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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

MILTON ALVES DA SILVA

CAMINHANDO COM IMAGENS


DE LAMPEÃO A REI DO CANGAÇO

GUARULHOS
2016
MILTON ALVES DA SILVA

CAMINHANDO COM IMAGENS:


DE LAMPEÃO A REI DO CANGAÇO

Dissertação apresentada como requisito para


obtenção do título de Mestre no Programa de
Pós-Graduação em História da Arte
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: Imagens, Cidade e
Contemporaneidade
Orientação: Yanet Aguilera Viruez Franklin de
Matos

GUARULHOS
2016
Silva, Milton Alves da.

Caminhando com Imagens : De Lampeão a Rei do Cangaço /


Milton Alves da Silva. Guarulhos,2016.
164 f.

Dissertação de Mestrado em História da Arte –


Universidade Federal de São Paulo, Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2016.
Orientadora: Yanet Aguilera Viruez Franklin de
Matos.

Walking with Images: From Lampeão to Rei do Cangaço

1. Imagens. 2. Cinema. 3. Cangaço. 4. Benjamin


Abrahão. 5. Lampião. I. Orientador: Franklyn de Matos
,Yanet Aguilera Viruez. II. Título: Caminhando com
Imagens: de Lampeão a Rei do Cangaço.
MILTON ALVES DA SILVA
Caminhando com Imagens:
de Lampeão a Rei do Cangaço

Aprovação: ____/____/________

Prof. Dra. Yanet Aguilera Viruez Franklin de Matos


Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dra. Laura Loguercio Cánepa


Universidade Anhembi Morumbi

Prof. Dra. Marina Soler Jorge


Universidade Federal de São Paulo
Dedico este trabalho ao Sr.
Paulo Pereira da Silva, meu pai,
pernambucano, que me divertia
nas rodas de fogueira contando as
aventuras do famoso cangaceiro
Lampião.
AGRADECIMENTOS

Agradeço à professora Yanet Aguilera pela dedicação e generosidade em me orientar,


nesta árdua tarefa. Agradeço ao historiador Frederico Pernambcano de Mello, que me recebeu
em sua casa, num sábado de carnaval, em Recife, onde manteve pacientemente uma conversa
de hora e meia. Agradeço ao cineasta José Umberto Dias, pela conversa, durante o
lançamento de seu filme, Revoada, em São Paulo. Agradeço às professoras: Dra. Laura
Loguercio Cánepa e Dra. Marina Soler Jorge, que gentilmente aceitaram participar da banca
examinadora.
“Eu estava junto de Corisco quando
chegou a notícia da morte de Lampião. Ele
parou, cobriu os olhos e disse: Acabou-se o
divertimento do mundo!”
Depoimento de Pancada. Gazeta de
Alagoas, 8 de novembro de 1938. (MELLO,
2010, p. 43)
RESUMO

Este trabalho busca analisar as imagens em movimento, captadas pelo cineasta e


fotógrafo Benjamin Abrahão, do famoso grupo de cangaceiros, liderados por Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião (1937). Para a análise utilizo os fragmentos que restaram do
filme. Chamado pela imprensa da época de o filme de Lampeão, o material foi apreendido
pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, onde ficou até ser descoberto
na década de 1950. O filme existe em duas versões principais: uma realizada em 1959, por
Alcebiades Ghiu e Alexandre Wulfes, que recebeu o nome de Lampião, o rei do cangaço que
recuperada pela Cinemateca Brasileira em 2007. Outra versão foi feita por Ricardo
Albuquerque em 2011, que manteve o mesmo nome e o colocou como encarte do livro
Iconologia do Cangaço. Como não há indicação de como seria a montagem feita por
Abrahão, traço um paralelo entre as duas versões, mas optei por analisar os planos, como
elementos individuais ou em conjuntos temáticos, tentando enfatizar a força, ou potência,
contida nas imagens.

Palavras-chave: Análise. Cinema. Cangaço. Benjamin Abrahão. Lampião. Cultura Brasileira.


ABSTRACT

This thesis seeks to analyze the moving images of the famous outlaw group led by
Lampião, captured by filmmaker and photographer Benjamin Abrahão. For the analysis I used
the remained fragments since the film was released for the first time in 1937. Named by the
press at the time The film of Lampeão , the material was seized by the Department of Press
and Propaganda of the Estado Novo, where it remained until being discovered in the late
1950. There are two main versions of the film: one released in 1959, by Alcebiades Ghiu and
Alexandre Wulfes, named Lampião, O Rei do Cangaço restored by the Brazilian
Cinematheque in 2007. Another version was edited by Ricardo Albuquerque in 2011, who
kept the same name and released as an insert of the book Iconologia Cangaço. As there is no
indication of how the film was edited by Abrahão, I trace a parallel between the two versions,
but I have chosen to examine the plans, such as individual or joint thematic elements, trying
to emphasize the strength or power contained in the images.

Keywords: Imagem. Cinema. Cangaço. Lampião. Benjamin Abrahão.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇAO................................................................................................................ 09

2 FORTUNA CRÍTICA..................................................................................................... 19

2.1 ÉLISE JASMIN - CANGACEIROS............................................................................ 19


2.2 MARIA DO ROSÁRIO CAETANO – CANGAÇO – O NORDESTERN NO
CINEMA BRASILEIRO.................................................................................................... 28
2.3 MARCELO DIDIMO – O CANGAÇO NO CINEMA BRASILEIRO......................... 44
2.4 FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO – BENJAMIN ABRAHÃO ENTRE
ANJOS E CANGACEIROS.................................................................................................... 49
2.5 PAULO CALDAS E LÍRIO FERREIRA – BAILE PERFUMADO.......................... 51

3 DE LAMPEÃO A LAMPIÃO, O REI DO CANGAÇO................................................... 54

3.1 AS DUAS VERSÕES: DE COMO AS IMAGENS EM MOVIMENTO DE


BENJAMIN ABRAHÃO SE TRANSFORMARAM NO FILME LAMPIÃO,
O REI DO CANGAÇO......................................................................................................... 54
3.1.1 A VERSÃO DA CINEMATECA........................................................................... 54
3.1.2 A VERSÃO DE ALBUQUERQUE........................................................................ 59
3.1.3 PEQUENA COMPARAÇÃO DAS DUAS VERSÕES......................................... 64
3.2 AS IMAGENS EM MOVIMENTO DE BENJAMIN ABRAHÃO........................ 67
3.2.1 A PAISAGEM DO SERTÃO.................................................................................. 67
3.2.2 A MATA E O VAQUEIRO..................................................................................... 73
3.2.3 OS CANGACEIROS............................................................................................... 75
3.2.4 A ÁGUA E O CANGAÇO...................................................................................... 77
3.2.5 AS IMAGENS DO CINEASTA............................................................................. 117
3.2.6 AS IMAGENS DE LAMPIÃO............................................................................... 129

REFERÊNCIAS................................................................................................................ 149
150
APÊNDICE A.................................................................................................................... 152

9

1 INTRODUÇÃO

Nesta dissertação, analiso os fragmentos que sobraram do filme Lampeão, de Benjamin


Abrahão, de 1937. Trato também da fortuna crítica e seus pressupostos teóricos. O trabalho é
composto por três capítulos: 1. Introdução, 2. Fortuna crítica e 3. De Lampeão a Lampião, o
rei do cangaço. Na introdução, procurei colocar a meus estudos de cinema questões a partir
da história da arte, da filosofia e da própria história. Entretanto, as fontes teóricas que
nortearam meu trabalho não estão apenas neste primeiro capítulo. Conforme fui analisando a
fortuna crítica e o próprio filme, algumas questões conceituais se tornaram proeminentes.
Decidi que elas deveriam aparecer no momento em que foram suscitadas, para tentar
preservar a ligação entre teoria e análise, que tinha se tornado para mim imperativa nesse
instante, mesmo correndo o risco de embaralhar a narrativa linear acadêmica de uma
dissertação. A própria dinâmica do processo acabou fazendo com que o nome da dissertação
mudasse. Inicialmente a ideia seria traçar uma relação entre a estética do cangaço e sua
representação no cinema, mas o que realmente ficava como uma espécie de ruído de fundo,
um incômodo, era a questão da imagem. Esta dificuldade foi, em parte, esclarecida pelo
estudo da obra de J. P. Mitchell, para quem é impossível apreender a imagem de forma
sistematizada. Para o autor existem famílias de imagens que podem ser: gráficas, óticas,
perceptuais, mentais e verbais. Foi este universo imagético que tentei percorrer, a partir do
filme realizado por Benjamin Abrahão com o grupo de Lampião. Limitei o objeto de estudo a
essas imagens em movimento e seus possíveis desdobramentos, no cinema e outras
manifestações artísticas, com o objetivo de tornar mais compreensível a densidade deste
assunto. A partir da história da arte, a reflexão sobre o filme tem em vista a relação entre
imagem e texto, tal como vários historiadores da arte colocam. Um deles é Hans Belting.
Segundo este autor:
A fé na verdadeira imagem trai-se também a si mesma, já que facilmente pode
ser abalada. Depois, vemos nas imagens apenas ilusão e afastamo-nos delas. Ou as
imagens em geral nos desiludiram ou nos sentimos engodados por algumas delas.
Se, por vezes, a fé nelas vacila, voltamo-nos para os signos e, em especial, para a
palavra. Os signos baseiam-se na convenção e pressupõe o nosso assentimento. Não
cremos nos signos como nas imagens, mas temos de os decifrar e interpretar. A
convenção pressupõe, por um lado, um inventor ou emissor e, por outro, um
receptor, que recebe ou recusa o signo. Também as imagens se deixam utilizar como
signos, mas possuem um excesso na captação sensível da realidade, de uma
realidade pretensamente isenta de interpretação e deformação, pelo que elas são para
nós mais perigosas ou cativantes: acorrentam os nossos sentidos e a nossa
imaginação. Os signos exercem poder em nome de quem deles dispõem e os
10

difundem, mas as imagens exercem poder já por força própria e num recurso à
realidade. (BELTING, 2011, p. 10)

De modo que há uma discrepância entre imagem e signo, que se ancora numa
constatação dos diversos poderes que eles exercem. Há, por assim dizer, um poder que se
controla no signo. Ao contrário daquele exercido pelas imagens. Daí, que as religiões e os
poderes instituídos se preocupem em exercer um controle sobre aquilo que será visto ou não.
Há, então, uma espécie de guerra entre e com as imagens. Um outro estudioso das imagens,
W. J. T. Mitchell, afirma que:
A história da teoria óptica abunda com essas agências intermediárias que se
interpõem entre nós e os objetos que percebemos. Às vezes, como na doutrina
platónica do "fogo visual" e da teoria atomística da eidola ou simulacros, eles são
entendidos como emanações materiais de objetos, sutil, mas no entanto, imagens
substanciais, propagadas por objetos e que forçosamente impressionam em nossos
sentidos. Às vezes, as espécies são consideradas como entidades meramente
formais, sem substância, que se propagam através de um meio imaterial. E algumas
teorias descrevem a transmissão como movendo-se em outra direção, a partir de
nossos olhos para os objetos. Roger Bacon oferece uma boa síntese dos pressupostos
comuns da teoria óptica antiga:
Toda causa eficiente atua através de seu próprio poder, que exerce sobre a
matéria adjacente, como a luz [lux] do Sol exerce o seu poder no ar (que poder é luz
[lúmen] difundido por todo o mundo a partir da luz solar, [ lux]. E este poder é
chamado de "semelhança", "imagem" e "espécies" e é designada por muitos outros
nomes ... esta espécie produz cada ação no mundo, pois age no sentido, sobre o
intelecto e em toda a matéria do mundo para a geração de coisas) [Nota: Citado em
David C. Lindberg, Teorias de visão de Al-Kind para Kleper. (Chicago: University
of Chicago Press, 1976), p 113.].
Deve ficar claro a partir do que propõe Bacon que a imagem não é simplesmente
um determinado tipo de signo, mas um princípio fundamental do que Michel
Foucault chamaria de "a ordem das coisas". (MITCHELL, 1976, p. 113)

Assim, esse questionamento da identificação entre imagem e signo não é uma coisa
apenas “pós-moderna” ou da nova história da arte. Como se pode ver, Bacon, no século XIII,
já discutia esta assimilação da imagem ao signo. X XXXXXXXXXXXXXXGoodman.
Sabe-se que, a partir dos trabalhos de Christian Metz (2013), a redução das imagens a
signos se tornou comum nos estudos cinematográficos. Além disso, a abordagem da semiótica
tende a essa redução, em nome de uma “essência” narrativa do cinema, que é produzida
fundamentalmente pela montagem. Entretanto, a “essência” narrativa do cinema vem sendo
contestada a partir, principalmente, dos estudos de Gilles Deleuze (1985, pag. 37).
11

Consequentemente, a relevância da montagem passa a ser relativizada1, a ponto de se atribuir


às imagens um poder ou um excesso com relação à narrativa que se deprende da associação
entre elas.
Por outro lado, se a relevância da montagem pode ser, de certa forma, relativizada na
análise de qualquer filme, em Lampeão ela fica quase sem sentido, pois não sabemos se a
montagem que temos é a realizada pelo cineasta e ignoramos o que se perdeu das imagens. O
filme foi apreendido pela repressão do Estado Novo e ficou perdido até sua parcial
recuperação em 1959, quando Alcebiades Ghiu e Alexandres Wulfes, supostamente, o
encontraram num dos porões do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Assim,
como se trata de fragmentos, que não sabemos como foram originalmente associados, eles nos
convidam a fazer uma análise desses excessos ou poder, que os historiadores da arte veem nas
imagens.
Em que consiste este poder? Pode-se pensar, de um lado, no poder das próprias imagens
como cristalização de uma carga energética e experiência emotiva, que aparecem como
heranças transmitidas pela memória social e resignificada. Segundo o historiador da arte Aby
Warburg (2010), as imagens são dinamogramas, que possuem uma força motriz com sua
própria dinâmica, que independem, em certa medida, de um pretenso significado original. Há
algo nas imagens que ultrapassa o texto como manifestação de uma intencionalidade autoral
ou mesmo crítica. De certo modo, as imagens de Lampeão são dinamogramas que nunca
perderam sua potência, mesmo que tenham sobrado apenas fragmentos delas. Em geral, o
poder dos planos deste filme é atribuído ao seu caráter de fonte documental, pois seriam as
imagens “verdadeiras” de Lampião, de Maria Bonita e de seu bando. Entretanto, o poder
parece emanar delas próprias, já que elas ressurgem constantemente em diferente tempos,
com outras roupagens e em diversos suportes.
Por outro lado, há uma guerra das imagens, de modo que o poder está intrinsicamente
ligado a este conflito, ou seja, toda luta pelo poder passa por um embate entre imagens.
Neste sentido, o historiador Serge Gruzinski coloca:
A guerra das imagens. Talvez seja um dos acontecimentos maiores do fim do
século XX. Difícil de circunscrever, presa aos chavões jornalísticos ou aos meandros
de um tecnicismo hermenêutico, ela abrange a luta pelo poder, tem implicações
sociais e culturais cujo alcance atual e futuro ainda somos um tanto incapazes de

1
Este debate é longo e antigo. Não pretendo entrar na discussão entre uma suposta visão ontológica do cinema e
uma outra que defende que ele é discurso. Meu enfoque toma outra via, a da análise das imagens
cinematográficas na sua ligação com o texto.
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avaliar. “O maior paradoxo seria estarmos num mundo de proliferação de imagens e


continuando a pensar que estamos sob o poder do texto?” (Nota: Henri Hudrisier.
L’Iconothèque. Paris, La Documentation Francaise. INA, 1982. p. 78)
(GRUZINSKI, 2006, p. 14)

Para Gruzinski, as imagens estão ligadas ao exercício do poder e também às lutas de


resistências, pois elas carregam pensamentos tão poderosos como os dos textos. Por outro
lado, a atenção às imagens pode chegar a exumar “os jogos de interesses, os confrontos e as
figuras volta e meia negligenciadas... (GUZINSKI, 2006, p. 17). As imagens também criam
histórias dos imaginários que, segundo ainda este autor, “nasceram no cruzamento das
expectativas e das respostas, na junção das sensibilidades e das interpretações, no encontro
das fascinações e dos vínculos suscitados pela imagem” (GUZINSKI, 2006, p. 17). Portanto,
trata-se de uma reflexão benjaminiana sobre a história destas imagens dos cangaceiros, não
para constatar que eles estão mortos, mas para mostrar que esse grupo conseguiu sobreviver
no imaginário e nas imagens criadas sobre eles. Lampeão participa também de uma guerra das
imagens, que se traduz nas diversas versões que se apropriaram dos fragmentos do filme e nas
interpretações que se fizeram deles nos estúdios cinematográficos. Nos históricos destas
imagens, elas parecem resistir a qualquer apropriação que se faça delas. As versões e
interpretações sempre estarão aquém do poder que delas emana. Essa resistência que as
caracteriza é também resultado de uma outra guerra, na qual elas estão inseridas: aquela
travada pelas imagens do cangaço.
O cangaço possui iconografia de grande repercussão nacional. A repercussão se deve,
principalmente, pela luta que se travou entre aqueles que defendem o cangaço como um
fenômeno de resistência e aqueles que veem nele apenas uma manifestação violenta do
banditismo brasileiro. Em geral, projetou-se nas histórias do cangaço, categorias e esquemas
com a finalidade de entende-las e também domina-las. Porém, como são histórias que
possuem uma iconografia poderosa, são irredutíveis aos textos interpretativos. Lampeão foi
censurado e quase apagado porque mostrava imagens dos cangaceiros contrárias àquelas
difundidas pelo poder oficial. Feito uma fênix, ressurge das cinzas – dos porões do Estado
Novo getulista – para se desdobrar em toda sua potencialidade, mesmo sendo reduzido a
fragmentos, como se pode constatar na grande filmografia que acabou se constituindo a partir
dele sobre o cangaço. Ele surge para além do mero despojo dos vencidos ou troféu dos
vencedores.
De modo que a guerra das imagens que os cangaceiros estabeleceram com a esfera
institucional não acabou, pois mesmo que muitos filmes retomem o aspecto negativo deste
movimento, há muitos outros que, seguindo a trilha de Abrahão, percebem nele algo mais do
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que seu contexto histórico oficial e do gênero literário onde geralmente ele é alocado – na
história do banditismo.
É sobre esse contexto histórico que é necessário refletir. A partir do filme, gostaria de
pensar o cangaço, não como fatos históricos no sentido da história tradicional, mas como um
acontecimento, no sentido filosófico do termo. Ou seja, algo que marca e é reconhecido como
tal por um grande número de pessoas.
A reflexão da história como acontecimento faz parte da renovação dos estudos
históricos. Por exemplo, Paul Veyne, preocupado com a maneira de contar do método
histórico, coloca como questão a relação entre a tarefa narrativa e a teórica. Como aliar o
evento concreto e particular que se narra à sistematização abstrata conceitual torna-se a
grande problemática da disciplina história. O que a teoria vai proporcionar a Veyne é um
rigor conceitual das “constantes históricas”, permitindo ao historiador pensar o que os fatos
escondem (VEYNE, 1983, p. 19 e 20). Além disso, os conceitos construídos, que ajudam a
história a produzir um conhecimento sistematizado, não podem negar o processo narrativo.
Veyne vai tomar emprestado o conceito de prática de Michel Foucault para equacionar este
problema. Pela prática, o historiador evitaria cair na armadilha de encontrar na cronologia a
coerência de um sentido a ser revelado. Há duas questões intransponíveis no conceito de
historia tradicional: como pensar tanto a lacuna na cronologia quanto a pluralidade de sentidos
no sentido revelado? A análise das práticas vicejadas arqueologicamente nos trazem o lugar
do incômodo, das lacunas insondáveis não apenas na história como nos documentos de que
nos servimos para construir sua narrativa.
A ideia é entender o cangaço como um acontecimento que nos obrigue a olhar
arqueologicamente os escombros. Os destroços ou fragmentos de Lampeão não permitem
construir um sentido a ser revelado, mas uma diversidade de sentidos – que não podem ser
reduzidos a um fenômeno a mais dentro do gênero banditismo que assolou a América Latina.
O que encontramos nesta multiplicidade não é uma sucessão linear que reduziria a narrativa
histórica a um mero conglomerado de pontos de vista – aquele dos cangaceiros, das forças
institucionais, dos sertanejos, do narrador etc. O que se depreende da prática arqueológica são
as tensões, os conflitos, que podem se mostrar como um complexo de sucessões, mas também
como coexistência de forças.
Nessa direção, o filme de Benjamin Abrahão se torna material inestimável. Lampeão
traz em sua própria história, nos fragmentos que sobraram, a explicitação de que os
documentos nunca são inócuos ou neutros. No seu percurso temporal atropelado, dentro da
historia do cinema brasileiro, muito mais do que um documento factual do cangaço – dado
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que se filmou os próprios cangaceiros –, o seu valor inestimável é manifestar a surda guerra
que se travou e ainda se trava pelo tipo de imagem a se constituir deste acontecimento. De
modo que, a análise arqueológica das práticas é um exercício em que se acentua a capacidade
de visão do historiador para conseguir chegar a práticas cada vez mais subterrâneas que
coloquem interrogações à explicação naturalizada de um objeto.
Nesse sentido, as falas dos cangaceiros que sobreviveram, as lendas sobre o grupo, a
imprensa sensacionalista da época têm muito a dizer, assim como os inúmeros documentários
que se fizeram sobre eles. A fonte fundamental usada para trazer à tona este tipo de
documentação é o livro do historiador, Frederico Pernambucano de Mello, Estrelas de Couro:
A Estética do Cangaço, de 2012. Começo com o depoimento de Pancada, um dos
cangaceiros, à Gazeta de Alagoas, em 8 de novembro de 1938.
“Eu estava junto de Corisco quando chegou a morte de Lampião. Ele parou, cobriu os
olhos e disse: Acabou-se o divertimento do mundo!” (MELLO, 2010, p. 43)
As entrevistas e as fotografias que sobreviveram dos cangaceiros do nordeste brasileiro
reproduzem uma iconografia em que o paramento e as atividades culturais e recreativas estão
bem presentes. Porém, este aspecto raramente foi tratado como um assunto de fato relevante.
Talvez isso seja consequência de que a história do cangaço, em geral, foi construída
destacando o caráter espetaculoso dos confrontos armados e da violência. Na grande maioria
dos depoimentos tomados de pessoas envolvidas de alguma maneira com o cangaço, percebe-
se a preocupação dos entrevistadores em ressaltar o tema dos confrontos. Exemplo disso está
nas entrevistas do ex-volante Ten. João Gomes de Lira, no documentário Depoimentos –
Lampião e Cangaço, de Aderbal Nogueira (s/d). Acontece o mesmo nos depoimentos de
Sérgia Ribeiro da Silva (a Dadá, companheira de Corisco – Cristino Gomes da Silva Cleto),
em A musa do cangaço, de José Umberto Dias, 1982. A pergunta que se repete é a da
participação nos conflitos, o que obviamente leva a seu aspecto violento.
Pode-se pensar que o pouco caso aos aspectos estéticos e culturaisq se deva a que vários
dos adereços foram pilhados como troféus ostentados pelas volantes, ou mesmo pelo seu valor
monetário, como as peças de ouro que incrustavam chapéus, anéis, armas etc. Existem relatos
de apropriação violenta dos objetos depois da morte dos bandidos.
Os “macacos” da volante de João Bezerra se esbaldaram em selvageria. Um
cortou a mão de Luís Pedro para poder arrancar-lhe os anéis com calma quando
saíssem dali.2

2
http://grabois.org.br/portal/imprimirev.php?id_sessao=50&id_publicacao=212&id_indice=1809
15

Muitos objetos se perderam na caatinga quando das fugas, como diz a própria Dadá,
que se desfez de seu punhal. “...tinha um punhalzinho bonitinho, por sinal é escondido ai
pelos matos ainda, meu punhal”. (DIAS, documentário, 1982)
Entretanto, há que se considerar que talvez o descaso não tenha sido fortuito. A perda da
memória visual desta “estética” foi também provocada por ações oficiais do Estado que
tentavam apagar do imaginário popular este período da história, travando uma verdadeira
guerra de imagens. Pernambucano de Mello afirma que no Relatório da Comissão Acadêmica
Coronel Lucena ao interventor de Pernambuco, 17 de agosto de 1938, aconselha-se que:
Seria de recomendar-se a proibição de fardamentos exóticos, de berloques,
estrelas, punhais alongados e outros exageros notoriamente conhecidos. A impressão
que se faz no cérebro rude. E à primeira oportunidade, o chapéu de couro cobre a
testa e o rifle pende a tiracolo. (MELLO, 2010, p. 17)

O comandante-geral da Força Pública de Pernambuco, coronel do exército, gaúcho,


preocupado com a “contaminação estética” que estava acontecendo com os soldados
determina:
É expressamente proibido o uso de peças que não constem do uniforme em
vigor, como sejam: cartucheiras cowboy, chapéus exagerados à Lampião, enfeites
amarelos nas bandoleiras, alpercatas de todo enfeitadas. É preciso ter em vista que a
Força Pública, auxiliar do Exército de Primeira Linha, é uma Força regular,
organizada e moldada nos regulamentos daquele Exército, e que deve antes copiar o
que lá existe, e não o que os cangaceiros usam. Vi uma fotografia de destacamento
de Buíque, em que comandante e soldados pareciam mais cangaceiros que soldados.
(MELLO, 2010, p. 187)

Como se pode ver, os que combatiam o cangaço tinham a noção clara que a “estética”
criada e veiculada pelo grupo era elemento fundamental para constituir a força que os
cangaceiros tinham no imaginário popular da região e de grande parte do Brasil.
Em Estrelas de couro, menciona-se a admiração que o chapéu de Lampião despertou
quando da sua morte:
O chapéu tomado por morte ao maior de todos os cangaceiros, em 1938, de
couro de veado, abas e correias grandes, caprichosamente ornamentadas, causou
sensação na imprensa e na opinião pública por conta de aspectos que iam das
estrelas de oito pontas costuradas nas abas, com que se procurava devolver, pela
frente e pelas costas –já então inutilmente– a projeção de malefícios vindos pelo
olhar carregado de inimigo ou de simples paisano, ao da presença de cerca de 70
peças de ouro incrustradas por todo o corpo do objeto...(MELLO, 2010, p. 69)

Os próprios cangaceiros sabiam que sua imagem ostensiva era um chamariz e


despertava admiração. Comparado com os sertanejos pobres que mal conseguiam seu
sustento, os cangaceiros tinham uma vida de fartura, chegando alguns a emprestar dinheiro,
usando como intermediários alguns coronéis coiteros (MELLO, 2010, p. 70). Em alguns dos
16

depoimentos, a relação entre o aspecto “estético” e o status social é citada como uma das
razões que levava o sertanejo a entrar no cangaço. Na Gazeta de Alagoas, de 8 de novembro
de 1938, há vários depoimentos que vão nessa direção. Cobra Verde disse que a “razão que o
levou a fazer-se bandoleiro foi achar bonito o traje dos facínoras que encontrava, notar o
temor e respeito que infundiam e querer ser na vida alguma coisa”; Vinte e Cinco afirmou que
“entrou para o cangaço pela admiração que lhe mereciam os cangaceiros”. (MELLO: 2010, p.
43). Além disso, os adereços e excedentes na decoração dos objetos de uso tinham status,
estabeleciam uma hierarquia e proporcionavam orgulho para quem os utilizava. Os chefes
mais graduados eram os mais enfeitados e muitos cabras novos reclamavam da falta dos
adereços. O aspecto estético era tão considerado no meio, que o próprio Lampião, quando da
chegada de Candeeiro, passou 2 meses riscando, costurando e bordando um conjunto de
bornais para presentear o novo membro ao bando. Era uma forma de sedução, assumida como
um “processo de marketing”. Lampião disse certa vez que “Não se chama o boi batendo na
perneira”. Era função do chefe ou subchefe, padrinho ou patrão, enfeitar seus afilhados, sem
esquecer dos recrutas, incluindo o fornecimento de algum ouro, prata e no auxilio na
confecção dos ornatos. Segundo, ainda, Pernambucano de Mello, as habilidades de alfaiate de
couro e pano, além da coragem necessária à função de cangaceiro, faziam com que alguns
cabras se candidatassem à chefias intermediárias do grupo. (MELLO, 2010, p. 74).
A clara noção da importância da imagem criada por meio da ornamentação se manifesta
também na maneira como Dadá desloca o foco da pergunta sobre a violência das armas para o
destaque dos adereços:
Eu, a minha arma era um revolver 38 Colt cavalinho, cartucheira de duas
camadas e balas que eu carregava numa panelinha, as caixas de bala, eu gastava
muito e sim punhal (...) é uma bonequinha, cabinho de prata, eu coloquei 5
aliancinhas feito a “pareagem” com ouro. Era pra enfeite, o punhalzinho era pra
enfeite que eu não ia furar ninguém. Agora a arma [revolver] era pra eu me divertir.
(DIAS, documentário, 1982.)

O fato de suas façanhas passarem a ser reproduzidas em jornais da época, romanceadas


nos cordéis populares e nas gravuras, deve-se à potente imagem que os cangaceiros souberam
criar de si. A maior parte das vezes que essa imagem foi veiculada com simpatia, o aspecto
“estético” foi determinante. Por exemplo, Antônio Risério (poeta, tradutor, antropólogo e
ensaísta), no documentário O Povo brasileiro, baseado no livro homônimo de Darcy Ribeiro,
comenta:
O cara que desafia o poder do coronel ele pode ostentar o destemor dele em
cabelos compridos, em estrelas de Salomão, em dedos cheios de anéis, em
cartucheira de couro de onça pintada. Lampião era multimídia, Lampião trabalhava
17

em couro, Lampião tocava, Lampião escrevia... O cangaço era uma farra, o cangaço
era uma festa colorida. (FERRAZ, documentário, 2001)

Porém, durante muito tempo, prevaleceu o aspecto violento sobre a “estética” ou a “cultura”.
Estas foram negligenciadas ou tratadas apenas como curiosidades ou folclore pela maioria dos
pesquisadores.
Nessa guerra explicita das imagens, trava-se uma disputa pela criação de uma memória.
Mapear como o cinema absorveu esta figura, destacando a maneira como ele se apropriou ou
esqueceu a, por assim dizer, “estética do cangaço” é de suma relevância para entender, fora
da simplificação dos clichês, este grupo que povoou o imaginário da literatura, das artes
plásticas e do cinema brasileiro. Neste trabalho, me detenho apenas no filme de Benjamin
Abrahão, mas sempre pensando que o cangaço é uma ampla e forte iconografia.
Trata-se, portanto, de uma guerra de imagens e imaginários no sentido de Gruzinski.
Uma guerra que, pelo visto, até hoje é travada. Entre a condenação e a exaltação, em que
fileiras as imagens de Lampeão se colocam? Sabemos pela apreensão do filme, que Abrahão
fez um retrato fílmico favorável ao cangaço. Entretanto, não podemos reduzir estas imagens a
um mero libelo propagandístico, como vários estudiosos colocam, por exemplo, Élise Jasmin
(2006). Se elas fossem apenas isso, não teriam o poder que parecem transmitir. Sua força está
nos vários sentidos que delas se desdobram. O filme é considerado: como um documento
etnográfico (DIDIMO, 2010); como imagens de um Brasil arcaico, que o Estado precisava
apagar para levar adiante o “projeto de um Brasil moderno” (XAVIER, 2000, p. 124 in
DIDIMO, 2010, p. 46); como um episódio do banditismo brasileiro (MELLO, 2013; como a
saga do cineasta Benjamin Abrahão (CALDAS e FERREIRA, 1996)
A meu ver, Lampeão exprime e provoca, antes de mais nada, um duplo fascínio: o do
cangaço e o do cinema. Esta abordagem do filme introduz um novo personagem: o
espectador. O que implica uma nova maneira de entender as imagens, que deixam de ser
meros objetos observados e passam a ter agência, no sentido antropológico do termo, ou
ainda, nos devolvem o olhar como afirma Belting (2011). O fascínio que manifesta o poder
que as imagens têm sobre nós, aparece também nas leituras que se faz sobre o filme, ainda
que subterraneamente. Percebo isso no percurso da fala de Bráulio Tavares, que foi citada por
Firmino Holanda e depois por Marcelo Dídimo (não sei a fonte dela, pois não tive acesso ao
trabalho de Holanda). Tavares diz:
Nunca assisti a esse filme sem perceber, na plateia, um pesado silêncio
expectante durante estas cenas. Essas imagens (...) se impõe diante de qualquer
plateia que tenha conhecimento do mito, mesmo aquelas cuja infância não tenha
sido povoada pelas lendas que ele produziu (...). A força das imagens está na mente
18

do espectador. Um registro que se propunha a uma ingênua objetividade, acaba


ganhando proporções mágicas. (TAVARES, in Holanda, 2000, p. 74 in DIDIMO,
2010, p. 14)

Da etnologia ao encantamento, eis o que resume o Lampeão de Benjamin Abrahão.


