. A cartilha ainda destaca que as
bandeiras de luta do MNPR são o resgate da cidadania por meio de trabalho digno,
os salários suficientes para o sustento; a moradia digna; e o atendimento à saúde
(MNPR, 2010, p. 30). Desde então o Movimento Nacional vem acumulando
conquistas tais como,
a Pesquisa Nacional de contagem da população em situação de rua,
realizada entre agosto de 2007 e março de 2008. O Decreto Presidencial no
7.053, de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em
Situação de Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e
Monitoramento da Política Nacional (CIAMP-Rua). O Projeto de
Capacitação e Fortalecimento Institucional da População em Situação de
Rua, parceria entre o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, UNESCO e Instituto Pólis, em 2009/2010, que concretizou ações de
capacitação de lideranças, seminários e fóruns. A estruturação do MNPR
em várias cidades brasileiras e fortalecimento na capacidade de
mobilização. A ocupação de espaços em importantes instâncias de
participação e deliberação política, como Conferências e Conselhos da
Saúde e Assistência Social (MNPR, 2010, p. 30).

A estruturação e o fortalecimento do Movimento Nacional da População de


Rua - Núcleo Feira de Santana (MNRP-FSA) faz parte do rol das conquistas
descritas acima. Este núcleo do Movimento Nacional surgiu em março de 2011 a
partir de uma intervenção na Praça da Matriz na referida cidade. Seu principal
objetivo é fortalecer a busca de direitos junto a esses cidadãos e cidadãs em
44

situação de rua. A atuação do MNPR-FSA se dá através de três frentes. A primeira é


o controle social sobre o qual falaremos mais detidamente após uma melhor
apresentação desse conceito. A segunda frente de atuação é a formação interna e
externa de pessoas ligadas ao Movimento através da educação popular. A formação
interna acontece através dos diálogos presencialmente entre os membros do
Movimento e as pessoas que estão em situação de rua; já a formação externa tem
como alvo gestores públicos, professores, estudantes e/ou cidadã(o)s simpatizantes
do Movimento que se disponibilizam para aprender com seus membros.
Quanto à aprendizagem no interior de um movimento social, Gohn (2011, pp.
352-353) destaca onze diferentes formas. Nós listamos, a seguir, essas formas e
comentamos algumas: ​aprendizagem teórica: relacionada a conceitos-chave que
mobilizam as forças sociais tais como (controle social, autonomia); ​aprendizagem
técnica instrumental: compreensão do funcionamento e dos instrumentos e órgãos
do Estado; ​aprendizagem política: relacionada ao reconhecimento de si como sujeito
portador de direitos, as políticas públicas e suas formas de estruturação;
aprendizagem cultural​: ligada à cultura política de grupo, sua forma de atuação e
bandeiras de lutas; ​aprendizagem linguística: ​incorporação dos signos linguísticos
próprios dos movimentos como um todo, e mais especificamente, ao movimento que
está nucleado; ​aprendizagem sobre a economia; aprendizagem simbólica​;
aprendizagem social​: como, o que e quando falar em público, em outras palavras,
treinamento de assertividade na fala para alcançar os objetivos almejados para
aquele espaço de participação e/ou reivindicação; aprendizagem cognitiva;
aprendizagem reflexiva: ​relacionado ao ​desenvolvimento capacidade de
autorreflexão sobre suas próprias práticas, e como torná-las geradoras de saberes
para as demais pessoas; e, por fim, a ​aprendizagem ética: observância de valores
fundamentais para a convivência em grupo tais como solidariedade,
companheirismo, cooperação, corresponsabilidade. Por último, mas não menos
importante, a terceira frente de atuação do Movimento é através do fomento e
contribuição ativa para produções científicas que tenham como tema as pessoas em
situação de rua (CERQUEIRA18, 2017. Comunicação pessoal). É fundamental

18
Informações obtidas através de comunicação pessoal realizada por Edcarlos Venâncio Cerqueira
no ano de 2017. Edcarlos é uma das pessoas que ajudou a implantar o Movimento Nacional da
45

admitir que sem essa terceira forma de atuação do MNPR-FSA, o presente trabalho
não teria se concretizado. Realizada a exposição do histórico dos movimentos
sociais no Brasil, do surgimento do MNPR bem como do seu núcleo em Feira de
Santana, passamos agora a tratar sobre a conceituação de controle social, realizar a
diferenciação entre as duas formas de entendimento desse conceito, para só então,
falarmos do controle social exercido pelo MNPR-FSA.
A Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, pode ser considerada
um marco para o sistema democrático brasileiro, principalmente por outorgar o
direito de todo cidadão e toda cidadã participar diretamente da construção,
implementação, acompanhamento, avaliação e fiscalização de políticas públicas,
bem como dos orçamentos públicos. De fato, em seu artigo 1º, parágrafo único, a
Carta Magna defende que todo poder emana do povo e esse pode ser exercido por
meio de representação ou de forma direta. Nesse sentido, a Constituição brasileira
(BRASIL, 2012a) ampara duas formas diferentes (nem por isso excludentes) de
exercício da democracia: a representativa e a direta. Macedo (2008, p. 183) explica
que a democracia representativa (indireta ou deliberativa) é aquela na qual o povo
elege, por um um determinado período de tempo e com determinada frequência,
seus representantes para tomar as decisões políticas. Quanto à democracia direta
ou participativa, Macedo (2008, p. 183), citando José Afonso da Silva (2000), retrata
esse sistema de governo como aquele no qual “o povo exerce, por si, os poderes
governamentais, fazendo leis, administrando e julgando.” Em última análise, Carrion
(2001), citado por Macedo (2008, p.187), explica que “a proposta da democracia
participativa é no sentido de incorporar na prática democrática novos e modernos
instrumentos de controle e de participação no poder, com ênfase nos mecanismos
de controle social”.
Há de se registrar, no entanto, que diversos autores e autoras (ALESSIO,
2016; PEREIRA, 2008; SILVA, FERREIRA, BARROS, 2008) ​chamam a atenção
para a bivalência que esse termo pode ensejar: se por um lado, o controle social é
entendido como o controle da sociedade sobre as ações do Estado, por outro, ele

População de Rua na cidade de Feira de Santana, Bahia.


46

pode significar o controle do Estado sobre a própria sociedade. De nossa parte, o


controle social​ é entendido, para fins do presente trabalho, como
uma forma de compartilhamento de poder de decisão entre Estado e
sociedade sobre as políticas [...]. Trata-se da capacidade que a sociedade
tem de intervir nas políticas públicas. Esta intervenção ocorre quando a
sociedade interage com o Estado na definição de prioridades e na
elaboração dos planos de ação do município, do estado ou do governo
federal (SERAFIM e TEIXEIRA, 2008).

Ainda sobre o conceito de controle social, Correia (2003, p. 71) especifica que
esse “envolve a capacidade que os movimentos sociais organizados na sociedade
civil têm de interferir na gestão pública, orientando as ações do Estado e os gastos
estatais na direção dos interesses da maioria da população”. Para que o exercício do
controle social fosse efetivado pela sociedade civil, incluindo as pessoas ligadas aos
movimentos sociais, foram criados e/ou aprimorados vários canais de diálogos,
espaços deliberativos e instrumentos de participação popular, tais como: os fóruns,
as conferências e os conselhos nos mais diferentes níveis de governos (municipal,
estadual e nacional).
Nessa perspectiva, podemos citar o Fórum Nacional de Educação, instituído
em 2014 com o propósito de participar do processo de concepção, implementação e
avaliação da Política Nacional de Educação; e o Fórum Social Mundial que surgiu
em 2001, em Porto Alegre, como “​um espaço de encontro aberto para o pensamento
reflexivo, debate democrático de idéias, formulação de propostas, troca de
experiências e interligação para ações efetivas, por grupos e movimentos da
sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e à dominação do mundo pelo
capital e qualquer forma de imperialismo”19 (​WORLD SOCIAL FORUM
INTERNATIONAL COUNCIL, 2001)​.
Faria (2012, p. 249) apresenta as conferências de políticas públicas como
espaços institucionais de participação e deliberação acerca de uma determinada
política pública. Faria (2012, p. 260) ainda explicita que as primeiras conferências
surgiram no governo de Getúlio Vargas pela lei 378/1937. Segundo o artigo 90 desta
lei, as conferências nacionais de Educação e de Saúde foram criadas a fim de
“facilitar ao Governo Federal o conhecimento das actividades concernentes à

19
WORLD SOCIAL FORUM INTERNATIONAL COUNCIL. ​About the World Social Forum, ​2001.
Disponível em: https://fsm2016.org/en/sinformer/a-propos-du-forum-social-mondial/. Acessado em: 16
de dez. de 2017 (Tradução nossa).
47

educação e à saúde, realizadas em todo o Paiz, e a orientá-lo na execução dos


serviços locaes de educação e de saúde, bem como na concessão do auxílio e da
subvenção federaes”20(BRASIL, 1937*)​. Quanto ao número de ocorrências desses
espaços,
[…]desde sua criação até 2010, já foram realizadas 102 conferências nacionais e
centenas de milhares de conferências intermediárias, nas esferas municipais e
estaduais. Do total de encontros nacionais, 9 aconteceram entre 1941 e 1988 – 8
delas referentes ao tema saúde e 1 de Ciência e Tecnologia; 27 foram organizados
entre 1988 e 2002 e debateram políticas de Saúde, Assistência Social, Direitos
Humanos, Direitos da Criança e do Adolescente e Segurança Alimentar e
Nutricional; e as outras 67 Conferências, que correspondem a 66% do total,
ocorreram entre 2003 e 2010, nos governos Lula ​(FARIA, 2012, p. 260)​.

Dentre as importantes conferências em âmbito nacional, gostaríamos de


apresentar algumas informações sobre a Conferência Nacional de Saúde. A 1ª
Conferência Nacional de Saúde aconteceu em 1941 e teve como tema “​Situação
sanitária e assistencial dos estados” ​(BRASIL, 2013b, p. 22). Apesar de já ter o
propósito de funcionar como um espaço que visava dar conhecimento ao Governo
Federal quanto à qualidade da execução dos serviços locais de saúde, nessa época
só participavam autoridades administrativas que representavam o Ministério da
Saúde e os governos dos Estados, do Distrito Federal e do, naquele tempo
chamado, “Território da Acre”21(BRASIL, 1937*). Nesse sentido, o marco da
participação advém com a 8ª Conferência Nacional de Saúde que aconteceu em
1986 e teve como tema “Saúde como direito, reformulação do Sistema Nacional de
Saúde e financiamento do setor”. De fato, foi nessa Conferência que “pela primeira
vez na história do país, a sociedade civil foi convocada e participou, de forma ampla,
de um debate sobre políticas e programas de governo. Também pela primeira vez,
obteve-se propostas respaldadas social e politicamente” ​(BRASIL, 2013b, p. 27).
Sua importância é tamanha que a 8ª Conferência ganha o nome alternativo de
“Constituinte da Saúde”. Quatro anos depois, em 1990, é instituída a lei número
8.142 que dispõe propriamente sobre a participação da comunidade na gestão do

20
BRASIL. Lei nº 378, de 13 de jan. de 1937. 1937 (*ano da publicação original). Reproduzida em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-378-13-janeiro-1937-398059-publicacaooriginal-
1-pl.html. Acessado em 17 de dezembro de 2017. Optamos por transcrever o texto tal como a
publicação original da legislação informatizada apresentada no site da Câmara Federal dos
Deputados.
21
Parágrafo Único da Lei supracitada encontrada na mesma fonte da nota anterior. Na lei está
grafado dessa forma “Território da Acre”.
48

SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área


de saúde. No 1º inciso, do 1º artigo dessa lei, ficou estabelecido que a Conferência
de Saúde vai se reunir a cada quatro anos com a representação de vários
segmentos sociais para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a
formulação da política de saúde22 (BRASIL, 1990). Com isso, a 9ª Conferência
Nacional de Saúde, ocorrida em 1992, já se inscreve dentro do disposto pela lei
apresentada. Cabe falar ainda que a última Conferência Nacional de Saúde, à época
que o presente trabalho foi escrito, foi a 15ª que aconteceu no ano de 2015 e teve
como tema “​Saúde pública de qualidade para cuidar bem das pessoas: direito do
povo brasileiro”​.
Além dos fóruns e das conferências, existem também os conselhos, que
representam espaços de diálogos e debates com caráter representativo, que visam a
participação da população. Assim como as conferências, o primeiro conselho foi
criado no Brasil em 1937 durante o governo de Getúlio Vargas e tinha o objetivo de
tornar mais legítimas as instituições do Estado. Similarmente à história das
conferências, o primeiro Conselho Nacional de Saúde era “composto exclusivamente
por conselheiros de perfil técnico ou membros da elite, indicados pelo ministro da
área, com a finalidade específica de debater questões internas do Departamento
Nacional de Saúde”(BRASIL, 2013b, p.16). Por seu turno, mais uma vez, a lei 8.142
de 1990 se apresenta como um marco da regulamentação mais democrática e
representativa, dessa vez, dos Conselhos de Saúde. Está escrito no 2º inciso do
artigo 1º que o Conselho de Saúde é um órgão colegiado permanente e deliberativo
“composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de
saúde e usuários que atuam na formulação de estratégias e no controle da execução
da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos
econômicos”(BRASIL, 1990).
Após realizada essa discussão sobre o controle social e os espaços que a
sociedade civil e os movimentos recorrem para exercê-lo, apresentamos agora,
alguns espaços que o MNPR-FSA utiliza para debater questões relacionadas à

22
BRASIL, Lei nº 8.142, de 28 de dez. de 1990. ​Dispõe sobre a participação da comunidade na
gestão do Sistema Único de Saúde (SUS} e sobre as transferências intergovernamentais de
recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. ​Brasília-DF. Disponível em:
http://conselho.saude.gov.br/legislacao/lei8142_281290.htm. Acessado em 17 de dezembro de 2017.
49

população de rua de Feira de Santana. Dessa forma, a primeira frente de atuação do


Movimento que citamos acima se dá através da ocupação de cadeiras nos
Conselhos, Fóruns e Conferências existentes na cidade. Ou seja, o Movimento
ocupa cadeira no Conselho Municipal de Assistência Social, no Conselho Municipal
de Saúde, no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, no
Conselho Municipal do Idoso, no Conselho Municipal da Mulher e no Conselho
Municipal Antidrogas; no Fórum de Saúde; e nas Conferências de Assistência
Social, de Segurança Alimentar e do Idoso (CERQUEIRA, 201723).
Por fim, é importante destacar que a maior parte das atuações do Movimento
em Feira de Santana contam com o apoio de outras entidades e organizações que
teceram, em algum momento da história do Movimento nesta cidade, parcerias de
apoio às bandeiras de luta do MNPR-FSA. Isso nos remete à explanação realizada
por Gohn (1997, p. 252) quando diz:
Os movimentos aglutinam bases demandatárias, assessores e lideranças e
têm ​estreitas relações com uma série de outras entidades sócio políticas
como partidos e facções políticas ― legais ou clandestinas —, ​igrejas​,
sindicatos, ONGs ​— nacionais e internacionais — , setores da mídia e
atores sociais formadores de opinião pública, universidades​, parlamentares
municipais, estaduais e federais; ​setores da administração governamental​; e
até pequenos e médios empresários etc. , articulados em redes sociais com
interesses comuns (Grifos nossos).