Segundo o escritor paraibano, a narrativa do cangaço é “história oral preservada por escrito”
TAVARES, 2007). Portanto, uma narrativa escrita das melhores, justamente porque ela está
bem próxima “das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”
(BENJAMIN, 1985, p. 189). A imagem do cangaço que aparece em Lampeão acresce ainda
mais a sua potencia. Que sejam as imagens “verdadeiras” de Lampião, de Maria Bonita, de
Durvinha e do bando de cangaceiros, conta muito. Porém, o aspecto indiciário não é
suficiente. Estas imagens são dinamogramas porque juntamente com seu poder narrativo, se
agigantam tanto pelo tamanho da tela, como pelo escuro do cinema. Por outro lado, nos
velhos e novos suportes -meios digitais-, elas se tornam um fluxo que, não pode mais ser
censurado, feito um aluvião que ainda nos atinge com seus detritos, dessa erupção que foi o
cangaço.
19

2 FORTUNA CRÍTICA

2.1 ÉLISE JASMIN - CANGACEIROS

A escassa bibliografia sobre o filme faz com que este livro, com curadoria de Élise
Jasmin, se torne uma fonte bibliográfica importante. Trata-se do catálogo da exposição de 89
fotografias dos cangaceiros, realizado pelo Centro de Fotografia de Montpellier e de seu
diretor Roland Laboye, lançado por ocasião do Ano no Brasil na França em 2005, ano da
publicação da primeira edição em Francês.
Contar o que foi o cangaço em 25 páginas, pode provocar um certo açodamento
sintético, que faz com que se assuma algumas assertivas como verdades absolutas ou pré-
concebidas e que demandariam um desenvolvimento mais detalhado e dialético.
A começar pela localização geográfica do fenômeno, descrito no catálogo como
“Sertão, que quer dizer deserto (desertão), no sentido próprio e no sentido figurado”
(JASMIN, 2006, p. 16). Essa visão do sertão como lugar ermo, feio e miserável, não é
exclusivo da autora. Acredito que, muitas vezes, se confunde um localizador geográfico com
uma qualidade ou uma suposta deficiência humana.
Em artigo publicado na revista Ciência Geográfica, o professor Fadel David Antonio
Filho adverte o seguinte:
A palavra “sertão” apresenta origens e significados os mais diversos, induzindo,
muitas vezes, ao uso inadequado ou impreciso. Neste sentido, existe a necessidade
do geógrafo ou qualquer estudioso que use o termo, especificar qual o “sertão” a
que se refere. O uso corrente da palavra “sertão” no Brasil é observado em quase
todas as regiões do país, com exceção na Amazônia. (ANTONIO FILHO, 2001, p.
84)

Embora Antonio Filho admita certa variedade de interpretações sobre a origem do


termo, faz algumas colocações que derrubam a tese do sertão como sendo um “desertão”,
uma corruptela abrasileirada do termo deserto. Diz ele especificamente a propósito do sertão
nordestino, “No Nordeste brasileiro, o Sertão corresponde à região de semiárido que suporta o
maior contingente populacional do mundo” (ANTONIO FILHO, 2001, p. 86) e nas
conclusões finais admite,
De qualquer forma, mesmo admitindo que a palavra “sertão” apresenta uma
origem multivariada, o seu significado converge para um só sentido. O ‘locus’ cujo
sentido é o interior das terras ou do continente, pode ou não vir implicitado à ideia
de aridez ou de área despovoada.(ANTONIO FILHO, 2001, p. 87)
20

O sertão, no nordeste, é um lugar de paisagens variadas, de acordo com o local e época


do ano. Sua beleza, pouco compreendida por ideias pré-concebidas, é explicada por Ariano
Suassuna no documentário O Povo Brasileiro.
As pessoas que acham o sertão feio, normalmente são da zona da mata ou da
cidade. Então, são habituadas a um tipo de beleza que é mais ligado à graça. A Zona
da Mata é bonita também, mas a beleza da Zona da Mata é ligada ao gracioso, a
beleza do Sertão é ligada ao grandioso. Ele é grandioso e terrível em certos
momentos, o que da à beleza dele uma conotação muito diferente, muito estranha,
mas muito forte. (FERRAZ, O Povo Brasileiro, 2000).

Fotos: Ormuzd Alves

Triunfo, cidade do sertão de Pernambuco, próximo a cidade de Serra Talhada, onde nasceu Lampião

Pico do Jabre, sertão da Paraiba, fotos feitas na mesma hora, de um lado o sol se pondo e do outro a lua
nascendo.

Além disso, a visão de miséria do sertão não está isenta de preconceitos, geralmente de
algumas pessoas do litoral que consideram os sertanejos miseráveis do ponto de vista material
e cultural. Não estou negando as dificuldades que essas regiões vivem, mas estou contestando
que os sertanejos sejam simplesmente miseráveis. Depois de Grande Sertão Veredas, de João
Guimarães Rosa, não é mais possível defender esta visão. Como se pode ver, os estudiosos do
cangaço não estão isentos ou neutros nesta guerra de imagens.
21

Este embate também aparece nas contradições das discussões sobre quem foi Lampião,
que depende da empatia despertada, ou não, em cada pessoa a cada tipo de imagem do
cangaceiro. São esses vários “Lampiões” que estão presentes nas imagens do filme de
Benjamin Abrahão.
Neste sentido, para Élise Jasmin,
A imprensa torna-se uma espécie de terreno de afrontamento, no qual a imagem
fotográfica passa a ser uma arma. Esta publicação apresenta as múltiplas
apropriações possíveis da imagem fotográfica, ora a serviço do poder estabelecido,
ora a serviço da subversão, chegando mesmo a servir à elaboração de mitos que
vivem até hoje . (JASMIN, 2006, pg 16).

É certo que para alguns meios sociais e institucionais a imprensa serviu como território
de disputa imagética, a partir da publicação das fotografias de Lampião e outros cangaceiros
nos jornais, mas não podemos esquecer que a construção da imagem já vinha sendo edificada
de maneira muito potente através dos cordéis, das gravuras, da música, da poesia e outras
manifestações da arte popular. O próprio Frederico Pernambucano de Mello chama atenção
para o fato:
Sem o folheto de cordel, como chegar ao rancho do tropeiro, à lona do cigano, ao
oratório da beata, ao quartinho da mulher-dama de ponta de rua, à solta e ao curral
do vaqueiro, nas rodas de leitura à beira do fogo? (Mello, 2012, p. 97)

Lembrando mais uma vez Hans Belting em seu Por uma Antropologia da Imagem,
"uma vez que a imagem não tem corpo, ela precisa de um meio para se incorporar”3. Para o
historiador da arte, imagens são como " nômades que alteram os seus modos em culturas
históricas, ocupando assim os meios de comunicação disponíveis, como se fossem pontos de
parada temporários” (2007, p. 32); ou ainda que os meios são como “hospedeiros" (2007, p.
26).
Sendo costureiro e bordador, Lampião teria percebido, de alguma maneira, a
imaterialidade da imagem, e que ela poderia ser transportada de várias maneiras. Ou seja, de
alguma forma, ele percebeu que imagem não tem corpo e, portanto, é capaz de se incorporar
em vários meios, como defende Belting. Além disso, só um bordador sabe o valor da estética
que seu trabalho envolve, tanto como acréscimo de valor no sentido da sociedade capitalista
de consumo quanto do valor da imagem à qual está ligado o bordado. O “C” bordado
entrelaçado em ponto cheio com o “L”, mencionado na análise do filme de Abrahão, mostra
não apenas a importância que ele dava a estes detalhes. O que eles evidenciam é que não é

3
"since an image has no body, it needs a medium in which to embody itself” (BELTING, 2007, p.17).
22

apenas pelo aspecto midiático moderno – fotografias e cinema – que Lampião tinha noção do
valor da imagem. Não é de estranhar que um bordador e costureiro, inteligente e sagaz como
era Lampião, se desse conta sobre os ganhos que traria cuidar da própria imagem. A estética
“carnavalesca” é um indício da compreensão que o bando vai tendo a respeito do impacto que
esta imagem singularizada tinha sobre os sertanejos. Num primeiro momento, ela diz respeito
à consolidação de uma auto-imagem, como coloquei na introdução, para depois se
transformar numa estratégia midiática.
Assim, a explosão estética que vai caracterizar o cangaço é parte desse processo, e não
uma simples reação do cangaceiro ao fato de ter sido traído pela ordem institucional depois de
ter participado dos Batalhões Patrióticos (a luta contra a Coluna Prestes), como defende
Jasmin. Há aqui um tempo desconsiderado pela estudiosa que gestou toda a estética que hoje
conhecemos como a do cangaço. Há quem defenda, como Frederico Pernambucano de Mello
(2010), uma certa evolução na moda e estilo dos cangaceiros, partindo da estética dos
vaqueiros, passando pela entrada das mulheres no cangaço, em 1930, até seu esplendor e
potência máximos, justamente no ocaso do cangaço, com a morte de Corisco, em 1940.
Não me parece correto, portanto, afirmar que um único fato ou frustração desencadearia
a mudança estética. Esta precipitação dos estudiosos é relativamente comum ao fenômeno
cangaço, seja em sua versão cinematográfica ou de outras artes. Jasmin coloca também os
ornamentos como uma forma de ostentação. O que não deixa de ser verdade, servindo
inclusive de atrativo para os jovens paisanos da época que quisessem se aventurar naquele
estilo de vida. Mas, existe um certo exagero nessa afirmação do controle de Lampião sobre
sua imagem. Jasmin chega a fazer afirmações duvidosas, como a de ter sido Lampião quem
convidou Benjamin Abrahão para fazer o famoso filme. A estudiosa diz: “ele teve a audácia
de convidar o fotógrafo e câmera Benjamin Abrahão para rodar um filme sobre a atividade de
seu grupo” (JASMIN, 2006, p. 19).
Alguns estudiosos, como Pernambucano de Mello, José Umberto Dias e outros,
creditam o encontro entre o cineasta e os cangaceiros à obstinação de Abrahão, que tecendo
contatos com coiteiros, volantes e paisanos, utilizando-se, inclusive, da habilidade de
produzir fotografias, conseguiu encontrar e convencer Lampião a se deixar fotografar e
filmar. Chega-se a sustentar que a primeira imagem do filme foi feita por Lampião, visto que
o cangaceiro, desconfiado, teria posto o cineasta na frente da câmera para se certificar de que
não era nenhuma armadilha. Esta notícia foi encenada em Baile Perfumado, de Paulo Caldas e
Lírio Ferreira, 1996. Vê-se, então, como há conflitos entre os estudiosos do fenômeno sobre o
encontro do cineasta com os cangaceiros.
23

Jasmin, por outro lado, não ignora que a empreitada de Abrahão tenha sido uma
verdadeira aventura. Para contar a epopeia do “mascate” árabe cita reportagem do jornal
Diário de Pernambuco de 27 de dezembro de 1936:
Ele conta em que condições conseguiu encontrar Lampião, após uma espera de
dezoito meses percorrendo os sertões da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas e da
Bahia, vivendo na caatinga e enfrentando diversos perigos. Em seu encontro
Lampião mostrou-se “homem de boas maneiras”, oferecendo-lhe uma refeição e
conhaque. No entanto o célebre bandido continuava desconfiado, temendo uma
armadilha ou traição. (JASMIN, 2006, p. 24)

A autora descreve o filme e sua teatralização, especialmente na cena em que o grupo


reza liderado por Lampião. Ela chega a afirmar que o cangaceiro substitui o padre durante o
evento, o que considero mais um exagero. Na cena, Lampião está ajoelhado à frente, mas
voltado para o mesmo lado dos companheiros, em direção ao estandarte com a figura do
“Sagrado coração de Jesus”.
Jasmin coloca que Benjamin Abrahão não tinha um projeto ideológico para a realização
de seu trabalho. Caso contrário, teria criado uma imagem favorável ao regime de Vargas e não
provocado sua ira, que acabou com a apreensão do filme após sua primeira exibição. Ela
supõe que Abrahão foi completamente dominado pelos cangaceiros. Assim, na visão da
estudiosa ele não passaria de um carregador da câmera.
De certa forma, o filme para Jasmin não teria sido de fato uma arma nessa guerra das
imagens, visto que o Estado Novo o confiscou. Ao contrário, as fotografias do bando, que a
imprensa tomou para si, foram publicadas e distribuídas através de jornais e revistas de todo o
pais, continuando assim, a guerra das imagens. Até aquele momento pouquíssimas pessoas
teriam tido a oportunidade de ver o filme. Entretanto, um grande número de pessoas soube de
sua existência através das reportagens publicadas, que reproduziram alguns frames do filme.
Assim, esquece-se que a lenda de um filme feito e nunca visto é também uma poderosa
imagem, que vem acrescentar o fascínio que provocaram alguns frames do filme, que foram
amplamente difundidos.
24

Figura 1 – Frame do filme de Benjamin Abrahão, 1936


Figura 2 – Benjamin Abrahão cumprimenta Lampião - foto: Benjamin Abrahão, 1936
Figura 3 – Bando de Lampião – foto: Benjamin Abrahão, 1936
25

Figura 4 – Lampião mostra alça do bornal – foto: Benjamin Abrahão, 1936


Figura 5 - Lampião costura em máquina a mão – foto: Benjamin Abrahão, 1936
Figura 6 – Frame do filme de Benjamin Abrahão, 1936
Figura 7 – Grupo de Lampião a cavalo – foto: autor desconhecido, 1929
Figura 8 – Lampião com o jornal O Globo – foto: Benjamin Abrahão, 1936

Jasmin afirma que Lampião não tinha consciência política, daí que algumas fotos
provocativas não foram feitas com o intuito de questionar os valores burgueses do litoral, mas
para imita-los e, supostamente, colocar-se no mesmo patamar.
Segundo a autora:
Embora a maioria das fotografias tiradas por Benjamin Abrahão manifestem uma
preocupação cênica, alguma delas remetem a modelos aparentemente distante à
cultura a qual pertence os cangaceiros.
Se por um lado, outros chefes de grupo afirmam-se exclusivamente nas
fotografias como cangaceiros, e nada mais, Lampião e Maria Bonita deixaram-se
tentar por outros tipos de representação, posando como burgueses do litoral ou
imitando a atitude de atores de cinema” (JASMIN, 2006, p. 27)

Independente dos julgamentos que se possa fazer sobre as posições dos vários atores
envolvidos, o que não é meu objeto de estudo, fica claro que todos eles tinham a noção exata
do poder que as imagens exerciam e exercem até hoje no estabelecimento do evento cangaço
como parte importante da história do Brasil. Benjamin Abrahão, por um lado, usava as
imagens que produzia para adquirir prestígio e se estabelecer nos meios sociais e de
comunicação. Lampião, por sua vez, sabia que suas imagens lhe outorgavam poder e glória,
que lhe permitiam aumentar o bando e ser acolhido pelo sertão sem a pecha de bandido
sanguinário. O Estado, por sua vez, tentava exterminar os vestígios deste “descalabro”,
proibindo, inclusive, a contaminação estética que se dava entre seus próprios comandados e
representantes (soldados das volantes).
Outro problema que se coloca, do ponto de vista filosófico, é sobre a interpretação que
fazemos das imagens, baseados, seja no filme ou nas fotografias elaboradas por Benjamin
Abrahão. Toda interpretação é uma interposição ou intermediação entre o objeto e o
observador, dirigindo ou traduzindo a formação da imagem que pode ocorrer na relação direta
entre esses dois agentes. Ao falar da intencionalidade de Abrahão ou Lampião na elaboração
das imagens, impressas nas fotografias ou no filme, entramos em um território difícil de ser
delineado.
Outra crítica que faço à estudiosa é quando ela diz que as imagens posadas dos
cangaceiros remetem às fotos burguesas do litoral. Não podemos nos esquecer das limitações
técnicas da fotografia na década de 1930. As películas de baixa sensibilidade obrigavam os
retratados a manterem uma postura firme, evitando as fotos tremidas ou fora de foco. Essa
26

ideia da mimese dos cangaceiros com relação à vida burguesa do literal pode ter sido
influenciada pelo filme Baile Perfumado, é de 1996.
Jasmin acerta, a meu ver, quando afirma que a presença de Abrahão, nos filmes e
fotografias, tem a intenção de dar autenticidade ao ato, além de enaltecer a própria figura e
feito. Essa relação entre fotografo e fotografado, sempre se dá através de uma afinidade de
propósitos confiança/desconfiança e convencimento. Mesmo nos dias de hoje, é comum
vermos políticos, artistas e outras figuras públicas tentando o controle da própria imagem.
Esta ideia é também tratada na análise do filme.
Jasmin analisa apenas as fotografias da exposição sem se deter muito nas imagens do
filme. Cita algumas cenas como a dos cangaceiros rezando e colocando perfume e se
desinteressa do filme. Não se trata de discutir todas as imagens (fotografias) interpretadas por
Jasmin, mas uma em especial se torna importante, uma vez que foi introduzida,
posteriormente, na versão do filme que analisamos: as cabeças cortadas. A autora descreve a
decapitação e via-crúcis das cabeças por várias cidades do nordeste até seu destino final, no
Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, onde permaneceram até 1969. Para ela, a intenção era
a obliteração da imagem de Lampião e dos cangaceiros. A cabeça de Lampião tornara-se a
“imagem viva da morte” (JASMIN, 2006, p. 31). Um dos mitos, o da imortalidade, o do corpo
fechado de Lampião caira por terra, segundo ela. Lampião, fora cortado, perfurado e
exterminado, mas não acredito que sua imagem tenha se estinguido. A própria fotografia de
suas cabeças cortadas, não é exclusão, “uma despossessão post-mortem”, como ela afirma
(2005, p. 32). Longe de ser um objeto difamador, ela é um poderoso ícone, basta lembrar
como a tradição pictórica cristã pintou incansavelmente a cabeça decaptada de João Batista.
Hans Belting reforça o poder destas imagens.
...corpos, no entanto, também podem produzir imagens internamente, em sonhos,
visões e memória. Além disso, alguns corpos são eles próprias imagens, por
exemplo, em performances, ou como "auto-ícones", como os corpos de criminosos
executados [grifo meu] ou os cadáveres "plastinados" posados de forma espetacular
e terrivelmente atraentes na exposição de Gunther von Hagens, Kirperwelten …
(BELTING, 2007, p. 89)

Em outro momento diz: The dead person exchanges his body for an image; that image
holds a place for him among the living (2007, p. 29). Ou ainda: "Without the connection to
death," diz Belting explicitamente, "those images that merely simulate the world of life
quickly fall into a pointless circularity and the proverbial accusation of deceptiveness...."
(2007, p. 190).
27

Aqui, seria importante reforçar a diferença entre imagem e fotografia/filme, pintura etc.
W.J.T. Mitchell, em Image Science, responde da seguinte forma à pergunta “Qual a diferença
entre imagem e fotografia? –
The Picture is a material object, a thing you can burn or break or tear. An image
is what appears in a picture, and what survives its destruction – in menor, in
narrative, in copies and traces in other media. (MITCHELL, e-book, 2015, cap.2 p.
7)

Nesse caso, mesmo tendo os corpos/suportes, dilacerados e fragmentados, seu cortejo e


exibição, pode ter contribuído para o fortalecimento da imagem dos cangaceiros, em vez do
resultado pretendido pelo poder estabelecido. Isso é perceptível, a meu ver, na apropriação
dessa imagem por Carybé em sua Obra inacabada.

Obra Inacabada, Hector Julio Páride Bernabó – Carybé (1911 - 1997)

Élise Jasmin diz que a cabeça cortada de Lampião se tornou a “imagem viva da morte”
2005, p. 31). Pode-se entender, também, as cabeças cortadas como a “imagem viva do
cangaço”, como Caribée fez ao retratar os cangaceiros em posições vivas, embora estes
estejam alijados de suas cabeças. O váculo entre o corpo e os chapéus que flutuam, mostra
como os cangaceiros podem estar sem suas cabeças –não esqueçamos a lenda do cavaleiro
sem cabeça-, mas nunca sem seus chapéus.
28

2.2 MARIA DO ROSÁRIO CAETANO – CANGAÇO – O NORDESTERN NO CINEMA


BRASILEIRO

No levantamento da fortuna crítica do cangaço no cinema, em geral, encontramos


trabalhos que ligam o cangaço à literatura, à história e à sociologia. Os textos sobre cinema e
cangaço são pontuais e geralmente referindo-se a um filme específico.
Cangaço – O Nordestern no Cinema Brasileiro, organizado por Maria do Rosário
Caetano e O Cangaço no Cinema Brasileiro, de Marcelo Dídimo, são os dois únicos livros,
que vão além de um mero artigo sobre o assunto. O primeiro é um panorama dos assuntos
críticos, e o segundo é um doutorado, portanto, trata-se de uma abordagem especializada.
Cangaço – O nordestern no cinema brasileiro é importante por ser uma coletânea de textos
escritos por pesquisadores, acadêmicos, críticos de jornais e cineastas. Assim, temos um
panorama bem diversificado daquilo que o cinema mostrou e pensou sobre o cangaço. Em
geral, o que se desta nessa diversidade é um assunto bastante polêmico sobre o que seria o
cangaço no cinema, o próprio título do livro mostra que a ligação entre cangaço e western se
tornou importante nas discussões dos estudiosos e nas realizações dos cineastas.
Rui Guerra, em seu artigo “O homem que matou Corisco”, destaca a figura do matador,
coronel José Rufino. Na entrevista que fez com este personagem, em 1962, o que sobressai é
uma espécie de autoanálise na qual o cineasta português se coloca como alguém de fora, que
não entendeu, em primeira instância, o personagem.
Na entrevista feita por Maria do Rosário Caetano com Maurice Capovilla, que aparece
no artigo “O cangaço nos documentários da Blimp Filmes”, o cineasta se mostra categórico
em afirmar que não faz o menor sentido essa aproximação com o western dos Estados Unidos.
Para ele, a estrutura consagrada do gênero “bang-bang” é a exaltação do herói individual,
enquanto que no cangaço as relações e conflitos se dão entre bandos de cangaceiros, as
volantes e a polícia, sem mocinho e nem bandido. Os conflitos existentes naquela época são
muito mais complexos do que o reducionismo da fórmula dos westerns aplicada nos filmes
sobre o cangaço. Então, o cangaço seria um tema que ainda teria que ser aprofundado,
segundo o cineasta, já que o cinema ignorou ou simplificou os verdadeiros dramas existentes
dessa realidade. Desta forma, o cinema ainda não teria sido capaz de retratar as realidades
social e política do cangaço. Em vez disso, teria transformado a questão num simplista gênero
de aventura, “sem começo, sem meio e sem fim” (CAETANO, 2005, p.20). A reivindicação
de profundidade do tema parece pura auto-ironia para quem faz televisão, não passa de
29

retórica de legitimação. Apesar disso, é interessante que Capovilla não atribua importância à
ligação que muitas pesquisas fizeram entre a representação do cangaço e o western
hollywoodiano. Tornar fundamentais processos miméticos, como intui Capovilla, deixa de
lado conflitos sociais e políticos que dizem respeito à história, à sociedade e à política
brasileira, que como bem nos ensinou Marc Ferro (1993), se encontram em qualquer filme.
Além disso, a meu ver, este “gênero cinematográfico” produziu várias obras
fundamentais sobre o tema e sobre o Brasil – e não estamos falando apenas de Deus e o Diabo
na Terra do Sol e Baile Perfumado, mas também dos fragmentos de Lampeão, e de O
Cangaceiro. Se prestarmos menos atenção aos elementos que ligam o filme de Lima Barreto
ao western, perceberemos como é fundamental o dialogo que ele estabelece com o repertório
cultural e iconografico do cangaço, dentro do qual o filme de Abrahão é de suma importância.
Por exemplo, a relação com a música, a dança, os adereços etc. O fato de O Cangaceiro ter
Mulher Rendeira acompanhando as primeiras imagens, coloca questões que dizem respeito
ao contexto brasileiro, mais do que ao gênero dos USA.

Bando de Lampião a cavalo na cidade de Limoeiro – PE, junho de 1927. Foto: Francisco Ribeiro

Plano de O Cangaceiro (frame 1) 5’10” min. Plano de O Cangaceiro (frame 2) 5’15” min.
30

Com relação à construção dos planos do filme de Lima Barreto, este diálogo com o
repertório da iconografia do cangaço também é evidente. Por exemplo, os planos dos
cangaceiros rindo do soldado que foi marcado (05’09”-minutagem) retomam um quadro
bastante comum nos filmes de faroeste, mas ele se abre e termina com um plano geral que
reproduz a maneira como os cangaceiros eram retratados. De maneira que, este
enquadramento não é exclusividade do western. Aliás, os estudos cinematográficos
desconhecem que os cangaceiros usavam cavalos. Por exemplo, Ismail Xavier, em Sertão
Mar (2007, p.150), ignora este fato e nega que os cangaceiros usassem cavalos, atribuindo a
figura deste animal, no filme de Barreto, à cópia que se teria feito do faroeste. As primeiras
imagens do filme de Abrahão mostra a expertise do vaqueiro na lida com o cavalo, o
cangaceiro era um sertanejo e, consequentemente, muitos deles dominavam a arte equestre.
Assim, não se pode negar que o cavalo fizesse parte da vida do cangaço, visto que ele fazia
parte da realidade social e imaginária do sertão. Afinal, a outra figura reverenciada pelo
sertanejo é o vaqueiro, além disso, os bandos de cangaceiros viviam se acoitando em
fazendas. Assim, a ideia de que os primeiros filmes sobre o cangaço são uma cópia mal feita
(dado o subdesenvolvimento do Brasil) do modelo do faroeste dos Estados Unidos, pois
teriam introduzido as cavalgadas, coisa que não teria acontecido no cangaço, não se sustenta.
Por outro lado, as cenas da dança de O Cangaceiro remetem diretamente ao Lampeão, de
Abrahão, mesmo que Lima Barreto não tenha tido acesso ao filme. Ou ele viu algum dos
frames que circularam ou ouviu falar sobre esse fato. Além disso, o filme tem como diretor
de arte Carybé, o que denota um diálogo entre a arte brasileira e a iconografia do cangaço.
Carybé não foi o único artista a pintar este fenômeno social.

Cândido Portinari, série Cangaceiros (1951) Tiroteio de Pedra Bonita, que serviu de ilustração nº 10 para
o romance Cangaceiros, de José Lins do Rego.
31

Cangaceiros – Carybé, 1980.

Capovilla entendeu bem o processo retórico de legitimação que Abrahão usa em


Lampeão. No documentário, produzido para a TV Globo, O Último dia de Lampião, trata de
filmar depoimentos de ex-cangaceiros, coiteiros, soldados das volantes e traidores do bando.
Não bastasse isso, ele fez uma “reconstituição de época”. Teria pesquisado sobre locais,
organização do ataque da volante para reconstituir o que seria o último dia de Lampião. Para
arrematar o processo de credibilidade, a Globo e a Blimp teriam contratado Dadá, mulher de
Corisco, e Sila, mulher de Zé Sereno, para desenhar os chapéus e as roupas usadas no filme.
Elas teriam sido responsáveis por alguns dos bordados que ficaram conhecidos nas roupas de
cangaceiros dos bandos de Lampião, Zé Sereno e Corisco. Como se pode ver, usa-se a velha
retórica de uma fidelidade na reconstrução dos eventos, supostamente baseados numa rigorosa
pesquisa. Sabe-se como esses estratagemas são processos retóricos legitimadores que pouco
tratam dos complexos acontecimentos da história. Além do mais, existem muitas questões a
serem levantadas sobre as diversas representações dos cangaceiros, uma delas é com relação
ao estilo das vestimentas e ornamentos. Como toda história é uma questão de escolha, aqui,
mostra-se a volante uniformizada em caqui e os cangaceiros em azul, fato muito contestável.
Analisando as fotografias em preto e branco, vemos variados tons de cinza, algumas roupas
com riscados. Assim, seria arriscado uma uniformização da indumentária dos Cangaceiros. A
esse respeito, Pernambucano de Mello alerta:
Historiadores de primeira informação têm incorrido no simplismo de estremar os
trajes dos combatentes com rigidez, atribuindo ao cangaceiro o uso sistemático da
mescla azul, e à volante, o do brim cáqui. Já vimos não ter havido esta clareza,
presente sempre a via da combinação criativa de ambas as preferências de gosto, de
modo mais comum o contraste entre calça e túnica. (MELLO, 2010, p. 186).
32

A própria descrição de Corisco, publicada no jornal Diário de Pernambuco em 1938,


pode dar uma noção do que seria a criatividade na mistura dos elementos do traje.
O Diário de Pernambuco de 6 de agosto de 1938 trazia depoimento de vítima
dando conta de que o cangaceiro, destacando-se dentre seus companheiros de
bando, ostentava culote cáqui, túnica branca, fuzil cheio de medalhas, dedos
cobertos de anéis, a cabeça loura coberta por chapéu de couro cheio de ouro e
enfeites. Uma festa só, a imagem de Corisco, cansamos de ouvir no sertão.
(MELLO, 2010, p. 71)

Em 1926, quando o bando juntou-se aos “batalhões patrióticos”, que combatiam a


Coluna Preste, eles receberam uniformes que se diz terem sido confeccionados em um brim
azul. (MELLO, 2010, p. 71)

Foto: José Otávio, 1927

É possível que tenham usado o uniforme por um tempo, e, posteriormente,


incorporaram as peças, combinando com outras que ja tinham. Em foto de 1927, pode-se
notar a variedade de combinações de tons.
Os chapéus, artefato de extrema importância para os cangaceiros, são completamente
diferentes, no filme de Capovilla, daqueles que aparecem nas fotografias. Dadá não era
chapeleira, ela criava a estética das roupas, e o documentário estranhamente lhe dá esta tarefa.
Deu no que deu, belos chapéus em novas criações.
33

Corisco em foto de Benjamin Abrahão

Lampião em O Último dia de Lampião

Frame de Lampeão, de Benjamin Abrahão

Lucila Ribeiro Bernardet e Francisco Ramalho Jr., em Cangaço – Da Vontade de se


Sentir Enquadrado, fazem uma descrição crítica do esquema dramático de um grupo de
filmes (1953-1965). São obras que contam a estória de um herói, que embora cangaceiro,
sente-se deslocado e não aceita o estilo de vida do grupo. De acordo com os autores, o
esquema nos filmes repete de forma maniqueísta, um trio composto pelo herói ou cangaceiro
34

circunstancial, a mocinha e o “cangaceiro propriamente dito”. O texto, ao defender um


esquema geral para todos os filmes, insinua a constituição de um gênero cinematográfico do
cangaço e, consequentemente, defende uma matriz, da qual os outros filmes seriam mera
repetição. O Cangaceiro, de Lima Barreto, seria o modelo do qual as outras narrativas se
tornariam mero clichês.
A conclusão do texto é de que nesses esquemas dramáticos repetidos dos primeiros
filmes sobre o cangaço, desconhecem a função social e os problemas específicos dos
cangaceiros. Ancorados na mimese do western, os pesquisadores não relacionam o filme O
Cangaceiro com representações do cangaço em outras manifestações artísticas.
A análise de Luiz Zanin Oricchio, em “O Cangaceiro Paradoxal – Corisco em Deus e o
Diabo na Terra do Sol ”, começa falando da força imagética do cartaz do filme de Glauber
Rocha, embora o personagem retratado, Corisco, só apareça na segunda metade. Para o autor,
esta força pode ser atribuía à imagem do cangaceiro, com sua vestimenta completa; à “boa
forma”, no sentido da psicologia da Gestalt; ou ainda ao rosto “agreste” de Othon Bastos,
talhado como nenhum outro para o papel. “É um dos mais poderosos cartazes de filmes
brasileiros de todos os tempos” (ORICCHIO in CAETANO, 2005, p. 51). Entretanto, apesar
de se debruçar sobre a figuração do cangaceiro, Oricchio retoma o clichê hollywoodiano
aplicado aos os filmes sobre o cangaço antes de Deus e o Diabo na Terra do Sol, e que
configurariam o nordestern no cinema brasileiro. Com os filmes de Glauber Rocha, o cinema
introduziria reflexões filosóficas, sociológicas, políticas e estéticas a este “gênero”
cinematográfico”. Cria-se um percurso em que o filme de Glauber Rocha aparece como o
momento da maturidade do “gênero” cangaço. Além de ser problemática a formulação de um
gênero cinematográfico, um aspecto mais duvidoso ainda, é a suposta mimese do real na
iconografia de Rocha. Oricchio diz que o Corisco de Glauber Rocha é uma “cópia fiel das
imagens dos cangaceiros reais” (ORICCHIO in CAETANO, 2005, p. 51). A ligação ao
realismo, argumento de autoridade usado pela crítica cinematográfica do século XX, não se
sustenta hoje em dia. Além disso, a imagem do Corisco de Glauber Rocha é desprovida de
alguns de seus elementos imagéticos mais chamativos: as estrelas de 8 pontas que adornavam
seu chapéu e os bordados florais feitos por Dada, sua companheira, nos bornais e peias (faixas
que prendiam os bornais junto ao corpo). No cartaz, destacado por Oricchio, se substitui as
estrelas de oito pontas pela cruz cristã, formada pela haste do punhal e a testeira do chapéu.
Oricchio ignora o fato de que esta cena é uma citação do filme de Abrahão, no plano em que
Lampião aparece empunhando seu punhal.
35

Como se pode ver, desconsidera-se uma série de atributos importantes dos cangaceiros
“reais” pela formulação de um esquema que privilegia o aspecto do drama do nordeste, além
de se ignorar o diálogo importante que Rocha estabelece com Abrahão.
Para Alberto Freire, o remake de O Cangaceiro, de Aníbal Massaine, 1997, não
acrescenta quantitativamente nada à narrativa do filme original, apesar da exclusão ou
inserção de sequências novas. O western continua como modelo, e o remake do filme de Lima
Barreto consegueria ser pior do que o original. Segundo o autor, o discurso maniqueísta
persiste ao considerar o sertão como território representativo do atraso e do arcaísmo,
enquanto o espaço urbano representaria o território da modernidade. O Cangaceiro (remake),
em vez da geografia e aridez do sertão, começa mostrando as celas de uma prisão. Este inicio
reforça a visão, que já teria sido hegemônica, de que o cangaço era visto e tratado como
questão penal, “descartando-se os elementos sociológicos para o surgimento e manutenção de
sua existência” (FREIRE in CAETANO, 2005, p. 70). A partir da memória dos personagens
colocados na prisão, nos anos 90, o espectador é lançado num tempo de barbárie total,
violento sem contextualização histórica e social. Lima Barreto, por outro lado, situa o filme
numa “Época imprecisa: quando ainda havia cangaceiros” (FREIRE in CAETANO, 2005,
p.70), utilizando-se para isso de uma legenda no início do filme. De uma maneira ou de outra,
ambos afastam o acontecimento do cangaço -arcaico, violento, quase esquecido - do tempo e
espaço atual -moderno e civilizado. Entretanto, o velho cangaceiro Tico prefere ficar no
presídio (e não numa cela de delegacia policial) para se preservar da violência da cidade
metropolitana. Este desejo do personagem muda essa configuração entre o arcaico e o
moderno, no sentido dado pelo estudioso. Se a prisão se tornou um asilo, é que a violência
urbana parece ser pior do que aquela que foi vivida no cangaço e é mostrada no filme. Aliás, o
presídio é um produto moderno da cidade, longe do espaço aberto e libertário da caatinga, que
só tinha cadeia de delegacia. A violência excessiva também é criticada, pois ela, no filme
“original”, O cangaceiro, é apresentada de forma não explícita. Já no filme de Massaini, a
violência “adquire uma expressão de naturalidade cotidiana, colocando o expectador como
um voyeur do sofrimento alheio”, (ORICCHIO in CAETANO, 2005, p. 71). Entretanto, ainda
é prematuro falar sobre a naturalização da violência pelo cinema, pois a cotidianidade dela é
um elemento que se firmou com a narrativa televisiva, principalmente pelos programas
policiais. Sustento a hipótese, que este tipo de filme retoma e cria imagens desta
espetacularização exacerbada pela narrativa da televisão e da imprensa marrom. Além disso,
nós não somos apenas voyeurs, mas vítimas diretas da violência urbana, pois ela é difusa e
podemos sofre-la no próprio cinema ou na saída. Este diálogo entre cinema e outras mídias
36

contemporâneas, como a TV e a internet, ainda está por ser feita de maneira consistente pelos
estudiosos de cinema. Nesta tarefa, de procurar as semelhanças e as cópias, acabamos não
entendendo os diálogos propostos pelo filme. A questão não seria que se naturalizou a
violência, a meu ver. Isto já foi feito e faz parte de nossas vidas. O que interessa é saber em
que medida o filme pode trazer questões que nos ajudem a pensar o nosso cotidiano prenhe de
violência. O que permanece no filme de Massaini é a ampliação do espectro da imagem do
cangaço: mental, gráfico, projecional, verbal e ótico.
Além disso, não se trata de pensar apenas o cangaceiro como um bandido do mal ou um
marginalizado, produto de uma sociedade violenta e extremamente desigual. Leituras como a
de Freire colocam o personagem como mero produto das circunstâncias, ficando aquém da
potencialidade de sua figura. Como explicar que esta imagem seja constantemente retomada e
cultuada? Qual o fascínio que ela exerce, seja nas populações rurais ou urbanas? Um estudo
das imagens, como tenho constantemente mencionado, relativizaria a ditadura do contexto
social e histórico, principalmente se considerarmos as do filme de Benjamin Abrahão.
Lampeão não reforça a dicotomia entre cópia e realidade, ou a obrigatoriedade de pensar os
filmes sobre o cangaço como um gênero, cuja característica principal é o de ser uma mímese
do western.
O artigo de Luiz Felipe Miranda, “Cinema e Cangaço – História”, faz um apanhado
histórico, descrevendo os filmes cronologicamente e pelos ciclos regionais, que trataram do
cangaço desde a década de 1920 até o início da década de 1990. O autor lista os filmes, com a
ficha técnica e alguns fatos envolvendo as produções, bem como dados biográficos de alguns
diretores. No final do livro, são listados 56 filmes produzidos para cinema e 3 produções para
Tv. Fora estas informações pertinentes, a visão histórica é problemática, pois é das mais
tradicionais e conservadoras. Este também é um problema dos textos de Marcelo Dídimo. No
artigo, “Baile Perfumado: O Cangaço Revisitado”, o autor cita a década de 90 como sendo
importante para a revitalização da temática do cangaço no cinema nacional. Essa afirmação
pode ser facilmente contestada, pois nas décadas de 1970 e 1980, foram produzidas 17 obras
para TV e Cinema4. Enquanto que na década de 1990, parece-me que foram produzidos
apenas quatro filmes5.