De fato, a rede de articulação social do Movimento em Feira de Santana


conta com a parceria e o apoio da Defensoria Pública24, da Associação Cristã
Nacional25, do Grupo Sou Ubuntu26, da Cáritas Arquidiocesana de Feira de Santana27

23
Comunicação pessoal de Edcarlos Venâncio Cerqueira, 2017.
24
A Defensoria Pública garante aos seus assistidos a representação perante a Justiça, por meio dos
defensores públicos, que poderão, conforme o caso, propor ações, acionar acusados, fazer defesas,
atuar junto às unidades prisionais e ao consumidor, dar orientações, fazer acordos, conciliações e
termos de conduta, entre outras medidas. A Defensoria pode prestar seus serviços de assistência
jurídica às associações de bairro e organizações, desde que estas comprovem não terem condições
de pagar as despesas do processo, propondo ações civis públicas. (DEFENSORIA PÚBLICA BAHIA,
?). Informações disponíveis em: http://defensoria.ba.def.br/seus-direitos/. Acessado em: 17 de
dezembro de 2017.
25
​A Associação Cristã Nacional é uma instituição sem fins lucrativos que tem objetivo a realização de
projetos sociais. Seu objetivo é promover cidadania a partir de tecnologias sociais, como também,
proporcionar serviços assistenciais às pessoas em vulnerabilidade. Informações prestadas pela
própria Associação na rede social ​Facebook. ​Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/associacaocristanacional/about/?ref=page_internal. Acessado ​em: 17
de dezembro de 2017.
26
O Grupo Sou Ubuntu é uma organização sem fins lucrativos formado por jovens que, segundo sua
definição na rede social ​Facebook, ​se reúnem com o intuito de realizar ações para ajudar o próximo
de alguma forma. ​Informações obtidas a partir da página oficial do Grupo Sou Ubuntu no ​Facebook.
50

(inclusive a sede do MNPR-FSA é um espaço cedido por essa entidade) e da


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Foi a partir da parceria com a
Universidade que surgiu a primeira pesquisa sobre a população de rua de Feira de
Santana já apresentada neste trabalho. Após a reaproximação do MNPR-FSA com
um dos professores (Dr. Carlos César Barros), a pesquisa foi novamente
apresentada na UEFS no dia 31 de outubro de 201628(UEFS, 2016). Essa
apresentação foi no formato de Roda de Conversa. A partir desta primeira Roda de
Conversa que teve como propósito a apresentação da pesquisa, surgiram, até o
momento que está sendo escrito este trabalho, quatro novas Rodas de Conversas
ao longo do ano de 2017. A II Roda de Conversa aconteceu no dia 26 de abril e teve
como tema: “A Saúde das Pessoas em Situação de rua29”(EVENTBU, 2017); o
“Acesso das Pessoas em Situação de Rua à Justiça”30 foi o tema da III Roda de
Conversa que aconteceu no dia 5 de julho (CRUZ; SILVA, 2017); ao contrário das
anteriores que aconteceram em um dos auditórios da UEFS, a IV Roda de Conversa
aconteceu em ​um stand na Praça ​João Barbosa de Carvalho, popularmente
conhecida como Praça do Fórum, e teve como tema o “Acesso da Pessoa em
Situação de Rua aos Bens Culturais” e foi integrada à 10ª Feira do Livro - ​Festival
Literário e Cultural de Feira de Santana31”(FEIRENSES, 2017); por fim, a V Roda de

Disponível em: https://pt-br.facebook.com/pg/SouUbuntu/about/?ref=page_internal. Acessado ​em: 17


de dezembro de 2017.
27
A Cáritas Brasileira é uma entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos
direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. Sua atuação é
junto aos excluídos e excluídas em defesa da vida e na participação da construção solidária de uma
sociedade justa, igualitária e plural. Informações disponíveis em: http://caritas.org.br/ . Acessado em:
17 de dezembro de 2017.
28
UEFS. ​Roda de Conversa debate a situação da população de rua, ​2016. Disponível em:
http://www.uefs.br/2016/10/692/Roda-de-Conversa-debate-a-situacao-da-populacao-de-rua.html.
Acessado em 17 de dezembro de 2017.
29
EVENTBU. ​Roda de Conversa: Pessoas em Situação de Rua | Universidade Estadual de Feira
de Santana - UEFS, ​2017. Disponível em:
https://br.eventbu.com/feira-de-santana/roda-de-conversa-pessoas-em-situacao-de-rua/2613577.
Acessado em 17 de dezembro de 2017.
30
CRUZ, Laiane; SILVA, Ney. ​Acesso de moradores de rua à Justiça é discutido em evento na
Uefs. ​2017. Disponível em: http://www.acordacidade.com.br/noticias/179728/acesso-
de-moradores-de-rua-a-justica-e-discutido-em-evento-na-uefs.html. Acessado em 17 de dezembro de
2017.
31
A Feira do Livro – Festival Literário e Cultural de Feira de Santana – nasceu da necessidade de
despertar os dirigentes de instâncias públicas, privadas e filantrópicas para a importância de
implementar políticas públicas do livro e da leitura na sociedade, e assim possibilitar o acesso de
pessoas das diversas esferas sociais ao universo da leitura e das realizações culturais. Informações
disponíveis em: http://feirenses.com/feira-do-livro-2017/. Acessado em 17 de dezembro de 2017.
51

Conversa que teve como tema: “Minha Casa, Minha Luta: Acesso à Moradia”
aconteceu no dia 29 de novembro do referido ano em um dos auditórios da UEFS.
Essas rodas têm o objetivo de ser um espaço de voz para o Movimento dentro da
Universidade; discutir os temas propostos pelo Movimento entre os mais diferentes
atores sociais que participavam das Rodas, além de tentar disponibilizar à
comunidade acadêmica da UEFS e feirense como um todo, o acesso ao
conhecimento gerado a partir dos debates. Dessa forma, é possível relacionar as
rodas de conversa à segunda frente de atuação do Movimento que está relacionada
justamente com a formação tanto interna quanto externa de militantes e demais
pessoas que interesse em conhecer mais sobre a realidade das pessoas em
situação de rua. Dito isso, passamos a apresentar a metodologia deste trabalho.
52

5​ METODOLOGIA

Este trabalho pode ser dividido em duas partes de apresentação e/ou


produção de conhecimento: uma parte de revisão e síntese bibliográfica (já
apresentada nas seções anteriores) e outra parte de trabalho de campo no qual
apresentamos e discutimos as informações obtidas através de entrevistas
semi-estruturadas com quatro membros do Movimento da População de Rua -
Núcleo Feira de Santana, que abrange as seções posteriores de apresentação dos
resultados e discussão destes, com o objetivo geral de investigar como essas
pessoas compreendem o exercício da escuta qualificada. Falaremos mais
detidamente sobre a metodologia adotada em cada uma das partes.
No que concerne à apresentação e síntese bibliográfica, dividimos em três
diferentes temas: a primeira de caráter mais terminológica, na qual destacamos a
importância da adoção das expressões “pessoa/cidadão em situação de rua”; a
segunda sobre o tema central deste trabalho, que é a escuta qualificada e sua
inserção nas políticas públicas; e a terceira, com uma apresentação mais geral sobre
os movimentos sociais para, só então, apresentarmos mais especificamente os
dados relativos ao Movimento Nacional da População de Rua assim como àqueles
relativos ao seu núcleo em Feira de Santana, Bahia. Para a metodologia dessa
primeira parte, por se tratar prioritariamente de investigação bibliográfica, nos
baseamos nas etapas sugeridas por Marconi e Lakatos (2010): identificação da
bibliografia em catálogos de editoras, bibliotecas e periódicos na Internet, análise de
resumos e bibliografias das obras encontradas; localização das obras relevantes
para a pesquisa; compilação; fichamento; análise e interpretação das mesmas. Cabe
falar ainda que uma das diretrizes deste trabalho foi de que os membros do
Movimento participassem ativamente da sua construção. Nesse sentido, a sugestão
da adoção do termo “​pessoa/cidadão em situação de rua” ​foi uma recomendação do
próprio Movimento. Como já discutimos anteriormente, existiu uma dificuldade em
encontrarmos materiais publicados que contassem a história do MNPR,
principalmente em se tratando do seu núcleo em Feira de Santana. Para
transpormos esta barreira, recorremos a uma comunicação pessoal cedida
gentilmente por Edcarlos Venâncio, uma das pessoas que ajudou a fundar esse
53

núcleo em Feira de Santana. Esse recurso da comunicação pessoal se mostrou uma


saída bastante interessante, principalmente ao termos em mente que estamos
lidando com grupos cuja tradição é voltada mais para a oralidade do que para a
sistematização escrita dos seus ensinamentos e ações cotidianas.
Para alcançar o objetivo geral de nossa pesquisa de compreender como se
dá o exercício da escuta qualificada segundo os membros do MNPR-FSA, optamos
pela pesquisa de tipo qualitativo com caráter exploratório. A técnica utilizada foi a de
entrevistas semi-estruturadas. ​Minayo, Deslandes e Cruz Neto (2007, p. 21)
explicam que a pesquisa qualitativa
se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ela
trabalha com o universo dos significados, motivações, aspirações, crenças,
valores e atitudes. O universo da produção humana que pode ser resumido
no mundo das relações, das representações e da intencionalidade e é
objeto da pesquisa qualitativa dificilmente pode ser traduzido em números e
indicadores quantitativos.

De fato, importa para o presente estudo explorar o universo de significados,


crenças, valores e atitudes das pessoas entrevistadas, principalmente aquelas
relativas ao processo de escuta qualificada. Marconi e Lakatos (2010, p. 179),
citando Selltiz (1965, p. 286-295), apresentam seis objetivos recomendados para o
conteúdo de uma pesquisa, são eles: averiguação de “fatos”; determinação das
opiniões sobre os “fatos”; determinação de sentimentos; descoberta de plano de
ação; conduta atual ou do passado; e motivos conscientes para opiniões,
sentimentos, sistemas ou condutas. Dentre esses objetivos, as entrevistas
realizadas neste estudo objetivaram apreender dois deles: a determinação das
opiniões sobre os “fatos”, ou seja, buscou-se conhecer o que os integrantes do
Movimento entendem por escuta qualificada; e a descoberta de planos de ação, ou
seja, busca-se descobrir por meio das definições individuais dadas, quais as
condutas adequadas apresentadas pelos profissionais de saúde em situações de
acolhimento para o exercício da escuta qualificada.
Levando em consideração que o tema da escuta qualificada quase não tem
sido explorado junto à população de rua, caracterizamos nossa pesquisa como
exploratória. Gil (2008, p. 27) explica que esse tipo de pesquisa é adotado quando
sua principal finalidade é desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias.
54

Ainda segundo Gil (2002, p. 41 apud Selltiz et al., 1967, p. 63), “na maioria dos
casos, essas pesquisas envolvem: levantamento bibliográfico; entrevistas com
pessoas que tiveram experiências práticas com o problema pesquisado; e análise de
exemplos que "estimulem a compreensão". Efetivamente, tal como indicado por esse
autor, buscamos através da técnica da entrevista chegar às experiências práticas
dos membros do Movimento relativas à escuta qualificada. A partir dessas
experiências pretendemos compreender os possíveis efeitos do exercício de uma
escuta qualificada para a vida dos nossos entrevistados. Dito isso, discorremos mais
detidamente sobre a técnica utilizada nesta pesquisa.
Minayo (2007, p. 57) relata que a entrevista é o procedimento mais comum no
trabalho de campo. É com a entrevista que o pesquisador busca obter informes
contidos na fala dos atores sociais. Por menos estruturada que seja, a entrevista
com propósitos científicos não se caracteriza como uma conversa despretensiosa e
neutra, uma vez que se insere como meio de coleta dos fatos relatados pelos atores.
Nesse sentido, ela assume o caráter de “uma conversa a dois com propósitos bem
definidos”. Nesse mesmo sentido, Marconi e Lakatos (2010, p. 179) compreende a
entrevista como “uma conversação efetuada face a face, de maneira metódica”.
Essas autoras também citam Goode e Hatt (1969, p. 237 apud Marconi e Lakatos,
2010) para explicar que a entrevista “consiste no desenvolvimento de precisão,
focalização, fidedignidade e validade de certo ato social como a conversação”.
Tanto Gil (2008) como Marconi e Lakatos (2010) apontam vantagens e
limitações que a entrevista apresenta quanto à coleta de informações. Sobre as
vantagens Gil (2008, p. 110) destaca que a entrevista possibilita a obtenção de
dados referentes aos mais diversos aspectos da vida social; é uma técnica muito
eficiente para obter dados em profundidade sobre o comportamento humano; e os
dados obtidos são suscetíveis de classificação e quantificação. A entrevista ainda
pode ser realizada com atores sociais não alfabetizados, possibilita captar a
expressão corporal do entrevistado bem como sua tonalidade de voz durante as
respostas. ​Já Marconi e Lakatos (2010) apontam como vantagens o fato da
entrevista permitir que o entrevistador esclareça algumas falas, formule de forma
diferente o que foi dito, ou especifique algum significado como garantia de que está
sendo compreendido; e dar a oportunidade para a obtenção de informações que não
55

se encontram disponíveis em fontes documentais. Como já discutimos


anteriormente, essa é uma das vantagens deste método que mais contribuiu para
transpormos algumas barreiras desta pesquisa.
Quanto às limitações apresentadas pela coleta de informações com
entrevistas, Gil (2008, p. 110) aponta para a falta de motivação do entrevistado para
responder as perguntas; a inadequada compreensão do significado das perguntas; a
inabilidade ou mesmo incapacidade do entrevistado para responder
adequadamente, em decorrência de insuficiência vocabular ou de problemas
psicológicos; a influência das opiniões pessoais do entrevistador sobre as respostas
do entrevistado. Durante a realização das nossas entrevistas não nos deparamos de
forma contundente com nenhuma dessas limitações.
Gerhardt e Silveira (2009, p. 72) apresentam seis tipos de entrevista:
entrevista estruturada, entrevista semi-estruturada, entrevista não-estruturada,
entrevista orientada, entrevista em grupo, entrevista informal. O tipo de entrevista
realizada nesta pesquisa foi a entrevista semi-estruturada (conhecida também como
semi-padronizada ou semi-diretiva). A entrevista semi-estruturada, segundo Xavier
(2017, pp.127-128), caracteriza-se por certa autonomia das respostas do
entrevistado e pela pouca interferência do entrevistador, no entanto, suas respostas
são pré-determinadas por uma diretriz inicial e por roteiro de entrevista formulado
pelo entrevistador. Neste sentido, as nossas entrevistas também se aproximam
daquelas que Gil (2008, p. 112) chama de entrevistas por pautas. Segundo esse
autor, “ a entrevista por pautas apresenta certo grau de estruturação, já que se guia
por uma relação de pontos de interesse que o entrevistador vai explorando ao longo
do seu curso. As pautas devem ser ordenadas e guardar certa relação entre si. O
entrevistador faz poucas perguntas diretas e deixa o entrevistado falar livremente à
medida que se refere às pautas assinaladas”. Percebemos que o fato de termos
optado por entrevistas semi-estruturadas nos permitiu entrar em contato com uma
imensa gama de informações prestadas pelos membros do Movimento que, mesmo
com todo nosso conhecimento preliminar tanto teórico como vivencial com os
membros do MNPR-FSA, não seria possível estruturarmos em um questionário ou
em um roteiro prévio. Neste sentido, as entrevistas semi-estruturadas nos
56

possibilitaram explorar diversas questões não planejadas durante a escrita do


projeto de pesquisa.
Nesta perspectiva, Xavier (2017, pp. 156-157) chama atenção para a
importância da diretriz inicial. Esse autor explica que o objetivo dessa primeira
intervenção é introduzir o entrevistado no tema que será explorado na entrevista.
Como diretriz inicial das nossas entrevistas sugerimos que os nossos entrevistados
e a nossa entrevistada começassem relatando “​como foi o processo de chegada nas
ruas”. ​Essa diretriz inicial nos permitiu entrar em contato com a ​história de vida
tópica ​dos entrevistados. Esse conceito é melhor explicado por Minayo (1994, p. 58)
que ressalta o entendimento da história da vida como uma estratégia de
compreensão da realidade cuja principal função é retratar as experiências
vivenciadas, bem como as definições fornecidas por pessoas, grupos ou
organizações. No caso da história de vida tópica essa autora a entende como aquela
que “focaliza uma etapa ou um determinado setor da experiência em questão”
(MINAYO, 1994, p. 59). Portanto, recorremos à história de como essas pessoas
chegaram na situação de rua para, a partir daí, buscarmos elementos da sua fala
para explorarmos a vida nas ruas, quais os efeitos do exercício da escuta
qualificada, e a importância do MNPR-FSA para as pessoas em situação de rua.
Para alcançar esses objetivos mais específicos, “semi-estruturamos” um roteiro no
qual elencamos quatro tópicos que íamos retomando nas falas dos entrevistados à
medida que eles faziam menção a eles, ou propúnhamos diretamente a eles e a ela
no momento que achamos mais pertinente, são eles: ​“ter sido atendido por alguma
equipe de saúde ou de assistência social durante o período que esteve nas ruas”​;
“como conheceu o Movimento”​; ​e ​“a importância do Movimento para as pessoas em
situação de rua”​. Essas intervenções aconteceram, por vezes, de forma mais direta,
outras vezes os próprios entrevistados faziam menção a esses tópicos prescindindo
perguntarmos diretamente para eles.
Na verdade, a pergunta direta é somente uma das intervenções que
utilizamos durante as entrevistas para explorarmos e/ou conduzirmos os
entrevistados a apresentar informações relacionadas aos tópicos que destacamos
anteriormente. Sobre as formas de intervenção em entrevistas semi-estruturadas, a
leitura de Xavier (2017) nos ajudou bastante. Esse autor explicita cinco formas de
57