4
1970 – A vingança dos doze – Marcos Faria
1970 – O Cangaceiro – Giovanni Fago
1971 – Faustão – Eduardo Coutinho
1971 – O último cangaceiro – Carlos Mergulhão (filme desaparecido)
1972 – Jesuíno Brilhante, o cangaceiro – William Cobbett
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Neste artigo, Marcelo Dídimo, apesar de afirmar haver uma grande diversidade na
representação do cangaço no cinema brasileiro, reforça a linha histórica do nordestern, que
tem seu auge com Glauber Rocha e que depois se “popfica”. O texto fala de um cangaceiro
que sabe e quer construir sua imagem, por isso se coloca diante das câmeras de fotografia e
cinema. Entretanto, este fato é interpretado moralmente, e o saber do cangaceiro, se torna pura
vaidade e “aburguesamento” (consumo de bebidas, de roupas, de perfumes e bebidas
importados e caros).
Em “Metamorfoses do Sertão”6, Walnice Nogueria Galvão, afirma que o sertão está
em constante transformação, assim como o cangaço no cinema. A autora não chega a se
referir ao filme de Abrahão especificamente, mas o retoma quando analisa o terceiro eixo dos
quatro que ela elenca para pensar os filmes sobre o cangaço7. Em Baile Perfumado,
paradigmático do terceiro eixo, o cangaceiro é substituído pelo cineasta, Benjamin Abrahão,

1974 – O Leão do Norte – Carlos Del Pino (filme desaparecido)


1974 – As cangaceiras eróticas – Roberto Mauro (pornochanchada)
1975 – O último dia de Lampião – Maurice Capovilla (docudrama)
1976 – A mulher no cangaço – Hermano Penna (docudrama)
1976 – A ilha das cangaceiras virgens – Roberto Mauro (pornochanchada)
1976 – Kung-fu contra as bonecas – Adriano Stuart (pornochanchada)
1977 – Pedro Bó, o caçador de cangaceiros – Mozael Silveira.
1977 – No Raso da Catarina – Hermano Penna (docudrama – filme desaparecido)
1978 – Os cangaceiros do Vale da Morte – Apollo Monteiro (filme desaparecido)
1980 – O cangaceiro do diabo – Tião Valadares
1982 – A musa do cangaço – José Umberto Dias (curta)
1983 – O cangaceiro Trapalhão – Daniel Filho

5
1993 – A Saga do Guerreiro Alumioso, de Rosemberg Cariry
1996 - Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas,
1996 - Corisco e Dada, de Rosemberg Cariry
1997 – O Cangaceiro [refilmagem] , de Aníbal Massaini Neto.

6
Publicado na revista Estudos Avançados, Número 52, setembro/dezembro, 2004.
7
Os quatro eixos principais: no primeiro, dependente da literatura, estariam Deus e o Diabo na Terra do
Sol, Vidas Secas, Os Fuzis e A Hora e a Vez de Augusto Matraga, completado ainda com O Dragão da Maldade
Contra o Santo Guerreiro, anos depois. É o momento, segundo a estudiosa de literatura, em que se confere “ao
complexo simbólico [do sertão] seu máximo fastígio tanto nacional quanto internacional” (GALVÃO, 2004 in
CAETANO, 2005, p. 89) paragem sertaneja, destaca-se o cangaço, que é objeto de análise, juntamente com o
“misticismo enquanto tradicionais saídas da plebe brasileira para uma situação insustentável” (GALVÃO, 2004
in CAETANO, 2005, p. 87). No segundo seguimento estariam dois filmes lançados em 1979, Bye-bye Brasil, de
Cacá Diegues e O Homem que Virou Suco. Nestas obras, não há mais projetos utópicos, porque foram
esmagados pelos governos militares e porque a televisão, principalmente pelo financiamento da TV Globo pela
ditadura, passa a ocupar uma nova hegemonia. O nordestino “rebaixado” e “extraviado na cidade grande”,
camufla-se de cangaceiro, exibindo-se “pelo modo da derrisão” 90. O terceiro é analisado no corpo do texto. No
quarto eixo, o cangaço não aparece mais no sertão . Central do Brasil, de Walter Salles e Eu Tu Eles, Andrucha
Waddington, são representativos da crise do patriarcado, onde a figura masculina é substituída por um universo
de mulheres e filhos, que tem dominado o cinema na última década. Assim, a figura do Cangaceiro não tem mais
espaço.
38

obcecado pela figura do cangaceiro. Meta-cinema que traz ao primeiro plano o fascínio por
este fenômeno e seus personagens. O encanto se manifestaria em Corisco e Dadá, que
introduz também um episódio com Benjamin Abrahão. De modo que, neste eixo, permanece
“a persistência daquilo que agora se tornou toda uma mitologia” (GALVÃO, 2004 in
CAETANO, 2005, p.91). Estes filmes atenderiam a uma certa demanda saudosista: “não
propriamente saudade do sertão mas saudade da crença no sertão, em que embarcara nosso
cinema” (GALVÃO, 2004 in CAETANO, 2005, p. 76).
O que faz este texto de extremo interesse, a meu ver, é uma relação inusitada que
aparece nas entrelinhas da relação entre cinema e literatura. Além disso, nos interessa a
aproximação que Galvão faz entre o cinema do cangaço e o western. Num primeiro momento
ela assume a já conhecida ligação mimética que coloca o cangaço como mera cópia do “bang-
bang” dos Estados Unidos. Porém, ela desloca está relação de similitude hierárquica apontado
várias e importantes diferenças entre estas duas manifestações cinematográficas. Galvão liga
o faroeste norte-americano ao mito da fronteira. Em sua função de transportar o gado para as
frentes pioneiras, na construção da estrada de ferro rumo ao pacífico, o cowboy surgiu como
protagonista/herói na disputa do território com o pele vermelha. O território do cangaceiro
compreendia uma vasta extensão de terra, principalmente na região semiárida, abrangendo
sete estados brasileiros. Não se tratava, portanto, de uma questão de conquista territorial. Esse
território fora configurado a partir do século XVI, com o ciclo do gado. O segundo ponto de
separação entre os dois gêneros cinematográficos está justamente no
personagem/protagonista. A autora descreve o herói nos westerns como “encarnação
singular de um ideal tipicamente norte-americano, o do selfmade man, individualista,
solitário, destemido, justiceiro, viril e branco.”, (GALVÃO in CAETANO, 2005, pg. 85). O
sertanejo, por outro lado, é um povo mestiço, muito longe da encarnação de um ideal de nação
pretendida pela classe dominante, predominantemente branca. Darcy Ribeiro, assim descreve
em O Povo Brasileiro, uma possível formação do tipo sertanejo:
Por tudo isso, muitos mestiços devem ter-se dirigido ao pastoreio, como
vaqueiros e ajudantes, na esperança de um dia se fazerem criadores. Desse modo
proviam uma oferta constante de mão-de-obra, tornando dispensável a compra de
escravos. Só assim se explica, de resto, o próprio fenótipo predominantemente
brancóide de base indígena do vaqueiro nordestino, baiano e goiano (...). É
inevitável admitir que, roubando mulheres ou acolhendo índios nos criatórios, o
fenótipo típico dos povos indígenas originais daqueles sertões se imprimiram na
vaquejada e nos nordestinos em geral. (RIBEIRO, 2001, p. 343 e 344)

Na afirmação da autora, ecoa a posição de Capovilla, ao considerar sem sentido a


aproximação entre as duas narrativas e seus protagonistas. Além dessas diferenças, Galvão
39

reconhece o cangaceiro não apenas como personagem, mas lhe atribui um status de ícone,
diferente do cowboy. O que teria elevado o cangaceiro à categoria de ícone, segundo Galvão,
seria sua visualidade. Os adereços e objetos que portava sobre si, que a autora chama de
parafernália. A percepção instantânea de sua presença e significado
no impacto escorado pelo olho, de uma panóplia de signos: o encourado com seu
chapéu cravejado de metais e testeira ornada de moedas, cartucheiras atravessadas
no peito, anéis cobrindo os dedos, garrucha e punhal longo de sangrar à cinta, facão
de abrir caminho, embornais ou capangas bordadas dispostas sob os braços, e o
indispensável apito.

Cita, também, como elementos contribuintes para a construção da imagem do cangaceiro,


Luiz Gonzaga, com sua “fantasia de cangaceiro incrementada, descendente dos paramentos
de Lampião” (GALVÃO, 2004 in CAETANO, 2005, p. 86). Além do cantor, que trouxe os
ritmos sertanejos para o sul do pais, estão as artes plásticas. As pinturas de Portinari, na
década de 1940, que inspirariam discípulos mundo afora. Obras como Retirantes, Enterro,
Enterro na rede e a série Cangaceiros tornaram-se referencias imagéticas importantes sobre o
sertão e o cangaceiro. Galvão faz referencia, também, às cerâmicas do Mestre Vitalino,
algumas com nomes coincidentes com as obras de Portinari, caso de o Enterro e os
Cangaceiros.

Retirantes – Mestre Vitalino

Como essa carga icônica é traduzida para o cinema? Galvão faz um deslocamento
bastante instigante e pertinente. No caso do filme O Cangaceiro, embora ainda pense que sua
visualidade era dependente da do faroeste dos Estados Unidos, ela traz o cinema mexicano
como uma outra fonte iconográfica. Evidentemente que se reduzirmos também o cinema
mexicano a mera cópia da fonte “original” visual dos Estados Unidos, estaremos entrando em
uma limitação neocolonial bastante empobrecedora do ponto de vista da política e da cultura
das cinematografias que estão fora do circuito Europa-Estados Unidos. Visualmente, os
cangaceiros estariam mais próximos dos personagens mexicanos. Isto é imediatamente visível
40

pelo exagero dos chapéus de um e de outro, pelas cartucheiras, pelas alpercatas etc. Há nas
imagens dos cangaceiros e dos mexicanos, um apelo iconográfico, que faz com
imediatamente os reconheçamos. A imagem, pelas roupas e adereços, não é uma característica
que destaque o caubói como um personagem diferente do resto. Há uma diferença
significativa entre o mexicano comum e o charro, assim como do brasileiro e o cangaceiro.
Além disso, Galvão sugere que Guimarães Rosa teria tido como uma de suas fontes do
seu livro mais conhecido, o filme de Lima Barreto.
Num procedimento comum – e Guimarães Rosa o utilizaria-, o filme recolheu
traços da legenda de Lampião, de onde extraiu as roupagens e adereços, os lances de
crueldade bem como o tosco justiçamento, as brincadeiras do lazer com danças e
cantorias à luz da fogueira. E até o nome do chefe: “capitão Galdino Ferreira” em
lugar de capitão Virgolino Ferreira. O hino guerreiro do bando de Lampião, Mulher
Rendeira, seria aproveitado no filme, assim como o bando de Riobaldo teria um
similar na pena de Guimarães Rosa, Olêrêrê baiana; já o apito seria presenteado
com exclusividade a Zé Bebelo. Tudo isto, a três anos apenas de Grande Sertão:
Veredas e Corpo de Baile, que viriam à luz em 1956. (GALVÃO, 2004 in
CAETANO, 2005, p. 87)

Esta aproximação entre cinema e literatura é inusitada, pois, geralmente, quando se trata
do cinema brasileiro, principalmente dos filmes antes do Cinema Novo, marca-se uma
distância entre a profundidade da literatura e a superficialidade do cinema. Este clichê, se não
desfeito, pelo menos é colocado entre parênteses. Afinal, não é pouco dizer ou, pelo menos,
insinuar que em Grande Sertão: Veredas, um dos maiores textos da literatura brasileira, haja
um pouco de O Cangaceiro. Sua reflexão do porque o cangaço foi um assunto midiático e o
porque o cangaceiro se tornou um ícone é cruxial para entender o fenômeno do cangaço. Por
exemplo, nos filmes sobre o interior do sudeste e centro-oeste, o personagem principal, o
caipira, não se transformaria em ícone, nem originaria o mesmo complexo simbólico, como
no caso do sertanejo. A hipótese para essa possibilidade, colocada como “mistério do
imaginário”, seria o fato de não existir nenhuma obra literária, assim como aconteceu com
Canudos, que monumentalizasse revoltas ocorridas no Sul. Cita a rebelião do Contestado,
“que durou vários anos empenhou dois estados do Sul e mobilizou dezenas de milhares de
pessoas” (GALVÃO, 2004 in CAETANO, 2005, p. 75). Dois aspectos podem ser levantados
neste momento para tentar explicar o que Galvão considera “mistério do imaginário”. A
primeira é que a imagem de um povo ou de seus personagens populares começa a ser
construída, principalmente, pelo próprio povo através de sua cultura. No caso dos sertanejos, a
literatura de cordel, as trovas, a música, as pequenas esculturas de barro e madeira, já veem
contando sua própria história. Aparentemente, a rebelião do Contestado não tem esta
exuberância iconográfica e literária popular.
41

Outro aspecto a ser considerado é que eventos como Canudos, o cangaço e outros, são
apenas momentos pontuais de uma história de séculos de abandono e injustiças acontecidas
em uma determinada região do Brasil. A complexidade dos eventos ocorridos no sertão
nordestino vêm desde o Brasil Colônia.
Ao longo do período de colonização neerlandesa no Nordeste, vamos
surpreender nosso banditismo caboclo enriquecido pela presença de estrangeiros,
desertores das tropas de ocupação, sendo de franceses e flamengos o contingente
mais expressivo que se mesclava aos aventureiros da própria terra e aos negros
fugitivos. E não ficamos nisso, apenas. Houve mesmo chefes de grupo que eram
flamengos. Assim o caso do célebre Abraham Platman, natural de Dordrrecht, ou
ainda o de certo Hans Nicolaes, que agia na Paraíba à frente de trinta bandoleiros
por volta do ano de 1641.” (MELLO, 2010, p. 44)

Esta longa história faz com que a rebelião do Sul seja apenas um acontecimento
relativamente recente e com pouca produção iconográfica. De modo que, “os enigmas do
imaginário”, supostos na relação entre arte popular (na qual se encontra o próprio cinema) e
erudita são mais complexos do que a história ou a crítica literária podem imaginar. O que
coloca em cheque a hipótese, postulada por Galvão, de que o complexo simbólico do
sertanejo se deva apenas a sua monumentalização pela literatura erudita. Talvez seja o
contrário, de modo que os autores da dita literatura erudita retomariam este material popular e
nos premiariam com suas obras monumentais. Por outro lado, a longa duração do fenômeno
midiático do cangaço também está ligado ao enorme acervo fotográfico dos personagens reais
do cangaço. Além disso, há também o filme de Benjamin Abrahão que, embora perdido
temporariamente, circulou como fotografia e, depois de recuperado, como filme.
O cineasta José Umberto Dias foi um dos primeiros a se debruçar sobre as imagens do
“mascate” árabe. No artigo, “Benjamin Abrahão, o mascate que filmou Lampião”, ele relata a
saga deste personagem, desde sua saída do Líbano até sua morte em Águas Belas, em 1938.
Além de descrever momentos da vida de Abrahão, o texto nos informa sobre alguns detalhes
que o influenciaram em seu propósito de filmar o famoso cangaceiro.
A história contada por José Umberto é romanceada e repleta de suposições sobre os
sonhos e motivos do, ainda adolescente libanês. Assim, seus relatos são bastante opinativos,
já que não cita fontes. Por exemplo, ele escreve: “Atravessou os mares imaginando os
imensos canaviais de Pernambuco dos quais ouvira falar, ainda meninote.” e “sonhava com as
promessas da América” (UMBERTO, 1984 in CAETANO, 2005, p. 17).
De qualquer maneira, não se trata aqui de aceitar o texto como documento histórico da
vida de Benjamin Abrahão ou da história do cangaço, mas sim, compreende-lo como a
construção da imagem do cineasta Abrahão, do cangaço e do próprio filme. Benjamin
42

Abrahão aparece como um jovem inconformado com a situação política de seu pais,
aventureiro e destemido o suficiente para empreender tal viagem aos 15 anos de idade. Além
disso, ele teria captado com facilidade os processos técnicos do aparelho cinematográfico.
Uma vez adquirido o conhecimento técnico, Benjamin Abrahão teria saído em busca de seu
intento. Desponta, assim, o empreendedor, uma vez que ele saberia do potencial comercial
das fotos e filmes sobre Lampião. Somos informados também que Abrahão conheceu
Lampião em 1926, quando trabalhou como secretario do Padre Cícero. Teria sido ali que ele
se interessou pelo cangaceiro, pois viu um Lampião nobre, educado e feliz. Para o Abrahão de
Umberto, por trás da imagem de assassino sanguinolento, insuflada pela mídia da época,
havia um homem real, com seus problemas, humano. Na verdade, Lampião é para ele mais do
que isso, seria “um príncipe tropical, com gestos nobres e calculados, roupas refinadas e
idealizadas” (UMBERTO, 1984 in CAETANO, 2005, p. 19). Da admiração, o libanês teria
passado à obsessão pelo cangaceiro, o mito, o pesadelo do sertão. Dai nasce a vontade de
chegar à essência por detrás da aparência, desvendar o enigma, mostrar uma outra realidade,
ou “a realidade”. Para reafirmar esta imagem que o cineasta libanês tinha do cangaceiro,
Umberto chega a destacar o apego às artes do personagem nordestino, induzindo a pensar que
“a inclinação de Lampião por artista refletia e traduzia a sua tendência para manifestações
estéticas” (UMBERTO, 1984 in CAETANO, 2005, p. 19). Além disso, se menciona que na
adolescência, Lampião foi artesão do couro, arte esta na qual “o fim utilitário se aliava ao
cuidado estético”. Umberto aproxima também Lampião do cinema, afirmando seu fascínio
por filmes de cowboys. Seja por suas próprias palavras ou através das palavras atribuídas à
Abrahão, o cangaceiro retratado nos jornais, revistas e documentos oficiais, já não era o
mesmo cangaceiro no imaginário atribuído ao mascate.
Chegar até Lampião não era fácil e Abrahão teria se utilizado de sua aptidão com as
imagens, fotográfica e fílmica, para se aproximar dos coronéis coiteiros, que ajudavam o
bando, e penetrar no território do cangaço. Umberto chega a dramatizar este momento,
copiando um diálogo no encontro dos dois, no qual Lampião teria dito:
– Como é que você chegou aqui com vida, cabra velho?
Reforça-se assim a imagem de um cineasta corajoso. Pela desconfiança do cangaceiro
com relação à novidade de ter um equipamento estranho apontado para si, o primeiro take do
filme teria sido feito pelo próprio Lampião, apontando a câmera para Benjamin Abrahão,
como já mencionei, temendo ser uma “costureira” (metralhadora). Eis o cangaceiro cineasta, e
“o take que Lampião rodara, para sua surpresa, tinha ficado excelente, comprovando que o
seu dedo não tinha eficiência só no gatilho”. (UMBERTO, 1984 in CAETANO, 2005, p. 27)
43

O fato de o cineasta aparecer como ator em várias passagens durante os 10 minutos que
sobraram do material, demonstra a confiança que ele tinha adquirido dentro do grupo.
Abrahão teria se integrado ao bando para realizar tranquilamente seu trabalho. Como poucas
cenas foram perdidas por erros de exposição e algumas outras questões técnicas, o sócio
Adhemar B. Albuquerque, da Aba Film, emprestou o equipamento para um segundo encontro.
Este foi mantido em segredo para não despertar a desconfiança das autoridades, pois a visão
que o mascate tinha do cangaço era bastante positiva. Ele chegou a ficar mais tempo com os
cangaceiros, dai sua autoridade para falar deles. As intenções de Abrahão em criar uma figura
positiva do bandoleiro nordestino ficam claras quando fala dos “códigos de honra dos
cangaceiros”. Por exemplo, eles nunca revelaram quem seriam os coiteiros que davam
cobertura ao bando. Ruy Guerra também fala em seu texto disso. Esta coincidência mostra
que o cinema recusou de alguma forma a imagem negativa do cangaço. À imagem simbólica
do herói se acrescenta a dos homens conhecedores e integrados ao meio ambiente. Umberto
aproveita-se dessas qualidades para falar de como esse conhecimento, além de torna-los
superiores à polícia litorânea que os combatia, criou a lenda de que seriam seres invisíveis.
Um suposto pacto com o diabo (mito recorrente no sertão) fazia com que um sentimento de
morte assaltasse “os destacamentos, deixando-os quase em situação de pavor desmedido”
(UMBERTO, 1984 in CAETANO, 2005, p. 27). O mito se espalhava e a fama dos
cangaceiros ultrapassava as fronteiras do sertão.
O filme de Abrahão é visto, por Umberto, quase como uma peça publicitária do estilo
de vida dos cangaceiros. “Benjamin Abrahão começara a desenvolver seu papel de
divulgador daquele movimento armado” (UMBERTO, 1984 in CAETANO, 2005, p. 29). O
grupo aparece em suas atividades do dia-a-dia, carregando água, preparando comida,
encenando batalhas e dançando. Na cena anterior ao baile, Lampião e Maria Bonita aparecem
se preparando para a festa, perfumando-se a vontade. De modo que “assistindo-se ao filme,
temos a sensação de jovens sertanejos em piqueniques na caatinga“ (UMBERTO, 1984 in
CAETANO, 2005, p. 27). A descrição que Umberto faz das imagens do filme aparecem no
texto dentro do subtítulo “Bailes perfumados”8. Assim, somos tentados a ver nele uma espécie
de pré-roteiro do filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.

8
Em conversa informal com José Umberto em São Paulo (11/2015), por ocasião do lançamento do DVD do
filme Revoada, de sua autoria, o autor diz ter criado a expressão bailes perfumados.
44

José Umberto critica o cinema brasileiro por ter aplicado nos filmes sobre o cangaço
uma fórmula importada do faroeste norte-americano, tendo com isso “desvirtuado,
despersonalizado e desprezado, em grande parte, a verdade e a complexidade do fenômeno de
banditismo social” (UMBERTO, 1984 in CAETANO, 2005, p. 31). O cineasta termina com
uma filmografia sobre o cangaço destacando o filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, como
responsável pela projeção da cinematografia brasileira no exterior.
Resumidamente, pode-se dizer que os textos do livro, apesar de vários problemas,
recuperam uma visão menos superficial do cangaço. Há uma monumentalização desta figura.
Isso acontece de maneira indireta, através do engrandecimento de seu matador, como Glauber
Rocha faz, retomado pelos textos de Ruy Guerra e Luiz Zanin Oricchio. Isso também é feito
por José Umberto, quando antecipa em quase 12 anos, como se fosse um pré-roteiro, a
história de Baile Perfumado, como já se mencionou. Capovilla faz o mesmo, só que
radicalizando o aspecto midiático dos personagens do cangaço. Quase todos os autores do
livro enfatizam tanto a estética quanto a violência. Umberto e Capovilla não mencionam a
versão de Alcebiades Ghiu e Alexandre Wulfes, de modo que eles consideram apenas o filme
a partir de Benjamin Abrahão. Eles são os únicos que consideram uma simplificação a relação
de modelo e cópia entre os filmes brasileiros e o western do Estados Unidos. Não é por acaso
que estes dois estudiosos sejam cineastas e tenham o filme de Benjamin Abrahão como
referência.

2.3 MARCELO DIDIMO – O CANGAÇO NO CINEMA BRASILEIRO

Este livro é a tese de doutorado de Marcelo Dídimo, publicado em 2010. No texto, o


autor pretende fazer um mergulho no gênero cangaço dentro da história do cinema brasileiro.
A intenção é fazer um “resgate histórico de todos os filmes que abordaram o tema cangaço no
cinema brasileiro, catalogando-os e dividindo-os em segmentos” (DÍDIMO, 2010, p. 33).
Entretanto, Dídimo exclui alguns filmes9. A justificativa é que só se pode considerar como

9
A Compadecida (George Jonas, 1969)
Os Trapalhões no Auto da Compadecida (Roberto Farias, 1987)
O Auto da Compadecida (Miguel Arraes, 2000)
Os Fuzis, (Ruy Guerra, 191963)
Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963)
45

pertencentes ao gênero cangaço, filmes cuja presença do cangaceiro seja fundamental para a
narrativa. Como se pode ver é através de uma metodologia, que tem a exclusão como
característica, que parte da academia faz uma história do cinema sobre o cangaço.
Evidentemente, isto não é um problema, pois toda abordagem é sempre um recorte. Porém,
escolher somente a narrativa como critério parece-me complicado, ainda mais se se exclui O
Auto da Compadecida, que teve como base para o roteiro o livro homônimo de Ariano
Suassuna. Este escritor vivenciou, mesmo que indiretamente, a saga do cangaço. Suassuna foi
filho de um “caçador de cangaceiro”:
Eu tomava consciência, por exemplo, de que meu Pai, João Suassuna, que
governara a Paraíba de 1924 a 1928, e que, então Deputado Federal, tombara
assassinado em 1930, numa rua movimentada do Rio de Janeiro, naquele que até
mesmo um dos seus adversários políticos – José Américo de Almeida – considerou
“o mais monstruoso dos atentados”, foi, ao longo do seu mandato de Governador ou
de “Presidente”, como se dizia no tempo -, incansável na luta contra o Cangaço,
tendo sido o grande responsável pelo fim dos ataques e incursões dos bandoleiros
em terras paraibanas”. (SUASSUNA in MELLO, 2010, p. 13 e 14)

Além disso, quase sempre que um cangaceiro aparece no filme, ele é imediatamente
reconhecido, ele chama a atenção por sua figura, longe dos padrões visuais comuns.
Esta metodologia, que privilegia a narrativa, leva a um conceito de história bastante
tradicional e questionável: dos primórdios, passando pela afirmação do gênero (nordestern,
comédia, documentário etc.) até chegar a sua maturidade o ápice (os filmes de Glauber e as
releituras contemporâneas de filmes anteriores). Estabelecer o percurso histórico por meio dos
gêneros – nordestern e comédia – é deixar de lado, por exemplo, uma reflexão mais rigorosa
da relação entre cangaço e comédia. Afinal, nela se englobam três safras cinematográficas
fundamentais para a história do cinema brasileiro: além do cangaço, a chanchada e a
pornochanchada. Embora Dídimo elenque a comédia, não tece nenhum diálogo significativo
entre estes filmes ou, para ficar na categoria gênero, nestes subgêneros, o que me parece
fundamental para entender a saga cinematográfica do cangaço.
Por outro lado, há uma visão classista e redutora do fenômeno cangaço. O seu espaço é
reduzido a terra de ninguém, dado o ambiente inóspito. À citação de Euclides da Cunha sobre

Fogo Morto (Marcos Faria, 1976)


A Lei do Sertão (Antoninho Hossri, 1956)
Dioguinho (Carlos Coimbra, 1957)
O Homem que Virou Suco (João Batista Andrade, 1980)
A Saga do Guerreiro Alumioso (Rosemberg Cariry, 1993)
A Porta de Fogo ( Edgard Navarro, 1983)
46

o “espaço desolado” e hostil podemos contrapor a visão de Darcy Ribeiro (2002) e


Melquíades Pinto Paiva (2004) , que veem no sertanejo um povo totalmente adaptado ao
ambiente em que vive. Além disso, reduzir as lutas iniciais do cangaço à uma questão de
disputa de terras entre coronéis, como o faz Dídimo (2010, p. 19), é também uma
simplificação.
Deve restar bem claro que o relacionamento não produzia vinculo de
subordinação exclusiva para qualquer das partes. A característica principal do
cangaceiro, vale dizer, o traço que o faz único em meio aos demais tipos já aqui
analisados, é a ausência de patrão. Mesmo quando ligado a fazendeiros, por força de
alianças celebradas, o chefe de grupo não assumia compromissos que pudessem
tolher-lhe a liberdade. A convivência entre eles fazia-se de igual para igual, agindo o
cangaceiro como um fazendeiro sem terras, cioso das prerrogativas que lhe eram
conferidas pelo poder das armas, sem dúvida o mais indiscutível dos poderes.
(MELLO, 2013, p. 88)

Assim, colocar a origem do cangaço no século XVIII, tornando-o uma mera disputa
territorial entre poderosos, é desconhecer a complexidade da população sertaneja e sua luta de
resistência. Embora a pesquisa de Dídimo seja extensa e traga algumas informações
fundamentais, ele não as desdobras como deveria. Penso eu, que isto acontece justamente
porque uma vez colocado que o filme sobre o cangaço é um cópia do western (a nominação
de nordestern carrega este ranço), não há como trabalhar a complexidade deste fenômeno.
Por outro lado, como Marcelo Dídimo pretende falar do cangaço no cinema brasileiro,
fica um pouco simplificador a escolha meramente narrativa. Além de ficarem de fora muitos
filmes, a opção limita o cinema do cangaço a um mero nordestern, exceção feita aos filmes de
Glauber Rocha e algumas releituras contemporâneas. Aproximar os filmes do cangaço deste
gênero dos Estados Unidos, vá lá, mas não podemos simplesmente ignorar alguns detalhes
fundamentais desta história, que também é cinematográfica. Esta versão redutora é caudatária
de uma abordagem crítica que se produz na comparação valorativa entre várias obras sobre o
mesmo assunto. Os trabalhos de Glauber Rocha, de Lírio Ferreira etc., obviamente, são um
momento muito frutífero do tema. Porém, eles não precisam demonstrar sua excelência à
custa do rebaixamento de outros filmes. Esse trabalho comparativo de exaltação de uma
matriz – o western dos Estados Unidos – e de depreciação dos filmes do cangaço
(rebaixamento a meras cópias) já se esgotou, não diz nada a respeito do fenômeno cangaço
nem do fenômeno cinematográfico sobre o cangaço. Mostrar as supostas semelhanças que
este filmes têm com o western, está feito, agora falta falar das diferenças.
Apesar de todos estes problemas, Marcelo Dídimo é o segundo estudioso ligado ao
cinema, o primeiro é Umberto, que se debruça sobre esta obra de Benjamin Abrahão. Ele
47

reconhece a importância do filme para a história do cinema brasileiro e aponta para o fascínio
causado pelas imagens sobre o espectador. Esta citação já foi feita na introdução, volto a
repeti-la apenas para deixar mais clara a argumentação.
Nunca assisti a esse filme sem perceber, na plateia, um pesado silêncio
expectante durante estas cenas. Essas imagens (...) se impõe diante de qualquer
plateia. Que tenha conhecimento do mito, mesmo aquelas cuja infância não tenha
sido povoada pelas lendas que ele produziu (...). A força das imagens está na mente
do espectador. Um registro que se propunha a uma ingênua objetividade, acaba
ganhando proporções mágicas. (DIDIMO, 2010 in TAVARES, in Holanda, 2000, p.
74)10

Entretanto, Didimo reduz o fascínio das imagens de Abrahão à presença do cineasta no


filme, e ao fato de ele apontar para a câmera. A quebra da impressão de realidade que traria
este gesto funciona como “uma forma de estabelecer um contato mais próximo com o público
que assiste ao filme”(DIDIMO, 2010, p. 50)
Há aqui, uma confusão, entre uma abordagem que tem como horizonte a negação de
uma relação ontológica do cinema com a realidade e uma outra que pensa o uso retórico da
imagem. Analiso a imagem do cineasta no filme de outra maneira, no 3º capítulo, destacando
seu efeito retórico, em que o filme não é apenas um discurso cinematográfico. As imagens
têm agência, não são uma mera reprodução do discurso cinematográfico. O filme de Abrahão
não é apenas um documentário etnográfico, como o próprio Didimo reconhece, ao colocar a
citação de Bráulio Tavares.
Ao fazer a descrição de algumas cenas do filme, o primeiro plano que ele analisa é a de
Benjamin Abrahão cumprimentado um dos cangaceiros, supondo que o cineasta esteja
chegando pela primeira vez ao acampamento de Lampião. A segunda imagem é a do cineasta
cumprimentando as cangaceiras, como se estivesse chegado ao acampamento. De certa forma,
Didimo propõe outra montagem, diferente da de Guiu/Wulfes. Pela descrição feita acima,
preocupa-se com a continuidade, não da ação, como é o caso de Ricardo Albuquerque
(analisada no 3º capítulo), mas de uma narrativa – a chegada de Abrahão ao acampamento .
Agora, ninguém garante que seja isso, como ele próprio reconhece. Diante desta falta de
informação sobre a montagem, os planos teriam que ser analisados em si mesmos (tentei
fazer isso no 3º capítulo).