intervenção para esse tipo de entrevista: ​o relance; o pedido de esclarecimento


direto; a reformulação síntese; a avaliação positiva; a provocação; e a pergunta.
Xavier (2017, p. 128) explica que o relance consiste em selecionar um trecho do
discurso do entrevistado e reapresentá-lo a ele. Esse ato de relançar um assunto ou
palavra que foi dita pelo entrevistado permite, com frequência, que este retome seu
raciocínio do ponto que foi relançado a fim de que exista um melhor
desenvolvimento deste. Em síntese, em cada relance há uma pergunta implícita de
um “me fale um pouco mais sobre isso”.
Outra intervenção é a pedido de esclarecimento direto. Normalmente, é
utilizado quando alguma fala ou parte da fala do entrevistado não foi claramente
entendida pelo entrevistador. Xavier (2017, p. 138), no entanto, adverte que o uso
em demasia dessa intervenção pode comprometer a fluidez da entrevista e afetar
negativamente o propósito de semi-diretividade das entrevistas. Além do pedido de
esclarecimento direto, Xavier ( 2017, p. 138) destaca a reformulação síntese como
uma das intervenções que podem ser adotadas durante as entrevistas. Essa
intervenção consiste em resumir, nas palavras do pesquisador, determinado trecho
da entrevista. É utilizada para retomar as informações prestadas pelo entrevistado
quando este parece ter esgotado o que havia para falar sobre o tema. Com isso, a
reformulação síntese tem dois propósitos: possibilitar que o entrevistado
complemente o que havia falado, após ouvir a síntese do entrevistador; e validar as
informações uma vez que permite ao entrevistado verificar a correspondência entre
o que ele disse de fato e o que ele pretendia expressar na sua fala.
Sobre a avaliação positiva, Xavier (2017, p. 139) defende que, em algumas
entrevistas, é necessário que o entrevistador intervenha com frases de cunho
valorativo quando o entrevistado tem pouca confiança no seu discurso. Para esse
autor, recorrer a frases que expressem o quanto as falas do entrevistado são
importantes para a entrevista pode servir como estímulo para que o entrevistado
tenha uma postura mais colaborativa.
Quanto a intervenções de caráter provocativo, Xavier (2017, pp. 140-141)
afirma recorrer a elas quando o entrevistado apresenta falas que aparentam ser
pouco espontâneas e/ou com caráter mais institucional, como uma espécie de
discurso “pré-fabricado”. A provocação, nesse sentido, tem o propósito de
58

desestabilizar o entrevistado que aparenta “dar muito pouco em termos de


exploração das suas concepções, por qualquer que seja o motivo”.
A última forma de intervenção descrita por Xavier (2017, p. 141) é a pergunta.
Essa forma de intervenção pode ser utilizada quando o entrevistador quer introduzir
um novo item do roteiro de entrevistas. De fato, a pergunta é a forma mais elementar
de coletar uma informação. No entanto, esse autor descreve algumas
recomendações importantes no contexto de uma entrevista para quando formos
recorrer às perguntas como forma de intervenção. Xavier (2017, p. 141) aconselha
não fazer mais de uma pergunta na mesma intervenção. Normalmente, realizar mais
de uma pergunta compromete a exploração em profundidade de uma delas por parte
do entrevistado. Esse autor também aconselha evitar perguntas que convidem a
respostas do tipo “sim” e “não”. Ele orienta a realizar perguntas que tendem a
possibilitar que o entrevistado recorra a um amplo campo de possibilidades de
respostas. Outra recomendação é evitar perguntas que sugerem ao entrevistado
respostas enviesadas pela visão do entrevistador. Nesse sentido, Xavier (2017, p.
143) adverte que a utilização da expressão “não é?” pode fechar o campo de
respostas do entrevistado e suscitar uma resposta artificial na qual o entrevistado
busca tão somente confirmar o que o entrevistador pergunta. Xavier (2017, p. 144)
aconselha ainda evitar perguntas de difícil compreensão para o entrevistado.
Segundo esse autor, “palavras e expressões imprecisas e ambíguas ou formulações
negativas podem prejudicar a compreensão” do que está sendo perguntado. Por fim,
Xavier (2017, p. 144) sugere que durante a formulação das perguntas o
entrevistador faça a substituição dos “porquês” pelos “como”. Ele explica que o
“porquê” pode ser entendido como um pedido de se justificar, de se explicar;
enquanto o “como” convida o entrevistado para a reflexão e para explicitar as etapas
do seu pensamento. Nesse sentido, a utilização do “como” nas perguntas favorece a
exploração das respostas e das razões que o levaram a pensar daquela forma.
Comentaremos quando recorremos a cada uma desses intervenções ao
apresentarmos mais detidamente como foi realizada cada entrevista.
Além dessas intervenções, Marconi e Lakatos (2010, p. 182) descrevem
algumas diretrizes que visam aprimorar a coleta de informações durante o
procedimento de entrevista. A primeira delas é o ​contato inicial​. Esse foi o momento
59

ao qual recorremos para realizar uma conversação amistosa com os entrevistados,


explicando a finalidade da pesquisa, seu objeto, relevância e necessidade da sua
colaboração. Nesse primeiro momento, a leitura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (Apêndice A, p.104) nos ajudou na explicação dos objetivos e da
relevância da pesquisa. Após os membros aceitarem participar das entrevistas e
assinar as duas cópias do Termo, uma das cópias ficou com a pessoa entrevistada e
a outra conosco.
Marconi e Lakatos (2010, p.183) também chamam atenção para a importância
do ​registro das respostas​. Justamente durante o contato inicial com o entrevistado,
falávamos para ele/ela sobre a possibilidade de gravar a entrevista para que nós
tivéssemos uma maior fidedignidade e equivalência entre as informações dadas por
eles/ela durante a entrevista e o que seria posteriormente transcrito. Após a
anuência deles/dela, cada entrevista foi gravada por um ​Smartphone ​Motorola Moto
G 2ª Geração​. Inicialmente utilizamos um programa chamado ​Gravador de Voz, ​por
este apresentar uma captação de áudio de melhor qualidade. No entanto, durante a
realização da primeira entrevista com Andreval Santos, o programa parou de
funcionar inesperadamente no primeiro terço da entrevista. Quando nos demos
conta da falha, tínhamos cerca de 60 minutos de entrevista não registrados. Ao
realizarmos a segunda entrevista, com Edcarlos Venâncio, o referido programa
continuou apresentando o mesmo problema. Com isso, passamos a utilizar o
programa ​Smart Recorder​. Finalmente, tivemos êxito com a utilização desse
programa de captação de áudio. Ainda assim, para facilitar a compreensão do que
foi dito nos áudios captados das entrevistas recorremos ao ​site da internet chamado
MP3 Louder32. Esse ​site permite que áudios em formato ​Mp3, ​após realizado o
upload​, obtenham ganhos de decibéis no volume. No nosso caso, acrescentamos
três decibéis em cada áudio. Isso facilitou a nossa compreensão do que estava
sendo dito tanto pelo entrevistador como pelos entrevistados durante as entrevistas.
Para as transcrições, utilizamos um ​site chamado ​Speechlogger33. ​Esse site permite

32
​MP3LOUDER. ​Aumentar o Volume do MP3 Online. ​?. Disponível em:
http://www.mp3louder.com/pt/. Acessado nos dias 7 e 16 de dezembro de 2017.
33
​SPEECHLOGGER. ​Reconhecimento Automático De Voz E Tradução Instantânea ​Disponível
em: https://speechlogger.appspot.com/en/. Acessado diariamente entre os dias 7 de dezembro e 22
de dezembro de 2017.
60

o reconhecimento do que está sendo dito no microfone do computador e realiza a


transcrição. Dessa forma, inicialmente, fazíamos uma transcrição mais geral do que
foi dito, e depois acrescentamos as nuances das falas tais como: pausas longas,
registradas com os pontos de reticência; tartamudeios, registrados com hífen de
ligação entre as primeiras sílabas e o restante da palavra; casos de hesitação no
que estava sendo dito registramos com pontos de reticência. Optamos também por
manter a linguagem coloquial dos participantes da entrevista, conservando a
preocupação tão somente com a compreensão do que estava sendo dito e, não com
o caráter prescritivo das regras e normas da Gramática Normativa34. Para reproduzir
o áudio utilizamos um programa chamado ​Audacity​, ​uma vez que ele permitia
retornar para o momento mais aproximado da fala que estávamos transcrevendo,
otimizando o tempo necessário para retornar a determinado trecho que estava sendo
procurado. Passemos então para uma descrição mais detalhada das entrevistas
realizadas.
Como já falamos anteriormente, realizamos as entrevistas com quatro
membros do MNPR-FSA, três homens e uma mulher. Os critérios de inclusão foram:
já ter vivido ou estar vivendo nas ruas; ser maior de dezoito anos; e se reconhecer e
ser reconhecido como membro do MNPR-FSA. As entrevistas foram agendadas a
partir da intervenção de um membro do MNPR-FSA, Edcarlos Venâncio, que fazia
intermediação entre os pesquisadores e os membros do Movimento. Após agendada
a entrevista, nós, os pesquisadores, nos encontrávamos com os entrevistados/a no
local combinado. Realizamos as entrevistas em dois locais diferentes (ambos
sugeridos pelos membros do Movimento): três entrevistas foram realizadas na sede
da Cáritas, localizada rua Castro Alves, no Centro de Feira de Santana; uma
entrevista realizamos na sede do Projeto Mão Amiga, que fica localizada na rua
General Costa e Silva, no bairro da Baraúnas. Todos os entrevistados aceitaram que
as entrevistas fossem gravadas. Eles e ela também manifestaram interesse de ter
suas identidades reveladas. Dessa forma, as entrevistas foram realizadas com

34
Segundo Clemente (2012) citando Travaglia (2006), a gramática normativa é responsável por ditar
as regras do bem falar e do bem escrever. Nessa concepção, a variante oral da língua fica em
segundo plano, priorizando os fatos da língua escrita na modalidade padrão (oficial). Essa gramática
tem um poder legislador sobre a língua, uma vez que prescreve ao falante o uso da norma “culta”.
61

Andreval Santos, Edcarlos Venâncio, Silvia Bonfim e Renildo (Renny) Santos. Após
recebermos a aprovação do Comitê de Ética da UEFS, Certificado de Apresentação
para Apreciação Ética (CAAE) 72699917.0.0000.0053, começamos a realizar as
entrevistas no mesmo dia. Passamos a descrever mais detidamente cada entrevista,
assim como quando utilizamos aquelas técnicas de intervenção em entrevistas
semi-estruturadas sugeridas por Xavier (2017).
Assim, a primeira entrevista foi realizada com Andreval Santos na sede da
Cáritas, no dia 7 de dezembro de 2017. Durante o contato inicial, Andreval revelou
que já tinha colaborado com outras pesquisas. Ele já apresentava alguns
conhecimentos sobre os procedimentos de pesquisa: leitura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido e a possibilidade de gravação para facilitar as
transcrições posteriormente. Para estimular Andreval a falar da sua situação de rua,
começamos solicitando a Andreval que falasse sobre quanto tempo ele está na rua.
Durante a entrevista, Andreval demonstrou uma capacidade bastante acurada para
lembrar de datas, inclusive com citação do dia em que determinado evento ou
situação ocorreu. Quando Andreval relatou as suas voltas temporárias para casa,
recorremos à intervenção da pergunta. Nosso propósito naquele momento era
explorarmos alguma forma de acolhimento exercido pela família. Em outro momento,
Andreval relatou que tinha desistido de realizar tratamentos nos centros de
recuperação. Buscamos os motivos dessa desistência a fim de compreender “o que
não deveria ser feito” no exercício do cuidado pela equipe de saúde ou assistência
social. Nessa perspectiva, também tentamos entender como era a relação dele com
os profissionais dos centros. Após falar de algumas relações com assistentes sociais
que não deram certo, Andreval comentou uma relação bem-sucedida. Com isso,
começamos a explorar com perguntas os motivos que levaram à construção dessa
relação bem-sucedida. Isso começou a nos aproximar de forma indireta do nosso
objetivo geral de captar alguns elementos da escuta qualificada. No entanto, como já
relatamos anteriormente, nesse momento, ocorreu uma falha no programa que
estava sendo utilizado para captar o áudio, e só nos demos conta após ter
transcorrido um tempo de entrevista. Com isso, Andreval se mostrou compreensivo e
complacente em marcamos outra entrevista.
62

A segunda entrevista com Andreval aconteceu no dia nove de dezembro


também na sede da Cáritas. Começamos a entrevista retomando alguns pontos que
Andreval tinha falado na primeira entrevista mas que não tinham sido captados pela
gravação. Dentre eles, a relação que deu certo com a assistente social. Tendo
Andreval explicado os elementos importantes para construção dessa relação,
realizamos uma reformulação síntese. Tínhamos duas intenções com essa
reformulação: uma era permitir que Andreval acrescentasse algum elemento que ele
achasse necessário no momento, a outra era realizar a validade daquilo que
Andreval havia acabado de expor. Nesse momento, Andreval confirma e acrescenta
o elemento “​parar para ouvir​”. Com isso, a nossa intervenção foi realizar uma
pergunta sobre a importância desse “parar para ouvir” ao nosso entrevistado. Depois
retomamos o outro ponto que Andreval tinha apresentado na primeira entrevista. A
partir de então, nossas intervenções se centraram em perguntas sobre tópicos
relacionados à avaliação das políticas públicas e ao Movimento. Durante as duas
entrevistas, Andreval se mostrou bastante pró-ativo e colaborativo em apresentar as
informações que achava necessárias assim como bastante responsivo às nossas
intervenções. A entrevista terminou em um ambiente de cordialidade bastante
agradável. Após termos transcrito as falas da entrevista, tentamos algumas vezes
marcar com Andreval para que ele avaliasse e confirmasse o que foi transcrito. Mas
isso não se efetivou devido às atividades da militância dele.
No dia nove de dezembro também realizamos uma entrevista com Edcarlos
Venâncio no mesmo local da entrevista com Andreval. Durante ​o contato inicial​,
lemos e explicamos para Edcarlos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Recorremos à nossa ​diretriz inicial ​de pedir para o entrevistado relatar como foi a
sua chegada nas ruas para começarmos a entrevista. Cronologicamente falando, a
entrevista de Edcarlos foi realizada horas antes da entrevista de Andreval. Com isso,
ainda estávamos utilizando o programa ​Gravador de Voz. ​Após percebermos que
esse programa continuava apresentando a mesma falha de parar inesperadamente,
optamos por trocar-lo pelo programa ​Smart Recorder, ​de forma que a maior parte da
entrevista de Edcarlos, a segunda entrevista com Andreval e as entrevistas com
Silvia e Renny também foram gravadas com esse programa. Dito isso, podemos
falar que a maior parte das nossas intervenções na entrevista de Edcarlos se baseou
63

em perguntas. No entanto, quando estávamos nos aproximando do final da


entrevista, percebemos que as respostas de Edcarlos, apesar de bastante
relevantes e interessantes para nossa pesquisa, apresentavam um perfil
aparentemente institucional ou que tinha sido organizadas anteriormente. Diante
disso, recorremos a uma pergunta, de forma bastante direta, sobre a escuta
qualificada. Ao fazermos isso, as respostas de Edcarlos passaram a estar muito
mais próximas dos objetivos do nosso trabalho, além de aparentarem estar menos
metodicamente organizadas. Com isso, acreditamos que solicitar de forma direta
para Edcarlos falar sobre a escuta qualificada funcionou como um intervenção
provocativa ​que, por mais que não tenha sido essa nossa intenção, desestabilizou a
forma de organização mais metódica de resposta do nosso entrevistado. Dessa
forma, após Edcarlos falar que as pessoas de rua não queriam conta com o
psicólogo, realizamos um ​pedido de esclarecimento direto ​a fim de permitir que
Edcarlos explorasse mais especificamente esse pensamento. Na entrevista com
Edcarlos também recorremos à ​reformulação síntese para possibilitar que Edcarlos
falasse mais sobre os comportamentos que um psicólogo precisa apresentar para
facilitar o contato com as pessoas em situação de rua. Apesar de soar
aparentemente como pouco adequado, a forma metódica de Edcarlos responder os
questionamentos apresentava uma riqueza metodológica e didática bastante
interessantes. É possível perceber também na transcrição da entrevista de Edcarlos
que ele fazia questão de mencionar pessoas importantes que marcaram e marcam a
história do núcleo do MNPR em Feira de Santana. A entrevista finalizou em um tom
de apreço mútuo tanto do entrevistador quanto do entrevistado. Após a transcrição
das falas da entrevista, Edcarlos declinou de revisar o que foi transcrito, afirmando
que não seria necessário.
A terceira integrante do Movimento que entrevistamos foi Silvia Bonfim. Essa
entrevista foi realizada no dia nove de dezembro de 2017, na sede da Cáritas. Silvia
é uma das integrantes mais recente do MNPR-FSA e essa foi a primeira vez que
Silvia colaborou para uma pesquisa. Utilizamos a ​diretriz inicial de solicitar para
Silvia narrar como aconteceu a chegada dela nas ruas. De modo geral, a
intervenção que mais recorremos na entrevista de Sílvia foi a pergunta. No mais,
utilizamos um ​pedido de esclarecimento direto ​para sabermos ao que Silvia se
64

referia quando ela falou de “​matadouro​”; recorremos também a um relance quando


nossa entrevistada relatou que os psicólogos foram conversar com a família dela
para que esta acolhesse Silvia quando ela precisasse. Tanto os pesquisadores como
o Movimento demarcaram a importância das entrevistas não serem realizadas
somente com militantes do sexo masculino. Para nós, era inquestionável a
importância das entrevistas serem realizadas também com mulheres pertencentes
ao Movimento que viveram nas ruas. Dessa forma, além de diversas outras
contribuições, Silvia pode colaborar a partir de sua visão de mulher, de ter gestado e
criado filhos e filhas quando estava na condição de rua e de ter relatado as
dificuldades intrínsecas a essas situações. Logo no início da entrevista percebemos
um certo desconforto de Silvia, provavelmente, por conta do celular que estava
gravando. Com o passar da entrevista, Silvia passou a ficar menos incomodada com
presença do celular à sua frente. Cabe registrar ainda que Silvia se emocionou em
certo momento da entrevista ao falar das humilhações que passou quando esteve
em situação de rua. Passados alguns segundos, no momento que iríamos sugerir
uma pausa da entrevista, Silvia deixou de apresentar os sinais de que ainda estava
emocionada. Com isso, ao final da entrevista, realizamos o acolhimento de Silvia,
conversando sobre o fato dela ter se emocionado, e consultando ela sobre o seu
estado emocional no momento posterior à entrevista. Após a transcrição das falas da
entrevista, solicitamos a Edcarlos para consultar Silvia (já que não tínhamos o
contato dela) sobre quando ela poderia verificar as transcrições. No entanto, não
obtivemos a resposta dele.
O quarto e último entrevistado foi Renildo Santos, mais conhecido por Renny.
A entrevista com Renny foi realizada na sede do Projeto Mão Amiga, no dia 16 de
dezembro de 2017. Durante o ​contato inicial, ​Renny afirmou já ter participado de
outras pesquisas, estando ciente dos procedimentos da pesquisa. Recorremos à
diretriz inicial ​de como se deu o processo de chegada nas ruas de Renny para
começarmos a entrevista. Durante a entrevista de Renny, tivemos que recorrer a
diversos ​pedidos de esclarecimentos diretos sobre suas falas dadas as riquezas de
informações que as suas respostas apresentavam sobre a linguagem e a
organização social das ruas. Também recorremos à intervenção de ​relance ​para
possibilitar que Renny falasse mais especificamente sobre o título de ​“maloqueiro”
65

que ele detinha. Recorremos também à ​reformulação síntese ​para explorarmos mais
e confirmamos o raciocínio de Renny sobre como deu o processo de saída dele das
ruas. Além dessas, em alguns momentos recorremos a ​perguntas também a fim de
introduzir um dos tópicos do nosso roteiro. A entrevista se encerrou em um clima
divertido, com entrevistador e entrevistado comentando sobre a importância das
informações que Renny tinha apresentado durante a entrevista. Após a transcrição,
consultamos Renny sobre como ele queria fazer para verificar a transcrição das
falas. No entanto, não obtivemos a resposta dele.
Nesse sentido, é importante falar que uma das maiores dificuldades que
encontramos para a realização das entrevistas foi a falta de tempo disponível dos
militantes do Movimento. Normalmente, as tarefas da militância requerem várias
horas do seu dia e, inclusive, boa parte de horas da noite também. Além do mais,
algumas dessas tarefas aparecem inesperadamente. Assim, precisamos de cautela
para que as entrevistas não interrompessem ou atrapalhassem as atividades
cotidianas dos membros do Movimento. Além dessa, outra dificuldade foi encontrar
um local que não exigisse um deslocamento excessivo por parte dos integrantes do
Movimento. Nesse sentido, a localização da sede da Cáritas foi um fator bastante
favorável, dada a sua centralidade urbana. No entanto, para utilização desse espaço
precisávamos também da disponibilidade de Edcarlos Venâncio, uma vez que ele
que tinha a chave do local. É importante falar que o espaço das ruas, para a
finalidade da entrevista, não se mostrava favorável porque não favorecia a captação
do áudio, dado o barulho dos automóveis e transeuntes; tendia a atrapalhar a
sequência do raciocínio tanto do entrevistado quanto do entrevistador dada a
quantidade de estímulos e eventos que poderia acontecer durante a realização das
entrevistas; como também tendia a possibilitar interrupções das demais pessoas em
situação de rua que se aproximassem para cumprimentar ou falar com os/a
entrevistados/a.
Após termos realizado as entrevistas e as transcrições das mesmas,
passamos para as etapas de ​pré-análise, exploração do material ​e tratamento dos
resultados​. Esta última compreende os processos de ​codificação, categorização e
inferência ​(BARDIN, 1977) das informações cedidas durante as entrevistas pelos
66

membros do MNPR-FSA. Ressaltamos, portanto, que o nosso ​corpus35 ​de análise


foram as transcrições das entrevistas proferidas pelos integrantes do Movimento.
Cabe falar ainda que o tipo de análise que realizamos foi a ​temática. ​Para Minayo
(1999, p. 208), “a análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que
compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifique alguma coisa
para o objetivo analítico visado”. ​Dito isso, passamos para uma descrição mais
detalhada dos procedimentos realizados para analisar as transcrições.
O primeiro procedimento adotado foi o de ​pré-análise das transcrições​.
Segundo Bardin (1977, p 95), essa fase “corresponde a um período de intuições,
mas tem por objetivo tornar operacionais e sistematizar as ideias iniciais, de maneira
a conduzir a um esquema preciso do desenvolvimento das operações sucessivas
num plano de análise”. Em outro trecho, essa autora também revela que essa fase
possui três objetivos: escolher os documentos que vão ser submetidos a análise;
formular hipóteses e objetivos; e a elaboração de indicadores que fundamentam a
interpretação final. De fato, esse foi o momento de entrarmos em contato mais
detidamente com o material fruto das transcrições a fim de organizarmos e
sistematizarmos as informações que poderiam ser relevantes na apresentação dos
resultados e na realização da discussão destes. Para isso, realizamos leituras
flutuantes, sublinhando as partes das falas dos entrevistados e da entrevistada que
mais nos chamaram a atenção e que, em alguma medida, estavam relacionadas aos
objetivos e aos tópicos que já foram destacados anteriormente.
A partir dessas primeiras leituras formulamos algumas hipóteses: ​a perda dos
vínculos familiares é um dos fatores que corroboraram para a chegada dos
entrevistados na situação de rua; as relações nas ruas são fundamentais para
diminuir a vulnerabilidade das pessoas que estão naquela situação; o exercício da
escuta qualificada é uma das formas para a construção de vínculo com as pessoas
em situação de rua; existem alguns procedimentos que podem facilitar o exercício da
escuta qualificada para as pessoas em situação de rua; a atuação do Movimento
favoreceu o reconhecimento dos entrevistados como cidadã(os) de direito; o

35
O corpus é o conjunto dos documentos tidos em conta para serem submetidos aos procedimentos
analíticos (BARDIN, 1977, p. 96).
67

reconhecimento dos entrevistados enquanto pessoas que possuem direitos os


levaram a buscar mais conhecimentos sobre políticas públicas.
Mais uma vez afirmamos que a nossa escolha metodológica se mostrou
assertiva. De fato, o caráter exploratório da nossa pesquisa nos concedeu um grau
de liberdade metodológica nesse primeiro momento para entrarmos em contato com
informações sobre a vida, os pensamentos e representações das pessoas em
situação de rua que não tínhamos como conjecturar durante a preparação do roteiro
e do plano de trabalho desta pesquisa.
A etapa de ​exploração do material consistiu na administração mais
sistemática das frases que tínhamos sublinhado na pré-análise a fim de facilitar a
delimitação das categorias que definimos na primeira etapa do tratamento dos
resultados que é a ​codificação. ​Segundo Holsti (1969) citado por Bardin (1977, pp.
103-104), “a codificação é o processo pelo qual os dados brutos são transformados
sistematicamente e agregados em unidades, as quais permitem uma descrição
exata das características pertinentes do conteúdo”. Dessa forma, o que estávamos
chamando de informações, falas, ou frases (considerados enquanto dados brutos)
passaram a ganhar o status de ​unidades de registros ​durante o processo de
codificação. Nas palavras de Bardin (1977, p. 104) “ a unidade de registro é a
unidade de significação a codificar e corresponde ao segmento de conteúdo a
considerar como unidade de base, visando a categorização e a contagem
frequencial”. Assim, a nossa ​unidade de registro foi o tema​. Para M. C d’Urung
(1974) citado por Bardin (1977, p. 105) “o tema é uma unidade de significação
complexa, de comprimento variável [...] um tema pode ser desenvolvido em várias
afirmações (ou proposições)”. Portanto, na fase de codificação, passamos a
selecionar temas (entendidos como núcleos de sentido) a partir das falas dos
entrevistados que foram organizadas, inicialmente, em três dimensões. Dessa forma,
a partir da nossa ​diretriz inicial ​que contemplava a chegada nas ruas (que deu
margem para explorarmos a vida nas ruas) e dos tópicos sobre se as pessoas
entrevistadas já foram atendidas na rua e da forma como conheceram o Movimento
(que davam margem para explorarmos o exercício do cuidado e da escuta
qualificada, por um lado; e a importância do Movimento, por outro) chegamos às
dimensões: ​Rua, Acolhimento, Movimento. ​Consideramos a dimensão “​Acolhimento”
68

como primária tendo em vista que os temas sobre a escuta qualificada se


concentraram nela.
​O próximo passo foi classificar esses temas em categorias vinculando-as às
três dimensões supracitadas. ​Essa foi a segunda fase da etapa de tratamentos dos
resultados, conhecida como ​categorização. ​Segundo Bardin (1977, p. 117), “a
categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um
conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero,
com os critérios previamente definidos”. Assim, o critério que definimos para montar
as categorias foi de ordem semântica. De modo que elas surgiam a partir de
processos de equivalência de sentido de um grupo de temas em relação à
respectiva categoria. Dessa forma, as categorias resultaram da classificação
analógica e progressiva dos temas. Bardin (1977, p. 119) explica que esse é o tipo
de procedimento considerado nomeadamente “por milha36”. Ou seja, as categorias
passam a ser definidas paulatinamente a partir da organização dos temas e das
dimensões.
Por consequência, chegamos a ​10 categorias como um todo (Apêndice B -
Quadro de Categorias p.105). Três categorias foram organizadas a partir da
dimensão ​Rua​. A primeira delas foi a categoria “​processo de chegada nas ruas”​.
Essa categoria continha temas relacionados a nossa diretriz inicial. A maioria desses
relataram a perda dos vínculos familiares​. ​A segunda categoria desta dimensão
denominamos “​relações”. ​Nessa categoria constavam os temas que descreviam ou
mencionaram as relações presentes nas ruas mas também o impacto das ruas nas
relações com os próprios familiares. ​A última categoria da dimensão ​Rua ​chamamos
de “termos”. ​Essa categoria apresentou temas de caráter explicativos sobre palavras
e expressões que fazem parte do dialeto utilizado pelas pessoas em situação de rua.
A relevância dessa categoria para a compreensão da escuta qualificada se dá
porque ela fornece um pequeno panorama linguístico de expressões e termos
próprios das ruas.
No que toca à dimensão ​Acolhimento​, chegamos a quatro categorias. A
primeira delas, chamamos de “​atendimento”. ​Nessa categoria estiveram os temas

36
Em contraposição ao procedimento “por caixas” que acontece quando o sistema de categorias já é
previamente estabelecido e os elementos são repartidos à medida que esse vão sendo encontrados.
(BARDIN, 1977, p. 119).
69

que continham as respostas sobre eles já terem sido atendidos na rua e relatos de
atendimentos que consideraram assertivos​. A segunda categoria desta dimensão, foi
denominada de “​escuta qualificada”. ​Nessa categoria ficaram organizados os temas
que os entrevistados faziam referência direta ou indireta ao exercício da escuta
qualificada e a importância de ter sido escutados, apontando para possíveis efeitos
que essa escuta pode ter promovido. A terceira categoria sistematizada a partir
dessa dimensão foi intitulada “procedimentos”. ​Os temas relacionados a essa
categoria estavam vinculados à apresentação de uma sequência de
comportamentos, procedimentos ou atividades para a realização da aproximação,
acompanhamento, atendimento e escuta qualificada das pessoas em situação de
rua. Somente Edcarlos e Andreval apresentaram falas que foram nesse sentido​. ​A
última categoria foi denominada “condição de saída das ruas”. ​Nessa categoria
agrupamos temas que apresentavam elementos ou experiências que se mostraram
ou se mostram importantes para que os entrevistados saíssem/saiam da situação de
rua. A justificativa para ter sido enquadrado na dimensão ​Acolhimento ​foi a
recorrência da relação desses temas com o ato ou da escuta qualificada ou de um
atendimento que a pessoa recebeu.
No que tange à dimensão ​Movimento​, obtivemos três categorias. A primeira
delas foi “​como conheceu o Movimento”. ​Essa categoria estava relacionada a uma
das perguntas do nosso roteiro. Portanto, continha temas que relataram como os
entrevistados tiveram o primeiro contato com o Movimento. Na segunda categoria,
denominada “​Movimento” ​estiveram organizados os temas que continham menções
diretas ao MNPR-FSA, sua forma de atuação, conquistas e parceiros. A última
categoria da dimensão ​Movimento foi denominada “Importância”. ​Essa categoria
estava relacionada a uma das perguntas do nosso roteiro. Os temas nela
organizados estavam relacionados à relevância do Movimento para as pessoas em
situação de rua.
É pertinente falar que é compreensível, dada a opção de utilizar entrevistas
semi-estruturadas, o fato de nem todas as pessoas entrevistadas apresentaram falas
que estivessem de acordo com os temas relativos a cada categoria. Dito isso e
realizada etapa de categorização dos temas a partir das falas das pessoas
70

entrevistadas, passamos para o último procedimento de análise dos dados, ​a


inferência.
Bardin (1977, p.137) explica que a inferência é a etapa de chegar a
conclusões a partir dos dados analisados. Nas palavras desse autor, “a análise de
conteúdo constitui um bom instrumento de indução para se investigarem as causas
(variáveis inferidas) a partir dos efeitos (variáveis de inferência ou indicadores)”.
Nessa perspectiva, é importante falar que a partir da formulação das nossas
hipóteses e da organização e sistematização das categorias supracitadas chegamos
aos seguintes indicadores: ​a vida nas ruas; o exercício da escuta qualificada e o
atendimento referenciado pelas pessoas em situação de rua; e a importância e os
modos de atuação do Movimento em Feira de Santana. ​Eles serão explicitados de
uma forma mais detalhada na seção subsequente de apresentação e discussão dos
resultados. Na próxima seção deste trabalho serão apresentados os resultados
(variáveis inferidas) a partir da análise temática das falas das pessoas entrevistadas.
Em vários momentos, também faremos o diálogo entre os resultados e a primeira
parte de apresentação teórica neste trabalho.
71

6​ RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nesta seção, apresentaremos os temas da nossa análise, organizando sua


apresentação em três subseções: ​A vida nas ruas; o exercício da escuta qualificada
e o atendimento referenciado pelas pessoas em situação de rua; e a importância e
os modos de atuação do Movimento Nacional da População de Rua em Feira de
Santana. As subseções são, basicamente, os mesmos indicadores obtidos a partir
do agrupamento e síntese das categorias na etapa de inferência. Passemos,
portanto, à primeira subseção.