10
Didimo cita o livro, Benjamin Abrahão, de Firmino Holanda (ao qual infelizmente não tive acesso), que por
sua vez, cita Bráulio Tavares, livro ao qual Didimo não teve acesso, não está na sua bibliografia.
48

Ao forçar uma narrativa, Dídimo acaba fazendo uma descrição sumária dos planos. Por
exemplo, o terceiro recorte do estudioso reúne planos que ele reputa como sendo da
convivência cotidiana do cineasta com os cangaceiros; coloca a imagem do cineasta bebendo
sofregamente do cantil, a dele comendo com os cangaceiros e a dele mostrando o jornal O
Globo para o bando. Entretanto, a duração do plano em que Abrahão bebe do cantil coloca
sérias dúvidas de que essa ação possa ser considerada como um momento de convivência do
dia-a-dia.
Por outro lado, Dídimo compra a ideia de que o filme é primário do ponto de vista
cinematográfico, dada a pouca experiência de Abrahão.
Ele afirma que
Por não ser profissional, o libanês possuía certas limitações técnicas e estéticas, o
que resultou numa composição de imagens que deixa muito a desejar. Com tomadas
de câmera tremida, fora de foco e enquadramento precário. “A inspiração técnica e a
‘falta de arte’ são superadas quando qualquer plateia encontra-se diante da heroica
figura do Capitão Virgulino, ao lado de Maria Bonita e seus cabras”. (HOLANDA,
1985, p. 64) (DIDIMO, 2010, p. 48)

Se considerarmos que, segundo informações do próprio Dídimo, Abrahão entrou em


contato com o cinema no Rio de Janeiro, em 1930 e foi visto filmando o velório de padre
Cícero em 1934 (MELLO, 2012, p. 121) fica um pouco estranho defender a pouca
experiência do cineasta, que também já era um fotógrafo experiente. Por outro lado, hoje em
dia, defender que a imagem tremida ou fora de foco e o enquadramento precário são sinais de
erro, é muito estranho. Poderiam ser para Holanda e outros estudiosos, mas não para alguém
que tenha domínio dos estudos cinematográficos como Dídimo. O mais precário na análise
dele é assumir que um fotógrafo experiente, como era Abrahão, tivesse feito um
enquadramento precário. Nesta, por assim dizer, cegueira diante das cenas do filme de
Abrahão, Dídimo deixa escapar elementos fundamentais para compreensão do poder destas
imagens. Por exemplo, ao falar sobre o plano em que os cangaceiros estão sentados sob as
tendas, não menciona, o sanfoneiro, que está tocando no fundo da cena, e que é destacado
pelo movimento da câmera, que para e faz questão de foca-lo por alguns intantes. Nas
imagens do livro, o sanfoneiro é destado, mas não merece nenhuma menção, como se ele não
tivesse nenhuma importância.
49

Plano Nº 22 Plano Nº 64

Dídimo também ignora o cangaceiro costurando ao fundo, no enquadramento em que


Lampião lê um livro. Assim, chega a afirmar:
A indumentária também é parte desse interesse antropológico. O bando de
Lampião confeccionava parte de suas roupas e bornais, pois os cangaceiros eram
hábeis alfaiates com suas máquinas de costura. Infelizmente, não há registro de tais
ocasiões no filme de Abrahão. (DIDIMO, 2010, p. 56)

Mesmo que essas atividades do sanfoneiro e do costureiro apareçam ao fundo, de forma


discreta, isso não as torna menos importante. Parece-me que há na tese de Marcelo Dídimo a
imposição de uma certa narrativa do cangaço sobre as imagens, tornando sua análise
contraditória. Isto fica evidente quando assume a importância do filme e ao mesmo tempo
afirma que suas “imagens deixam muito a desejar”. Não se pode atribuir o fascínio destas
imagens apenas ao seu aspecto documental ontológico - são as imagens de Lampião, Maria
Bonita e seu bando. Tampouco, pode-se reduzir ao confisco do filme pelo Estado Novo a
explicação de Dídimo:
O fato de um mascate ter acesso aos cangaceiros era prova da humiliação para
as volantes que o procuravam e não encontrabam, e foi a partir desse ocorrido que o
governo federal resolveu aniquilar a qualquer custo o movimento rebelde.
(DÍDIMO, 2010, p. 46)

Esta é uma guerra das imagens que está para além do fato histórico do combate entre os
cangaceiros e as volantes. É um combate entre imaginários no sentido dado por Walnice
Galvão e por Frederico Pernambucano de Mello, quando fala do irredentismo brasileiro.

2.4 FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO – BENJAMIN ABRAHÃO ENTRE


ANJOS E CANGACEIROS

Procurado por Lírio Ferreira e Paulo Caldas, em busca de temas para realização de um
filme longa-metragem, Frederico Pernambucano de Mello ofereceu aos jovens cineastas duas
50

possibilidades (MELLO, 2012, p. 33). A escolha pela vida de Benjamin Abrahão, que
resultou no filme Baile Perfumado, fez com que Pernambucano de Mello retomasse sua
pesquisa sobre a vida do cineasta sírio, iniciada em seu período de graduação. O
aprofundamento das pesquisa durante e posteriormente à realização do filme, acabou
resultando na obra, Benjamin Abrahão: Entre anjos e cangaceiros.
A ideia do livro, segundo o próprio autor, é oferecer ao leitor um panorama expandido
sobre a saga do personagem com seus variados talentos: jornalista, comerciante, ouvires,
fotógrafo e cineasta. Pernambucano de Mello inicia o livro com um recorte sócio-político da
Síria no início do século XX, para narrar a fuga de Abrahão das guerras da região e do
alistamento militar obrigatório. O final trata do assassinato do cineasta, em 2 de maio de
1938.
Entre as fontes de Pernambucano de Mello, está o que restou da caderneta de campo de
Benjamin Abrahão. Este documento foi confiado a Pernambucano de Mello “por Aziz
Elihimas em 1992, juntamente com as câmeras fotográfica e cinematográfica, a maleta de
viagem, sete moedas de prata, um punhalzinho de cava de colete e uma camisa social
destruída pela ação do sangue que a impregnava”. (MELLO, 2012, p. 38). Em princípio, as
anotações estavam sendo feitas por Abrahão, que tinha a intenção de publicar um livro.
As anotações da caderneta, parte delas escritas em árabe, foram traduzidas pela
tradutora Adélia Alliz e pelo professor de árabe, Amin Seba Taissun (MELLO, 2012, p.38).
As anotações fazem menção a acontecimentos que o “mascate” foi recolhendo em suas
andanças pelos sertões. Naquilo que aparece da caderneta de Abrahão no livro de
Pernambucano de Mello (infelizmente não tive acesso a essa tradução), sabemos que o
cineasta, descreve as paisagens do sertão. Lamentavelmente, o historiador não reproduz essa
parte da caderneta intitulada “matas”. Porém ela nos lembra que o ambiente para Abrahão não
era um mero cenário de acontecimentos. Pernambucano de Mello ao comentar a sessão
“matas” da caderneta escreve:
“Sobre os pés de pau da caatinga, por exemplo, o cangaceiro lhe ditara uma lista completa de
nomes. Alguns conhecidos. Outros, menos. De uns poucos, jamais ouvira falar” (MELLO,
2012, p. 188). Algumas linhas adiante o historiador afirma que:
nomes arrolados na ordem em que os foi ouvindo no acampamento, tudo em
português, inclusive o conteúdo dos parênteses que cravou: anjico, quixabeira,
juazeiro, baraúna, jucá, umbuzeiro, pau-ferro, aroeira, catingueira, cipaúba, pereio,
freijó, sassafrás, sacatinga, cedro, mucunã (cipó), bom nome, salgueiro, marmeleiro,
pau-d’arco, balsamo, umburana, barrigada, imbira, calumbi, rama-branca, jurema,
jurubeba, mororó, rasga-beiço, rompe-gibão, pau-piranha, caroba, feijão-bravo,
51

faveira, maçaranduba, tingui, quinaquina, pau-santo, oiticica. (MELLO, 2012, p.


188)

Além disso também fala sobre os habitantes do sertão, sobre as violências cometidas
pelas volantes e as injustiças perpetradas por policiais.
Existe, entre todo esse material, uma anotação, reproduzida pelo livro, que diz respeito
diretamente ao filme por ele realizado.
“O filme que eu mandei no sétimo mês, em 1936:
Corisco, sozinho e com sua mulher. Atirando sozinho. Andando no mato com
seus companheiros. Palavras para o jornal: Elias com sua mulher e com um outro.
Enoque anda com Elias no mato, com os companheiros. Lampião com jornal A
Noite. Rezando, no domingo. Matando a vaca e estendendo a carne. Queimando os
ossos da vaca. Distribuindo com os homens os remédios do Rio de Janeiro. Fazendo
as tendas. Acamando folhas de árvore nas tendas para dormir. Matando de frente e
pelas costas. Lampião no cavalo com luneta, com dois companheiros. Um, sozinho,
com a mulher penteando o seu cabelo. Com Luis. Outro, puxando o punhal e
mostrando o caminho e as montanhas. Um deles chegando para avisar que os
soldados estão perto. Lampião dá ordem para eles irem ver e recolher os feridos.
Juriti, alegre, mostrando o chapéu de Lampião” (MELLO, 2012, p. 202)

Trata-se de uma descrição das filmagens realizadas. Além disso, Pernambucano de


Mello, fala da sessão em que o filme foi exibido para as autoridades, que o censuraram. O
que se pode depreender desta parte do livro de Pernambucano de Mello, é o conhecimento
que os cangaceiros tinham do sertão e que foi transmitido para Abrahão. De modo que,
haveria, por assim dizer, uma pesquisa ou conhecimento prévio do cineasta sobre o universo
que pretendia retratar. Assim, não se pode falar de um filme ingênuo e superficial. Lampeão
não é o resultado da aventura de um mascate despreparado, apenas querendo ganhar dinheiro,
como defendem alguns, nesta guerra das imagens, na qual o cineasta é um adversário a ser
atingido.

2.5 PAULO CALDAS E LÍRIO FERREIRA – BAILE PERFUMADO

Arrolei o filme Baile Perfumado na fortuna crítica, não apenas porque é a


ficcionalização da história do “mascate” cineasta/fotógrafo Benjamin Abrahão, mas porque
coloca várias imagens de Lampeão em situações bem determinadas. O filme pode ser visto
como uma extenção das imagens gravadas por Abrahão, preenchendo as lacunas existentes
nessa história, criando uma espécie de pano de fundo que explicaria o contexto das gravações
feitas pelo cineasta. E, as cenas do filme de Abrahão são introduzidas em três situações
distintas:
52

1- Em dois momentos: quando um coronel coiteiro (personagem fictício) está assistindo


às imagens da vaquejada (numa montagem diferente da versão de Ghiu/Wulfes), e quando os
censores veem parte do filme.

Em ambos os momentos, corta-se os planos para intercalar os personagens olhando as


imagens. Na sequência da vaquejada, o coronel e o cineasta são espectadores que estão
apreciando o que veem. Na parte dos censores, estes são espectadores, que na seriedade e
preocupação, percebida em seus rostos, atestam a força do filme. Como se pode ver nos
frames acima, que fazem parte do final da sequência, há uma troca de olhares entre o censor e
a Durvinha do filme de Abrahão, que finaliza com o olhar da cangaceira. Sequência genial,
em que os realizadores de Baile Perfumado expõe uma troca duplamente fictícia de olhares,
que coloca, ao mesmo tempo, o poder da imagem sobre o espectador e um duelo visual, no
qual a Durvinha de Abrahão vence a batalha. Assim, tanto a sequência da vaquejada como a
dos censores, reforçam, por vias diferentes, a potencia das imagens de Lampeão.
2- Num dos sonhos de Benjamin Abrahão, se intercala as imagens do cineasta bebendo
sofregamente, acompanhado de dois cangaceiros. Há um imbricamento proposital entre sonho
e realidade, que diz respeito à separação do cinema em gênero documentário e ficção.
53

Alguns exemplos da montagem desta sequência em Baile Perfumado.

3- Após a descoberta pelo tenente da volante dos corpos já sem vida dos cangaceiros, o
filme introduz as imagens que faltavam de Lampeão, intercalando-as com planos aéreos da
paisagem do sertão. Logo após a morte do cangaceiro, a tela permanece preta por alguns
segundos e, depois, o plano se abre num sobrevoo da catinga verdejante, acompanhado pelo
“xaxado pop” Sangue de Bairro, do Nação Zumbi. A letra da música recita os nomes de
vários cangaceiros. Os corpos ensanguentados e sem vida dos cangaceiros e a tela preta
poderiam simplesmente significar o luto, o aniquilamento do cangaço. Mas, em vez disso, o
filme recupera as imagens de Abrahão, dos cangaceiros vivos, rindo, falando com o
espectador. Há uma monumentalização do cangaço e de Lampião, na montagem que
aproxima o primeiríssimo plano desfocado do cangaceiro, do filme de Abrahão, com as
paisagens grandiosas e coloridas do sertão de Baile Perfumado. De modo que, os planos de
Lampeão deixam de ser meras imagens, para se tornarem dinamogramas do cangaço. São as
nachleben do cinema. Estas imagens sobrevivem, potentes, à própria tentativa de fazer
soçobrar o filme.
54

3 DE LAMPEÃO A LAMPIÃO, O REI DO CANGAÇO

Há vária versões dos fragmentos que sobreviveram do filme de Benjamin Abrahão.


Duas tem procedências identificáveis, a de Alcibíades Ghiu e Alexandre Wulfes (1955 ou
1959) , que é a versão da Cinemateca Brasileira, e a de Ricardo Albuquerque, que faz parte do
livro Iconografia do Cangaço (2011). Para este estudo me deterei apenas nas duas versões
com procedência confirmada.

3.1 AS DUAS VERSÕES: DE COMO AS IMAGENS EM MOVIMENTO DE BENJAMIN


ABRAHÃO SE TRANSFORMARAM NO FILME LAMPIÃO, O REI DO CANGAÇO

3.1.1 A VERSÃO DE CINEMATECA

Alcibíades Ghiu e Alexandre Wulfes encontraram as latas do filme de Benjamin


Abrahão nos porões do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo. Eles
recuperaram aquilo que foi possível e fizeram uma montagem subordinada a uma voz over
explicativa que foi acrescida por eles no filme. Além disso, segundo o texto do encarte do
DVD produzido pela Cinemateca Brasileira, o filme passou a se chamar Lampião, o rei do
cagaço. Na única exibição do filme, em Fortaleza, a manchete do jorna O Povo, em
12/01/1937, era “O filme de Lampeão”. No Correio do Ceará, de 07/04/1937, o filme é
também chamado de Lampeão, quando foi apreendido pelo DIP. Essa era a notícia publicada
no jornal “Lampeão no cinema mais um filme apprehendido pelo Departamento de
Propaganda”11.
Em tom de telejornal aos moldes do Repórter Esso com trilha sonora de suspense, esta
voz over descreve incialmente as paisagens da caatinga, alertando para a hostilidade do
ambiente, a seca, a fome e, por vezes, à hostilidade e injustiça social e política. Fala do
vaqueiro como sendo “magro e aparentando indolência”, mas que reage ao ambiente hostil

11
http://www.fortalezanobre.com.br/2010/06/inicio-do-cinema-cearense.html
55

quando necessita. Personagem vítima para o qual “viver é lutar”. Esta citação explicita de
Gonçalves Dias traz à explicação naturalista da voz, além da erudição buscada, um tom que se
quer lírico e que contrasta com aquele peremptório da propaganda de guerra do Your Esso
Reporter, criada nos Estados Unidos. A Standar Oil Companny é conhecida por financiar
vários conflitos na América Latina. Por exemplo, acredita-se que a Guerra do Chaco entre
Bolívia e Paraguai foi em parte provocada por está companhia. No Brasil, este programa
noticioso se iniciou no rádio em 1941 com apoio de Getúlio Vargas, sob orientação do
Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP. Não por acaso, o mesmo órgão
governamental foi quem apreendeu o filme de Abrahão, em 1937. Posteriormente, o programa
passou a ser transmitido pela TV, onde permaneceu até 1970. Este gênero narrativo teve
vários imitadores, como por exemplo, o famoso Primo Carbonari. Não consegui saber de
quem é a voz, não está na ficha técnica do filme. Durante o período do Repórter Esso
existiram quatro locutores que tiveram sucesso: Kalil Filho, Gontijo Teodoro, Luís Jatobá e
Heron Domingues. É possível que tenha sido Kalil Filho o dono da voz, porque ele estreio em
1952, na TV Tupi12.
Segundo a voz, a bravura e redenção do povo nordestino se dá em função da ação
enérgica do estado moderno, que extinguiu o “terrível fenômeno do cangaço com seus
aspectos deploráveis”. Apropriação institucional de um filme que, a meu ver, busca entender
os aspectos históricos e humanos, não assumindo a versão oficial instaurada pelo “estado
moderno”. Em mais de um momento o narrador associa o cangaço ao meio ambiente,
afirmando que o homem é produto do meio, e sugerindo que “Lampião chefiava
demonstrando tal capacidade, que bem poderia ter sido um gênio militar se tivesse nascido e
vivido em outro meio“. Talvez seria um Duque de Caixas se tivesse nascido no Sul
(desculpem a ironia, mas foi inevitável).
Este viés de um cientificismo naturalista defende que até mesmo os cangaceiros,
“aqueles que não souberam aceitar resignadamente o sofrimento e se consagraram á vida de
bandoleiro, não eram assim tão monstruosos, como a muitos parece” (grifo meu)

12
https://pt.wikipedia.org/wiki/Repórter_Esso
56

Plano Nº 26 – Lampião rezando com o bando.

A montagem de Ghiu/Wulfes transformaram os planos do filme em uma ilustração do


discurso da voz over esso, que retoma a narrativa histórica predominantemente oficial. E isso
pode ser percebido pela constante exaltação ao fato de o estado ter acabado com o cangaço.
Mas, diante de imagens que contradizem a ideia de que os cangaceiros eram bandidos
sanguinários, como o plano do bando rezando, por exemplo, admite-se que “nem mesmo os
cangaceiros eram tão monstruoso”. Aparentemente, há aqui uma adequação do texto à
imagem. Entretanto, como eles suprimiram dois planos desta sequência (que aparecem na
versão de Ricardo Albuquerque, plano Nº 24 e 25), podemos ver que o tom é condescendente
e a ideia da monstruosidade, embora amenizada, permanece central para eles.

Plano Nº 70 – Lampião, sendo penteado por Maria Bonita,


joga perfume em direção à câmera

Outro momento eivado da versão oficialista sobre o cangaço desta versão é quando
ouvimos a voz tratar da importância das cangaceiras. A narração torna estas mulheres
acessório dos homens, pois se exaltam os “predicados” físicos delas, principalmente, os de
Maria Bonita. É verdade que também se faz menção ao aspecto moral que as personagens
57

teriam trazido ao bando. Credita a elas um espécie de processo civilizatório, já que, segundo a
voz, a entrada da mulher no cangaço teria posto fim aos sequestros e estupros. A historiadora
e neta de Lampião, Vera Ferreira, nega que tais atos fossem praticados por seu avô. Não é
apenas a parente que defende isto, há outros historiadores que se posicionam desta maneira.
Por exemplo, Luiz Roberto Zanotti, ao citar a historiadora Maria Christina Matta Machado,
escreve:
Machado afirma que todos os depoimentos tomados por ela nos sertões negam
esse comportamento de Lampião, que era conhecido como um homem de muito
respeito nas questões da moral. Selsina de Jesus conta que quando Lampião invadiu
a sua casa não deixou ninguém mexer com ela, pois ela estava grávida, e os
cangaceiros a respeitaram (ZANOTTI, 2012, p. 42)

Além desta versão parcial, visto a defesa que as historiadoras fazem deste aspecto, a voz
coloca também o filme como resultado da mera vaidade de Lampião. Reduz-se o personagem
a um narciso que gostava de ver sua imagem reproduzida. Não bastasse isso, no final do
filme, a voz faz uma série de afirmações problemáticas. Quando o cineasta se despede dos
cangaceiros, por exemplo, a voz recomenda que não se pode esquecer as atrocidades
cometidas. O cangaço, segundo o narrador, banhou a caatinga com o sangue das vítimas e
que, por isso, seus integrantes tiveram o fim natural dos criminosos (grifo meu). Além de
terem sido metralhados, tiveram as cabeças decepadas. Não bastasse a voz, Ghiu/Wulfes
juntaram ao filme, a tenebrosa fotografia das cabeças cortadas dos cangaceiros, um acréscimo
às imagens captadas por Benjamin Abrahão, uma vez que o cinegrafista foi morto 2 meses
antes de Lampião. Esta imagem, como se pode deduzir pela voz, documenta hoje no museu
uma época que felizmente se extinguiu. É bom lembrar que as cabeças decepadas dos
cangaceiros ficaram, inacreditavelmente, no Museu do Instituto Médico Legal Nina
Rodriguez, na Bahia, até 1969.
58

Plano Nº 89 Cabeças cortadas - foto: João Damasceno


Lisboa.

Além deste histórico terrível, a fotografia de João Damasceno Lisboa foi


criminosamente editada por Ghiu/Wulfes, retirando uma série de artefatos ligados àquilo que
vai ser chamado de estética do cangaço e que atestam a complexidade histórica deste
fenômeno. Posso pensar, então, que a versão Ghiu/Wulfes não apenas opta pela narrativa
oficial do Estado, mas também pela dos filmes sensacionalistas que sempre rondou o cangaço
na história do cinema brasileiro. A mudança do título de Lampeão para Lampião, o rei do
cangaço é parte dessa descaracterização do filme.
O que se pode dizer desta versão oficial (está na cinemateca) é que ela evidencia
claramente que as imagens nunca são neutras, como Serge Gruzinski destaca. Pode-se dizer
Ghiu/Wulfes colocaram o filme nas hostes oficialistas, nesta guerra das imagens.
Por outro lado, eles chamaram a atenção para a figura do cineasta. A voz over o torna
um personagem importante, apoiando-se nas várias imagens que aparecem de Abrahão no
filme. A narração destaca a coragem e o risco que ele correu nesta empreitada. Este aspecto
fez história na cinematografia do cangaço. Por exemplo, em Baile Perfumado, de Paulo
Caldas e Lírio Ferreira, é a ficcionalização da figura do cineasta. Chancelado pela
cinemateca, pode-se dizer que esta versão, em grande parte oficialista, tornou-se aquela que
será vista e analisada pelos estudiosos de cinema. Afinal, se está na cinemateca, ela é parte da
memória do cinema brasileiro.
Como se pode ver, há um objetivo bem determinado na montagem destas imagens em
movimento de Abrahão. O próprio título escolhido por Ghiu/Wulfes para a versão que
fizeram, Lampião, o rei do cangaço, mostra bem isso. Ele não faz jus ao que os planos
mostram: uma relação amistosa e pouco hierárquica entre os cangaceiros, reconhecida
inclusive pela voz over da versão da cinemateca. Este é um exemplo entre outros.
59

3.1.2 A VERSÃO DE ALBUQUERQUE

As imagens iniciais desta versão de Lampião, o rei do cangaço (Albuquerque mantém o


título dado por Alcebíades Ghiu e Alexandro Wulfes) fazem referência ao livro Iconografia
do Cangaço, organizado por Ricardo Albuquerque, morto recentemente em 10/08/2016. Este
personagem, além de ser neto de Adhemar Ferreira de Albuquerque (sócio de Benjamin
Abrahão na realização deste filme), detém os direitos patrimoniais sobre as imagens captadas
pelo cineasta sírio-libanês –cinematográficas e fotográficas.
Esta abertura, iniciada pelo título de um livro organizado pelo “herdeiro” das imagens,
traz um problema novo aos estudos cinematográficos. O que se coloca é um deslocamento do
campo autoral –normalmente trabalhado pelo crítico e estudioso do cinema –, para o
patrimonial. Isto remete a mais uma disputa sobre as imagens, que passa desde saber quem é o
dono comercial do filme, até sua propriedade simbólica. A questão mercantil não será tratada
aqui, pois não é meu objetivo, além de ser um assunto árduo que exigiria uma abordagem
mais especializada sobre os problemas comerciais que envolvem o cinema. Agora, a questão
simbólica é de meu interesse, pois ela traz uma mudança na forma como se viu e se estudou o
cangaço, matéria importante em minha dissertação. Trataremos do livro no espaço dedicado à
fortuna crítica.
O que sobressai na junção do livro e do filme, feita por Albuquerque, é uma tentativa de
abranger o fenômeno do cangaço para além do filme, que passa a ser parte de uma
iconografia-repertório de imagens sobre o assunto. O que torna importante esta versão é, o
fato de Albuquer ter retirado a comprometedora voz over da versão de Ghiu/Wulfes, o que
mostra de cara um respeito maior com essas imagens. Albuquerque alerta para este aspecto
oficial e sensacionalista da versão da Cinemateca:
As latas com os filmes se perderam por décadas, até que alguns rolos foram
recuperados por Alexandre Wulfes e Al Ghiu, e montados, em 1955, bem ao estilo
da época: uma narrativa sensacionalista (grifo meu) buscava, com um olhar um
tanto antropológico, apesar de caricato (grifo meu), reafirmar a humanidade dos
cangaceiros. (ALBUQUERQUE, 2012, p. 11)
60

Plano de abertura da versão de Albuquerque

O crédito de abertura aparece em branco sobre fundo preto, com exceção da palavra
cangaço, que é grafada em vermelho. Do ponto de vista plástico, esta primeira imagem pode
ser ligada ao aspecto violento do período do cangaço. A cor vermelha remete, não apenas à
lembrança do sangue derramado nos confrontos, mas também à violência sofrida e exercida
no dia-a-dia no sertão daqueles tempos. Porém, o vermelho também pode ser ligado à energia
ou vivacidade da cor na construção pictórica do plano. Esta leitura é reforçada pelo
movimento que se verifica na palavra “CANGAÇO”. O vermelho é um elemento estranho ao
filme, que foi originalmente gravado em p&b. Este início, evidentemente posto como um
acréscimo (a cor explicita que se trata de um elemento estranho ao corpus do filme), dialoga
com o último plano, o das cabeças cortadas dos cangaceiros. Ou seja, Albuquerque mantém
esta imagem estranha ao filme, que foi acrescentada na versão Ghiu/Wulfes, mas com um
objetivo diferente, o de fazer uma moldura como veremos a seguir.

Plano de abertura da versão de Albuquerque foto: João Damasceno Lisboa – Acrescida na


versão de Al Ghiu e Alexandre Wulfes e man-
tida na versão de Albuquerque.
61

Esta moldura coloca os fragmentos que sobraram do filme de Abrahão entre imagens
externas à obra, mas que a circunscreve. Imagens pulsantes, tanto do ponto de vista gráfico
como fotográfico, abrem e fecham o filme. De modo que a representação da violência está
presente, mas lembrando, ao mesmo tempo, que o vermelho e a disposição grotesca das
cabeças trazem em seu bojo tanto o sangue derramado como a pulsão de uma imagem forte
que acompanha este fenômeno brasileiro que sobrevive até os dias de hoje.

Os planos 2 ao 6, são uma introdução realizada por Albuquerque que faz um pequeno
histórico do filme. Menciona-se: o período em que esta obra foi feita, 1936 e 1937; o impacto
nacional e internacional e a sua apreensão pelo órgão de censura do governo de Getúlio
Vargas; a recuperação de Alexandre Wulfe e reedição de Al Ghiu, em 1955, com 10 minutos,
e a menção do sucesso de público; a restauração fotoquímica da edição de Ghiu/Wulfes feita
pela Cinemateca Brasileira com patrocínio da Petrobrás; e, finalmente, no último plano,
informa-se que esta é uma nova edição, realizada por Ricardo Albuquerque, que faz parte do
livro Iconografia do Cangaço e traz o acréscimo de 4 minutos de imagens inéditas.
As informações sobre o destino destas imagens, desde sua produção, estão lá para
conferir a esta versão de Albuquerque a legitimidade de um pesquisador sobre o fenômeno. A
sobriedade da apresentação – letras brancas sobre fundo preto, num tipo comum – acrescenta
um halo de seriedade ao que vai ser mostrado. Além disso, insere-se as imagens de Abrahão
dentro de uma iconografia textual, livresca. Isto fica evidente pelo fato de o nome do livro
Iconografia do Cangaço estar em negrito (ou melhor, em branquito). Justamente por ser sutil,
o destaque se torna mais forte, inserindo o filme numa nova narrativa, aquela já mencionada:
a obra passa a ser parte de uma iconografia-repertório de imagens e textos sobre o assunto. A
última informação, o acréscimo de 4 minutos de imagens inéditas, coroa o esforço do
pesquisador/editor Albuquerque em construir uma legitimidade à nova edição. Se esta terá
legitimidade ou não é uma questão que o tempo dirá. Não é minha intenção fazer uma
validação crítica ou não desta nova versão. O que me interessa é que este suplemento traz à
tona um debate antigo sobre o que faz ou não faz parte do filme originalmente. Isto já tinha
sido colocado pela inserção da fotografia que fecha o filme e que claramente não é parte do
62

corpus dos planos de Benjamin Abrahão. A circulação destas imagens foi intensa na
cinematografia brasileira. Sua inserção em outros filmes é um capítulo a parte, que não será
tratado nesta dissertação e que ficará para um próximo trabalho.
No caso da versão de 1955 ou 1959, da Cinemateca Brasileira, há também cartazes que
antecedem ao título. Além da tela composta pelos patrocinadores e a instituição que restaurou
a versão – Petrobrás e Cinemateca Brasileira –, temos o logo da Cinemateca e um aviso sobre
a imagem ter sido restaurada a partir de contra-tipos 35 mm e o som restaurado a partir de
uma cópia em 16 mm. Segue-se o histórico do filme – data, autor, produtora, produtor,
apreensão do filme pelo DIP e a descoberta e edição feita por Wulfes e Ghiu – um relato da
supressão de planos e adição de cenas, locução e música. Informa-se também que a
restauração foi feita na versão montada por Al Ghiu Filmes. Logo, em seguida, tem o
documento da censura; depois o logo da distribuidora, Unidafilmes S.A.; o cartaz, Al Ghiu
Filmes apresenta; o título, Lampião o Rei do Cangaço.
Voltamos para a versão Ghiu/Wulfes para melhor mostrar que a de Albuquerque
introduz, nos cartazes iniciais, a questão do patrimonialismo comercial e simbólico, que
também está na versão da cinemateca. Afinal, o arquivo marca o valor cultural por meio do
reconhecimento institucional (Cinemateca e patrocinadores) da obra.
Trata-se de entender melhor a circulação destas imagens para começar a perceber o
cinema nessa relação entre imagem e texto, a partir da imagem e não do texto, como foi
colocado na introdução do trabalho.
63

O sétimo plano é o título do filme que resultou da montagem de Ghiu/Wulfes e que foi
mantido por Albuquerque. Este tipo era muito utilizado pelo cinema do faroeste dos Estados
Unidos. Três destes filmes são de 1939, mas a maioria são da década dos 1950.
Provavelmente estes filmes se inspiraram nos cartazes de procura-se de Butch Cassidy e Billy
the Kid.

Cartazes oferecendo recompensa pela captura ou morte de Butch Cassidy e Billy the Kid.

Esta influência, embora importante, não é determinante para pensar numa relação de
mera cópia entre o cinema do cangaço e o western, como vai ser estabelecido posteriormente
pela crítica com relação. Principalmente, a O Cangaceiro, de Lima Barreto. Se fizermos uma
análise dos cartazes de procurados brasileiros, veremos que este tipo de letra é também muito
usado. Não exatamente o mesmo tipo, mas algumas características, como os ornamentos das
letras.

Cartaz oferecendo recompensa pela


Captura Virgolino Ferreira, vulgo Lampeão.