6.1 A VIDA NAS RUAS


Inicialmente, apresentaremos os processos de chegada na situação de rua
ou, melhor dizendo, como nos lembra Edcarlos, nas palavras de Cadu no poema
“abre” este trabalho: ​“que a pessoa se desencontra com a vida e ela acaba
chegando nessa condição”. ​Assim, ​é possível perceber que, com exceção de
Edcarlos que foi viver nas ruas para vivenciar uma “experiência mística e filosófica”,
os processos de “chegada nas ruas” de Andreval, Renny e Silvia foram marcados
pelo rompimento dos vínculos familiares e tiveram como fator agravante o consumo
de substâncias psicoativas.
Andreval relata que seu primeiro contato com as ruas foi em Fortaleza, em
2002, mesma época que teve a primeira experiência com o crack. De acordo com
suas palavras é possível constatar que a utilização de drogas “​foi minando os laços”
com sua família:
Mas devido os anos se passando aí novamente eu voltei a me envolver com
a drogadição, voltei a me envolver com o crack. Aí agora começou a minar
a minha vida com minha família tipo: minha esposa, meus filhos, minha
mãe, irmãos, primos. Devido o que eu fazia para usar a droga e como eu
andava que quando a gente começa a usar o crack que a gente começa a
mudar a forma de viver, né?

É interessante notar também que o processo de chegada nas ruas relatado


por Andreval é marcado por idas e vindas. Portanto, somente em 2013 é que ele
chegou “​efetivamente nas ruas, literalmente nas ruas”. ​Essa constatação nos remete
para o verbo “minar” que ele utiliza para se referir aos “​laços de amor, de carinho”
que tinha com sua família. Esse verbo, nesse contexto, expressa algo processual ou
72

algo que foi sendo corroído ao longo do tempo. Isso nos remete para a perda dos
vínculos familiares. Similarmente, ​Silvia também cita a perda dos vínculos familiares
no seu processo de chegada às ruas. Nas palavras dela: ​“​Aí quando eu me deparei
já estava afastada dos meus laços familiares e me encontrava com novos laços
familiares nas ruas”​. Chamamos atenção para o fato de Silvia utilizar o verbo
“deparar”, que nos remete a uma descoberta repentina da perda dos laços
familiares. De igual modo, Renny retrata sua chegada nas ruas a partir de “​uma
grande dificuldade com a família. ​Em outro trecho da entrevista, Renny é enfático: “​a
condição da rua foi o vínculo da família mesmo.” ​Tal como Andreval e Silvia, Renny
relata o uso de drogas como um dos fatores que contribuíram para a perda do
vínculo com sua família adotiva. Diz ele: ​“...a outra família não me agregava porque
eu chegava bebo e chegava bebendo muitas vezes.” ​Chamamos atenção para o
verbo “agregar” que está presente nessa frase e aparece em diversas outras falas
de Renny. De acordo com o Dicionário Online de Português37, um dos significados
de agregar é ocasionar o agrupamento de indivíduos. Dessa forma, é possível inferir
que Renny não se sentia integrado àquele agrupamento (sua família adotiva).
Com a perda dos vínculos familiares e com a passagem para a situação de
rua, Silvia e Renny, de uma forma mais direta, e Edcarlos, de uma forma mais de
geral, nos fornecem um panorama das relações construídas nas ruas. Silvia relata
um relacionamento amoroso vivido por ela com outra pessoa em situação de rua. As
palavras que Silvia utiliza para descrever o relacionamento são carregadas de
afetividade. Separamos alguns trechos:
Eu tive...eu tive um momento muito bom na minha vida, foi um
relacionamento que eu tive com um...um morador de rua também. Foi uma
pessoa que eu gostei muito, muito, muito mesmo. [...] Tudo que aprendi, foi
ele que me ensinou, tá entendendo? E eu vivi uma alegria imensa ao lado
dele; uma felicidade sem limite; uma coisa que eu nunca tinha sentido na
minha vida do lado daquele homem.

Destacamos a alta frequência do advérbio de intensidade “muito” bem como a


sua repetição como forma de superlativar o quanto ela gostava dele. Silvia relatou
que o relacionamento teve um fim muito triste com a morte do seu companheiro. Por
outro lado, Edcarlos cita que nas ruas encontrou muitos amigos. Já Reny relata uma

DICIO. ​Dicionário de Online de Português​. Disponível em: https://www.dicio.com.br/. Acessado


37

em 13 de Janeiro de 2018.
73

relação de apadrinhamento nas ruas. Segundo ele, quem ensinou a viver mais
rápido na rua foi o seu ​“pai-véi”​. Ele explica: “​a gente chama de pai-véi porque é a
pessoa mais velha da rua”. ​Renny expõe também que sua situação atual é o de
aposentado da maloca porque ele se afastou, mas que não é ex-maloqueiro.
Segundo ele, quando a pessoa se afasta é chamado de “puta-véia”:
Eu sou aposentado. O meu-meu-meu vulgo...o nosso nome quando é dado
quando a gente se afasta que a gente para, que se afasta um pouco da
maloca mas não é ex-maloqueiro, é sempre maloqueiro: é o chamado
“puta-véia”.

Para encerrar essa parte de apresentação das relações nas ruas,


gostaríamos de expor mais alguns termos da rua que foram informados pelas
pessoas entrevistadas. Com Renny, aprendemos que ​“maloca” ​é o grupo de
convivência na rua, considerado como uma família; ​“forasteiro” ​é nome dado às
pessoas em situação de rua que vêm de outras cidades; “​sameshuga” são as
pessoas que não querem ajudar/trabalhar; ​“fracatua/ estar procurando xaxo/ ou estar
com negócio de ratiação” ​é quando um acordo fica com duplo sentido: “ Isso tudo é
os nome que se dá às pessoa que induzindo a fazer o errado que a rua não aceita”;
e ​“manguear” ​é pedir​. ​Com Andreval, aprendemos que “​pitiro” ​é a mistura da pedra
de crack com a maconha. Segundo Andreval, isso é feito para ficar mais leve os
efeitos da droga e, assim, diminuir a ansiedade de voltar a usar. De acordo com as
palavras dele, ​“dar outra paulada no cachimbo”​.
Além de conhecer melhor o processo de chegada nas ruas, suas relações e
termos, também entramos em contato com as representações e metáforas que as
pessoas entrevistas tinham das ruas. Assim, para Edcarlos, a rua é o inesperado e
vínculo; para Silvia, a rua tem seu lado bom, triste e perverso. Para Renny, a rua é
vida e uma espécie de escola. Na descrição do tema abaixo, Renny deixa isso claro:
Então, a rua pra mim é tudo. A rua é tudo! Pra alguns, a rua é só pedra de
calçada, betume. Não! ...calçamento, para...Não! A rua, ela ensina. Ensina a ser
uma pessoa melhor; a dar valor aquilo que você não dava valor; a ser um pai
melhor; uma mãe melhor; um filho melhor; um neto melhor; um avô melhor. A rua
te ensina isso. Vá pra rua pra você ver se você não aprende dar valor a um
pedaço de carne; dar valor ao resto da comida que você joga no lixo. A rua te dá
tudo isso e te ensina a ser melhor...sempre o melhor. E então, a rua tem tudo isso
pra te...pra ensinar aqueles que não querem aprender na escola, aprende na rua.
Mas a história de vida é essa.
74

Terminada a apresentação e discussão dos resultados neste indicador,


podemos dizer que a hipótese de que a perda dos vínculos familiares ​é um dos
fatores que corroboraram para a chegada das pessoas entrevistadas na situação de
rua foi confirmada como pode ser visto ao longo deste indicador. A outra hipótese de
que as relações nas ruas são fundamentais para diminuir a vulnerabilidade das
pessoas em situação de rua também pode ser confirmada a partir de que Renny
falou que foi o seu “​pai-véi”​ quem o ensinou a viver mais rápido nas ruas.
Apesar dos resultados sobre a chegada na situação de rua, a relações que
essas pessoas mantêm na rua, os termos que os entrevistados apresentaram não
tocarem especificamente no exercício da escuta qualificada, levamos em
consideração que a compreensão de uma forma mais abrangente sobre a vida e a
vivência dos nossos entrevistados enquanto estiveram ou mesmo que ainda estejam
nas ruas visou realizar uma introdução contextualizada dos resultados centrais do
nosso trabalho que serão apresentados na seção seguinte.

6.2 O EXERCÍCIO DA ESCUTA QUALIFICADA E O ATENDIMENTO


REFERENCIADO PELAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
Este indicador apresenta as categorias que estavam inseridas dentro da
dimensão ​Acolhimento ​durante a nossa análise temática. Através da análise
temática foi possível concluir que das pessoas entrevistadas, somente Renny
respondeu afirmativamente ao questionamento de ter sido atendido por equipes de
saúde ou assistência social nas ruas. Apesar disso, foi possível obter informações
de quase todos os entrevistados sobre qual a forma de atendimento adequada para
as pessoas em situações de rua, quais comportamentos podem ser adotados e
evitados durante o atendimento, como se dá o exercício da escuta qualificada para
essas pessoas que foram entrevistadas. Portanto, a partir de então, iniciamos os
processos de comparação, confrontação e síntese dos resultados com o que foi
apresentado no Capítulo “​A escuta qualificada no contexto das políticas públicas” ​do
presente trabalho a fim de encontrarmos pontos de aproximação entre a teoria e o
que os membros do Movimento vivenciaram e compreendem como o exercício da
escuta qualificada. Mais do que isso, esse processo objetiva trazer novas
75

contribuições para o exercício da escuta qualificada, principalmente, quando o


público a ser escutado for as pessoas em situação de rua.
Dentro da dimensão ​Acolhimento​, elencamos uma categoria chamada
“Atendimento”​. Dessa forma, os temas de Silvia relacionados a essa categoria
apontam que ela nunca foi atendida pela equipe de saúde enquanto esteve na rua,
somente depois que foi para o Abrigo. Diz Silvia: ​“Mas, na rua, na rua, até onde eu
vivi, eu não tive esse acompanhamento. Tive a partir do momento que eu fui pro
Abrigo”. Já nesse primeiro acompanhamento Silvia relata uma mudança de atitude
uma vez que ela relata que, a partir do atendimento que teve no posto de saúde,
passou a ter mais coragem, a fazer o pré-natal e cuidar da sua saúde. Logo, cabe
rememorar que um dos efeitos tanto do acolhimento como da escuta qualificada, a
partir de uma relação dialética, é a potencialização do protagonismo e o estímulo à
autonomia da pessoa acolhida e escutada qualificadamente. Com isso, é ratificada,
a partir o relato de Silvia, um primeiro efeito da escuta qualificada: a do fomento ao
protagonismo e à autonomia de quem é escutado.
Na continuação do tema que Silvia relatou uma mudança de atitude em prol
do cuidado da sua saúde, foi possível constatar dois outros efeitos da escuta
qualificada a partir do que Silvia relatava. Vejamos o segundo trecho do tema: “[...]
onde eu me encontrei com ​[incompreensível]​. Me desesperei. Achei que já tava...
Mas, aí, hoje, os profissionais de lá conversaram comigo e disseram que não tinha
nada demais, e que tinha tratamento e que era normal. Aí eu fui, me tratei, cuidei da
minha saúde e fui cada dia mais melhorando​”. A análise temática desse trecho, nos
leva a dividi-lo em três partes: “​me desesperei”; “conversaram comigo”; e “aí fui, me
tratei”. ​A partir dessa divisão inferimos que a escuta qualificada estava imbricada
nessa conversa, principalmente, nas dimensões do cuidado e da sensibilidade.
Como consequência, Silvia passou a lidar melhor com o diagnóstico que obteve,
além de ela mesma relatar a adesão ao tratamento. Em última análise, o relato de
Silvia traz elementos que corroboram dois outros efeitos da escuta qualificada: a
aceitação do diagnóstico e a adesão à prescrição do tratamento.
De forma similar, Andreval relata que só veio ter o primeiro atendimento
quando decidiu sair das ruas e procurar uma Casa de Passagem. A partir de então,
passou a dormir todos os dias em Casa de Passagem chamada de Aprisco até o dia
76

que esta fechou. ​No caso de Edcarlos, ele relata que não buscou o atendimento de
saúde e também não via, em Salvador, a realização de atendimentos dos
profissionais do SUS voltados para população em situação rua, e que ao precisar de
atendimento normalmente recorria às unidades de saúde. Renny foi o único
entrevistado que respondeu afirmativamente ao questionamento se já tinha sido
atendido por profissionais de saúde ou da assistência social no período que esteve
em situação de rua. Ainda assim, Renny não detalha a forma como se deu esse
atendimento. Na sequência da sua fala, Renny passa a relatar a forma como
conheceu um equipamento, que antigamente acolhia as pessoas em situação de
rua, mas com a mudança da direção, deixou de ser um local que as pessoas em
situação de rua se sentiam acolhidas. Diz Renny: “​Em vez do lugar nos aceitar, ele
nos coloca pra fora. A forma do atendimento que eles faz é muito ruim. Hoje muitos
prefere tá na rua do que tá nesse lugar pra ser atendido pelo equipamento”. ​O que
podemos inferir diretamente dessa fala de Renny é a que a qualidade do
atendimento é precondição para que as pessoas em situação de rua frequente e/ou
busque os equipamentos de saúde.
Um dos primeiros passos para o exercício da escuta qualificada que
destacamos, a partir dos temas apresentados pelos nossos entrevistados é a criação
de vínculos. Quem aponta para esse elemento de uma forma mais direta é Edcarlos
quando fala: “​Você precisa criar vínculos. E o profissional, às vezes, não cria vínculo
com a pessoa porque ele fala que é a neutralidade”. ​De forma bastante similar, mas
utilizando o termo ​“formar uma ponte”​, Andreval aponta a criação de vínculos como
condição para o desenvolvimento de um bom trabalho entre profissional e pessoa
em situação de rua. Nas palavras dele: ​“Então, nessas coisinhas vai puxando
alguma coisinha aqui e ali, outra coisa ali, pra você formar uma ponte pra você
trabalhar com aquele cidadão, tendeu?” ​Antes de entrarmos na discussão dessa
condição para o exercício da escuta, é importante lembrar o processo de chegada
nas ruas de três dos nossos entrevistados (Andreval, Renny e Silvia) foi marcado,
justamente, pela perda de vínculos familiares. Com isso em mente, é interessante
notar como a criação de vínculos aparece nas falas de Edcarlos e de Andreval como
condição para o bom desempenho do trabalho entre profissional e usuário. Nesse
sentido, a escuta qualificada aparece como um método de (re)construção dos
77

vínculos usuário e profissional. De fato, a importância do profissional na


reconstrução do vínculo (“laços”, na fala de Silvia) aparece de forma contundente
nesse tema apresentado por Silvia:
[...]aonde eu reconstruí os laços com minha família novamente com a ajuda
dos profissionais, que sozinha eu não conseguiria. Onde teve psicólogos
que foi conversar com...diretamente uma reunião com minha família; falar
que eu...o meu problema era doente...que qualquer momento, eles tinha
que tá preparado pra me abraçar e me levantar dez mil vezes que eu
caísse, ou que eu voltasse pra rua; que eles tinha que me entender que eles
não tinha essa visão, tá entendendo?

Além da criação de vínculos para o exercício da escuta qualificada, a


construção de uma relação baseada na confiança aparece de forma categórica na
entrevista com Andreval bem como na entrevista com Silvia. ​Andreval relata que
optou por não ser atendido por duas assistentes sociais que estavam
acompanhando ele. Ao ser questionado o motivo, Andreval relata que foi ​falta de
confiança ​na relação entre ele e as profissionais . ​Por outro lado, Andreval descreve
o acompanhamento por uma assistente social que ele gosta. Nas palavras dele:
É...o acompanhamento dela eu gosto porque... hoje...porque...nós já temos
uma relação, não somente de profissional para com ​[incompreensível]​, mas
nós temos ​uma relação de confiança​. Porque ela me transmitiu confiança
desde quando eu falei para ela que eu não estava mais acreditando na
assistência, que eu poderia...que eu queria poder fazer as coisas sozinho. E
uma vez ela me disse uma coisa que ela falou assim: “ Andreval, você vai
ter que falar a verdade do que acontece com você para que eu possa falar
lá, possa argumentar por você e não ser pega de surpresa com mentira.
Então falei: “Então, pronto! Da mesma forma eu peço a senhora, a senhora
trabalhe comigo com a verdade e a gente vamos trabalhar”​ ​(Grifo nosso).

Por sua vez, Silvia é precisa ao apontar a importância da confiança na relação


entre profissional e a pessoa atendida. Diz ela: “​Assim, me alivia mais porque eu
confio neles, tá entendendo? Porque não seria legal uma relação de um profissional
para um, né, um assistido sem confiança. Não existe! Não vai! Não funciona!”​. Em
outro trecho da entrevista de Silvia, ela aponta para as consequências da escuta
qualificada na vida dela. Vejamos:
[…] quando eu dei por mim, eu já confiava nela​. Ela já sabia de coisas da
minha vida que eu não abri pra ninguém; e que não abre, e que não...em
hipótese nenhuma...e ​ela foi me passando aquela confiança​, e no que eu
conversava com ela, ​parece que um lado da minha vida funcionava,
sabe? ​Parece que as coisas começava a tomar seu rumo. Parece que
as coisas começava a se resolver. ​Eu falava dos meus desejos, das
minhas vontades, do meu futuro e aquelas coisas parece que ia
tomando rumo na direção certa. E aí, eu fui me aprofundando; e aí, eu me
78

identifico bastante e comigo funcionou. É...eu..era...foi muito difícil, mas eu


tenho que admitir que funcionou ​(Grifos nossos)​.

Com isso, e tal como afirmamos anteriormente, a escuta qualificada pode


funcionar como um processo preliminar na construção da confiança, uma vez que
podemos considerar que a escuta, a criação de vínculos e a construção da confiança
mantém uma relação dialética entre si. A fim de que esses processos não se
restrinjam tão somente ao campo teórico, sistematizamos métodos e/ou
procedimentos de aproximação, atendimento e construção de vínculos com as
pessoas em situação de rua a partir da contribuição dos membros do MNPR-FSA
Quanto à forma de aproximação, recorremos à fala de Edcarlos: “​Mas com a
população de rua...se ele tá de pé, você vai ficar de pé; se ele tá sentado, você vai
ter que sentar. Se ele tá deitado, não isso, mas, pelo menos, se ele tá deitado, você
senta”. ​Edcarlos ainda explica que esse tipo de aproximação e primeiro contato
serve para desconstruir o “​ar de poder”. ​Esta expressão utilizada por Edcarlos nos
remete diretamente sobre a importância de se construir uma relação de
horizontalidade entre profissional e pessoa em situação de rua tal como foi
apresentada no capítulo que trata da escuta qualificada. Com isso, tomamos
conhecimento do tipo de ação que podemos adotar para nos aproximar dessas
pessoas de uma forma que ajude a desconstruir a hierarquia existente. Essa
primeira forma de aproximação é o que Edcarlos denomina de ​“estar”​. A segunda
etapa da aproximação, Edcarlos chama de “​conviver”. ​Nas palavras de Edcarlos:
“​Então, como é que a gente se aproxima?” Eu não me aproximo: “Nome?
Quem é? Pra onde vai?” Eu só me aproximo. Quando a pessoa puxa
conversa a gente vai criando esse vínculo. Aí, pra mim a metodologia é
essa: a partir do estar, você alcança o conviver, e do conviver, você cria
vínculos. Então seria um pouco, criar uma linha metodológica, né?!

Como é possível inferir desse trecho da fala de Edcarlos, após a aproximação


e a iniciativa da pessoa em situação de rua em “​puxar conversa”​, começa-se a
criação de vínculos. De fato, o ato de conversar ou, como denomina Andreval, ​“bater
papo” ​é uma das formas para se gerar confiança, no caso em questão entre
profissional e pessoa em situação de rua. Nas palavras de Andreval, ​“... o que vai
gerar aquela confiança é justamente isso: esse bate-papo, esse diálogo. Essa troca
de conversa que vai gerando a confiança”. ​Ao ser um pedido de esclarecimento
direto para Andreval sobre o que ele entende por bate-papo, este responde:
79

É...eu acho assim, em primeiro lugar, tem que ter o olhar, né? “Qual o
olhar?” De uma pessoa ​sentar pra conversar pra entender como passou a
semana, o final de semana, o dia. Que muitas vezes você chega pra pegar
o encaminhamento...o profissional só lhe dá o encaminhamento, né? ​Não
pára pra lhe ouvir; ​saber suas demanda; procurar saber se você tá
inserido no CAD-Único. Se você tá inserido no Programa Minha Casa Minha
Vida. Se você tá passando por algum problema na saúde. Se você está com
algum problema na área de...de...psicológica, pra mandar pro psicólogo. Se
você quer...tem interesse em ir pro de Centro de Recuperação ​(Grifos
nossos).

O primeiro elemento que gostaríamos de destacar é que Andreval afirma que


o profissional precisa “​ter um olhar”. ​Pelo contexto da frase, é possível inferir que
esse olhar não está semanticamente relacionado ao ato físico de direcionar os olhos,
mas ao seu sentido metafórico relacionado com ​ter o entendimento ​ou como
conceitua o Dicionário Online de Português38 “​tomar em consideração”. ​No caso em
questão, esse primeiro elemento de “​ter o entendimento” ​é complementado pelo
segundo elemento que gostaríamos de chamar a atenção, qual seja: “​sentar para
conversar”. ​Semanticamente falando, essa expressão dá margem de chegarmos a
duas interpretações: primeira, a que reforça um dos elementos de aproximação
apontados por Edcarlos, que está relacionado ao ato físico de agachar por causa da
flexão dos joelhos; e uma segunda interpretação que nos remete ao sentido
metafórico dessa expressão que é ​disponibilizar um tempo para conversar​. Essa
segunda forma de compreensão, se torna ainda mais coerente ao verificarmos que
uma das definições que o Dicionário Online de Português39 atribui ao verbo sentar é
permanecer num local durante um tempo. ​Através do contexto do tema, inferimos
que a expressão “​sentar para conversar” ​utilizada por Andreval está relacionada a
seu sentido metafórico de o profissional disponibilizar um tempo para conversar​. Em
adição, essa inferência é reforçada pela crítica que Andreval faz de que o
profissional “​não para pra ouvir” ​a pessoa que ele está atendendo. Em síntese, o
trecho destacado da fala de Andreval permite inferir que é importante que o
profissional tenha o entendimento de que é elementar disponibilizar de um tempo
para conversar com a pessoa que está sendo atendida, mais do que isso, ter um
tempo de parar para ouvir o que esta tem para dizer.

38
Disponível em:​ ​https://www.dicio.com.br/olhar/​. Acessado em 25 de janeiro de 2018.
39
Disponível em:​ ​https://www.dicio.com.br/sentar/​. Acessado em 25 de janeiro de 2018.
80

De fato, os temas das falas de Edcarlos exprimem de uma maneira


categórica a importância do elemento ​tempo ​para o exercício da escuta qualificada.
Segundo Edcarlos:
A escuta qualificada não tem como você medir: “Eu vou entrar aqui agora e
vou querer falar dez minutos, vou querer falar uma hora”. Como você vai
falar uma hora se o profissional só pode ouvir vinte minutos? Aí, ele pode
interromper o melhor momento que eu tenho pra se expressar com ele.
Então, a escuta qualificada perpassa por a disponibilidade do servidor.
A disponibilidade, assim, de tempo mesmo.​ ​(Grifo nosso)

​Essa disponibilidade de tempo do servidor, apontada por Edcarlos, pode ser

diretamente remetida a uma das habilidades significativas para o exercício da escuta


qualificada que apresentamos na parte teórica. Alia-se a essa habilidade outro ponto
também apresentado por Edcarlos que é o da ​“não interrupção” ​do que a pessoa
está falando. Nas palavras de Edcarlos, “​a escuta qualificada perpassa também por
isso, pelo tempo, por um querer saber a vida do outro. Mas deixar o outro se colocar,
se dar.” ​De igual modo, Silvia nos dar margem para inferir a importância de ter o
tempo de cada pessoa respeitado. Segundo ela, os profissionais que a
acompanham: ​“Me orienta, assim, pra que eu aprenda a dar um passo de cada vez.
Eu me sinto bastante... Eu não sei nem dizer qual é a palavra certa que se usa: “É
realizada?” Não! É...eu me identifico bastante”. Nesse tema da entrevista de Silvia, é
possível perceber um atendimento voltado para orientação da pessoa atendida e
realizada de uma forma processual que pode ser inferida pela utilização da
expressão ​“dar um passo de cada vez”; r​espeitando o tempo dela. Esse parece ter
sido um elemento fundamental para o processo de saída das ruas de Silva.
Enquanto isso, para Renny, outros elementos estiveram envolvidos no seu
processo de saída das rua. O primeiro deles foi o amor à sua própria vida: ​“​Não foi
nem amor a sobrinho, a mãe, a irmã a importância... Não, nada disso! Foi a minha
própria vida!”​. O segundo elemento que Renny relata está relacionado ao
reconhecimento social. Diz ele:
Hoje, a importância também de você sair da rua é de você saber que você
tem que ser respeitado quando você passar, as pessoas baixar a cabeça.
Dizer: “Ó! Aquele menino era morador de rua mas ele teve exemplo, como
morador de rua e como pessoa agora.” Porque as pessoas não quer
agregar, mas é uma pessoa só: morador de rua é um, não! e a
sociedade...​eu sou da sociedade civil. Eu sou outra pessoa? Não! ​Eu sou
a mesma pessoa. Eu sou da sociedade civil e sou um morador de rua,
81

sou uma só. Mas as pessoas divide. E aí, a maior importância também foi
essa ​(Grifo nosso).

As frases acima destacadas nos remetem diretamente para primeira parte do


nosso trabalho sobre a terminologia sugerida de ​pessoa em situação de rua. ​De fato,
a invocação do status de pessoa/cidadão ainda que em situação de rua pode ser
percebida de maneira inequívoca nas orações em destaque. Há de se observar, no
entanto, que Renny utiliza o termo ​morador de rua ​em boa parte, senão, em toda
entrevista. Realizado esse registro, e tendo apresentado duas condições que Renny
apontou como relevantes para sua saída das ruas, passamos a relatar o processo
de como Renny significa esse momento da saída dele. Inicialmente, ele relata que
sua colega (que posteriormente descobrimos que é a assistente social e militante do
MNPR-FSA, Carla Silva) deu um sopro no ouvido dele, caiu na sua mente e fez com
que ele acordasse. Nas palavras de Renny:
Ela falou: “Rapaz, você tá novo. Você precisa...você tem ainda história de
vida.” Aí eu despertei. Eu falei: “Opa! O que ela falou… ‘é uma só’. Então,
oxe, meu lugar não é esse aqui, não! não é a rua, não; nem o fundo do
Tênis. Meu lugar é no meio da sociedade, fazendo aquilo que ela não
entende que ela quer que faça pra os que tão aqui.” Aí eu acordei e falei:
“Eu tenho serventia, rapaz! Oia, dá pra me utilizarem. Eu vou me deixar me
utilizar.” É o que eu deixo hoje.

Os efeitos disso que Carla falou para Renny é explicado nos seguintes
trechos:
ela que conseguiu mudar meu pensamento, mudar meu jeito de ser, meu
jeito de pensar; porque quando uma palavra que ela lançou eu agarrei e ela
é uma pessoa de grande importância na minha vida porque foi ela que
conseguiu, a única pessoa do mundo inteiro, que conseguiu me tirar
daquele lugar das ruas, do mundo das drogas. [...] E aí, ela fez...me ajudou
a dividir esses pensamentos; me ajudou a escolher um caminho: se eu
queria continuar ali bebendo naquela sarjeta ali, dormindo nas calçadas,
passando mal[...]. E eu tentava mudar isso mas sem força. E, ela me dava
essa força. [...] Então ela é de grande importância na minha vida porque ela
me ensinou a viver de novo.

Como é possível inferir até então, Renny explica a sua saída das ruas a partir
daquilo que Carla falou para ele e que resultou em três consequências, segundo ele:
fez com que ele mudasse seu jeito de ser e pensar; ajudou no discernimento das
suas escolhas; e por fim, trouxe força para ele. Essas consequências nos remetem
diretamente ao enfoque apresentado na parte teórica no qual a escuta qualificada
era tratada como uma ferramenta que tem a finalidade de promover a reflexão dos
82

sujeitos sobre suas trajetórias de vida, estimulando-os e orientando-os a buscar as


respostas para suas necessidades. Diante disso, é possível afirmar que foi o
exercício da escuta qualificada de Carla que gerou essas consequências para
Renny. De fato, em dois temas diferentes Renny detalha cabalmente esse processo
de escuta:
Rapaz, no gesto dela. O gesto dela, a forma de falar, a forma de-de-de ter
carinho, ​a forma de se aproximar, ​a forma de ouvir. Às vezes, ela só
ouvia. Ela nem falava, ela ouvia. Só nesse gesto que ela fez, no olhar, na
troca de olhares. Não o olhar de gente interessado, o olhar de respeito, de
carinho, dizendo: “Eu tô aqui sempre do teu lado. Eu tô preocupado com
você. Eu tenho me preocupado com você.” ​(Grifo nosso).

E ainda:

Por uma palavra, ​pela escuta que ela fez, pelo que ela me ouviu; só me
ouviu. Quando ela me ouviu e ela lançou uma palavra, essa palavra fez uma
revolução de três anos e até hoje tá decorrendo. Toda vez que eu lembro de
fazer uma besteira, de fazer alguma coisa, eu lembro do que ela me falou.
Automaticamente, fica aceso: “Ei! Tu lembra onde tu tava? Tu lembra
quando e falaram que tu tinha como e que tu podia...e pode agora?! Ó onde
tu tá!” ​(Grifo nosso).

Desses trechos depreende-se alguns elementos do exercício da escuta


qualificada de uma forma genérica. Primeiramente, damos destaques a três deles: ​o
gesto, a forma de se aproximar e a forma de ouvir. ​Depois Renny especifica que, às
vezes, ela só ouvia. Transpondo um grau de importância maior para o ato de ouvir.
Renny ainda destaca a forma de ​olhar com respeito ​que a presença de Carla
denotava . No segundo trecho, Renny volta a chamar atenção para o ato de ouvir e
novamente faz referência aos efeitos do que Carla falou para ele. Renny fala que
depois de ouvir as palavras de Carla começou “​a crescer​” e que essa é a tendência.
Como é possível perceber, não tivemos maiores oportunidades durante a entrevista
com Renny de explorar de uma maneira mais precisa a que gestos Renny se refere,
ou mesmo como seria essa forma de se aproximar. Da contribuição de Renny resta,
dentre outras coisas, a importância que ele atribui ao ​ato de escutar.
A partir da contribuição de Andreval para nossa compreensão dos efeitos do
exercício da escuta qualificada, é possível inferir as consequências que o ato de
escutar pode ensejar. Diz Andreval:
E quando você vê alguém que para pra te ouvir [incompreensível] pra
te escutar , você se acha que você tem uma importância pra aquela
pessoa. Você não é mais simplesmente o nome que vai ser
encaminhado, mas você é uma pessoa que ali te ouviu que ali te
conhece. E, se a pessoa que conversar com você, num outro dia quando
83

ela te ver ela vai saber teu nome. E quando você não para pra conversar,
você dá encaminhamento, você viu a pessoa mas não sabe nem o nome.
[...] Quem dorme na rua não sabe se essa noite ele ficou bem na rua, se
sofreu alguma violência por parte da Segurança Pública. Se sofreu alguma
violência pela própria pessoa em situação de rua, pela Maloca. Ou... se foi
bem a noite. Então tudo isso é um vínculo que é construído através...a partir
da conversa, do parar pra ouvir. Então isso é muito importante pra gente
(​Grifo nosso​).

Ou seja, Andreval estabelece uma relação entre o ato de escutar e a


percepção da importância que a pessoa atendida tem para o profissional que está
realizando o atendimento. Em outras palavras, ao se sentir escutado, o sujeito passa
a se sentir também reconhecido enquanto pessoa na dimensão da sua
singularidade. Essa inferência ganha maior expressão a partir da análise do próximo
trecho transcrito da fala de Andreval. Vejamos:
Hum rum...É! Exatamente! Entender o cidadão a partir do que ele fala pra
ela, ou pra ele...dependendo do que...porque...é...eu conhecer você pelo
papel porque Fulano...é...te encaminhou, aí eu tratar você pelo-a, pelo
nome, pela situação e, não te ouvir...Então fica mais complicado. Quando
você entende, ouve, para pra entender, ouvir, aí, sim. Você vai ouvir aquela
pessoa.