De qualquer forma, a escolha do tipo, que remete à tipografia dos western dos Estados
Unidos, principalmente da década de 1950, foi Alcebiades Ghiu e Alexandre Wulfes. De
modo que a redução do fenômeno do cangaço cinematográfico ao western, é um processo que
se delineia lentamente e não estava, necessariamente, no filme de Abrahão. O que me
64

interessa é destacar que a caixa alta e o tipo robusto das letras confere ao nome uma
luminosidade que duplica a ideia de luz impressa no nome. Aliás, conta-se que o personagem
teria adquirido este apelido pela sua habilidade com o fuzil, sua rapidez fazia com que os tiros
sucessivos formassem uma espécie de clarão, que chegava a iluminar a noite tal qual um
lampião. O negativo do branco sobre preto, uma inversão do filme normal, acaba ressaltando
a luminosidade também. O epíteto pelo qual se tornara conhecido até os dias de hoje – O Rei
do Cangaço – é colocado entre parêntesis, com uma fonte itálica, que mimetiza a forma
“manuscrita”. Esta opção tipográfica parece tornar o epiteto algo mais íntimo, aproximando o
assunto do espectador e antecipando uma relação mais empática. Entre a espetacularização da
palavra Lampião e a intimidade do manuscrito da frase, O Rei do Cangaço, já se estabelece,
num tom menor, a discussão sobre o fenômeno cangaço: espetacularização da violência e a
iconografia brasileira que teve maior aceitação no âmbito nacional, como Walnice Galvão
tinha destacado. Por exemplo, o detalhe do título sugere também que a espetacularização não
está apenas circunscrita à violência, pois apesar do apelido estar ligado à arma de fogo, a luz
do lampião pode remeter também à visão de que o cangaço é um momento de resistência, uma
espécie de luz que guia nas noites escuras das lutas contra o domínio escravocrata das elites
que caracterizam o Brasil desde a colônia até hoje, como o Darcy Ribeiro cansou de dizer.
Não estou querendo afirmar que esta era a visão de Benjamin Abrahão. Assumo um
anacronismo consciente para levar a hipótese de que a versão do Robin Hood do Sertão não
foi apenas uma criação da mídia, mas ela já fazia parte do imaginário do Sertão, mesmo
quando Lampião e seu grupo estavam vivos, como coloco na fortuna crítica.

3.1.3 PEQUENA COMPARAÇÃO DAS DUAS VERSÕES

Hoje em dia, a versão de Ricardo Albuquerque é, felizmente, mais acessível na internet.


Foi a que adotei para fazer a decupagem. Então, a numeração dos planos é feita a partir desta
montagem. Farei depois uma consideração do por que optei por esta versão.
Nas duas versões, a de Ghiu/Wulfes e a de Albuquerque, o filme é igual nas montagens
até o plano Nº 13, o da vaquejada. Na sequência do Caldeirão, vemos apenas os cangaceiros
indo embora, o plano Nº 15, na versão de Ghiu/Wulfes. A cena deles chegando, o plano Nº
14, não aparece por enquanto. A versão da cinemateca continua com a sequência do
carregamento de folhas, sem mostrar os planos Nº 16, 17, 18 e 19. Nestas imagens, vemos
alguns cangaceiros pegando e carregando água, e ao Abrahão bebendo fartamente.
65

Esta associação me fez supor que a montagem de Albuquerque tomou duas direções.
Uma, temática, que associa planos que têm como leitmotiv a água, a guerra, o cotidiano etc. A
outra opção é de manter a continuidade da ação que não aparece na montagem de
Ghiu/Wulfes. Como por exemplo, na vinda e ida dos cangaceiros que pegam e carregam a
água, ou seja, os planos Nº 14 e 15. Às vezes, a busca de continuidade de ação associa planos
de procedências diferentes, como a passagem do plano Nº 15 para o 16, como se verá na
análise do filme. Na versão de Ghiu/Wulfes, depois do plano Nº 20, em que os cangaceiros
trazem folhas para forrar as tendas, o plano que se segue volta aos carregadores de água. Estas
imagens não estão presentes na versão de Albuquerque. A fragmentação da continuidade da
ação, que se percebe na montagem da versão da cinemateca, está em função de ilustrar a voz
over, como já foi mencionado.
Os planos Nº 21 e 22 (cangaceiros sob a tenda e o sanfoneiro) têm a mesma montagem
em ambas versões, mas logo em seguida, a de Ghiu/Wulfes, vai para o plano No 17, no qual
os carregadores de água entregam o cântaro a Lampião. O plano Nº.23, em que Maria Bonita
está costurando, não existe na versão da cinemateca.
Em ambas as versões, passa-se à sequência da reza, planos Nº 24, 25, 26 e 27. Mas, na
versão de Ghiu/Wulfes, suprime-se os planos Nº 24 e 25, em que os cangaceiros estão
rezando de costas para a câmera. Suprime-se as imagens que insistem em tornar os
cangaceiros sertanejos comum? Depois da reza, há também, na versão da cinemateca, um
plano em que Lampião está de em, sozinho, atrás de umas arvores, e que não está na versão de
Albuquerque.
Fora esses dois planos, o dos carregadores entrando no enquadramento pela direita e o
de Lampião sozinho em pé (lamentavelmente, não foi possível recortar o filme da
cinemateca), a versão de Albuquerque tem mais planos, provavelmente porque foram
suprimidos por Ghiu/Wulfes. A versão da cinemateca não tem: os cangaceiros rezando de
costas, planos Nº 24 e 25; a imagem de Maria Bonita costurando, plano Nº 23; e,
fundamentalmente, não tem os planos em que vemos Corisco, Dadá e Abrahão, plano Nº 78;
além disso, foi suprimida, como também se menciona no texto inicial do filme, a sequência do
merchandising da cafiaspirina, planos Nº 79 e 80.
Além da supressão de planos, a montagem de Ghiu/Wulfes está completamente
subordinada à voz narrativa, bem problemática, como destaquei acima. Assim, esta foi uma
das razões que me levaram a adotar como base a decupagem do Albuquerque. Passo a elencar
os outros motivos da minha escolha.
66

1. Por uma questão didática achei melhor ter uma das versões como referencia para não
me perder na análise.
2. Como a versão de Albuquerque tem sequências imprescindíveis – a de Maria Bonita
costurando, a de Corisco e a do merchandising da cafiaspirina –, pareceu-me que, embora esta
não tenha o selo da cinemateca, ela é mais completa. A intenção é também problematizar a
ideia de arquivos fidedignos e pensa-los dentro da guerra das imagens. Assim, optar por uma
versão que não é a do arquivo oficial da história do cinema é também uma estratégia de
análise que evidencia uma escolha metodológica. Ela leva em conta que o lugar onde se
arquivam fontes ou documentos, neste caso filmes, tampouco é neutro.
3. Na versão de Ghiu/Wulfes, as imagens de Benjamin Abrahão estão completamente
subordinadas à voz narrativa, o que compromete seriamente, como já mostrei, uma leitura
séria e rigorosa que faça jus aos fragmentos do filme de Abrahão.
4. A versão de Albuquerque faz o esforço de restituir uma espécie de continuidade da
obra, muitas vezes mal sucedida e comprometedora, mas que está em função do filme e não
de um projeto alheio a ele como é a fragmentação das imagens em função da voz over
introduzida por Ghiu/Wulfes.
Como nenhuma das versões é a montagem original de Abrahão, então, não encontrei um
argumento válido que me fizesse fazer duas decupagens, mesmo porque, como se verá na
análise do filme, a montagem de Albuquerque não é um guia absoluto da minha análise,
apenas me serviu de base para tentar entender o que se poderia ponderar a partir das imagens
do filme. Este trabalho é o esforço de pensar os fragmentos da obra de Abrahão, antes de
limita-los à versão que se fez deles. O que procurei fazer, foi trabalhar os desdobramentos
pertinentes às próprias imagens e não aos da montagem, seja a de Ghiu/Wulfes ou a de
Albuquerque. Sei que estas versões fazem parte da história do filme. Entretanto, elas não
podem determinar o que as imagens em movimento de Abrahão são. Neste sentido, faço o
esforço de uma leitura destes fragmentos independente destas montagem, volto a repetir.
Assim, meu recorte pensa as imagens de Lampião, do cineasta e, principalmente, destaca uma
análise que leva em conta a guerra das imagens do âmbito do cangaço, na qual está, a meu
ver, inserido os fragmentos deste filme.
67

3.2 AS IMAGENS EM MOVIMENTO DE BENJAMIN ABRAHÃO

3.2.1 A PAISAGEM DO SERTÃO

Plano Nº 1, o facheiro.

Passo a considerar esta imagem o primeiro plano do filme. Num plano geral vemos um
facheiro , centralizado, em contra-plongée, estendendo as linhas verticais de seus ramos para
o alto. O facheiro13 é monumentalizado, o chão não aparece no enquadramento, criando a
sensação de que a árvore flutua no céu. A tonalidade de diversos cinzas evoca um pouco a
técnica da aquarela, trazendo ao plano uma certa “delicadeza” característica deste processo
pictórico. Então, se estabelece uma tensão entre a agressividade da monumentalização e uma
certa amenidade cromática, que de certa forma prenuncia a maneira como o filme trabalhará,
por meio da imagem, no sentido plástico e sociológico, o fenômeno do cangaço.

13
Facheiro, Facheiro Azul ou Mandacaru de Facho (Pilosocereus pachycladus). O facheiro atinge até 10 metros
de altura com ramificação verde-escuro e bastantes espinhos, ocorrendo nas caatingas dos estados do Piauí,
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia (Lima, 1996).
68

Plano Nº 2, o xiquexique

O plano Nº 2 é uma imagem um pouco difícil de ser classificada dentro dos padrões de
classificação que se estabeleceram no cinema, pois ela está entre o primeiro plano e o plano
geral. Ao contrário da fotografia do facheiro, o xiquexique14 toma conta do quadro, deixando
o céu fora do enquadramento, destacando o chão da caatinga. Para obter este efeito, a câmera
está em diagonal, levemente mais alta do que o objeto focado. É um plongée leve para
utilizarmos o vocabulário cinematográfico consolidado. O contraluz produz o efeito
multiplicador das formas tentaculares dos ramos dos cactos, pelas sombras criadas. As
sombras transversais invadem o extracampo na direção da câmera e, portanto, na direção do
espectador, criando a sensação de nos introduzir no enquadramento. Buscou-se destacar a
expressividade das sombras, pois o objeto enfocado, o xiquexique, fica num espaço
intermediário entre o fundo e o primeiro plano.

Plano Nº 3, alastrado (quando o xiquexique se espalha pelo chão)

14
Xiquexique (Pilosocereus polygonus) é uma cactácea endêmica na vegetação de caatinga, que possui
numerosos espinhos pontiagudos em suas aréolas.
69

No plano Nº 3, a câmera aproxima ramos dos cactos entrelaçados e sobrepostos em


camadas. Os pedaços do cacto preenchem toda a tela. A proximidade do xiquexique cria um
certo efeito sinestésico. Os espinhos, bem visíveis pela proximidade, dão a sensação de
espetar o espectador. Além disso, há uma ligação entre os dois ramos que se entrecruzam com
as cartucheiras cruzadas dos cangaceiros. Interligam-se visualmente paisagens e vestimentas,
um assunto que trataremos depois quando falarmos da imagem dos cangaceiros.

Plano Nº 1 Plano Nº 2 Plano Nº 3

A ligação dos três planos (como se sabe, não se tem certeza quem editou e quando a
montagem foi realizada) tem dois movimentos, um de contraste e outro de semelhança. Nos
dois primeiros, a luz clara da imagem do facheiro contrasta com o contraluz no xique-xique.
E a extrema proximidade da terceira imagem se opõe à distância das duas primeiras tomadas.
O que têm em comum é que os três monumentalizam os objetos focados. Porém, o que mais
me interessa é pensar sobre a relação entre estas imagens e o espectador. Para entender
melhor isto, faz-se necessário refletir sobre a maneira como estou tratando o gênero da
paisagem. Apesar de haver todo um percurso na história da arte ocidental e,
consequentemente, no cinema, não é esta história que busco deslindar, pois a abordagem visa,
fundamentalmente, a relação entre imagens e espectador, no sentido trabalhado por W. T. J.
Mitchell. Em Landscape and Power, este autor comenta que :
O estudo da paisagem passou por duas maiores mudanças no século: a primeira
(associada com o modernismo) tentou ler a história da paisagem, principalmente em
função de uma história da pintura de paisagem, e criar a narrativa da história como
um movimento progressivo em direção a purificação do campo visual; a segunda
(associado com o pós-modernismo) tendem a descentralizar o papel da pintura e da
visualidade formal pura em favor de uma abordagem semiótica e hermenêutica que
tratava a paisagem como alegoria de temas psicológicos ou ideológicos. Eu chamo a
primeira abordagem "contemplativa", porque o seu objetivo é a retirada da narrativa
verbal, ou elementos históricos na apresentação de uma imagem criada para uma
consciência transcendental - seja um "globo ocular transparente", uma experiência
de "presença", ou um " olho inocente ". A segunda estratégia é interpretativa e é
exemplificada como a tentativa de decodificar a paisagem como um corpo de
determinadas canções. É claro que a paisagem pode ser decifrada como sistemas
70

textuais. Recursos naturais como: árvores, pedras, água, animais e habitações podem
ser lidos como símbolos em alegorias religiosas, psicológicas ou políticas; estruturas
características e formas (perspectiva elevada ou fechado, hora do dia, o
posicionamento do espectador, o tipo de figuras humanas) podem ser ligadas
genericamente a tipologias como: a pastoral, o rústico, o exótico, o sublime e o
pitoresco.
Paisagem e Poder visam absorver essas abordagens em um modelo mais
abrangente, que não perguntaria apenas o que paisagem "é" ou "significa", mas o
que faz e como funciona como prática cultural. Paisagem, sugerimos, não se limita
a indicar e simbolizar relações de poder; é um instrumento de poder cultural, talvez
mesmo um agente de poder que é (ou frequência representa-se como) independente
das intenções humanas. Paisagem como um meio cultural, portanto, tem um duplo
papel no que diz respeito a algo como ideologia: naturaliza uma construção cultural
e social de um mundo artificial, como se fosse simplesmente dado e inevitável, e faz
também uma representação operacional, interpelando o observador numa relação
mais ou menos determinada em relação ao que é dado como visão e local. Assim,
Paisagem (urbana ou rural, artificial ou natural) sempre nos recebe como o espaço,
como o ambiente, como o local em que "nós" (como "a figura" na paisagem) nos
encontramos ou nos perdemos. A paisagem assim entendida, portanto, não pode
contentar-se simplesmente em deslocar a visualidade ilegível do paradigma
modernista em favor de uma alegoria legível; ele tem que rastrear o processo pelo
qual a paisagem apaga sua própria legibilidade e naturalizar-se e deve entender esse
processo em relação ao que pode ser chamado de "história natural" de seus próprios
observadores. O que temos feito e estamos fazendo ao nosso meio ambiente, o que o
ambiente por sua vez, nos causa, como nós naturalizamos, o que fazemos uns aos
outros, e como esses "fazeres" são expressos nos meios de representação que
chamamos de "paisagem" são os sujeitos reais da paisagem e poder. (Mitchell, 1994,
p. 1 e 2)

Nem a história da abordagem modernista nem a pós-modernista estão concernidas na


pesquisa, pois trata-se de uma visualizam e analise das imagens do cangaço em sua relação
com o público brasileiro, dado que elas formam a iconografia brasileira que teve maior
aceitação no âmbito nacional, dai pensar o que o filme faz, no sentido dado por Mitchell, com
esta paisagem e o que essa relação faz conosco, e como se encenam estes fazeres do filme, da
paisagem e do espectador? Quer dizer: como o Sertão aparece, quais os dispositivos que estão
sendo solicitados, e o efeito que eles provocam em nós? Enquadramento, luz, sombra
proximidade, mais do que apenas enformar, estão em função de provocar certos efeitos nos
espectadores. Estes efeitos dos três planos analisados deixam claro que a paisagem não será
mera coadjuvante ou cenário de uma ação. A opção de destacar estes dois tipos de cactos da
paisagem faz com que o espectador sinta a rudeza do ambiente. Além de apontar para a aridez
do sertão (a ligação entre cactos e deserto é imediata), essas plantas parecem espetar e atingir
o público. Sombras que avançam sobre a câmera, e espinhos demasiado próximos, provocam
essas sensações.
71

Outras referências são aquelas das relações entre arte e antropologia, fundamentalmente,
a de Hans Belting – Antropologia da Arte – e a de Alfred Gell – Art and Agency. Nestas
abordagens o que me interessa é que estes autores substituem a relação do sujeito com o
objeto pela de um sujeito com outro sujeito, visto que as coisas nos devolvem um olhar,
segundo Belting, ou elas são capazes de terem agencia, segundo Gell. Para este último, por
exemplo: “No lugar da comunicação simbólica, ponho ênfase em agência, intenção, causação,
resultado e transformação. Vejo a arte como um sistema de ação, com a intenção de mudar o
mundo em vez de codificar proposições simbólicas a respeito dele” (2003, p. 100)
Quer dizer, destaca-se uma espécie de intencionalidade ou interesse, muito mais do que
os aspectos simbólicos. Obviamente que isto não significa adotar, sem crítica, estas posições
teóricas. Por exemplo, não é minha intenção negligenciar as práticas simbólicas e as formas
estéticas que imbuem a obra de agência, tal como Howard Morphy (2012: p. 233) colocou.
Porém, é bom salientar que a agencia pode suscitar ações ou processos, dado o impacto que
ela pode provocar. Este poder é completamente ignorado pelas estruturas linguísticas
semânticas, categorias analíticas da semiótica.

Plano Nº 4 Plano Nº 5 Plano Nº 6

Teríamos outra sequência circunscrita por três planos - planos Nº 4, Nº 5 e Nº 6 -, que


mostram uma árvore e fragmentos de uma casa. As três tomadas estão em contra-plongée. Sua
composição é uma mistura dos planos dos cactos. Ao mesmo tempo que se subtrai o chão,
como na imagem do facheiro, os galhos da árvore invadem todo o enquadramento da mesma
maneira que a imagem do xique-xique. No primeiro plano, à árvore seca, com seus galhos
retorcidos contra o céu, acrescenta-se, no canto inferior direito, um pedaço da beirada de um
telhado desfocado. Seria a visualização de mais uma árvore típica do sertão, não fosse o
telhado. Entretanto, o fragmento do telhado não perturba a composição, pois as ondulações
das telhas se somam ao retorcido dos galhos e faz com que ele pareça submetido às forças
plásticas da árvore. No plano seguinte, vemos a mesma árvore, só que agora focada do
interior da casa, por entre a estrutura de suporte do telhado em ruinas. Das madeiras que
72

serviriam para apoio das telhas (inexistentes), somente duas ripas transversais, na metade
superior da imagem, formam linhas retas. As outras madeiras são galhos que reproduzem as
linhas retorcidas da árvore. Nesta interação entre “natureza” e “cultura” – árvore e casa –, a
primeira prevalece, pois aquilo que foi construído por mãos humanas parece estar sendo
retomado pela natureza. Por outro lado, o telhado, mesmo destruído, está mais próximo e
visível para o espectador, de modo que os quadrados da estrutura das ripas tornam bem
presente a casa quase em ruínas. Uma casa abandonada ou muito pobre? Não há como saber.
De qualquer forma, esta construção redimensiona a paisagem, introduzindo um elemento nela,
que insinua uma possível narrativa. O último plano retoma a árvore sem nenhum indício da
casa. Na imagem final, os galhos, num emaranhado, preenchem todo plano e extrapolam para
o extraquadro. Cria-se uma espécie de textura pelos galhos retorcidos que preenchem o
quadro. O dinamismo abrupto das curvas dos galhos e o contraste do escuro das ramas
remetem a uma composição expressionista que já estava presente nos primeiros planos. A
paisagem continua sendo muito mais do que um mero cenário. Há que se notar que este tipo
de enquadramento da paisagem ainda é mais raro, pois não era comum focar a câmara para
cima (apenas em 1961, em O Ano passado em Marienbad, se insiste neste tipo de tomada).
Como não há nenhum personagem, a não ser a câmera mediando a visão destas imagens, a
procura do efeito plástico deste tipo de tomada fica ainda mais evidente.
Estas seis imagens já mostram que há uma sofisticação técnica e estética que vão além
do mero acaso. Não é a figura do cineasta improvisado que prevalece. Há nestes planos uma
concepção de paisagem que ultrapassa a ideia de explorar o exotismo do sertão para
apresenta-lo como uma curiosidade ao público brasileiro. O destaque dos cactos, a
proximidade do xique-xique, a câmera para cima são indícios de que Abrahão enquadrava a
paisagem também com a intenção de provocar certas sensações e pensamentos em seu
espectador. Pela perda do material não sabemos se esta era a única maneira de mostrar o
sertão, mas os planos que sobraram são imagens poderosas que não apenas dão a ver, mas
cutucam, por assim dizer, o público. Por um lado, a monumentalização apequena o
observador e, por outro, a criação de texturas torna quase táteis estas imagens. Abrahão não
apenas sabia onde posicionar a câmera como também o que estas posições poderiam provocar
no espectador.
73

3.2.2 A MATA E O VAQUEIRO

Plano Nº 7 Plano Nº 8 Plano Nº 9

Esta sequência –planos Nº 7 a 13-, pode ser dividida em duas partes. As imagens são
planos gerais com a câmera girando sobre seu eixo ou até se deslocando um pouco para à
esquerda afim de acompanhar a ação. Na primeira parte –planos Nº 7, 8 e 9 (acima)-, vemos
vaqueiros galopando cobertos pela vegetação da caatinga. No plano Nº 7, os cavaleiros
cavalgam na direção da câmera e passam pelo lado esquerdo do quadro. Eles correm no
contraluz15, formando manchas escuras na paisagem esbranquiçada pelos efeitos do sol. A
paisagem brancacenta é ainda mais acentuada pela superexposição do filme. A câmera
acompanha os cavaleiros e termina num plano geral mais fechado, em que a vegetação toma
conta do quadro. No plano Nº 8, com a câmera em plano geral fechado na vegetação, passam
4 cavaleiros mostrando a parte do tronco do cavalo e o cavaleiro sobre ele. Ainda a mata
prevalece, pois está em primeiro plano, como se fosse uma cortina de folhas que envolve a
ação dos personagens. E no plano Nº 9, o plano geral é uma tomada um pouco mais aberta e
com uma duração bem menor do que o plano anterior, dois cavaleiros passam diante da
câmera no meio da mata.
As imagens produzem, por assim dizer, uma estética impressionista. Ao contrário dos
primeiros planos dos cactos e da árvore individualizada, onde o contraste entre luz e sombra
fazia sobressair esta última, nestas imagens é o branco que prevalece na tela. Há uma reversão
cromática, que lembram a famosa luz estourada dos filmes de Glauber Rocha e Nelson Pereira
dos Santos. A folhagem da mata iluminada e o movimento dão um aspecto de pontilhamento
à tela. Fonte do acaso ou não, as imagens não são apenas belas, há nelas uma espécie de
pregnância, porque seus aspectos evanescentes são produzidos pelo ritmo do movimento da
ação, que foi captada naquilo que tem de mais extraordinário – o domínio que o cavaleiro

15
O sol está “a pino”, formando sombras sob o cavaleiro curvado sobre o cavalo.
74

sertanejo tem não apenas do cavalo, mas do animal no meio do emaranhado espinhoso da
própria caatinga. Esse avançar veloz quase às cegas dos cavaleiros, mostrado em todo seu
esplendor plástico, tornam estas imagens formidáveis. A ação é admirável, única em seu
gênero, deixando claro que, no mundo do sertão, o cavalo, o boi e, consequentemente, a arte
do couro não estão atrelados à figura mediática do vaqueiro hollywoodiano, mais conhecida
pelo público de cinema. Talvez Benjamin Abrahão tenha feito essas tomadas para mostrar
imagens que aparentemente se assemelhavam àquela do cowboy com as quais o público de
cinema brasileiro urbano estava acostumado. Entretanto, o que nelas se sobressai é sua pura
singularidade, principalmente pela relação inédita que estabelece entre paisagem e
personagem. Os vaqueiros não estão apenas na paisagem, já que pelo ritmo e a própria ação, a
relação é visualmente tensa. Trata-se de um corpo a corpo, pungente na imagem, entre os
personagens e a paisagem. Salvo engano, estas são cenas únicas tanto na iconografia da
paisagem pictórica como na do cinema.

Plano Nº 10 Plano Nº 11 Plano Nº 12

A segunda parte da sequência – planos Nº 10, 11, 12 e 13-, mostra imagens de uma
vaquejada relativamente comum.
Estes três planos mostram vaqueiros e bois. São paisagens que servem de pano de
fundo para a ação dos vaqueiros. No momento em que eles penetram na mata, a paisagem
envolve os atores e se torna novamente protagonista. A câmara registra a ação, acompanhando
os movimentos do animal e dos vaqueiros. A luz é vertical e projeta uma sombra na parte de
baixo dos personagens, formando uma pequena marca no chão. A dinâmica da ação e o
movimento de câmera fazem com que o fundo se torne borrado. Às vezes o grupo preenche
todo o quadro e passa na frente da câmera que, em alguns momentos, fragmenta os corpos de
animais e homens. O movimento desfoca e borra a ação.
75

Plano Nº 13 (frame 1) Plano Nº 13 (frame 2) Plano Nº 13 (frame 3)

No último plano, Nº 13, a câmera está mais próxima da ação. Um vaqueiro chega a
pegar no rabo do animal. Esta é a maneira que se pega o gado na caatinga, pois a vegetação
não permite a utilização do laço.
Há uma linha explicativa da ação na montagem da sequência. Primeiro vemos apenas
cavaleiros correndo no mato, em seguida, os animais sendo perseguidos e, finalmente, o
vaqueiro pegando o animal pelo rabo. Além da questão da apresentação, quase didática do
ofício do vaqueiro, no jogo cênico, ele vai se aproximando de seu objeto aos poucos. Partindo
de planos gerais chegando ao detalhe da ação. Embora possamos reintroduzir as primeiras
imagens nesta explanação pedagógica da ação, não há como se furtar à singularidade delas. A
montagem não consegue destitui-las do seu caráter sui generis, a não ser que estejamos
domesticados em demasia pela força narrativa, que nos tornamos incapazes de perceber as
imagens e o que elas trazem de diferente.

3.2.3 OS CANGACEIROS

A partir deste momento, os cangaceiros entram em cena. São mais de 70 planos,


mostrando vários aspectos de suas vidas, além de imagens do cineasta interagindo com o
grupo.
Mas, antes de entrar na análise desta parte, é preciso refletir sobre o que vinha sendo
mostrado, tomando em conta que se trata de um filme sobre Lampião e seus cangaceiros. Da
paisagem sertaneja, representada pelos cactos e a árvore seca, passamos à paisagem cheia de
espinheiros, na qual se filma toda a movimentação da vaquejada. Não vimos ainda nem
Lampião nem seu grupo, de modo que estas imagens podem ser pensadas como uma espécie
de prólogo do que virá a seguir. Trata-se de uma introdução, por assim dizer, empolgante do
mundo do sertão. O processo metonímico, no sentido de que os cactos e a árvore seca
substituem a paisagem sertaneja, constrói um mundo menos contemplativo, estabelecendo
uma relação quase sinestésica e, portanto, instigante com o espectador. Pode-se aventar que se
76

o material todo tivesse sido salvo, as imagens que permaneceram seriam absorvidas dentro de
outros planos menos singulares. Provavelmente, Abrahão filmou planos gerais da caatinga em
enquadramentos mais comuns e que situariam o ambiente no filme da maneira como fomos
acostumados – a mistura de imagens de uma visão panorâmica da paisagem com planos mais
fechados, como são as dos cactos e da árvore, ou ainda de detalhes, como é o close do xique-
xique.
Entretanto, mesmo que isso acontecesse, as imagens que se salvaram estariam lá e se
destacariam pela monumentalidade e pela “táctilidade” das texturas perturbadoras ou
aprazíveis que apresenta. De modo que a paisagem não se reduz a um mero cenário, ela não
está lá apenas para contextualizar a história a ser contada, mas para provocar uma dialética
entre o que nós colocamos nela e os efeitos que ela provoca em nós, no sentido dado por
Mitchell, como já mencionei. A leitura sociológica, que torna a paisagem uma ambientação de
uma história, foi naturalizada, quer dizer, tornou-se a principal desse gênero de imagem. No
caso do sertão, como paisagem do cangaço, a naturalização ainda é mais comprometedora,
pois acabamos vendo nela uma mistura das vistas exóticas dos primeiros filmes do cinema e
de um ambiente rude e desumano, tal como a descrição da literatura naturalista nos ensinou a
enxergar. Acontece que Abrahão não apenas capta a rudeza da caatinga, mas a exacerba.
Veja-se o close do xique-xique e o plano em que suas sombras se expandem para além do
quadro em direção do espectador, sem falar da monumentalização do facheiro que o apequena
(dispositivo mais comum nas construções das imagens e sua relação com o observador). Ou
ainda, a tomada da árvore que retira o horizonte e o céu da paisagem, mimetizando um olhar
para cima, que além de incômodo, não carrega nenhuma transcendência, pois impede a
visualização de um além que não esteja mediado pelas ramas contorcidas da árvore. Ao
mesmo tempo estas imagens são incrivelmente belas, de modo que temos que associar beleza
com rudeza, ligação pouco comum para um espaço estigmatizado como é a caatinga. Espaços
como estes, que carregam sinais de violência e pobreza, geralmente são mostrados para
reproduzir um certo aspecto de miséria. Assim, a estética sutil dos enquadramentos do filmes
torna a paisagem perturbadoramente bela. Isto será retomado mais adiante.
77

3.2.4 A ÁGUA E O CANGAÇO

Plano Nº 14

Com a câmera parada em plano geral, Nº 14, um cangaceiro aparece lavando roupa num
caldeirão16 , com seu chapéu, armas e equipamentos no chão, a seu lado. O caldeirão é
cercado por cactos e uma vegetação bem cerrada. Outros dois cangaceiros vindo do fundo,
caminham em direção à câmera, carregando grandes potes. Como eles descem do alto da
rocha para o riacho, a câmera faz um movimento para baixo, sobre seu eixo (tilt), até focar
apenas um dos cangaceiros em plano americano. Tanto aquele que lava roupa como este
último olham com curiosidade, mas não ostensivamente para a câmera. A mata do fundo
desaparece, ficando apenas as formações rochosas. A luz é difusa, como num dia nublado. O
plano, que começa com faixas distintas de claro/escuro formadas pela vegetação ao fundo e as
grandes pedras no primeiro plano, chega à imagem final com uma configuração diferente do
que se viu até o momento. A imagem gerada pelas grandes superfícies claras das rochas, com
curvas mais longas e suaves cria espaços mais amplos. Essa amplitude espacial dialoga
paradoxalmente com a atividade mais tranquila exercida pelos cangaceiros, quando
comparada com a pega dos bois dos vaqueiros.
Esta associação entre personagem e paisagem parece desconstruir a visão violenta do
cangaceiro. Supondo que esta seja a montagem original do filme, a passagem do dinamismo
da vaquejada para esta cena pacata do cotidiano cria, por assim dizer, um anticlímax
cinematográfico. O cangaceiro, esse personagem ao mesmo tempo temido e admirado, é
apresentado fora do clichê sensacionalista que sua figura midiática sempre carregou, ainda
mais quando, nas imagens anteriores, o vaqueiro, outro personagem importante para a vida e o

16
Como são chamadas essas formações rochosas que acumulam água em meio à caatinga.
78

imaginário do sertão, desafiava corajosamente os espinheiros da caatinga para exercer sua


profissão. Este viés, por assim dizer, antropológico das imagens é de uma expertise
inacreditável, pois marca uma distância clara com as outras produções cinematográficas sobre
o cangaço (veja-se a lista dos filmes anteriores ao do Abrahão sobre este tema). Não que o
perigo e a violência estejam fora da cena, pois estas pessoas, apesar de estarem fazendo
atividades domésticas de seu cotidiano, estão completamente vestidas, com todas suas armas.
A possibilidade de que elas tenham o desconforto de estar carregando o peso de seus
apetrechos e dos cântaros para a encenação cinematográfica não se sustenta, pois as armas e o
chapéu que estão ao lado do cangaceiro que lava roupa mostram que o perigo ronda e o grupo
deve estar preparado para reagir ou fugir sem perder suas coisas.
É de meu interesse saber como estas imagens inusitadas foram lidas. Por um lado,
podemos pensar se elas foram integradas ou não pelos outros filmes sobre o cangaço.
Aparentemente, até onde consegui pesquisar, estas imagens do cotidiano banal, como carregar
água, comer etc., não foram destacadas pela cinematografia que retoma algumas imagens do
filme de Abrahão, como por exemplo, Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.
Mesmo esquecidas pela cinematografia nacional, elas parecem carregar um poder
explosivo. Além de desconstruir o clichê sobre os cangaceiros como cruéis e bestiais, mostra-
os na sua dimensão mais humana – trabalhando e lutando pela subsistência. Caso contrário, o
que teria levado o governo da época em que o filme foi realizado a confisca-lo e censura-lo?

Plano Nº 14 (frame 1) Plano Nº 14 (frame 2) Plano Nº 15

Plano Nº 16 (frame 1) Plano Nº 16 (frame 2)


79

Plano Nº 17 (frame 1) Plano Nº 17 (frame 2) Plano Nº 16 (frame 3)

Como se pode ver, a montagem cria uma espécie de continuidade, pois o plano que
segue, Nº 15, faz o movimento inverso ao plano anterior: a câmera começa fechada nos dois
cangaceiros que enchem os potes de água e caminham para a mata na direção oposta à da
câmera. Outros três cangaceiros, dois armados de fuzis e um outro com o que parece ser um
tronco de árvore nos ombros, observam a cena. No plano seguinte, Nº 16, alguém carregando
o cântaro, ainda de costas, avança para o fundo. Lá vemos, pela primeira vez, Lampião. Por
alguns segundos ele fica frente à câmera enquanto o rapaz passa por ele. No outro plano, Nº
17, o cangaceiro do cântaro chega perto de Lampião, deposita a vasilha e, depois de colocar a
vasilha no chão, se vira e olha para a câmera. Os personagens se encontram na sombra de
uma árvore. Uma cena típica de acampamento com os cangaceiros exercendo diferentes
atividades. A luz que penetra através dos galhos e folhas da árvore ilumina parcialmente o
rosto de Lampião e do carregador. Ao fundo da cena, duas mulheres trabalhando em algum
preparo, uma delas maneja um facão. Compondo o quadro, uma calça estendida do lado
direito e a fumaça de uma fogueira.
A montagem cria uma continuidade, porém ela é construída com imagens de
procedências diferentes. O cangaceiro que carrega o cântaro e passa por Lampião não é o
mesmo que pegou a água e que no plano seguinte vai depositar o vasilhame. Isto fica evidente
porque o carregador que passa por Lampião não tem a cartucheira ou nenhum outro aparato.

Plano Nº 16 (frame 1) Plano Nº 16 (frame 2)


80

No meio de uma sequência em que a água parece ser o fio condutor de toda a ação,
Lampião aparece rapidamente ao fundo, no canto esquerdo, enquanto cumprimenta o
carregador de água. Quando este sai do quadro, o chefe dos cangaceiros fica olhando para a
câmera, por pouquíssimos segundos, meio curvado e com um olhar gentil. Não há como não
comentar a maneira discreta como Lampião aparece. Discrição e gentileza marcam a esta
primeira imagem, na montagem de Albuquerque, do chefe cangaceiro.

Plano Nº 18 Plano Nº 19

Levando em conta a versão do neto do produtor do filme, a insistência sobre a água é


visível ainda mais porque os planos seguintes também tem o líquido como centro, inclusive
vemos Benjamin Abrahão bebendo fartamente e por um bom tempo. (as imagens do cineasta
no filme serão comentada depois).

Plano Nº 16 Plano Nº 3

O que se destaca nesta primeira imagem de Lampião, plano Nº 16, é a relação plástica
da vestimenta com o detalhe do xiquexique da sequência dos cactos (isto fica mais evidente
na versão da cinemateca, que tem uma qualidade de imagem muito melhor). O desenho em
cruz do cacto é enquanto forma, textura e sobreposição de elementos, bastante aproximado
81

com o da cartucheira. Mesmo sendo produto do mero acaso, não há como não fazer estas
associações, porque elas apontam para um elemento fundamental destas imagens: a questão
estética numa relação dialética com a paisagem. Não é por acaso que os cangaceiros desde as
primeiras imagens aparecem paramentados com seus chapéus, testeiras, cartucheiras, fuzis,
bornais etc. Estrelas de quatro, seis e oito pontas, bainhas e punhais trabalhados aparecem o
tempo todo.
Por outro lado, mesmo que não seja a ordem que Abrahão daria ao filme, esta imagem
de Lampião é muito instigante. Revela um pensamento estético e narrativo bastante
sofisticado: parte-se da ideia de que menos é mais. São poucos os planos que sobraram de
Lampião sozinho no quadro. Embora em destaque, considerando a proporção do número de
planos em que aparece sozinho, ele está caracterizado como chefe de um grupo.
Além disso, os outros cangaceiros não são meros figurantes. Além de aparecerem
independentes de Lampião, em alguns momentos, alguns deles acabam, por assim dizer,
roubando a cena.

Plano Nº 36 (frame 1) Plano Nº 36 (frame 2) Plano Nº 36 (frame 3)

Por exemplo, no plano médio, Nº 36, em que vemos Maria Bonita, Juriti (João de Souza
Lima) e Lampião. Ela serve uma bebida em uma caneca esmaltada para Lampião. Juriti está
no centro da imagem, olhando para a câmera, enquanto o casal centra o olhar na ação de
servir e ser servido. No plano de fundo, um quarto cangaceiro aparece. A câmera move-se
ligeiramente para a direita, tirando Maria Bonita do quadro, Lampião bebe, baixa a caneca e
olha para a câmera. A câmera move-se novamente para a esquerda e termina o plano com
Maria Bonita, Juriti, o cangaceiro que entrara no quadro depois e Lampião enquadrados.
Embora o plano esteja em função da ação do casal, Juriti encara, o tempo todo, fixa e
enigmaticamente a câmera, ao mesmo tempo em que posa, sem se mexer. Ele está
centralizado no começo e no fim da sequência, produzindo um efeito para quem olha a cena
bem mais significativo do que acompanhar a ação que se desenrola. Afinal, além de se
destacar pelo inusitado de sua postura, o olhar fixo de Juriti acaba sendo imitado pelos três
82

membros que fazem parte do plano. É um olhar que em nenhum momento topa fazer o jogo
de cena e nos encara fixamente, nos obrigando a fazer uma troca fictícia de olhares, no
sentido que Hans Belting fala sobre o efeito que a imagem produz em seu observador.
Transferindo o raciocínio do historiador da arte alemão para o cinema, ao estudar as imagens
do filme não podemos considerar que sejam apenas um discurso do historiador do cinema ou
do crítico, pois estas imagens não seriam entendidas apenas pela análise da vida do cineasta
ou pelo estilo ou forma do filme. Tampouco podemos limita-las ao discurso do historiador
simplesmente, pois este trabalha com textos de política econômica. Há que se estudar as zonas
de experiências mais profundas que as imagens alcançam. Voltamos à ideia de que há que se
investigar o comportamento humano diante da imagem, o que significa trazer à teoria
cinematográfica uma perspectiva antropológica, tal como colocamos anteriormente.
Outro aspecto que se destaca é que neste recorte do enquadramento, que recorre àquele
consagrado pelo retrato na pintura e que foi retomado pela fotografia e pelo cinema, o chapéu
é um elemento que se avulta na imagem. Ele nos obriga a pensa-lo como um objeto
imprescindível e preponderante para a composição do plano.

Plano Nº 24 (frame 1) Plano Nº 24 (frame 2) Plano Nº 25

Esta é uma sequência –planos Nº 24, 25, 26 e 27-, que começa com os cangaceiros de
costas, ajoelhados diante de uma imagem do sagrado coração de Jesus, fixada sobre um poste
de madeira. À frente do bando estão Lampião e Maria Bonita. Ela usa um vestido até o meio
da canela, que pela superexposição à luz, assemelha-se a uma túnica branca. A luz do sol
penetra por entre as árvores em ângulo, iluminando pontualmente e de maneira irregular. A
câmera, na mão, desliza da esquerda para direita e da direita para a esquerda, avança
balançando como se estivesse desviando dos cangaceiros. Em plano médio, Nº 25, ainda
câmera na mão, depois de um corte continua o movimento das imagens anteriores em direção
à imagem de Cristo e dos cangaceiros à frente. Em plano geral, Nº 26, os cangaceiros são
mostrados de frente, ajoelhados, com Lampião em primeiro plano. Ele, assim como os outros
cangaceiros retiram o chapéu e o punhal da cintura. Lampião conduz a oração lendo um
83

missal ou pequena bíblia à frente do grupo. A câmera na mão passeia nervosamente


mostrando todo o bando até se fixar por alguns segundos em Lampião. A mudança do angulo
da tomada, com relação ao plano anterior, causa uma mudança na incidência da luz, criando
uma atmosfera um pouco diferente. Ao fundo, uma grande árvore, com seus galhos diluídos
pela luz, parece fazer a ligação entre a terra, os personagens e o céu.

Plano Nº 27 (frame 1) Plano Nº 27 (frame 2) Plano Nº 27 (frame 3)

Em plano geral, Nº 27, do mesmo ponto de vista do plano anterior, os cangaceiros


ajoelhados, se benzem, colocam seus chapéus, se levantam e saem. A câmera tenta percorrer
toda a cena, se movendo de um lado ao outro. A última imagem é a de Lampião, em primeiro
plano, colocando o punhal na cintura. Esta sequência mostra algo aparentemente insólito,
mas muito presente nos filmes sobre o tema: a ligação da religião com as armas. A relação se
faz no paralelismo do poste que suporta a imagem de cristo com o cano do fuzil de um
cangaceiro.
Entretanto, a história da arte nos ensina que é bastante comum a relação entre religião e
violência. Existem inúmeros tratados sobre este tema. O que é mais raro é reparar que entre
uma e outra há sempre a mediação de uma imagem. Isto fica mais evidente quando as
imagens criadas são expressivas ou se destacam de alguma maneira. No caso dos cangaceiros,
há todo um paramento no vestuário que faz com que logo se repare nesta figura. Além dos
chapéus, suas armas são todas ornamentadas. E nesta sequencia há uma aproximação estética
entre elas e o ícone religioso do sagrado coração, que como toda imagem é inseparável de seu
aspecto expressivo.
84

Plano Nº 25 Plano Nº 25 (detalhe)

Plano Nº 26 (frame 1) Plano Nº 26 (detalhe do frame 1)

Plano Nº 26 (frame 2) Plano Nº 26 (detalhe do frame 2)

Embora a imagem cristã tenha mais destaque, o fuzil tem também seu realce, pois é
ornamentado com moedas e ilhoses, o metal brilha tornando a peça uma fonte de luz. Além
disso, a arma se destaca em muitas sequências:
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Detalhes extraídos do filme

Não é a primeira vez que a associação entre religião, arma e imagem é feita, ao
contrário, ela faz parte de quase toda a história do Ocidente, como já foi dito. A encenação de
batalhas, em que a cruz ou outro símbolo religioso está presente, faz parte da história da arte
não apenas ocidental, como também na árabe, chinesa, indiana etc. Sabemos que as imagens
de guerra implicam um reforço ao poder que está sendo representado na figuração, o que
ainda não é comum, é uma reflexão sobre outra guerra que, embora quase desconhecida, é
fundamental para a constituição deste mesmo poder: a guerra das imagens. Entretanto, pensar
estes acontecimentos – religião, arma e imagem – é muito recente do ponto de vista da própria
guerra das imagens. Apenas no final do século passado e no presente é que começa a aparecer
uma bibliografia ocupada desse assunto. Trabalhos como o de Hans Belting em A Verdadeira
imagem, Landscape and Power, organizado por W.T.J. Mitchell, Guerra das imagens, de
Serge Gruzinski são alguns dos textos mais importantes que tratam desse tema. Todos eles
mostram que é intrínseca a relação que o poder estabelece com um certo monopólio das
imagens. Por exemplo, a Reforma não proibia toda imagem, apenas algumas, aquelas ligadas
ao máximo poder ou à representação do divino. Como Hans Belting mostrou, quando uma
imagem é censurada é porque alguma outra está ocupando seu lugar – por exemplo, a
substituição da imagem de Cristo pela do imperador bizantino.
A guerra das imagens está também presente no filme de várias maneiras. Uma delas é
que Abrahão acaba dando um certo destaque às imagens dos instrumentos de guerra. Isto
porque os cangaceiros raramente se desprendiam de seu arsenal, portavam o fuzil, o punhal, a
pistola, mesmo quando iam rezar, dançar, comer etc. Ao destacar estas armas, realça, assim,
um processo de estetização criado pelos próprios cangaceiros, como está mencionado na
introdução. A ornamentação era valorizada pelo bando, não apenas pelo gosto, por assim
dizer, pessoal, pois todos sabiam que os paramentos atraiam outros jovens dos povoados para
86

suas hostes. Isto era tão evidente que as volantes, ao passarem a imitar os cangaceiros no uso
destes ornamentos, foram proibidos de usa-los por seus superiores, como já foi mencionado.

Soldados das Volantes (Documentário Estética do Cangaço, de Frederico Pernambucano)

Os ornamentos criavam uma visibilidade própria dos cangaceiros, independente do


filme, e estavam relacionados à vida guerreira que eles levavam.
Por outro lado, sabemos que a encenação das batalhas têm uma longa tradição e são um
atrativo à parte para o espectador, e não apenas o cinematográfico. Abrahão sabia disso e fez
com que os cangaceiros as encenassem.

Plano Nº 38 (frame 1) Plano Nº 38 (frame 2) Plano Nº 38 (frame 3)

Em plano geral, Nº 38, vultos do bando de cangaceiros aparecem caminhando da


sombra das árvores para uma pequena clareira toda iluminada pelo sol, estão de costas. A
câmera faz um movimento para a direita e depois para a esquerda, enquanto os cangaceiros
continuam caminhando, numa situação de combate, onde não se vê o inimigo. O plano
termina com uma cangaceira, na frente apontando para o fundo, como se estivesse dirigindo a
cena.
87

Plano Nº 39 (frame 1) Plano Nº 39 (frame 2) Plano Nº 39 (frame 3)

Em plano geral, Nº 39, os cangaceiros avançam pela mata iluminada. A vegetação


esbranquiçada pela superexposição, por vezes, cobre os cangaceiros, sendo quase impossível
identifica-los. A câmera, na mão, move-se de um lado para outro.
Nestes dois planos, Nº 37 e 38, a ação é filmada da mesma maneira: os cangaceiros
avançam pela mata de costas para a câmera. A luz é diferente, pois o primeiro é um plano
mais sombreado e o segundo tem a luz estourada.

Plano Nº 40 (frame 1) Plano Nº 40 (frame 2) Plano Nº 40 (frame 3)

Plano geral, câmera na mão, Nº 39. Os cangaceiros aparecem na clareira iluminada,


andando de costas, numa ação de retirada de um combate. Apontam os rifles para um lado e
outro como se estivessem atirando. A câmera move-se tentando seguir os movimentos dos
cangaceiros. A mata alta ao fundo.

Plano Nº 41 (frame 1) Plano Nº 41 (frame 2)


88

Plano Nº 41 (frame 3) Plano Nº 41 (frame 4)

Plano geral, Nº 41, com a câmera na mão, os cangaceiros avançam em direção à câmera
como se atirassem. Um cangaceiro cai, é socorrido pelos companheiros, enquanto outros
permanecem na frente “atirando” e sorrindo para a câmera. O plano que se segue, Nº 41, é o
mesmo do começo da sequência da encenação dos combates, é o Nº 37, foi colocado pelo
montador, duas vezes no filme. Esta repetição de planos é uma constante, tanto na versão de
Albuquerque, quanto na de Ghiu/Wulfes.
Como se pode ver, pela montagem, Abrahão filma a batalha de vários ângulos.
Primeiro, na retaguarda, como se acompanhasse como testemunha a ação. E depois, de frente,
tomando o lugar do suposto inimigo. Do ponto de vista da ação, há nessas formas de filmar o
desejo de criar, além de um dinamismo, vários ângulos de visão. A montagem acrescenta um
dinamismo maior àquele já sugerido pelo movimento de direita para a esquerda da câmera na
mão. Porém, o lugar da câmera traz várias conotações que já mencionamos. Por exemplo, o
efeito testemunho da câmera filmando os cangaceiros de costas. Em geral, é este o valor
atribuído a este filme: ter filmado o próprio Lampião e seu bando. Entretanto, como já foi
mencionado, logo no final do primeiro corte, a cangaceira, em primeiro plano, aponta para o
fundo, como se estivesse dirigindo a cena. Obviamente que os “atores” podem não ter seguido
as instruções do cineasta e acabaram por “arruinar” a cena. Mas esta forma de encenação e
quebra da quarta parede já tinha sido feita nos planos em que Juriti se nega a ignorar a câmera
ou quando os cangaceiros sorriem para ela no meio da batalha. Como esta mistura parece ser
uma constante do filme – encenações das atividades do cotidiano, das batalhas etc. e a sua
quebra pela curiosidade que a câmera provocava ou simplesmente o desejo de aparecer dos
cangaceiros –, podemos supor que Abrahão teria se dado conta e teria decidido tirar proveito
disso. Assim, o fato de os cangaceiros estarem atirando na direção do espectador-câmera, no
momento em que eles avançam, é uma maneira de deixar explícito que, embora fique claro
que se trata de uma encenação, esta é feita não para fazer um filme de ação no sentido do
western hollywoodiano. O objetivo parece ser o de estabelecer uma espécie de jogo com o
89

espectador – aponta-se uma arma para ele ao mesmo tempo que se sorri. As próximas
imagens deixam o jogo mais sério.

Plano Nº 43 (frame 1) Plano Nº 43 (frame 2) Plano Nº 43 (frame 3)

Plano geral, Nº 43, em que aparecem alguns cangaceiros e cangaceiras num ação de
recuo em batalha, apontando suas armas para a câmera, saltando e rindo. Eles caminham da
clareira em direção à mata. Conforme eles avançam para longe da câmera, a paisagem de
galhos brancos, retorcidos, destaca-se do resto da mata escura. A câmera na mão move-se de
um lado a outro seguindo os cangaceiros.
Como se pode ver, o jogo se explícitou, este fazer teatro sobre si mesmo tornou-se uma
espécie de brincadeira. Porém, apesar da farra séria ou talvez por causa dela, as mulheres
ficam em destaque. As moças aparecem em primeiro plano, de modo que podemos supor que
elas são as últimas a se retirarem. Na encenação sugere-se que as mulheres, não só participam
ombro a ombro com os homens na guerra, mas podem ter ainda mais coragem. O que
questiona as colocações de Frederico Pernambucano, que afirmou numa entrevista para a
Globo News, que as mulheres não lutavam, e que se escondiam nos momentos dos
confrontos. As cangaceiras, segundo este historiador nem mesmo cozinhavam, costuravam se
queriam, e apenas estavam lá para a “satisfação” de seus companheiros17. Luiz Roberto
Zanotti, citando Maria Cristina Matta Machado (2012, p.35), fala da bravura das cangaceiras.
No documentário, A mulher no Cangaço, de Hermano Penna feito para o Globo Repórter, em
1976, Cila diz que a única que lutava nas refregas era Dadá, aliás, era conhecida por seu
destemor e audácia. Mas logo, em seguida, a cangaceira Adília, mulher de Canário, fala que
esteve em oito combates. Como se pode ver, há muita desinformação e um pouco de
misoginia quando se fala destas mulheres.
Voltando ao filme, o plano Nº 42, começa com Durvinha no centro, enquanto os outros
cangaceiros, incluindo o seu companheiro Virginio, estão atrás, portanto, retirando-se antes

17
https://www.youtube.com/watch?v=3P0ia9NILAA
90

dela. Ainda entram no enquadramento mais duas cangaceiras, também retirando-se depois dos
homens. Se no começo do filme elas estão ausentes e depois aparecem na posição tradicional
de companheira ou mulher que acompanha o marido em sua trajetória de vida – Maria Bonita
ouve a reza vestida de moça da cidade, em outros planos costura ou serve bebida para
Lampião e para o cineasta; outras cangaceiras aparecem em segundo plano, sempre atrás dos
homens, às vezes em primeiro plano, mas fazendo tarefas domésticas, tais como costurar,
cozinhar etc. –, a partir deste momento começam a ter um protagonismo que, dentro das
imagens do filme, rivalizam com a figura que o filme veicula de Lampião. Não é por acaso
que as imagens a seguir talvez sejam as mais impressionantes do filme. A sequência inteira é
muito bem realizada e inusitada como se poderá constatar.

Plano Nº 44 (frame 1) Plano Nº 44 (frame 2)

Plano inicial geral, Nº 44, sete cangaceiros avançam em direção à câmera apontando
suas armas e fazendo menção de atirar. Eles sorriem enquanto executam a ação, olhando e
apontando para a câmera o tempo todo. O quadro é preenchido com pedaços de seus corpos.
Destacam-se Durvinha e Virginio, mas, no final do plano, ela fica sozinha no quadro,
em plano médio. Neste momento ela baixa a arma e sai da cena, revelando a paisagem da
caatinga atrás de si.
O genial destas imagens é que começa com os cangaceiros na frente e Durvinha atrás,
quase escondida, para depois avançar e se destacar no grupo. A cangaceira torna explícito
aquilo que vinha se insinuando nos outros planos, a encenação é para o bando uma espécie de
brincadeira. Ao apontar a pistola ao mesmo tempo que ri, numa posição bem próxima à
câmera, a folia fica bastante clara. Porém, de súbito algo muda, ela abaixa a arma e olha séria
para a câmera por um instante, para logo baixar os olhos e dar um pequeno sorriso enigmático
e sair do enquadramento. A câmera na mão fica parada ainda focando por alguns instantes a
91

paisagem da caatinga. Há nessas imagens uma carga que chamaria de verdadeiro pathos, no
sentido que Aby Warburg dá a esta palavra no seu texto sobre Mnemosyne (2012). Trata-se
de algo que sobrecarrega e dá uma conotação forte e inesperada àquilo que se está vendo.
Muito mais do que a celebração de uma batalha por meio da brincadeira, há nesse olhar, que
subitamente se torna extremamente sério, algo intenso que não é desanuviado nem mesmo
quando Durvinha retoma o sorriso que, aliás, é tímido e não suficientemente aberto como para
retomar a brincadeira.
Há nessa mudança inesperada toda a violência que produziu o cangaço. A história dos
pobres que tiveram que se tornar fora da lei e, principalmente, as histórias dessas mulheres
cangaceiras que, em grande parte foram raptadas pelos cangaceiros. Elas acabaram deixando
suas famílias e tiveram que assumir a vida e o destino daqueles que primeiro as violentou. Isto
não é apenas uma fala moral como o estudioso do cangaço, Frederico Pernambucano, afirma,
na entrevista já mencionada, mesmo que algumas mulheres tenham entrado no cangaço pela
própria vontade, como foi o caso de Maria Bonita. Eis o pathos do cangaço. Estas são cenas
muito mais fulgurantes, do que as figuras, por assim dizer, “humanizada” ou heroicizadas do
cangaço e de seu chefe, que foram retomadas pelo cinema contemporâneo como uma
renovação deste gênero fílmico, que é um dos mais importante do cinema brasileiro. Há aqui
uma história não dos “vencidos”, mas dos resistentes, no qual se mistura, ao mesmo tempo, o
jogo e a melancolia (BENJAMIN, 1985, p. 222 e 232). Esta tristeza quase se torna
insuportável nos poucos segundos em que a câmera fica a focar a caatinga vazia, sem
personagens. História invisibilizada destas mulheres, imagens que esquecemos e que, no
entanto, trazem o selo da nachleben wargburgiana (sobrevivência), pois remontam à própria
criação das sociedade latino-americanas. Afinal, a célebre história da Malinche mexicana
ainda reverbera no texto misógino de um dos maiores críticos literários do continente, Octavio
Paz. Marinas, Marias, Dadas, Durvinhas e outras são imagens que, mesmo invisibilizadas,
volta e meia voltam para lembrar às nossas sociedades a extrema violência que as constituiu e
que ainda as constitui. A Durvinha que nos encara neste filme é um ícone deste pathos e,
portanto, um espectro de uma nachleben, que nos assombra o tempo todo e que, por isso, nos
obriga a uma acurada reflexão.
92

Plano Nº 45 Plano Nº 46 Plano Nº 47

Esta é a última sequência, planos Nº 45, 46 e 47 que simula ainda uma batalha travada
pelos cangaceiros. Começa com um plano geral, Nº 45, no qual Lampião, à frente do bando,
sai da mata fechada. A luz é quase frontal, iluminando os cangaceiros que estão no primeiro
plano e criando manchas de claro/escuro que se movem na saída dos cangaceiros da mata ao
fundo. O grupo para, Lampião mexe na caixa de uma luneta. No plano Nº 46, ainda em plano
geral, a partir do mesmo ponto interrompido no plano anterior, Lampião tira a luneta da caixa
e olha através dela. Em seguida, tira o punhal da cintura e com ele aponta em várias direções.
Outros cangaceiros acompanham o ato de Lampião ao desembainhar o punhal. A câmera se
move de um lado para o outro, acompanhando a ação do grupo. No último plano geral, Nº 47
da sequência, numa relação de continuidade com o plano anterior, Lampião guarda o punhal e
o grupo segue, passando paralelamente diante da câmera que acompanha a ação do bando. Os
cangaceiros portam seus rifles nos ombros.
Como se pode ver, esta encenação nos mostra um Lampião estrategista e tendo acesso a
produtos que não faziam parte, na época, do mundo da caatinga. A luneta é um instrumento
muito utilizado nos filmes de guerra, principalmente para mostrar que o inimigo está sendo
observado e que o observador está a ponto de traçar uma estratégia de combate. A luneta
aliada ao longo punhal de Lampião, que parece uma espada, é suficiente para construir a
imagem do chefe que comanda bem e leva a bom termo a sua empreitada. Encenação bem
realizada e, por isso, de um certo ponto de vista, pouco interessante se comparada àquelas da
paisagem e dos outros planos de batalhas. O seu propósito parece ser o de ajudar a criar a
imagem positiva de Lampião e seu bando.
Entretanto, dentro do que parece ter sido um dos objetivos principais do filme, mostrar
uma imagem diferente do cangaço, esta sequência é fundamental. Ao usar uma composição
iconográfica já decodificada e conhecida pelo público cinematográfico, principalmente pelo
cinema hollywoodiano, torna verossímil ou aceitável esta história. O que não é pouco, pois
vai contra a corrente daquilo que o cinema tinha realizado até essa época na recriação da
história dos cangaceiros e que vinha de encontro das imagens do bando que Brasil
93

institucional estava tentando emplacar pelos meios de comunicação da época. De modo que o
filme se insere dentro de uma guerra de imagens que se estabelecia entre os cangaceiros e o
poder constituído e suas instituições – cinema, jornais, revistas, rádio etc.
Ao optar pelo cangaço, o filme de Benjamin Abrahão só podia ser censurado. Não que
ele fosse o único nessa empreitada, pois sabemos que as gravuras, as canções, os repentes, as
pequenas esculturas etc. – toda a gama artística da cultura popular do Nordeste, que a cultura
urbana qualifica depreciativamente como “artesanato” – era um material farto. Esta produção
popular fazia o contra-discurso daquele oficial e acabou se sobrepondo e criando um halo de
fascínio quase mítico destas figuras. Por exemplo, não se pode esquecer que Mulher Rendeira
foi um hit nordestino da época e que quase 20 anos depois se tornou um sucesso nacional e
internacional, quando Lima Barretos a colocou como trilha de O Cangaceiro. A autoria desta
música é atribuída a nada menos do que ao próprio Lampião. De modo que a criação artística
que potencializava as imagens era um arma considerável nesta guerra das imagens. O filme
também pode ser considerado como uma peça de propaganda para o cangaço, que foi
instrumentalizada pelos próprios cangaceiros, como já foi dito na introdução, porque
Lampião, como já mostrou Élise Jasmin, tinha consciência do poder da imagem dele e de seu
bando.
Abrahão parece ter uma clara noção desta força artística musical, tanto que chega a
inseri-la em alguns momentos como se verá na análise que vem a seguir. É provável que ele
tenha ouvido ou lido sobre Lampião e seu bando entrar em uma cidade cantando Mulher
rendeira. Este é um fato notório, comentado pelos textos em vários blogs sobre o cangaço que
circula no nordeste. Por exemplo, o blog Passando na hora RN e o blog do Mendes e Mendes
, etc.

Plano Nº 22 (frame 1) Plano Nº 22 (frame 2)

No plano Nº 22, uma panorâmica com a câmera na mão num percurso da direita para
esquerda, ao passar por cangaceiros dentro da tenda, pode-se perceber ao fundo um dos
94

membros do bando tocando sanfona. A câmera volta e permanece sobre ele alguns segundos,
para logo focar Lampião, em pé, fora da tenda. A câmera se detém nele e depois volta a
mostrar os cangaceiros sob a tenda. As paisagens de fundo, superexpostas (iluminação), criam
uma textura impressionista, dissolvidas na luz esbranquiçada. Este plano contrasta com a
estrutura das tendas, feitas com galhos de árvores que nunca conseguem imprimir na imagem
o corte da linha reta.

Plano Nº 72

No plano geral, Nº 72, dois casais de cangaceiros dançam, observados por outros dois
companheiros. Todos sorriem, parecem se divertir. Apesar do baile, estão com todos os
apetrechos, inclusive as armas. Ao fundo, vê-se um pano estampado estendido na mata. Na
montagem, este plano, relativamente longo, aparece 3 vezes, planos Nº 72, 73 e 74.
Como se pode ver, pela numeração, estes planos são retirados de duas sequências que na
montagem de Albuquerque estão separados, o primeiro está no começo, e o segundo quase no
final do filme. Os planos pertencem a blocos diferentes. O primeiro está dentro daquilo que
podemos chamar de exibição do cotidiano laboral de um acampamento de cangaceiros, e o
segundo está dentro de um bloco que chamaríamos de “amenidades”, por falta de uma palavra
melhor. Volto a repetir que tomei essa liberdade, dado que a montagem é de fato um ponto de
interrogação e porque acredito que as imagens isoladas têm tanto poder quanto a montagem.
Ao fazer essa associação, passando por cima da montagem, quis chamar a atenção para
um fato que certamente era de conhecimento de Abrahão, visto que ele viveu um bom tempo
em Juazeiro e foi secretário do Padre Cícero. Deter-se num sanfoneiro e depois filmar os
cangaceiros dançando não tem apenas o objetivo de mostrar que a música faz parte do bando
e que eles são pessoas que, como todos nós, precisam ter momentos de lazer. Esta
95

aproximação dos cangaceiros com o público é claramente um dos objetivos do filme, mas
com relação à música, esta interpretação fica curta. Não esqueçamos que se fala que Lampião
era compositor e que compôs um dos maiores hits nordestino. Fala-se que os cangaceiros
teriam entrado, a cavalo, numa das pequenas cidades, cantando Mulher Rendeira, composta
por Lampião, como já dissemos. Assim, a música representava para o grupo uma arma
fundamental para a luta que estava travando com relação às imagens que queriam impingir-
lhes. A gente ama os músicos porque eles nos proporcionam muitos bons momentos. Então,
como não amar ou pelo menos respeitar o compositor de Mulher Rendeira? Como combinar
esta imagem com a de um bandido que é figurado como sanguinário? A tendência é não
acreditar neste aspecto inusitado de Lampião. Dai pensar que talvez Abrahão teria tentado
mostrar que esta característica tão simpática do bando e de seu chefe não é um mero boato.
Agora voltando aos planos que antecederam àquele que mostra o cangaceiro tocando
sanfona.

Plano Nº 20 Plano Nº 21 Plano Nº 22

No plano americano, câmera na mão, Nº 20, três cangaceiros carregam ramos de folhas
para forrarem uma tenda armada no mato. A câmera os acompanha até que esses colocam a
forragem e se viram, posando para a câmera. O cangaceiro em primeiro plano tem,
praticamente, a cabeça cortada, o que faz do plano, um detalhe do tronco dos cangaceiros,
mostrando as camadas das roupas, equipamentos e armas dos personagens. A tenda montada
atrás deles é de um tecido estampado semitransparente, fundindo-se com a folhagem da mata.
Os cangaceiros viram-se novamente para seus afazeres e o plano é interrompido.
E o segundo plano, Nº 21, é uma panorâmica (da direita para a esquerda e da esquerda
para a direita) que enquadra vários cangaceiros sentados sob a tenda armada, acompanhados
de um cachorro. O terceiro corte é o plano do sanfoneiro, já analisado. De modo que a
sequência seria a seguinte:
96

Plano Nº 23

A última imagem é um plano médio, Nº 23, no qual Maria Bonita aparece ao centro,
acompanhada de dois cangaceiro. Sob uma pequena tenda ela costura com uma máquina de
mão, olhando para a câmera. Atrás dela, um cachorro deitado e o cangaceiro do lado direito,
ajoelhado, mexe no que parece ser uma pequena caixa. A câmera faz uma panorâmica para
esquerda. Estas imagens de Maria Bonita serão depois analisadas, por uma questão de
coerência do recorte temático da dissertação. Agora, analiso os planos que se configuram
como representação do cotidiano num acampamento de cangaceiros. Falta analisar cinco
planos com essa temática, os de Nº 28, 29, 30, 31 e 32, o dos cangaceiros matando um bode,
uma vaca e comendo.

Plano Nº 28

Plano geral, Nº 28, câmera na mão. Um grupo de cangaceiros e cangaceiras parecem


observar um companheiro carneando um bode abatido. Do lado esquerdo da cena um dos
97

cangaceiros aponta a arma para o animal já morto. A câmera se aproxima um pouco para
centralizar melhor a ação.

Plano Nº 29 (frame 1) Plano Nº 29 (frame 2)

No plano Nº 29, com a câmera na mão, em panorâmica (esquerda-direita-


esquerda), Abrahão percorre a cena onde três cangaceiros aparecem tirando a pele do animal,
cercado por boa parte do bando. O plano começa e termina mostrando Lampião, que o tempo
todo olha para a câmera.