Nesse trecho Andreval faz a distinção entre dois tipos de atendimentos: um


no qual não é exercida a escuta e outro no qual a escuta é exercida. A primeira é
aquela que o profissional passa a conhecer a pessoa atendida a partir “do papel de
encaminhamento”​. Esse atendimento, Andreval classifica de complicado. Por outro
lado, Andreval apresenta um segundo atendimento no qual o profissional passa a
entender o cidadão a partir do que este ou esta fala para ele. A utilização da
expressão “​aí, sim​” denota justamente a oposição do primeiro atendimento
(complicado) ao segundo atendimento (aquele que flui ou que dá certo). Chamamos
a atenção que, para descrever o atendimento que flui, Andreval utiliza as expressões
“​entender o cidadão” ​e “​ouvir aquela pessoa”. ​O que nos leva a inferir que exercício
da escuta qualificada também é um processo de reconhecimento do cidadão/pessoa
em situação de rua, além de ser o que faz o atendimento fluir.
Então, cumprindo o objetivo central deste trabalho de compreender a partir
das falas dos quatro membros do MNPR-FSA como se dá o exercício da escuta
qualificada, chegamos a uma formulação síntese: o exercício da escuta qualificada
perpassa: tanto pela criação de vínculos como por saber que ela também ocasiona
84

essa criação; pela construção de uma relação de confiança; pelo conhecimento de


procedimentos de aproximação; pela disponibilidade de tempo; por não interromper
e por respeitar o ritmo da pessoa; por saber que o bate-papo é uma das formas de
gerar confiança; por saber orientar a pessoa de uma maneira processual; por saber
que seu exercício é uma das formas de reconhecimento do outro, como diz a nossa
epígrafe: uma das formas de ​legitimar o outro.
No entanto, a fala de Coutinho (2013) ainda guarda uma pergunta: ​“Agora
quem é que “tá” preocupado em legitimar o outro?”

6.3 A IMPORTÂNCIA E OS MODOS DE ATUAÇÃO DO MOVIMENTO EM FEIRA


DE SANTANA
O presente indicador decorreu da dimensão ​Movimento ​e a síntese das três
categorias sistematizadas a partir dela. Inicialmente, faremos uma breve
apresentação de como cada pessoa conheceu o Movimento. Nessa primeira parte
também optamos por apresentá-la de forma cronológica a partir de quando cada
entrevistado conheceu o MNPR-FSA. Nesta perspectiva, começamos por Edcarlos,
que contribuiu para a implantação do Movimento em Feira de Santana.
Edcarlos relata que conheceu o Movimento em 2007, um ano depois de ter
ido para a Igreja da Trindade viver o que ele chama de “​experiência mística e
filosófica”. ​Ele também explica que uma das propostas da Igreja da Trindade era
discutir políticas públicas. Com isso, ele começou a participar de eventos que tinham
o objetivo de debater essas políticas. Segundo Edcarlos, foi a inclinação dele em
participar desses espaços que possibilitou conhecer o Movimento: “​E aí a gente
começou a fazer política pública com o Movimento. Aí, eu me apaixonei pelo
Movimento, pela metodologia que Lúcia aplicava, né, que a galera começou a
aplicar. E aí, eu tô inserido hoje no Movimento”. ​Lúcia, Edcarlos cita na entrevista
como a coordenadora nacional e estadual do Movimento na Bahia. Logo depois,
Edcarlos faz um breve resumo histórico de como foram os primeiros anos do
Movimento em Feira de Santana. Lembramos que foi a partir de 2011 que o
MNPR-FSA começou a ser implantado, então diz Edcarlos:
A gente chegou... comecei a conviver com o pessoal. No primeiro ano,
fiquei nas praças mesmo. É...segundo ano, eu conheci sr. Vivaldo, né, do
85

Conselho de Assistência. Aí, comecei a perguntar como é que se dava os


Conselhos aqui. Depois comecei a participar do Conselho de Assistência
Social. Ia lá só para ouvir. Depois comecei a ter direito à fala. Depois eu
comecei...aí veio Carla. Depois fui trabalhar em programa chamado é...
“Bahia Acolhe” que o Movimento tava arrumando. Aí fui trabalhar um pouco
na formação a partir da experiência, né, e fui ser educador social no
Alabastro. Era uma Casa de Passagem que tinha aqui, mas que fechou. E
aí, foi quando o pessoal da rua começou a se agregar. Aí apareceu
Salvador, apareceu Admilson que tinha uma reflexão...Admilson tinha uma
reflexão muito boa de políticas públicas. Aí Carla começou a contribuir, mas
o Movimento tem que ser composto por quem tá...por quem é da rua. É a
rua que tem que conduzir o Movimento. Então era a ideia de sensibilizar. Aí
apareceu Renny, aí Renny, Gemissara, Jussara, Saulo, é...Larica, é
Josevan, Luciano, né. Essa galera foi aparecendo e aí hoje nós temos uma
militância em Feira. E dos militantes, hoje, bem próximos da gente,
é...Renny que tá no Encontro agora a nível nacional, né, como
representando a população do estado da Bahia. E Andreval também que
está presente nessa reflexão. Então nós fomos plantando, as coisas foram
acontecendo [...] Mas a implantação do Movimento mesmo foi a partir de um
estilo de vida, que é uma causa que eu acredito e que vale a pena.

​Pode-se depreender desse trecho a importância que Edcarlos teve para a


implantação do Movimento em Feira de Santana, o que é reforçada pela frase que
remete a implementação do Movimento ao seu próprio estilo de vida. Chamamos a
atenção também para a predileção do Movimento, segundo as palavras de Edcarlos,
para que esse coletivo seja composto, preferencialmente, por pessoas que estão ou
que estiveram em situação de rua. No entanto, e como já destacamos no terceiro
capítulo do presente trabalho, o MNPR-FSA conta com o apoio de algumas
instituições e grupos enquanto parceiros. Dentre elas, Edcarlos ressalta a parceria
que o Movimento mantém com a Universidade Estadual de Feira de Santana. Nas
palavras de Edcarlos: “​Mas a-a universidade, hoje, é uma parceira, né?! Quando
bota a logomarca do Movimento e a logomarca da UEFS juntas. Ah! Isso dá uma
força! Aí agora entrou a logomarca da Sou Ubuntu, da Cáritas, da Defensoria
Pública, do ACN, né?!”. ​Aliada à parceria com a UEFS, Edcarlos menciona a
importância da produção científica a partir do Movimento. Lembramos que essa é
uma das formas de atuação do Movimento. Nos termos de Edcarlos, a produção
científica faz parte da ​educação sistemática ​enquanto o Movimento está no campo
da ​educação popular. ​Para ele, este tipo de educação é marcada pela tradição oral.
Ele avalia a necessidade do diálogo entre esses dois tipos de educação e ainda
demarca que as pessoas em situação de rua não são objetos de estudo. Nas
palavras dele: “​nós somos da educação popular, mas nós temos que dialogar com o
86

mundo sistemático. E dentro desse contexto, nós temos levado que nós não somos
objetos de estudo. Aqui, nessa pesquisa, nós somos o sujeito!”
Edcarlos demonstrou-se exultante em falar que, dentre outras, uma das
maiores conquistas do Movimento foi a lei municipal 3.482 de 2014, que institui a
política municipal para a população em situação de rua e dá outras providências;
também o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política
Nacional para População em Situação de Rua (CIAMP-Rua) que começou a ser
implantado no Município em 2016. Por fim, Edcarlos menciona seis territórios
mapeados pelo Movimento onde, à época dessa pesquisa, esse coletivo conseguia
atuar.
Hoje nós temos: o primeiro, Matriz; o segundo, é... fundo do Tênis; o
terceiro, Kalilândia; o quatro, o Centro de Abastecimento; o quinto,
rodoviária; e o sexto, Cidade Nova. Então a gente mapeia os principais
pontos que as pessoas estão. Aí você tem uma grande avenida que é a
Getúlio Vargas e Presidente Dutra. A gente vê como uma grande avenida
que você vai passar lá e vai encontrar em vários pontos ali pessoas.

Foi justamente no segundo espaço mapeado pelo Movimento, o fundo do


Tênis, que o Movimento foi apresentado por Carla a Renny. Através da entrevista é
possível concluir que isso aconteceu em 2014, mesmo ano em que Renny se tornou
membro do Movimento. Segundo Andreval, foi justamente a Renny que ele se
reportou para saber como entrar no Movimento. Andreval fala:

O Movimento de População de Rua, eu conheci no Aprisco. Eu tava Casa


de Passagem do Aprisco. Comecei a conhecer o Movimento, acho que foi
em meados do mês de... entre Fevereiro a Março. Foi porque...não,
fevereiro que foi no carnaval que eu conheci o Movimento. Mas conheci o
Movimento, as pessoas do Movimento! Mas não tinha contato ainda com o
Movimento em si. Eles, lá, ia visitar as pessoas lá na casa de passagem, e
às vezes, eu tava assistindo televisão, eu olhava eles passar, às vezes de
camisa azul, às vezes de camisa vermelha, né, e eu ficava sempre
perguntando às pessoas: “Quem é esse povo, quem é esse povo, e tal e
tal.” Sempre quem aparecia lá era Renny, Edcarlos e Carla. Era esses três
que sempre ia lá direto, ia lá direto. Aí depois, sim, que eu comecei a se
aproximar deles, e cheguei até Renny e perguntei: “Oh, Renny, como é que
faz pra andar junto com vocês, aí, tal? Conhecer vocês?”. Ele: “Não. Nós se
reunimos…” Naquele tempo eles sempre se reunia aqui na Cáritas que era
onde antigamente era o Movimento Água Viva, né. Aí eu vim sempre para
cá nas reuniões deles aqui. Eu comecei a conhecer eles.
87

De forma similar, foi em uma das intervenções do Movimento na rua que


Silvia passou a se interessar para conhecer melhor o Movimento. Ela relata que
mais ou menos em 2015:
Eu tava vindo ali pra...do lado do Tênis. Aí tinha uma pano do Movimento no
chão. Edcarlos, Carla e Renny, com as camisa, servindo café da manhã. Eu
falei: “Óia! Que lindo! Vocês é da igreja, é?” Eles: “Não! Nós somos do
Movimento, tal e tal, tal e tal, tal e tal. [...] ​Aí eles me falaram do Movimento
que até então...eu tive aquele primeiro contato com eles​, ​e, depois, eu vi
eles nas trajetória, visitando o pessoal na rua onde eu me encontrava, ali
debaixo do viaduto. Aí eles passaram, falaram.

Apresentada essa primeira parte, passamos a apresentar o que as pessoas


entrevistadas elencaram como pontos que demonstram a importância do Movimento
para as pessoas em situação de rua e, eventualmente, para elas mesmas. Para
Silvia, a importância do Movimento para as pessoas em situação de rua reside na
constância da presença do Movimento em diversas etapas da vida das pessoas em
situação de rua. Nas palavras dela:

A importância deles...rapaz, quem tá na rua, todo mundo, em qualquer


situação, é tão importante pra eles que, às vezes, é até difícil falar, sabe?
Porque...se uma pessoa morre, eles estão juntos; se uma pessoa nasce,
eles tão junto; se uma pessoa tá doente, eles tão junto no hospital. São
humanos mesmo, né? Se uma pessoa se acidentou, eles tão colado junto.
Incrível! ​(Grifo nosso).

Edcarlos vê a importância do Movimento por este ser ​uma representação​, de


acordo com ele, para a pessoa em situação de rua. Os temas apresentados por
Renny e Andreval detalham melhor em que sentido se dá essa representação aliada
à atuação do MNPR-FSA. As falas de Renny e Andreval convergem para
demonstrar que o Movimento é um espaço de formação política, reflexão e
empoderamento no qual ambos aprenderam sobre leis, direitos e políticas públicas a
partir do momento que se tornaram militantes do Movimento. Nas palavras de
Renny, o Movimento “te mostra as porta de entrada; toda política aberta pra que
essas pessoas, no meu caso, viver. Pra ter meu bem-estar, pra ter minha casa, eu
tenho que passar por essa política. Eu não gostava mas o Movimento me fez
compreender o que é política, da forma adequada que deve ser; utilizar ela dessa
forma.” ​Portanto, segundo as palavras de Renny, o Movimento proporciona a
aprendizagem política (tal como nos referimos na parte teórica).
88

Já Andreval, além de corroborar com o pensamento de Renny, iniciamos com


a fala dele a resposta para a pergunta formulada por Coutinho (2013), sobre quem
está preocupado em legitimar o outro:
E com o Movimento não foi diferente: eu comecei a andar com eles...a
andar com eles e a partir daí, e de andar com eles, eu comecei a entender
coisas. Coisas que eu digo assim...sobre lei...sobre políticas pública,
né...sobre...é...direitos. Então aquilo, caiu a minha real. Então eu disse:
“Não! Isso aí, essa onda rola!” [...] ​E o Movimento...ele tá me ajudando
nessa parte aí que são pessoas que, como eu falei antes, ouve, nos
escuta, né. É...coloca a gente em lugares que a gente possa entender o
que é o direito. O que a gente pode e o que não pode. Então quando a
gente sai, quando a gente sai da...do...do Centro Pop, vai pra a Casa de
Passagem e lá a gente tem um direito nosso violado. “O que é que a gente
faz?” ​Vai pro Movimento fazer uma reflexão. Não tô dizendo que o
Movimento tem poder dentro da Casa de Passagem, nem dentro do Centro
Pop. ​Mas são pessoas que a gente pode fazer uma reflexão, conversar,
dizer o que aconteceu e dizer: como foi tratado no Centro Pop. Como
foi tratado na Casa de Passagem. A partir daí, o pessoal do Movimento
que tem mais conhecimento de direito, a falar com a gente: “Não. Isso
aqui você errou. Isso aqui você tá certo…então a gente vai correr atrás
de tudo isso aqui. Vamos ver como é que vai.​” A partir daí, a gente vai
pegar o [incompreensível] que é o Corra pro Abraço, a Defensoria Pública,
dependendo até pro Ministério Público. Mas nós temos que ter o que?! Essa
base! “Qual a base?” A base de conhecimento, de apoio pra que a gente
possa andar (​Grifo nosso).

A partir da fala de Andreval, podemos inferir que “as pessoas” do Movimento


se empenham em realizar uma escuta qualificada tanto dos seus próprios membros
tanto das outras pessoas que estão em situação de rua, mas que não fazem parte
do MNPR-FSA. O empenho do Movimento em legitimar e ocasionar o
autorreconhecimento de sujeito portador de direitos pelos cidadãos em situação de
rua pode ser percebido, de uma forma ainda mais categórica, na seguinte fala de
Renny:
o Movimento pras pessoas em situação de rua é o que mantém as pessoas
informadas; é o que faz o apoderamento surgir, acordar, sair daquele lugar
da sarjeta pra ir pro meio da sociedade. Ser um cidadão de bem. ​Se
reconhecer cidadão. ​O Movimento dá apoderamento ao cidadão. ​Eu sou
cidadão, ainda que esteja em situação de rua! O Movimento te dá
essa..essa..essa clareza. Ela abre tua vista, abre tua mente.[...] Se você
quer continuar ali na rua, mas você tem que continuar de uma forma ideal,
igual; mesmo dentro da política, ​igual que é os direito que ainda seja
garantido na rua​. O Movimento dá essa clareza, dá esse ensinamento.
Porque o Movimento, ele é monitoramento das política pública da população
de rua; o Movimento, ele te orienta, te aconselha, ele te acompanha do
começo ao fim, não te abandona e ele tá sempre em frente à luta, à sua luta
[...]. Então foi muito mais fácil porque eu já tinha esse despertar mas eu
tinha que ter esse apoderamento e quem me deu foi o Movimento. ​O
Movimento me deu esse apoderamento de voz. O Movimento te dá voz;
pode não ter voto, mas voz...o espaço que tem que ocupar, a cadeira é tua,
89

não é dos outros, é sua. O Movimento faz...te dá...é a porta de entrada da


rua. ​O Movimento, ele te faz te adentrar dentro dos conselho; dentro
dos espaços público que não quer te aceitar; por direito, você tem
acesso e eles não quer te deixar. ​O Movimento vai lá com você e te faz…
“traz a bandeira, traz a camisa. Veste a camisa aí. Você é Movimento.” “Eu
tô aqui como Movimento. E aí, vai encarar? Não vai, né?” Porque é um
Movimento articulado, formado e se...bem fechado. ​É o único movimento
que tem um só pensamento: que é defender as políticas da população
de rua, como todo. Tem ainda essa palavra “como um todo”. Não exclui,
só é morador de rua, não; inclui todo mundo, é um coletivo. Se você, ainda
que não seja um morador de rua, não determina e tá precisando de ajuda,
colamos com você, seja quem você é, por raça, cor, sexo, o que você for, a
gente não quer saber. A gente quer saber o que você precisa do
Movimento. Que orientação você quer? Então o Movimento te ensina isso.
E eu aprendi isso com o Movimento: ser um bom conselheiro e ser um
bom...e outra, esqueci também, é mediação de conflito em palavra, em
ação, em física, em ação física: uma faca, uma... você tem mediação de
conflito. ​Como você ganha aquela pessoa só numa conversa, no
diálogo? Chama ela pra apaziguar: mediação de conflito. Você desarma
ela, às vezes, só na palavra. [...] no momento da gente mediar o conflito, a
gente media também. Apaziguar, apazigua. “Paz pra todo mundo! Paz e
amor!” É...​o Movimento ensina também a ser um mediador de conflito
(Grifos nossos).