Plano Nº 30 Plano Nº 31

Plano americano, Nº 30 e 31, a câmera na mão, mais uma vez movendo-se da direita
para esquerda. Em primeiro plano Lampião, o Nº 30, ao fundo cangaceiros terminando a
tarefa de carnear o animal. Uma nuvem de fumaça (de uma fogueira) cobre totalmente o
quadro, deixando a tela branca. Uma pequena interrupção com uma tela preta e a ação parece
continuar sem quebra de continuidade, com a dissipação da fumaça. O grupo reaparece, plano
Nº 31, e a câmera volta a enquadrar Lampião. O enquadramento é o mesmo e a postura de
Lampião é a mesma: ele olha para a câmera e se apoia no fúsil. Entretanto, o fundo se move.
Enquanto no primeiro momento um dos cangaceiro olha para o lugar onde está o animal
98

sacrificado, no segundo momento, todos olham para a câmera. Esta questão é fundamental,
não tanto para a análise do filme em si, mas para pensar na própria análise que se faz de um
filme. Afinal, se o objetivo é fazer uma análise que a partir da imagem se pense a narrativa e
não o contrário, então, a questão da descrição – fundamental em qualquer análise
cinematográfica que leve em conta, por mínimo que seja, as imagens que compõe o filme,
sem reduzi-las a mero elemento de um sintagma narrativo – torna-se uma questão. O que
descrever? Visto que as imagens em movimento trazem inúmeros quadros, a descrição se
torna uma tarefa infinita. A descrição do movimento da câmera é uma opção, porém ela é
insuficiente em alguns casos, como neste, pois não há movimento de câmera e mesmo que
houvesse, ele não explicaria o que sucede nas imagens. O que acontece é que de um quadro
que mistura pose e ação – o homem olhando para o animal aponta a ação que se esteve
efetuando – se passa para a pura pose no sentido fotográfico do termo – todos parados
olhando para a câmera. São dois regimes de imagens completamente diferentes com
conotações e desdobramentos diversos. Quais seriam estas diferenças entre a ação e a pose?
Discussão árdua e ainda não debatida pelos estudos cinematográficos. Este debate pode ter
como base comparativa uma relação entre teatro – representação da ação – e pintura – retrato
e paisagem. Lamentavelmente, desconheço qualquer trabalho que faça esta comparação entre
teatro e pintura, hoje em dia trabalha-se mais a relação entre cinema e paisagem, mas
desconheço trabalhos que comparem retrato pictórico e retrato cinematográfico. O tempo não
possibilitou que pesquisasse melhor este aspecto. O plano com a fumaça nos faz supor que
Abrahão achou que pudesse ter perdido a filmagem e a repetiu. O interessante é perceber que
entre a cena que se creia perdida e a repetição há uma funda diferença, pois a segunda tem
claramente uma composição bem arranjada, enquanto na primeira a composição é menos
arrumada. A repetição pode ser vista como uma cena que Abrahão gostaria de preservar ou
simplesmente que outras vezes quando a cena era considerada perdida se voltava a filmar. A
perda do restante do filme apenas me permite fazer conjectura a este respeito.
99

Plano Nº 32 (frame 1) Plano Nº 32 (frame 2)

Em plano geral, Nº 32, Lampião aparece sentado à sombra de uma árvore com alguns
companheiros. Um cangaceiro aparece no quadro entregando uma tigela com comida para
Lampião, que a repassa para outra pessoa (somente o antebraço aparece pegando a tigela). A
diferença de luz entre a sombra onde os cangaceiros se encontram e o fundo, ensolarado, cria
um contraste grande entre o primeiro e o plano de fundo, no qual vemos uma cortina
desfocada de folhas e luz. Onde os cangaceiros estão, o que sobressai são as manchas das
formas dos personagens e um piscar de brilhos causados tanto pela luz refletida nos metais
das roupas e armas, quanto pelos raios de luz que conseguem penetrar a sombra. Seja mero
acaso ou não, este tipo de composição remete às pequenas irregularidades da madeira na
xilogravura dos cordéis.
Então, passa a ser um sinal que se repete, o gesto de que depois que se realiza a ação, os
personagens olham para a câmera. Se for verdade que a 1a cena em que aparecem os
cangaceiros foi de fato, na montagem de Abrahão, a 1a vez em que eles aparecem na versão
de Albuquerque, pode se conjecturar que, no início, aos cangaceiros se lhes recomendava não
olhar para a câmera, mas que diante da insistência deles em olhar para a máquina, Abrahão
desistiu desta recomendação. Agora, podemos aventar que este olhar para a câmera pode ser
mera codificação postural que os cangaceiros traziam da pose fotográfica para o cinema.
Afinal, eles já tinham sido bastante fotografados. Até pode ser, mas há algo nestas imagens
que ultrapassam o código da fotografia, que discutiremos mais adiante quando analisarmos as
imagens de Virginio.
100

Plano Nº 33

Em plano geral, Nº33, aparecem sob a sombra de uma árvore: Benjamin Abrahão,
Maria Bonita, Lampião e mais alguns cangaceiros. Todos aparecem comendo. Nestas imagens
a relação de contraste entre fundo e primeiro plano não é tão grande. Um cangaceiro aparece
atrás de uma companheira, que está ao lado de Maria Bonita, e faz como se estivesse, de
brincadeira, batendo em sua cabeça com alguma coisa. Estariam os cangaceiros tão à vontade
a ponto de começar a fazer esse tipo de gracejo?
Plano geral em contra-plongée,(chega a cortar parte da o corpo de Lampião), Nº 34,
numa panorâmica da direita para esquerda, mostra-se o bando comendo sob a sombra de uma
árvore. No plano, visualiza-se o chão, onde aparecem algumas cabaças e é possível observar
os calçados (alpargatas) dos cangaceiros.

Plano Nº 35

Plano geral em contra-plongée, Nº 35, onde aparecem 3 cangaceiros sentados, comendo.


101

Estas imagens dos 4 planos formam uma só sequência (incluindo aquele em que
Lampião está sentado e recebe a comida para logo passa-la para outro), na qual a montagem
obedece a lei de continuidade que se estabeleceu no cinema. O que os cortes introduzem são
diversos pontos de vista da mesma cena, incluindo aquilo que tinha ficado fora do quadro.
Quer dizer que o conhecimento de Abrahão do cinema – enquadramento, montagem, ponto de
vista etc. – não era incipiente como várias vezes se afirmou – teria tido algumas aulas de
funcionamento de câmera. Numa conversa telefônica que tive com Ricardo Albuquerque, em
4 de novembro de 2013, ele disse que foi o avô que teria ensinado Abrahão a mexer com a
câmera.
Por outro lado, a ação de servir a comida primeiro para Lampião é uma espécie de
reconhecimento de sua chefia e protagonismo, mas a continuidade da ação mostra algo a
mais, e que denota um código de cortesia entre os cangaceiros: supomos que Lampião passa
seu prato de comida para o visitante convidado. Obviamente que isso é apenas uma hipótese,
mas me parece bem plausível. Por isso, a sequência não tem apenas um, por assim dizer,
virtuosismo de montagem (para alguém que supõe-se era um caixeiro viajante e que mal
conhecia a técnica de montagem, a continuidade e os vários ângulos da cena mostra uma
grande habilidade), mas com um processo informativo e retórico. Informa-se ao espectador o
código de cortesia e as fineses do anfitrião, de modo que o público crie ainda mais empatia
com o grupo. Dai que a filme parece ter um propósito maior do que apenas contar a história
ou documentar o bando.

Plano Nº 23

Agora, falarei sobre os desdobramentos da imagem de Maria Bonita costurando, plano


Nº 23. Além de compositor, Lampião foi um artesão que trabalhou com o couro e que,
portanto, sabia costurar e bordar. Não apenas ele e as mulheres dominavam essas técnicas,
como se mencionou na introdução, saber bordar e costurar era um elemento que valorizava o
cangaceiro dentro do grupo. Assim, a máquina de costura, como a música, vão além do mero
102

elemento que serve para construir uma abordagem sociológica, no sentido de uma exposição
do cotidiano desconhecido de um grupo que despertava muito interesse na população urbana,
que também era a que frequentava o cinema. As roupas, as joias, os bordados, as armas
ornamentadas e os chapéus eram de conhecimento do público da região e provavelmente eram
bastante comentados. Há registros na imprensa da época, segundo Pernambucano, em que se
usa o adjetivo de “carnavalesco” para descrever o trajar e a maneira como os cangaceiros
entravam nos povoados (Entrevista à Globo News, em 7/11/2010). Não se sabe se este
adjetivo tinha uma conotação pejorativa para a imprensa.

Imagens retiradas do livro Estrelas de couro : A estética do Cangaço (MELLO, 2010)


103

Assim, mostrar Maria Bonita costurando devia lembrar os bornais, os cantis, as


cartucheiras e todos os apetrechos que ajudaram o cangaço a se tornar um fenômeno
midiático, regional e posteriormente nacional. Este tipo de estética acabou se perdendo e só
sobreviveu no peculiar chapéu dos cangaceiros. Mas, na época, isto devia ser amplamente
conhecido. Como já se comentou, Frederico Pernambucano resgatou este material e ajudou a
retomar uma imagem mais complexa, curiosa e amena dos cangaceiros. Na resenha que Tadeu
Renzi fez do livro do pesquisador, Estrelas de Couro, lemos:
Sobre moda, Lampião e seus homens tinham pouco a aprender e muito a ensinar.
Vestiam-se de forma colorida, cobertos por adornos de ouro e, como bons sertanejos, sabiam
confeccionar toda a sorte de objetos e vestimentas sem que por isso se questionasse sua
virilidade: o “rei do cangaço” costurava suas roupas e a de seus afilhados e bordava à
máquina com perfeição, orgulhando-se da sua habilidade. (RENZI, 2010)
Pernambucano, citado por Renzi diz ainda que:
Tamanho apuro visual, pleno de detalhes nas coisas mais cotidianas (cães com
coleiras trabalhadas em prata!), servia como proteção ao mau-olhado, instrumento
de hierarquia interna, tinha funcionalidade militar e era um poderoso instrumento de
propaganda junto às populações pobres, que se admiravam diante de todo aquele
luxo, cor e brilho. Era também uma forma de arte que o cangaceiro carregava no seu
corpo. (RENZI, 2010)

Na versão de Albuquerque, é possível perceber, ainda que com alguma dificuldade, todo
este material. Mas, nao filme da Cinemateca, com melhor qualidade de imagens, a estética
fica mais evidente. Fora os chapéus e as armas – principalmente os fuzis e o punhal -, as
roupas ornamentadas se insinuam em imagens de Lampião, de Maria Bonita e de Virginio,
planos Nº 59, 68 e 54.

Plano Nº 59 Plano Nº 68 Plano Nº 54

Percebe-se uma maior ornamentação na figura masculina, dado que já foi apontado por
quase todos que estudaram o cangaço.
104

Se a estética do cangaço quase desaparece na imagem branca e preta, o filme mostra


detalhadamente as regalias que faziam parte do bando.

Plano Nº 36 Plano Nº 37 (frame 1) Plano Nº 37 (frame 2)

Nestes planos, Nº 36 e 37, vemos Maria Bonita servindo alguma bebida alcoólica. O
primeiro já foi analisado, no segundo em plano médio, Maria Bonita serve Benjamin
Abrahão da mesma bebida, aparentemente, na mesma caneca. Lampião observa ao fundo. Um
outro cangaceiro aparece e é servido também.
Foi bastante comentado, desde a época de Lampião até os dias de hoje, este lado
“dandy” dos chefes dos cangaceiros. Os cineastas Lirio Ferreira e Paulo Caldas, em Baile
Perfumado, destacam este aspecto do cangaço, mas lhe dão uma conotação quase negativa. O
próprio Ferreira diz que é o aspecto aburguesado do cangaço (DIDIMO, 2007, pgs.383-384).
Pernambucano, no documentário Estética do Cangaço (s/d), diz que Lampião, em contato com
os coroneis do nordeste, começou a conhecer e apreciar o gin inglês, Old Tom, o Cognac
Macieira, o wiskhy White Horse, ginebra, licor de menta etc.

Plano Nº 70 (frame 1) Plano Nº 70 (frame 2) Plano Nº 70 (frame 3)

O filme também mostra uma sequência em que Maria Bonita e Lampião se arrumam,
aparentemente, para posar para a câmera. Neste plano, Nº 70, um outro mimo fica evidente. A
cangaceira, em plano americano, aparece penteando Lampião. A câmera faz um movimento
para baixo e para o alto (tilt) e Lampião joga, generosamente, perfume sobre si e Maria
Bonita. Lampião, brinca e joga perfume na direção da câmera. Segundo Pernambucano, no
105

documentário citado, o perfume era o Fleur d’Amour, famoso perfume francês da época.
Estes mimos também aparecem quando Maria Bonita coloca quatro colares.

Plano Nº 67 (frame 1) Plano Nº 67 (frame 2) Plano Nº 67 (frame 3)

Plano Nº 67 (frame 4) Plano Nº 67 (frame 5)

Em plano médio, Nº 67, Maria Bonita aparece colocando vários colares e correntes. Um
cangaceiro a seu lado mantem as correntes no braço, enquanto ela retira os colares um a um e
os coloca em seu pescoço. Maria Bonita usa um vestido estampado, claro, enquanto que o
cangaceiro aparece como uma silhueta. A câmera na mão acompanha o movimento de Maria
Bonita, pegando e colocando as correntes. Finalmente, ela pega o chapéu das mãos do colega
e o coloca na cabeça. Ambos saem do quadro, e a câmera fica alguns segundos enquadrando a
vegetação sem personagem. Ainda segundo o documentário de Pernambucano, esses colares
foram o botim de um roubo famoso à baronesa da Água Branca e a outros potentados da
região que não eram coiteiros do bando. A cruz de ouro da baronesa teria ficado com
Lampião, segundo Pernambucano.

Imagens do documentário Estética do Cangaço, de F. Pernambucano (s/d)


106

O fato de Maria Bonita colocar um a um os colares deixa claro a intenção de mostrar


que são vários. A postura do cangaceiro com os colares na mão, lembra, um pouco um
mucamo que ajuda a vestir a sinhá. Pelo que se sabe, nenhum cangaceiro ocupava esta
posição ou fazia este tipo de tarefa. De modo que esta cena foi explicitamente feita para a
câmera. Ao destacar a ação, o objetivo é, salvo engano, reforçar a ideia de riqueza do bando,
uma publicidade que o grupo já fazia sobre si mesmo e que era chamariz para que os
sertanejos se alistassem no cangaço.

Plano Nº 68 (frame 1) Plano Nº 68 (frame 2) Plano Nº 68 (frame 3)

Plano Nº 68 (frame 4) Plano Nº 68 (frame 5)

Em plano geral, Nº 68, Maria Bonita sai de uma pequena trilha e caminha em direção à
câmera. Está com o vestido do plano anterior, com os bornais, uma pequena caneca amarrada
ao corpo, lenço e chapéu. Ela para diante da câmera, em plano médio, tira o chapéu sorrindo,
vira-se e volta pela mesma trilha, recolocando o chapéu, sempre seguida por um cachorro.
Assim como no plano anterior, esta é uma encenação direta para a câmera, a retirada do
chapéu é um cumprimento da moça para o público, O curioso é que a câmara acompanha
também, quando ela vai embora de costas. Há outro momento em que o gesto da saudação se
repete.
107

Plano Nº 81 (frame 1) Plano Nº 81 (frame 2)

Plano Nº 81 (frame 3) Plano Nº 81 (frame 4)

No plano em close-up de Lampião, Nº 81, ele tira o chapéu e olha para a câmera. O
close está um pouco desfocado, mas não o suficiente para não perceber que ele olha sério,
pensativo e talvez curioso para o aparelho. Mas ele tem consciência de que seu olhar não é
dirigido à máquina, pois inesperadamente ele retira o chapéu, um dos maiores símbolos do
cangaço (poucas vezes ele aparece sem chapéu), e nos encara.
A retirada do chapéu é um dos sinais iconográficos mais famosos da história da arte.
Panofsky (1986, p. 47-65), ao falar sobre a iconografia como “o ramo da história da arte que
trata do tema ou das mensagens das obras de arte em contraposição com sua forma” (p. 47)
nos descreve e reflete sobre a seguinte cena:
Quando, na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapéu, o que vejo, de
um ponto de vista formal é a mudança de alguns detalhes dentro da configuração
que faz parte do padrão geral de cores, linhas e volumes que constitui o mundo da
minha visão. Ao identificar, o que faço automaticamente, essa configuração como
um objeto (cavalheiro) é a mudança de detalhe como um acontecimento (tirar o
chapéu), ultrapasso os limites da percepção puramente formal e penetro na primeira
esfera do tema ou mensagem. O significado assim percebido é de natureza elementar
e facilmente compreensível e passaremos a chama-lo de significado fatual. (...).
Ora, os objetos e fatos assim identificados produzirão, naturalmente, uma reação em
mim. Pelo modo do meu conhecido executar sua ação, poderei saber se está de bom
ou mau humor, ou se seus sentimentos a meu respeito são de amizade, indiferença
ou hostilidade. Essas nuanças psicológicas darão ao gesto de meu amigo um
significado ulterior que chamaremos de expressional. Difere do fatual por ser
apreendido, não por simples identificação, mas por “empatia” (...).
108

Entretanto, minha compreensão de que o ato de tirar o chapéu representa um


cumprimento pertence a um campo totalmente diverso de interpretação. Essa forma
de saudação é peculiar ao mundo ocidental e um resquício do cavalheirismo
medieval: os homens armados costumavam tirar os elmos para deixarem claras suas
intenções pacíficas e sua confiança nas inteções pacíficas dos outros (...). Para
entender o que o gesto do cavalheiro significa, preciso não somente estar
familiarizado com o mundo prático dos objetos e fatos, mas, além disso, com o
mundo mais do que prático dos costumes e tradições culturais peculiares a uma dada
civilização. (...). E finalmente : além de constituir um acontecimento natural no
tempo e espaço, além de indicar, naturalmente, disposições de ânimos e sentimentos,
além de comunicar uma saudação convencional, a ação do meu conhecido pode
revelar a um observador experimentado tudo aquilo que entra na composição de sua
“personalidade”. Esta personalidade é condicionada por ser ele um homem do século
XX, por suas bases nacionais, sociais e de educação, pela história de sua vida
passada e pelas circunstâncias atuais que o rodeiam; mas ela também se distingue
pelo modo individual de encarar as coisas e de reagir ao mundo que, se
racionalizado, deveria chamar-se de filosofia. Na ação isolada de uma saudação
cortez todos esses fatos não se manifestam claramente, porém sintomaticamente.
Não podemos construir o retrato mental de um homem com base nesta ação isolada,
e sim coordenando um grande número de observações similares interpretando-as no
contexto de novas informações gerais quanto à sua época. (PANOFSKY, 1989: p.
47, 48 e 49)

Eis que a cena do cangaceiro, que formalmente repete o mesmo gesto do cavalheiro
panofskyano, parece torcer o esquema brilhantemente formulado pelo historiador da arte. Em
que sentido? Pelo fato de que o conceito de “civilizado”, aquele que vem depois da etapa
formal e expressiva, e que configura a própria iconologia (o momento em que o gráfico é
passado pelo logos), está completamente a serviço do expressivo, de criar uma empatia com o
espectador. A cena iconográfica, mesmo quando tem o objetivo de compreender as tradições
ou costumes de uma cultura, vai além disso. Pelo menos este gesto, feito por Lampião, traz à
tona a tensão que pode estar por trás de uma simples saudação. Afinal, não é um cumprimento
inocente entre duas pessoas comuns do qual devo decifrar o sentido simbólico. A “civilidade”
está aqui carregada de tensões, porque quem está atrás da câmera metaforicamente, o público,
não é alguém que já está ganho simplesmente pela mera formalidade, dado que quem o
cumprimenta é uma imagem que se choca contra outra imagem, que esteve sendo construída
durante muito tempo. Ou seja, à imagem do bandido se sobrepõe a do cavalheiro, ou vice-e-
versa, sem que se possa discernir quem é quem.
Mas, mesmo entre pessoas de “bem”, há sempre algo a mais quando encontramos um
conhecido na rua e ele retira o chapéu ao nos saudar. O encontro não se esgota na
gestualidade, pois há também os olhares que se entrecruzam. Eis que neste gesto de Lampião
se evidencia o que era subtraído da cena panofskyana, este poder que possuem as imagens, a
sua agência ou a capacidade de provocar um efeito em nós, que não se limita à mera
109

decifração simbólica. E somos educados não apenas por mero costume, no sentido de um
hábito inócuo, pois em cada gesto, mesmo mecanizado, há sempre um bocado de interesse. É
este interesse que se explicita nestas imagens do filme. Lampião só retira sua coroa, em sinal
de reconhecimento do poder do outro que está do lado de lá. Ele sabe que é a imagem dele e o
que ela representa que está em jogo. Pois como a metafísica indígena nos ensina todo
encontro pode ser um mau-encontro.
É justamente para que o encontro entre cangaceiros e o público cinematográfico seja um
bom-encontro, que o filme, pelo menos naquilo que restou dele, se esforça, a meu ver. Daí, a
encenação direta para a câmera e seus desdobramentos expressivos como veremos a seguir em
outros planos do filme.

Plano Nº 54 (frame 1) Plano Nº 54 (frame 2) Plano Nº 54 (frame 3)

Plano Nº 54 (frame 4) Plano Nº 54 (frame 5) Plano Nº 54 (frame 6)

Em plano médio, Nº 54, aparecem: Moderno (Virginio Fortunato da Silva), Durvinha e


Luiz Pedro. Moderno e Luiz Pedro caminham em direção à câmera, Moderno na frente.
Durvinha decide ficar para atrás, cedendo o protagonismo para o companheiro. Luiz Pedro faz
o mesmo. O plano se fecha, faz um movimento de panorâmica para esquerda e para a direita,
terminando num detalhe do rosto de Durvinha e Moderno quase desfocado e fora do quadro,
não sem antes mostrar Luiz Pedro sozinho. Durante o movimento de panorâmica pode-se
notar as barracas montadas entre as árvores ao fundo. Moderno e Durvinha falam alguma
coisa no final do plano.
110

A maneira como eles avançam – principalmente porque em um certo momento as


personagens param por um instante para logo voltar a vir em direção à câmera, como se fosse
a entrada da noiva numa igreja – confere um aspecto quase cerimonioso aos planos. Essa
cerimônia não é apenas timidez diante do aparelho. Há ali uma mistura de sentimentos –
vaidade e uma certa consciência do valor dessas imagens, daí um respeito ritualístico pelo
acontecimento. Pode-se dizer que é um acontecimento no sentido filosófico do termo o
encontro da câmera com os cangaceiros. Trata-se de pensar o filme para além do meramente
factual, pois não são “fatos documentais”, por assim dizer, registrados, mas um evento que
jamais se repetirá e que não é evidente. Estarei tomando aqui a ideia do historiador Paul
Veyne sobre a ligação entre história e acontecimento, como coloquei na introdução (1971,
p.18).

Plano Nº 83 (frame 1) Plano Nº 83 (frame 2) Plano Nº 83 (frame 3)

Plano geral, Nº 83. Virginio de mãos dadas com Durvinha e Luiz Pedro de mãos dadas
com Nenem caminham na direção da câmera até que o plano fecha na direção de Virginio e
Durvinha. Os esquema formais se repetem, cangaceiros caminhando em direção à câmera,
ainda mostrando os três personagens do plano anterior com o acréscimo da companheira de
Luiz Pedro, Nenem. Se a cena anterior era bastante cerimoniosa, esta está mais distendida,
mas não deixa de lembrar aquelas em que os casais da aristocracia eram apresentados quando
chegavam a uma festa. Se no outro plano Moderno fica na frente, como chefe dos outros dois
cangaceiros, neste, a entrada dos quatro de mãos dadas, formando uma linha horizontal,
reforça a ideia de grupo, baseada fundamentalmente na relação de casais. Imagens de homens
e mulheres respeitosos com o público e que são carinhosos entre si (as mãos dadas é um sinal
de carinho muito pouco usual para a época) são um forte e claro estratagema de provocar a
empatia do espectador, além do chamariz de todo um imaginário que provoca o chamado
amor bandido.
111

Plano Nº 78 (frame 1) Plano Nº 78 (frame 2) Plano Nº 78 (frame 3)

Plano Nº 78 (frame 4) Plano Nº 78 (frame 5) Plano Nº 78 (frame 6)

Plano geral, Nº 78. Benjamin Abrahão, Corisco e Dada caminham por uma trilha,
saindo da mata em direção à câmera. No início, não se sabe que são eles, pois vêm da sombra
para a luz. Abrahão fala alguma coisa e Corisco presta atenção, enquanto Dadá olha em
direção à câmera. Eles param atendendo a um gesto de Abrahão que aponta para o aparelho.
Em seguida, o casal olha para câmera. É a primeira vez que Corisco faz isto. Aparentemente,
o casal não sabia que estavam sendo filmados ou pelo menos não há, no plano, a maneira
ostensiva de encenar para a câmera dos outros cangaceiros, como já tínha mostrado e como se
viu e ainda se verá em cenas ainda não analisadas. Este plano, que sobrou do segundo
cangaceiro mais famoso, e que não aparece na versão Ghiu/Wulfes, não faz jus ao que se
esperava deste momento. Porém, ele está lá e, se não podemos falar nada a respeito de
Corisco e Dada, é suficiente para tecer uma série de hipóteses sobre as andanças do cineasta.
Por exemplo, podemos perceber que as filmagens foram feitas em dois acampamentos,
já que não vemos Corisco e Lampião juntos. Nesse sentido, alguns planos de cangaceiros e do
próprio Abrahão saindo de um coito podem indicar esse deslocamento do cineasta pelos
acampamentos. Porém, a montagem de Albuquerque coloca essas imagens – a de Corisco e o
traslado do cineasta - distantes uma da outra. Nesse mesmo sentido, podemos pensar o plano
em que Abrahão aparece numa mata fechada.
112

Plano Nº 48 (frame 1) Plano Nº 48 (frame 2) Plano Nº 48 (frame 3)

Plano geral, Nº 48, mostra Benjamin Abrahão saindo da mata serrada e lentamente
caminha na direção da câmera, olhando para um lado e para outro, como se estivesse perdido.
Abrahão, tem na mão um facão. Incialmente, ele está totalmente envolvido pela mata,
aparecendo apenas sua cabeça. Pela incidência direta da luz, quadro fica totalmente tomado
pela textura das folhas de vários formatos, dos arbustos e árvores. Na montagem, este plano é
a continuação daquele em que Lampião usa um binóculo e parece estar dirigindo o bando
numa empreitada de combate. Não tem nenhum sentido de continuidade com relação ao plano
anterior. Por que Abrahão estaria escondido na mata, ou por que ele parece perdido? Visto
que se optou pela explicitação da encenação, este plano fica sem sentido depois do que seriam
as batalhas travadas pelos cangaceiros e pelo próprio Lampião. A ele se segue este outro
plano:

Plano Nº 49 (frame 1) Plano Nº 49 (frame 2)

Plano Nº 49 (frame 3) Plano Nº 49 (frame 4)


113

Em plano geral, Nº 49, Juriti, na frente, e Marreca (Marculino Pereira) saem da mata e
caminham por um campo de macambira18. Eles vêm em direção à câmera, gesticulando, até
que o plano termine num close-up de Juriti. Não sabemos de onde os dois cangaceiros sairam.

Plano Nº 50 (frame 1) Plano Nº 50 (frame 1) Plano Nº 50 (frame 3)

No plano geral, Nº 50, ramos de xiquexique em primeiro plano, Juriti e Marreca, atrás,
se aproximam. Juriti para por um momento diante do cacto e, como no plano anterior, aponta
em várias direções e parece dizer algo. Passam esbarrando nos espinhos. Como o movimento
é de caminhar na direção da câmera, o quadro acaba se fechando para um plano médio,
mostrando o cangaceiro e o cacto. Esta imagem, visto que ainda se trata dos dois cangaceiros
do plano anterior, Nº 49, pode-se dizer que ele seja a continuiação do outro.

Plano Nº 51 (frame 1) Plano Nº 51 (frame 2)

18
Macambira (Bromelia Laciniosa), é o nome popular de uma planta da família das Bromeliáceas, cujo rizoma
serve de alimento, por ocasião das secas, tanto para as pessoas como para os animais.
114

Plano Nº 51 (frame 1) Plano Nº 51 (frame 2)

O plano geral, Nº 51, mostra a chegada de dois cangaceiros a um acampamento, eles


dizem alguma coisa que gera um certo alvoroço. Cangaceiros passam diante da câmera em
todas as direções, como se tivessem sido avisados de que teriam “visita”. É uma cena de
bastante ação que termina com Lampião apontando para vários lugares, como se estivesse
orientando a movimentação dos cangaceiros. Não se consegue identificar quem são estes dois
que chegaram, poderíamos supor que são Juriti e Marreca, porém não é uma certeza. A
respeito da visita tampouco sabemos se é ela que provoca a movimentação.

Plano Nº 52 (frame 1) Plano Nº 52 (frame 2) Plano Nº 52 (frame 3)

Em plano médio, Nº 52, Juriti aparece chegando ao acampamento, passa diante de


vários cangaceiros e é recebido por Lampião. Lampião gesticula de maneira ríspida, diz
alguma coisa para Juriti e este dá meia volta e sai de quadro. A cangaceira Verônica também
gesticula com rispidez. Dá para perceber que ela e a Maria Bonita também estão chegando ou
saindo do acampamento. A nova personagem daria todo sentido a ideia de “visita” de uma
mulher importante de um outro acampamento, mas a presença de Maria Bonita com chapéu e
bornais etc., indica que também ela acaba de chegar ou está preste a partir.
115

Plano Nº 53 (frame 1) Plano Nº 53 (frame 2)

Plano Nº 53 (frame 3) Plano Nº 53 (frame 4) Plano Nº 53 (frame 5)

Em plano médio, Nº 53, Maria Bonita e Verônica, sorrindo, se aproximam de uma


árvore no canto direito/primeiro plano da câmera. Maria Bonita olha quase o tempo todo para
a câmera. Elas penduram alguns equipamentos (correias, chapéus) num gancho colocado no
tronco da árvore. No final, todos eles olham e posam para a câmera.
Como se pode ver, os indícios de continuidade entre os planos são poucos. Entre os
planos Nº 52 e 53, por exemplo, a ligação se dá principalmente pelo chapéu diferente de
Verônica e pela presença de Maria Bonita nos dois planos. A chegada dos dois cangaceiros no
plano Nº 51, pode ser ligada aos planos anteriores, mas o fato de Juriti aparecer sozinho
depois no plano Nº 52, faz com que esta continuidade fique comprometida. De modo que a
montagem, não nos dá uma ideia do que seria este filme. O que se pode pensar é que há um
trânsito de cangaceiros, de maneira que o filme chega a mostrar que a filmagem se deu em
mais de uma acampamento. Isto é corroborado porque no plano Nº 78, Corisco e Dada
aparecem sem Lampião e Maria Bonita, como já mencionei. De modo que poderíamos pensar
que Abrahão, que também aparece no plano, estaria visitando o acampamento de Corisco. É
claro que como faltam muitos planos do filme, não se pode ter certeza disso. Mas, o plano
seguinte pode corroborar isto, mesmo que ele se dê, na montagem, 5 planos depois, em que
poderíamos pensar que Benjamin está indo embora, mas também não sabemos se ele está
partindo ou está chegando. De qualquer forma, este é mais um dos planos em que o trânsito
dos cangaceiros – de um acampamento a outro? – é filmado.
116

A ideia de continuidade, embora frágil, dado que se trata de fragmento de um filme, é


importante para estabelecer hipósteses que contemplem a encenação que foi filmada.
Albuquerque, as vezes, se preocupa com essa ligação, as vezes não. De qualquer forma, é esta
preocupação que faz de sua versão algo menos comprometido do que aquela que aquela da
cinemateca. Assim, independente da ação, o liame entre os planos é a onipresença da
vegetação. O mato da caatinga é bastante privilegiado pelo cineasta, não apenas pelas imagens
do início, mas, também, porque esta em primeiro plano em grande parte das imagens ou
porque a câmera se detem por algum tempo na paisagem, quando os personagens saem do
quadro. Há uma constante em vários planos: o de fazer ou filmar os personagens vindo do
fundo e, portanto, filmar a mata em primeiro plano. Assim, a macambira, o xiquexique e
outras plantas aparecem e permanecem em cena tanto quanto os personagens, já que estão
tanto no começo como no final do plano, quando os personagens saem. Pode se levantar
várias hipóteses sobre as intenções da prevalência inabitual da paisagem. Entretanto, elas não
passariam de suposições, o que prevalece é que ela não é um mero cenário. Se o que busco é
prefletir sobre a relação entre filme e espectador, então tenho que pensar o motivo desta
insistência sobre a paisagem sertaneja. Uma das hipóteses possíveis é a contraposição que já
se coloca de cara entre o cangaceiro, que tem que desenvolver sua vida na mata e o público
urbano que é o do cinema. Ou seja, num diálogo entre campo e cidade. A cidade, embora
ausente, está onipresente no filme, pois todas essas imagens estão sendo construídas para o
habitante urbano. É na cidade que se trava a guerra das imagens, por meio da imprensa, da
rádio, dos meios artísticos como a gravura, o cordel etc. E uma das coisas que prima pela
ausência é a figura central de uma cidade, a casa. A não ser o telhado quase destruído das
primeira imagens, as filmagens parecem ter se centrado nos acampamentos e não nas sedes
das fazendas dos coiteros , que os cangaceiros também frequentavam. A forte presença da
caatinga mistura uma paisagem bela e nada acolhedora (veja como o vaqueiro tem que se
embrenhar na mata ou como o xiquexique pegam nas roupas dos cangaceiros), fazendo
imaginar, ao espectador urbano, ao mesmo tempo, uma vida dura, mas também livre, cheia de
desafios e aventuras. Os sinais da “civilização”, por assim dizer, está nos detalhes – os
ornamentos, as roupas, os bordados, o chapéu, o perfume, a bebida etc.
117

3.2.5 AS IMAGENS DO CINEASTA

Esta análise destaca a figura do cineasta e segue a ordem da montaem de Albuquerque.

Pano Nº 19

Na montagem de Albuquerque, a figura do cineasta aparece pela primeira vez, logo no


início, no plano Nº 19 bebendo água por um bom tempo (este plano já foi comentado).

Pano Nº 33 (frame 1) Pano Nº 33 (frame 2)

A segunda vez que aparece é no plano N º 33, já comentado, comendo com Maria
Bonita e alguns cangaceiros. Desta vez ele olha para a câmera.

Plano Nº 37
118

No plano Nº 37, já comentado, ele bebe uma bebida alcoólica.

No plano Nº 48, também já comentado, Benjamin Abrahão sai lentamente da mata


cerrada e caminha na direção da câmera.

Plano Nº 56 (frame 1) Plano Nº 56 (frame 2)

Plano geral Nº 56, câmera fixa, onde aparecem do lado direito do quadro, Lampião
conversando com Benjamin Abrahão. Ambos estão na sombra de árvores, no meio da mata,
iluminados por réstias de sol.

Plano Nº 58 (frame 1) Plano Nº 58 (frame 2)


119

Em plano médio, Nº 58, Lampião conversa com Benjamin Abrahão. Este plano tem
uma relação de continuidade com o plano Nº 56.
Entre estes dois planos – Nº 56 e 58 –, são intercalados os planos Nº 55 e 57 , onde
vemos Lampião sozinho no quadro.

Plano Nº 58 (frame 1) Plano Nº 58 (frame 2)

Numa panorâmica, plano geral, Nº 59, da direita para esquerda, vemos Abrahão e vários
cangaceiros, alguns em pé, outros sentados. A panorâmica termina com um plano conjunto de
Lampião e mais três cangaceiros na cena.