Como falamos na apresentação dos resultados sobre a escuta qualificada, o


exercício dessa favorece a autonomia e o protagonismo da pessoa bem como a
legitimação de si enquanto pessoa. Além disso, a escuta qualificada é bem exercida
quando baseada na orientação procedimental. Todos esses três elementos da
escuta qualificada aparecem direta ou indiretamente na seguinte fala de Andreval:

Que que a gente oferece pra essa galera? Conhecimento, é...a educação,
como ele se comportar diante das pessoas, como a gente reivindicar
nossos direitos, né​. Porque, muitas vezes, a pessoa tem a noção de que é
só chegar nos órgão gritando. Não! ​O Movimento ensina a como a gente
chegar pela porta da frente, né. “Bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”,
independente do horário. Cumprimentar desde o porteiro até a hora que a
gente sair, todos que nos atender procurar saber o nome, o que faz, qual a
profissão ali dentro… Todos que passar pela gente em qualquer
estabelecimento, em qualquer órgão. Pra que depois a gente saiba
quem...de quem a gente falar. Onde foi negado o nosso direito. ​O
Movimento ensina o que pra gente: a redução de danos. O Movimento
não fala: “Ói, pare de usar droga!” Não! O Movimento fala: “Reduza ao
uso das droga. Preserve sua saúde! [Incompreensível]...sua vida! Isso
vale pra seu empoderamento. Isso é uma evolução: quando você começa
a reduzir o uso de droga, seja lá qual for a substância, ou droga psicoativa,
ou álcool, que quando você está reduzindo, melhor pra você. Todo mundo
vai ver, perceber, tendeu?” E outra coisa que eu acho muito interessante e
importante no Movimento...ele ensina pra pessoa em situação de rua uma
coisa muito..., pra mim mesmo, uma coisa muito importante: ​que nós
temos identidade! ​Que nós somos um ser que temos identidade!
Somos ser humano. ​Aonde nós chegarmos, e colocar nossa identidade.
Nós somos cidadão. Independente da qual situação [incompreensível]
naquele momento. Você está na rua? Tá, isso é fato. “Mas você quer ficar
na rua? Agora depende do problema seu. Você quer sair? Atitude sua. Você
90

precisa de ajuda?” Pronto! Tem que correr atrás dos órgão competente. “O
que fazer? O Movimento pode ajudar em que nisso aí?” Orientar. Pro
Centro Pop, aí o Centro Pop: “- Ninguém fala nada”. “- O Movimento pode
me dizer alguma coisa?” Fala: “Não! Você [incompreensível] documento
assim, assim…” Você conversa com a assistente social e fala com ela tal
coisa. Então, é a importância do Movimento é essa aí: ​que foi o
Movimento que deu orientação​ ​(Grifos nossos).

Renny também explica que a atuação do Movimento não se dá com o


propósito de tirar as pessoas das ruas, mas para que elas se empoderem em termos
dos direitos que elas têm.
“-Quantos você tirou da rua? Quanto o Movimento tirou da rua?” “-
Nenhum!” “- Mas quantos se apoderou?” “- Vários! Vários!” Então tem que
dizer às pessoas que ouvir esse áudio...esse áudio: não tiraram nenhum.
Mas tem um bocado aí que sabe o que é direito da população de rua
[...] então nin...o Movimento não tira ninguém, ele apodera as pessoas. É
inverso: não dá casa, não dá comida, não dá nada mas apodera. Então,
isso, eu carrego também, eu defendo isso porque isso não faz esquecer
quem sou; a minha essência dentro da militância e que não sou nem maior
nem menor. ​Eu sou só uma pessoa que tem voz, que foi o Movimento
que me deu. E ele me tirou da rua? Não. Ele me deu apoderamento. É isso
aí que era apoderamento que eu era quietinho. Hoje, eu falo, falo até umas
hora. Às vezes, tem que mandar desligar o microfone. Mas é isso aí! É o
despertar, né?! Mas eu tenho me controlado que o Movimento me ensina
também a me controlar no momento de voz também pra não ficar chato. Aí
é estratégia também ​(​Grifos nossos​).

Registramos ainda que Andreval apresenta uma fala muito similar à referência
de Renny de que o Movimento não dá nem casa nem comida. Nas palavras do
próprio Andreval, ​quando eles procuram o Movimento, a gente deixa bem claro para
eles. “Nós, do Movimento…” [...] “Nós, do Movimento, a gente não oferece casa,
trabalho, comida. A gente não oferece nada dessas coisas. ​Por fim, também
gostaríamos de deixar registrado que Renny representa a militância como “​uma
forma de missão” ​e demonstra uma forte ligação com o Movimento Nacional da
População de Rua. É o que se pode depreender do seguinte trecho da fala de
Renny:
E, o fim, só minha morte vai dizer dentro do Movimento. Hoje, eu
determinei que o Movimento é minha vida. É minha bandeira. É a única
bandeira de defesa​; nem de facções, nem de bandeira política, nem
de...não! A única bandeira, que eu carrego no meu peito e que vai ser do
meu caixão, é o Movimento da População de Rua. Esse movimento, ele
nunca vai ter que cair e vai ter que sempre que tá de pé. [...] E eu, como
militante de responsabilidade ao meu povo, eu tenho que dever essa
resposta pra eles ​(Grifo nosso).

Após essa declaração de engajamento com o MNPR, encerramos a


apresentação e discussão dos resultados também nesta dimensão. A partir do que
91

foi apresentado nela, podemos inferir que o MNPR-FSA é um espaço que


proporciona diversos tipos de aprendizagens para as pessoas que dele se
aproximam e, principalmente, para seus membros e pessoas em situação de rua.
Mais do que isso, concluímos que a atuação é direcionada para o exercício da
escuta qualificada a fim de gerar o reconhecimento da população de rua enquanto
cidadãos que têm “direito a ter direitos”. Esse autorreconhecimento, na maioria das
vezes, tem por consequência a busca pela compreensão de quais são esses direitos
e como efetivá-los para si e para seus pares. Com isso, as duas hipóteses
relacionadas ao Movimento foram confirmadas.
92

7​ CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de todos os argumentos dispostos e resultados apresentados, é


importante tecer algumas considerações sobre o processo de escrita, a metodologia
utilizada, a contribuição dos membros do Movimento bem como os resultados
alcançados. A primeira delas é que escrever um trabalho que objetivou compreender
o exercício da escuta qualificada a partir dos membros do MNPR-FSA foi uma tarefa
que requisitou constante observância dos princípios e propósitos do trabalho. Os
princípios foram: construir coletivamente, de forma não hierarquizada, a partir do
diálogo entre saber acadêmico e conhecimentos da educação popular; e manter o
compromisso ético de nos empenharmos da mesma forma que os membros do
Movimento o fizeram para que essa pesquisa fosse realizada. Os propósitos foram:
realizar uma produção que se torne útil, não somente para os profissionais de saúde
e comunidade acadêmica interessada em estudar o tema, mas também, para os
membros do MNPR, e eventualmente, para outras pessoas em situação de rua;
atenuar o déficit científico e prático da Psicologia com os povos em situação de
vulnerabilidade na sociedade brasileira. Este propósito se deu a partir da leitura da
constatação de Ignácio Martín-Baró (2011, p.181) de que “a contribuição da
Psicologia, como ciência e como práxis, à história dos povos latino-americanos é
extremamente pobre”. Um último propósito, portanto, foi sistematizar, em alguma
medida, a história e conquistas do MNPR-FSA passados sete anos (2011-2018)
desde que foi implementado.
A segunda consideração a ser feita é que, na nossa concepção, obtivemos
êxito em responder como se dá o processo de escuta qualificada para as pessoas
em situação de rua. Lembramos que durante a apresentação dos resultados em
diversos momentos remetemos as falas dos entrevistados ao que havia sido exposto
na parte teórica deste trabalho sobre o reconhecimento enquanto pessoa/cidadão do
sujeito que está na rua; as finalidades/efeitos da escuta qualificada bem como sua
relação com o acolhimento; e também as formas de aprendizagem que um
movimento proporciona àqueles que nele militam ou que dele se aproximam. Sobre
a escuta qualificada e o seu exercício, as pessoas entrevistadas ainda trouxeram
novas contribuições para o tema ao relatar os procedimentos que possibilitam a
93

aproximação, a criação de vínculos e a construção de uma relação baseada na


confiança. Este último elemento novo, em comparação aos outros elementos que
haviam sido apresentados na parte teórica.
Dessa forma, após a apresentação dos resultados, podemos afirmar de que
todas as hipóteses levantadas ao longo do trabalho e apresentadas na introdução e
na metodologia foram cabalmente confirmadas. Avaliamos que o fato de termos
optado pela utilização das entrevistas semi-estruturadas para coletar informações
dos entrevistados possibilitou explorarmos com maior liberdade vários temas que
estavam linkados com os nossos objetivos.
Cabe falar ainda, por uma questão de prudência e de tentar nos manter
circunscritos aos objetivos geral e específicos desta pesquisa, optamos por
apresentar apenas uma parcela do que foi falado nas entrevistas. No entanto, é
importante registrar o empenho dos nossos entrevistados em fornecer informações e
dados muito interessantes sobre a organização das ruas, as políticas públicas, quais
as suas concepções da Psicologia e dos psicólogos, qual a área da Psicologia que
apresentam maior predileção e porquê. Todos esses temas, por tangenciar apenas
superficialmente o tema central da escuta qualificada, restaram ser melhor
analisados e compreendidos em pesquisas futuras.
Do mesmo modo, é importante falar que o tema da escuta qualificada bem
como os temas secundários como o Movimento, as políticas públicas e a
terminologia mais adequada para se referir à população de rua tem muito a ser
explorados ainda. Concebemos que a realização de ações e trabalhos acadêmicos
com propósitos de debater e difundir informações e perspectivas que problematizam
as realidades, terminologias, políticas públicas e formas de atendimento,
acolhimento e escuta qualificada mais apropriadas para as pessoas em situação de
rua são de fundamental importância para desconstrução de preconceitos e
estereótipos na sociedade brasileira. Esse pode ser um caminho oportuno para
efetivação da compreensão da complexidade de fatores nos quais a existência
dessas pessoas está envolta e o que faz, eventualmente, com que elas “se
desencontrem” como bem como afirmou Cadú no início do primeiro capítulo deste
94

trabalho. Com isso, nada mais pertinente do que encerrar com as palavras de Renny
no final da entrevista dele:

“​Nada! Pode vir aí. Pode... se tiver mais pessoas, aí, pode mandar vir que a gente tá aí junto.
Eu quero mais conhecimento da população de rua. Expandir aí pra o Brasil todo!”
95

8​ REFERÊNCIAS

ALESSIO, ​Maria Alice Gabiatti. ​Estado, Sociedade Civil e o Controle Social: uma
análise desta relação sob a perspectiva do conceito gramsciano de estado
ampliado. ​IV Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais - Porto Alegre, 2016.

ASSOCIAÇÃO CRISTÃ NACIONAL. ​Sobre. ​?. ​Disponível em:


https://www.facebook.com/pg/associacaocristanacional/about/?ref=page_internal.
Acessado ​em: 17 de dezembro de 2017.

BAHIA. ​Corra pro Abraço: o Encontro para o cuidado na rua​/ Secretaria de


Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social; Centro de Referência Integral
de Adolescentes. - Salvador: SJDHDS, 2016. 164p.

________. Lei 12.947, de 07 de fev. de 2014, ​Política Estadual para a População


em Situação de Rua. ​Salvador-BA, fev. 2014.

BARDIN, Laurence. ​Análise de conteúdo​. Lisboa: Edições 70, 1977. 225 p

BARROS, Carlos Cesar; GOMES, Barbosa Eliab. ​Pessoas Em Situação de rua no


município de Feira De Santana. ​Secretária de Desenvolvimento Social - Feira de
Santana, 2015.

BRASIL. Lei nº 378, de 13 de jan. de 1937. ​Dá nova organização ao Ministério da


educação e Saúde Pública. ​1937 (publicação original). Reproduzida em:
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________. Lei nº 8.142, de 28 de dez. de 1990. ​Dispõe sobre a participação da


comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS} e sobre as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e
dá outras providências. ​Brasília-DF. Disponível em:
http://conselho.saude.gov.br/legislacao/lei8142_281290.htm. Acessado em 17 de
dezembro de 2017.

________. ​Política Nacional de Inclusão Social da População em Situação de


Rua. ​Brasília/DF, 2008a.
96

________. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da


Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: ​Documento base para gestores
e trabalhadores do SUS / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde,
Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. – 4. ed. – Brasília : Editora do
Ministério da Saúde, 2008b. 72 p.

________. Decreto no 7053, de 23 de dezembro de 2009a, institui a ​Política


Nacional para a PSR e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e
Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 24
dez. 2009a, p.16-17.

________. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. ​Política Nacional


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básica / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de
Humanização da Atenção e Gestão do SUS. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009b.

________.Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. ​Política Nacional


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Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de
Humanização da Atenção e Gestão do SUS. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009c.

________. Decreto nº 7.053, de 23 de dez. de 2009. ​Política Nacional para a


População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento
e Monitoramento​. Brasília, DF, dez. 2009d. Disponível em:
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104

APÊNDICE A - Termo de Consentimento Livre Esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO

Você está sendo convidado(a) a participar, se tiver vontade, da pesquisa: ​“A escuta qualificada
segundo integrantes do Movimento de População de Rua de Feira de Santana​”, proposta pelo
estudante de Psicologia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Matheus Rios Silva Santos e
orientada pelo Prof. Dr. Carlos César Barros. Nós temos a intenção de compreender, segundo suas
palavras, o que é a “escuta qualificada” para você. Para isso, vamos realizar uma entrevista sobre o
tema da escuta qualificada que deve durar entre 30 minutos e 1 hora e no local que você achar mais
adequado desde que este seja um ambiente favorável para realização da entrevista. Para que se tenha
uma maior confiança entre as informações dadas na entrevista, a conversa poderá ser gravada em
áudio através de celular. Mas só vamos fazer isso se você estiver completamente de acordo com a
gravação. ​Após escrevermos o que você disse e te mostrarmos, você ainda vai poder pedir para tirar ou
modificar alguma informação. Os riscos desta pesquisa são você se emocionar, ficar com vergonha ou
incomodado em lembrar e falar alguma situação sobre esse tema. Nesses casos, você pode não
responder o que te incomodar. Ainda assim, se acontecer algumas dessas situações, os pesquisadores
se comprometem a prestar todo auxílio psicológico e de ordem financeira, se necessário, a você,
inclusive, garantindo o seu direito de buscar indenização pelos danos causados e se comprometendo a
pagar por esses danos eventuais. A pesquisa pode trazer benefícios para as pessoas em situação de rua
de forma geral, ajudando os profissionais de saúde na hora de realizar a escuta qualificada com as
pessoas em situação de rua. Fique à vontade para tirar a dúvida que quiser sobre a pesquisa. Você é
livre para não participar, desistir ou interromper sua participação a qualquer momento sem prejuízos
ou perda de benefícios. Os pesquisadores se comprometem a manter seu anonimato em relação às
informações fornecidas, a não ser que você expresse o desejo de revelar sua identidade. Se quiser
conhecer os resultados da pesquisa, vai ser possível receber informações com o orientador antes,
durante e depois da pesquisa pelo e-mail: carlosbarros@uefs.br, pelo telefone: (75) 3161-8097 ou no
Colegiado do Curso de Psicologia do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade
Estadual de Feira de Santana, na Avenida Transnordestina, S/N, módulo 7, onde uma cópia deste
documento vai ser deixada. Outra cópia vai ficar com você. Esta pesquisa passou pela aprovação do
Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos que é a instituição responsável para dizer que
estamos te respeitando eticamente. Se quiser mais informações sobre este Comitê, você pode
encontrá-lo no Módulo 1, MA 17, que se localiza dentro da Universidade Estadual de Feira de Santana
na Avenida Transnordestina, S/N, pelo e-mail: ​cep@uefs.br ou pelo telefone: (75) 3161-8067.
Garantimos que esses dados vão ser utilizados apenas nesta pesquisa. Ao término desta, você será
informado(a) e convidado(a) a participar da apresentação dos resultados na banca de defesa do
Trabalho de Conclusão de Curso. Te damos conhecimento e garantimos que você vai ficar com uma
via deste documento.
_________________________ ______________________ ________
Nome Assinatura ou Polegar do Participante Data

_________________________ ______________________ ________


Nome Assinatura do Pesquisador Data

_________________________ ______________________ ________


Nome Assinatura do Orientador Data
105

Apêndice B - Quadro de Categorias

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