Plano Nº 62 (frame 1) Plano Nº 62 (frame 2)

Um plano conjunto. Nº 62, de Lampião, alguns cangaceiro e Benjamin Abrahão


manuseando um exemplar do jornal “O GLOBO”. Eles riem e o cineasta oferece o jornal para
Lampião.
120

Plano Nº 63 (frame 1) Plano Nº 63 (frame 2)

Num corte seco, como se o plano Nº 63, tivesse se rompido e emendado, Lampião pega
o jornal da mão de Benjamin Abrahão.
Na versão de Albuquerque, se repete, numa montagem mais curta, os planos N º 56, 58
e 55 (Abrahão conversando com Lampião e anotando num caderninho e o close de Lampião).

Plano Nº 63 (frame 1) Plano Nº 63 (frame 2)

O plano Nº 78, já analisado, mostra Benjamin Abrahão saindo da mata com Corisco e
Dada. Benjamin aponta para a câmera e depois anota algo num caderninho.

Plano Nº 85
121

O plano Nº 85, já comentado, Benjamin parece estar saindo ou chegando a um


acampamento.

Plano Nº 88 (frame 1) Plano Nº 88 (frame 2) Plano Nº 88 (frame 3)

Plano conjunto, Nº 88. Maria Bonita e outros cangaceiros estão sob uma árvore. Ela
folheia o que parece ser um caderno. Benjamin Abrahão entra no quadro pela esquerda,
despede-se dos cangaceiros e sai.
Como se pode constatar, o cineasta desempenhou vários papéis no filme – cineasta,
câmera, jornalista, etnólogo, ator etc. Estas imagens desempenham várias funções no filme.
Aquela já comentada, a de ser uma testemunha direta, pois como se pode constatar pelas
imagens, ele viveu um tempo com os cangaceiros. Nesta função está o plano da chegada dele
ao grupo, mostrada pelas imagens em que bebe fartamente água. Pela sede que parece ter,
sugere-se que a empreitada de chegar até os cangaceiros foi árdua. Claro que estas imagens
não são a da chegada do cineasta ao bando. Pouco importa, pois o que ali se atesta é que, o
fato de o cineasta estar alí junto com o bando, implicou num grande esforço. Abrahão saindo
do matagal é outra imagem que remete ao trabalho que envolveu tal empreitada – perder-se no
mato, passar sede etc. Mas também remete aos riscos da aventura.
Por outro lado, aparecer no filme tem dois desdobramentos. Primeiro, que se trata de
uma encenação, pois a sede e o extravio do cineasta só seriam registrados por outro câmera-
man, que provavelmente é um cangaceiro. A maior parte dos planos, mesmo quando ele
aparece, é feita com câmera na mão. Segundo, atesta-se que Abrahão já tinha sido assimilado
pelo bando, pois já teria conseguido treinar um ajudante de câmera. Isto significa que não se
trata de uma mera reportagem rápida, mas de uma convivência maior, tal como a que o
etnólogo tem em sua pesquisa de campo..
As imagens do cineastas anotando num caderninho, enquanto fala com Lampião e com
Corisco, também entram na retórica da visualidade, que busca transformar as imagens em
uma fonte de autoridade e que valida o que está sendo mostrado. Significa que Abrahão não
confia apenas nas imagens, pois mostra imagens (o que é um paradoxo) em que ele registra as
122

ideias e as informações numa caderneta. Sabemos que processos reflexivos no Ocidente e


mesmo no Oriente Médio, em geral, são atribuidos a textos e não a imagens. Além disso, a
montagem, com todas as ressalvas que mencionamos, faz com que este momento seja
antecedido pela imagem de Lampião, em primeiríssimo plano, falando alguma coisa para o
espectador. De modo que, pode se atribuir à obra do cineasta uma certa transcrição, se não
literal, pelo menos fidedigna, da mensagem que o cangaceiro mor está transmitindo ao
público. É o mesmo caso dos planos em que aparece com Corisco. A própria imagem da
presença de Lampião ao lado de Abrahão já cumpria essa função. Seria apenas uma ênfase?
Não, se considerarmos que há entre os planos uma diferença fundamental. Quando Lampião
fala, enquanto o cineasta anota, a conversa pode ser muito variada, informações gerais sobre o
cangaço, sobre a vida dele etc. Agora, quando Lampião fala olhando para a câmera, num close
aproximado demais, não há dúvida de que se trata de uma mensagem que se dirige
diretamente ao espectador. Aliás, a aproximação em demasia que desfoca a imagem era
geralmente considerada uma falha de filmagem na época. Hoje em dia, depois que o cinema
experimental se tornou mais visível (principalmente pela popularização de certas tomadas,
como a falta de foco, nos clips e nos filmes da internet), somos capazes de perceber como
esses “erros” tornam a imagem ainda mais pregnante.
Abrahão comendo e bebendo com os cangaceiros é outro momento em que a sua figura
se torna destacada no filme. O fato de ele estar compartilhando destes dois momentos com os
cangaceiros não se reduz apenas ao registro de uma atividade cotidiana do bando, pois ela
remete à deferência com que o cineasta foi tratado e como ele quis mostrar este tratamento.
Lampião lhe dá o prato de comida, mostrando que se trata de um convidado ilustre e Maria
Bonita em pessoa, lhe serve uma bebida alcoólica. A imagem do cineasta no filme não é
apenas uma metalinguagem, no sentido que os estudos modernos de cinema lhe atribuem. O
documentarista que aparece em seu filme não é apenas aquele que deixa de ser o Deus que
cria uma obra. Tampouco é quele que não quer ficar exterior a ela. Sabemos que a figura do
pintor era comum na pintura do Renascimento (veja-se a Escola de Atena, de Rafael Sancio) e
sabemos que o papel desempenhado por ele dependia de como se pintava, onde e com quem
aparecia. De modo que o pintor pintado é antes de mais nada um personagem, cuja função não
é apenas de uma exposição da imagem do criador de imagem. Assim, Abrahão é
fundamentalmente um personagem e devemos pensar seus desdobramentos a partir dessa
constatação. Não que os processos de auto-reflexividade não estejam lá, mas a figura do
cineasta dentro do filme não garante que sua exposição seja um mero expor-se juntamente
com as outras pessoas que ele está documentando. É antes de mais nada uma imagem em
123

exposição que desempenha várias funções com toda a carga retórica que ela possa carregar
(AGUILERA, 2015).
Por outro lado, tratando-se de um sirio-libanês e, portanto, podemos supor de
ascendência árabe (mesmo que se trate talvez de um maronita, já que foi secretário do Padre
Cícero), esta acolhida tem dois desdobramentos explícitos do pouco que conheço da cultura
árabe. Primeiro, Ali Babá e os quarenta ladrões é uma história popular fortíssima que faz parte
do imaginário tanto islâmico como ocidental. Sabemos da ferocidade e bestialidade dos
ladrões da caverna, assim como a dos cangaceiros. Sabemos também como a cultura árabe
trata os ladrões. Então, como um árabe (mesmo maronita) pode ter simpatia pelos
cangaceiros, como o filme claramente demonstra? Obviamente que o cineasta é um
personagem excepcional, assim como o próprio Lampião, tanto no sentido literário como
midiático. Porém, sem uma visão favorável a Lampião de uma boa parte da população de
Juazeiro, provavelmente Abrahão não teria empreendido tal aventura. Dizia-se, no sertão, que
“o cangaceiro não rouba, se apropria pelas armas”. Por outro lado, os símbolos usados pelos
cangaceiros, a estrela de oito, de seis e de quatro pontas, a meia lua etc., todos são símbolos
sufistas e, com certeza, bastante conhecidos pelo cineasta. Pode-se pensar a questão da
estética também como uma apropriação do que é “bom e bonito”. Algumas imagens e signos
que aparecem nas vestimentas – chapéus, cintas que prendiam os objetos etc. – nos apetrechos
do dia a dia – cartucheiras, bornais, e punhais – remetem à arte mudéjar e ao gótico manuelino
português, mas eles são desapropriados de seus significados simbólicos, reconstruídos e
resignificados. Desta ‘pilhagem’ de objetos e signos foi surgindo, ao longo dos quase 100
anos, notadamente nos anos 1930, uma estética intensa como “expressão do irredentismo
brasileiro”, segundo Frederico Pernambucano de Mello. Aos poucos, os adereços e
excedentes na decoração dos objetos de uso foram adquirindo valor de status, hierarquia e
orgulho para quem os utilizava. Os chefes mais graduados eram os mais enfeitados e muitos
cabras novos reclamavam da falta dos adereços. O cangaceiro não se camuflava, fazia questão
de se sobressair ao ambiente. Nômade, era também obrigado a carregar consigo sua arte e seu
modo de vida. Tinha orgulho daquilo que fazia e sua imagem ostensiva passou a ser aceita
pelos sertanejos apesar de suas ações violentas. Suas façanhas passaram a ser reproduzidas em
jornais da época e ao mesmo tempo romanceadas nos cordéis populares, gravuras etc. De
modo que a fama de bandido violento era compensada por esta outra imagem, que não era a
oficial, mas que fazia parte do imaginário popular da região. E, finalmente, a maneira gentil
como foi tratado, reverberou na hospitalidade árabe proverbial do cineasta. Uma maneira de
retribuir era tornar ainda mais visível, usando um meio poderoso como era o cinema na época,
124

esta imagem do bandido gentil, dandy e educado. O encantamento de Abrahão é bastante


manifesto nesses fragmentos de filmes que sobraram.
Outra função do cineasta é a de apontar para a câmera. A explicitação do dispositivo
cinema pouco tem a ver com este gesto, de meu ponto de vista. O gesto de apontar para o
público tem uma longa história. O personagem que se vira, olha e aponta para o espectador,
pelo que conheço, aparece desde a época do Renascimento. No livro Da Pintura (1999), Leon
Battista Alberti recomenda este gesto como um atributo eminentemente retórico, cujo
significado não seria a explicitação da encenação. Ao contrário, trata-se de um convite para o
espectador participar (empaticamente) da cena pintada.

Escola Atenas – Rafael Sancio (pintada entre 1509 e 1511)

Um exemplo entre outros é a Escola de Atenas, de Rafael Sancio, na qual a


gestualidade que aponta para alguma coisa e o olhar voltado para o espectador são a tônica da
cena, tanto no sentido informativo como retórico do termo.

Escola Atenas – Pintura de Rafael Sancio (detalhe)


125

Aqui, os dois personagens principais do quadro fazem gestos significativos: Aristóteles


aponta para a terra e Platão para o céu, resumindo em seus gestos as suas filosofias.

Escola Atenas – Pintura de Rafael Sancio de (detalhe)

Escola Atenas – Pintura de Rafael Sancio de (detalhes)

É o caso da Hipatia ao lado de Pitágoras, assim como do próprio pintor ao lado de


Ptolomeu, e ainda de personagens secundários que rodeiam Epicuro, entre outros.
Este tipo de imagem alcançou seu auge nas figuras de convite, muito usadas no século
XVII e XVIII, principalmente pela arte azulejar portuguesa, que foi aquela que chegou até o
nordeste do Brasil.
126

Exposição O brilho das Cidades, a rota dos azulejos.


http://comolhosdeler.blogspot.com.br/2014_01_01_archive.html

Obviamente que, na maior parte das vezes, os cangaceiros sabiam que estavam sendo
filmados, assim, o gesto do cineasta de chamar a atenção para a câmera, de certa maneira é
mais enfático e decorativo do que diretivo, por assim dizer. Portanto, trata-se de um elo que se
estende entre os personagens e o público. Seria apenas uma mediação caso este gesto não se
tivesse tornado uma constante quando a figura do cineasta é filmada. Esta insistência afirma,
em certo sentido, o lugar do cineasta. Que lugar é esse? Aquele que pelo menos lhe dá o
comando de indicar aos personagens para onde devem olhar e, consequentemente, o que o
espectador deve ver. Justamente, este gesto que fica entre a mediação e o comando é o que
caracteriza as imagens do cineasta no filme. Ele cria as imagens, mas estas, como toda
criatura, são idependentes dele, assim como o espectador ao qual ele se dirige. Dai que o autor
ou criador das imagens não pode se substrair a um duplo diálogo: com as imagens criadas e
com aqueles para os quais as imagens foram criadas. Uma das questões que se coloca nesse
diálogo mudo que o gesto dele explicita é: qual o propósito, ou melhor, o interesse de
produzir essas imagens? A resposta óbvia é a do Deus bíblico do ocidente, “para a sua própria
glória”. Porém, o desejo de glória não se efetiva sem um mínimo de validação da obra. Daí,
que sua própria imagem apareça como um elemento de validação. O que se busca é qualificar
estas imagens: ele esteve lá, conviveu com o grupo. É longa a disputa pelas imagens
verdadeiras, desde as imagens de culto, passando pela arte e chegando às imagens midiáticas.
Mesmo que a relação ontológica entre cinema e realidade tenha se tornado problemática, de
alguma maneira se manteve o processo de julgamento em cima das imagens, pois no mínimo
temos que considera-las pertinentes ou interessantes. Abrahão sabe que as imagens de
127

Lampião no cinema já tinham um valor a mais do que as fotografias dos cangaceiros. Pelos
fragmentos que sobraram percebe-se que ele tinha consciência da guerra pelas imagens de
Lampião e de seu grupo, principalmente porque seu filme tentava criar algo que destoasse
daquela visão oficial que o cinema vinha construíndo dos cangaceiros – como fascínoras
aterrotizantes (Entrevista com Frederico Pernambucano de Mello, 2012). Daí a sua figura
servir para dizer, eu estive lá, convivi com eles e, principalmente, tenho discernimento para
distinguir o bem do mal, fui corajoso e enfrentei o desconhecido – a caatinga e os próprios
cangaceiros – para descobrir isto que agora lhes mostro.
Outra função é a do cineasta viajante. Aqui é todo um imaginário que é mobilizado. Há
vários momentos em que o deslocamento passa a ser uma referência para as imagens do
cineasta. Aquelas em que ele bebe largamente, informando de sua longa caminhada; quando
ele aparece na mata como se estivesse perdido, sugerindo os percalços vividos; quando ele se
despede de um dos cangaceiros e sai do quadro acompanhando outro, indicando que está se
deslocando a um outro acampamento; quando ele mostra o jornal a Lampião, se posicionando
como aquele que vem de fora trazendo novidades; e, finalmente, quando se despede do grupo
onde estão Maria Bonita, outras cangaceiras e cangaceiros, que parece ser a despedida, de
fato, entre o cineasta e o bando. A categoria do viajante é uma autoridade narrativa desde a
antiguidade. Não fosse assim, a Odisséia não teria ainda a autoridade que tem como livro
canônico. Acho que Abrahão sabe do poder de mostrar os cangaceiros no dia-a-dia e, que tem
a ver com a vida nômade que levam, seja por opção ou para escapar das perseguições. Então,
o deslocamento se torna um processo figurativo que também atesta uma familiaridade que vai
além do mero encontro e entrevista com os cangaceiros. Assim, o telhado destruido e apenas
sugerido de uma das primeiras imagens adquire sentido como uma marca em que a
“civilidade” não passa pelo conforto do sedentarismo urbano. As narrativas de viagem são das
mais instigantes porque é no deslocamenteo que o narrador consegue enxergar que aquilo que
vê – personagens e paisagens – é um outro que não pode ser reduzido simplesmente ao
mesmo, como ele faz quando trata de um assunto mais próximo e familiar. O processo anti-
narcícico que a viagem provoca, no entanto, está no âmago de toda sociabilidade. A
empreitada de Abrahão não é fácil, pois trata-se de criar imagens do Brasil que foram
relegadas como a de um outro a ser combatido e com as quais o público brasileiro possa agora
se identificar. É claro que ele não é o único a empreender esta tarefa, a música, a gravura e
outras artes já vinham fazendo isto. Mas, na época, esta era uma empreitada local, da região
do nordeste, e com o cinema ele atingiria ainda mais o público urbano litorâneo e do sul.
128

Esta disputa entre sertão e litoral é colocada de maneira bastante instigante por
Frederico Pernambucano, em Estrelas de Couro: a estética do cangaço, ao tratar do
irredentismo do sertão – cangaço e canudos. O pesquisador chama a atenção para as
diferenças culturais entre o sertão e o litoral:
Irredentismo –cumpre que se complemente como preâmbulo ao seu
entendimento– antes de se empinar em rebeldia, nasce apenas repúdio. Bem-
comportado repúdio à ideia de ser redimido de suposta selvageria mediante a adoção
de valores estranhos aos seus. Mais que estranhos, estrangeiros. Europeus.
A cultura sertaneja abonava o cangaço, malgrado o caráter criminal declarado pelo
oficialismo – voz litorânea tomada como intrusa naquele meio – com as populações
indo ao extremo de torcer pela vitória dos grupos com que simpatizavam, como se
dá hoje nos torneios de futebol, guardadas as proporções. (MELLO, 2010, p. 29).

Todos estes processos retóricos de validação (e a retórica aqui não está no sentido
negativo com que geralmente se a julgou, a meu ver, de uma maneira um pouco cínica, pois a
retórica é, para mim, um instrumento que faz parte intrínseca do nosso relacionamento social.
Nesse sentido, a imagem do cineasta no filme, atesta antes de mais nada uma
proximidade dele com o bando. De modo que, a aventura comercial do “turco” esperto e
aventureiro, que muitas vezes é destacada pelos críticos (e mesmo pelo filme Baile
Perfumado), dilui-se nesse transito empático que se percebe na relação entre ele e os
cangaceiros. É esta relação de afinidade profunda entre quem filma e é filmado que, a meu
ver, torna as imagens incômodas desde a época em que o filme foi exibido até sua
redescoberta na década de 1950 e se tornou referência para muitos dos filmes brasileiros. O
desconforto, já é percebido na própria montagem daqueles que recuperaram as imagens,
Alcebiades Ghiu e Alexandre Wulfes, que tentaram fazer uma versão sensacionalista,
assumindo todos os preconceitos oficiais (bandidos sanguinários e cruéis), mas que não
conseguiram totalmente, porque se depararam com a imagem do convívio amistoso do
cineasta com o bando. Assim, a figura de Abrahão e um corpo estranho ao grupo de
cangaceiros, atesta homens e mulheres foras-da-lei podem se relacionar de maneira afetuosa
e civilizada. O que a imagem do cineasta, no filme, escancara é que, os clichês oficiais do
cangaço não se sustentam. A versão de Albuquerque, muito menos tendenciosa do que a da
Cinemateca, perde-se um pouco porque não reconhece a importância da figura do cineastra
nos fragmentos que sobraram do filme –a montagem mostra que a imagem de Abrahão se
perde numa descrição temática e sociológica.
129

3.2.6 AS IMAGENS DE LAMPIÃO

Nos fragmentos que sobraram do filme de Abrahão, Lampião aparece em mais da


metade dos planos dedicados aos cangaceiros, contando com algumas repetições. Nestes
enquadramentos, se constrói várias imagens de Lampião: de um homem do bando e do povo,
de um organizador ou líder, de um guerreiro, de um homem de fé e, também, de marketing,
além de mostrar que se trata de uma pessoa gentil e educada.

Plano Nº 16

No plano Nº 16, no meio de uma sequência, Lampião aparece rapidamente ao fundo,


no canto esquerdo, enquanto cumprimenta o carregador de água. Quando este sai do quadro, o
chefe ele aparece olhando para a câmera, por pouquissimos segundos, meio curvado e com
um olhar gentil. Discrição e gentileza marcam esta primeira imagem, na montagem de
Albuquerque do chefe cangaceiro. Isto já foi analisado, mas vale a pena repetir para enfatizar
a imagem de pessoa gentil e educada que as imagens de Abrahão transmitem de Lampião.

Plano Nº 17 (frame 1) Plano Nº 17 (frame 2)

No plano Nº 17, na versão, vemos o chefe do bando realizando tarefas do dia-a-dia, ele
recebe a cabaça com água das mãos de um cangaceiro. Embora não vejamos seus rosto,
podemos reconhece-lo pelo chapéu com as estrelas de quatro ponta.
130

Plano Nº 22 Plano Nº 29

Em alguns planos ele aparece integrado ao bando, as vezes ao fundo, de maneira


discreta, contribuindo para a imagem que de um homem de grupo. Por exemplo, nos planos
Nº 22 e 29, está em pé, num cantinho, seja no fundo ou no primeiro plano.

Plano Nº 58 (frame 1) Plano Nº 58 (frame 2)

No plano Nº 58, ele aparece junto a outros camaradas, dividindo o enquadramento com
eles de maneira equilibrada. Embora em primeiro plano, ele está na lateral, quase na função
de moldura na composição do quadro. Em fotografia, esta função serve para dar profundidade
de campo e destacar a ação que está no fundo, como é o caso do plano Nº 22, na qual
Lampião parece acompanhar a ação como se fosse um guarda. No plano Nº 58, a sua figura
ajuda a linha em diagonal formada pelos corpos dos cangaceiros, de modo que, apesar de estar
na frente, ele é um elemento da visão compacta do grupo.
131

Plano Nº 81

No plano Nº 81, a tarefa simples e humana de cuidar de um animal, lavar o cachorro, o


identifica com as pessoas comuns do sertão. A figura do cachorro traz reminiscências
importantes para a vida do sertanejo. A música de Luiz Gonzaga, A morte do vaqueiro, tem
em um de seus versos a frase: “só lembrado do cachorro que ainda chora a sua dor. O animal
para o sertanejo, além de companheiro, é um trabalhador a mais, seja para ajudar na lida com
o gado, na caça, na guarda do acampamento ou da casa. Um dos momentos mais dramáticos
no filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos é quando a família se vê obrigada a
sacrificar Baleia, sua cachorra de estimação. Assim, este plano não se reduz apenas a registrar
uma ação do cotidiano, pois trata-se de uma imagem que certamente despertará alguma
empatia no espectador, como tentei mostrar ao me referir à importância do cachorro na vida
do sertanejo.
Lampião é visto também, como multi-artista: poeta, músico, estilista etc. Estes aspectos
eram bastante conhecidos pela população do nordeste, que se espalharam em inúmeras
narrativas, mas o filme e as fotografias de Abrahão colocaram, em imagem, aquilo que corria
de boca em boca assim, elas ajudaram a fixar de vez estes aspectos inusitados do cangaceiro
no imaginário do povo.

Lampião mostra os bordados florais da chincha (alça do bornal)


Foto: Benjamin Abrahão, 1936
132

Plano Nº 64 Plano Nº 65

No plano americano, Nº 64, Lampião aparece lendo, sentado sob uma árvore. Ao
fundo um cangaceiro, sentado, costurando. No plano conjunto, Nº 65, Lampião está sentado,
sob uma árvore, escrevendo , enquanto Maria Bonia a seu lado segura um tinteiro. O fato de
Lampião aparecer lendo e escrevendo, no Brasil da década de 30, era algo significativo.
Segundo o IBGE, o índice de analfabetismo no pais em 1940, portanto, 2 anos depois de sua
morte, era de 56%. Sabemos que no nordeste essa taxa era maior, chegando a algo entre 75%-
80% da população. Pode-se imaginar que alguém que dominasse a língua escrita suscitaria
admiração das pessoas. Para além disso, o que é excepcional no plano Nº 64 é a sobreposição
de planos: à figura de Lampião faz sombra o cangaceiro costurando, pois, quem analisa com
um certo acuro os enquadramentos, não deixa de se surpreender com esta estrutura em
camadas das imagem deste filme de Abrahão. No plano Nº 22, vemos também , uma
composição semelhante, só que no lugar do costureiro está um sanfoneiro. Esta estrutura em
camadas do filme, pode ser relacionada com a própria personagem do cangaceiro. Fora da lei,
costureiro, poeta, sanfoneiro, músico etc.
Além disso, a própria estética do cangaço é, também, formada por camadas.

Ilustração da vestimenta do cangaceiro (MELLO, 2010, pgs. 158-159)


133

Como se pode ver, primeiro vem a túnica, a seguir as cobertas dobradas, dispostas em
X, continuando com os bornais também em X e, finalmente a cartucheira de ombro. Na frente
vão: punhal, pistola, facão e cantil. Nas costas vão: caneco, carteira, cabaça e canudo. E para
segurar todo o conjunto, vão as peias (faixas com bordados coloridos). De modo que,
devemos observar bem para poder discernir esta junção entre estética colorida e
funcionalidade.

Recorte do Diário de Pernambuco, 12 de fevereiro de 1937.

No jornal Diário de Pernambuco, na edição de 12 de fevereiro de 1937, estão


reproduzidos alguns frames do filme, anunciado como um feito do Sr. Benjamin Abrahão da
AbaFilm.
134

Cartão Postal feito por Benjamin Abrahão, onde


Lampião aparece costurando em uma máquina
de mão.
Foto: Benjamin Abrahão, 1936.

Entre as imagens reproduzidas há uma em que Lampião está costurando em uma


máquina de mão. Esta cena, que não está no filme (mas o jornal a reproduz como sendo um
frame), mostra que Lampião apreciava e queria que sua figura como artista do couro e do
bordado fizesse parte de sua imagem. Parece que o Lampião bordador e costureiro era
bastante refinado, visto que fazia esse trabalho em couro desde os 14 anos de idade (SILVA,
Entrevista, 2012). O autor considera, ainda, que Lampião foi o grande responsável pela
disseminação da estética do cangaço quando dos encontros com os subgrupos, principalmente,
entre os anos de 1935 e 1936. Diz durante a entrevista (SILVA, Entrevista, 2012),
Ele era, portanto, uma pessoa, a despeito da brutalidade, uma pessoa com um
sensibilidade estética indiscutível. Então, em tudo, Lampião tinha um requinte e, ao
morrer, isso tudo se confirma. Quando se tira do pescoço dele um lenço de tafetá
francês, da melhor qualidade, bordado em ponto cheio C, artisticamente enlaçado
com no L, Capitão Lampião. E mais, o botão de punho dele, C.L. Capitão
Lampião, de ouro puro. E outros requintes assim, que ele se permitiu e, que de certo
modo colidem com a ideia de puro bandido. Portanto, ai eu acho que está a magia do
cangaço. Violência, sim; perversidade, sim, mas convivendo com uma sensibilidade
estética digna de admiração. Isso eu não encontro em comparação com bandidos do
resto do mundo. (SILVA, Entrevista, 2012)

Como já disse, existe uma dificuldade na compreensão e aceitação dessa pluralidade


da personalidade e da vida de Lampião e do cangaço como um todo. Recentemente, em 2016,
ao fazer uma matéria sobre o livro de Pernambucano de Mello, que trouxe à tona esta
preocupação estética dos cangaceiros, a revista Isto É publica matéria com o título Frescuras
do cangaço. Repete-se a narrativa de que cangaceiro é bandido, sanguinário e facínora, o resto
é frescura.
135

Recorte, revista Isto É, 21/01/2016.

Plano Nº 79 (frame 1) Plano Nº 79 (frame 2)

Plano Nº 80

Plano geral do bando, Nº 79, com Lampião e o bando diante de um cartaz de propaganda
de cafiaspirina. A luz penetra entre as folhas das árvores criando alguns brilhos espectrais e
um efeito impressionista. Lampião faz menção de distribuir o comprimido para cada um dos
presentes, pelo menos um dos cangaceiros coloca o comprimido na boca. No plano seguinte,
Nº 80, o cangaceiro lê o cartaz de cafiaspirina, apontando cada frase. A câmera “passeia” de
um lado a outro como se estivesse acompanhando a leitura feita por Lampião. Num
movimento final, faz uma panorâmica para a direita, mostrando o resto do bando. Este
merchandising da Bayer, feito pelos cangaceiros está quase no final do filme. A negociação
entre o cineasta e os cangaceiros fica evidente. Trata-se da manifestação do entendimento e
136

confiança que teriam alcançado a relação entre o realizador e os cangaceiros. Por que motivo
Lampião e seu bando fariam propaganda de um laboratório alemão com o qual não tinham a
menor relação? Uma resposta plausível é que Lampião se presta a ser garoto propaganda em
deferência ao cineasta ou talvez em troca de algum benefício pecuniário.
A película usado por Benjamin Abrahão era o Gevaert Belgium, empresa que foi
comprada pela Agfa, uma grande fabricante de material fotográfico belga-alemã. Em 1912, a
Bayer constrói, em Leverkussen, na Alemanha, uma fábrica de químicos para filmes e papéis
fotográficos. A partir de 1925, a Bayer passa a ser associada à Agfa19. Daí pensar que este
tipo de merchandising, que aparece no filme, tenha sido uma exigência de uma possível
patrocinadora da empreitada de Abrahão. Pernambucano de Mello chega a afirmar que, “no
Brasil, a massificação da imagem do cangaço estaria a cargo da Bayer, conforme previsto.”
(MELLO, 2012, p. 213)

Plano Nº 66 (frame 1) Plano Nº 66 (frame 2)

No plano Nº 66, Lampião aparece sentado, num plano geral aproximado, contando e
entregando dinheiro para um homem que está em pé, de costas para a câmera, ao lado dos
cangaceiros. O homem pega o dinheiro e se afasta do bando, para a mata que está com uma
luz superexposta. Esta imagem poderia ser lida como a do Lampião bandido generoso,
existem muitas histórias, que acabaram virando lendas, sobre Lampião ter dado dinheiro para
pessoas necessitadas, durante suas andanças. Mas, o fato não vermos o personagem que
recebe o dinheiro, sugere que este personagem não quer se mostrar (o motivo não o sabemos),
diferente da maior parte dos personagens cujo objetivo diante da câmera é aparecer. Numa
análise do enquadramento mais acurada, pode-se perceber, ao fundo, um cangaceiro
empertigado, ereto, apesar de todo o peso de seus apetrechos, posando ou olhando para a

19
https://pt.wikipedia.org/wiki/AGFA
137

câmera. Da mesma forma, o cangaceiro que está sentado no meio do quadro parece
completamente alheio à ação, muito mais interessado em olhar para a câmera. Esta
composição em que há, por assim dizer, dois elementos estranhos, um ao outro, se repete
várias vezes no filme. Entre a ação e a pose, ou melhor, entre a representação e o ícone, o
enquadramento se torna quase explosivo, porque o que está no centro é aquilo que destoa da
ação e torna o espaço do plano heterogêneo.

Plano Nº 32 (frame 1) Plano Nº 32 (frame 2)

Esta sequência já foi analisada e pode ser pensada dentro do espectro de imagens do
bandido bom, que se contrapõem àquela consagrada do sanguinário, como já comentei. O
interessante é que a cena é muito parecida com a anterior, na qual Lampião dá o dinheiro. Ele
está sentado na mesma caixa, recebe o alimento e o reparte.

Plano Nº 33

Este plano também já foi analisado. O ato de comer junto com os companheiros e o
ilustre visitante, reforça a ideia de um cangaço pouco hierarquizado, quase horizontal.
138

Plano Nº 26 Plano Nº 25

Uma outra imagem de Lampião, que não pode faltar a esta análise, e que está presente
no filme, é a do homem religioso, crente e de fé. Nos planos, ele aparece com o bando, todos
ajoelhados rezando em direção ao Sagrado Coração de Jesus. A cena mostra a humildade dos
cangaceiros, em total conformidade com os valores mais estimados do sertanejo. Embora os
cangaceiros se apropriem de signos, vindos de culturas distantes, como as estrelas de seis e
oito pontas, como os talismãs e amuletos de proteção, eles portavam também crucifixos e
medalhas de santos. As orações, muitas vezes, eram portadas como patuás, junto ao corpo.
Estes amuletos eram tidos como objetos capazes de apartar o cangaceiro da morte, ao fechar-
lhes o corpo.

Plano Nº 46
139

Plano Nº 51 (frame 1) Plano Nº 51 (frame 2)

Nos planos Nº 46 e 51, Lampião aparece orientando os cangaceiros, indicando-lhes


direções a seguir. A imagem de Lampião com uma luneta em uma das mãos e empunhando o
punhal com a outra ,é dessas que vai além daquilo que se mostra. As propriedades da luneta
podem ser interpretadas como qualidades inerentes a quem a utiliza e não somente como
objeto ótico útil. Lampião está em primeiro plano, no centro da ação e com gestual muito
diferente daquele onde ele aparece integrado ao grupo de cangaceiros.
Uma comparação como o quadro de Émile Jean-Horace Vernet (1789-1863), a batalha
de Wagram, de 1836, mostra como esta imagem é um clichê iconográfico para representar o
bom líder estrategista que comanda bem uma ação guerreira. Entretanto, esta imagem poderia
não ser um clichê para o cangaceiro, se supomos que a circulação das imagens não era tão
intensa no começo do século XX. Nesse caso, ela seria mais uma espécie de dinamograma, no
sentido warburgiano do termo: uma imagem que reaparece em tempos e geografias diferentes
e que apesar da semelhança não tem uma relação de cópia.

Batalha de Wagram, Émile Jean-Horace Vernet Plano Nº 46


140

A luneta do tempo, de Alceu Valença, 2016.

Essa ideia de Lampião, como alguém que enxerga longe, homem de visão, apesar de
cego de um olho, nos traz a ideia do estrategista. A luneta se torna metáfora de um enxergar
longe no tempo e não no espaço. De modo que esta é uma das imagens de Lampião que vai se
tornar paradigmática para o cinema brasileiro, como se pode ver no filme A luneta do tempo,
2016, de Alceu Valença.

Plano Nº 52

No plano Nº 52, o gesto de Lampião é de um movimento mais ríspido, não de uma


orientação e tomada de direção. Parece uma reprimenda e uma ordem, ao cangaceiro que se
reporta a ele. O que se constói é a figura do homem que lidera. Entretando, o enquadramento
se mostra feito em camadas, pois, ao fundo Verônica, sorrindo, imita o gesto de Lampião.
Assim, a liderança dele, embora incontestável, é quase horizontal.
No álbum Cantigas de Lampião, de Volta Seca, esta imagem da liderança horizontal de
Lampião fica evidente. Em 1958, o ex-cangaceiro gravou este LP, depois de ter ficado 20
anos preso na Penitenciária da Bahia. Nos versos, questiona-se ironicamente a valentia do
chefe...
141

Capitão Virgulino, o terror do sertão:

E lá vem Sabino mais lampião


Chapéu de couro e o fuzil na mão
Lá vem Sabino mais Lampião
Chapéu quebrado e o fuzil na mão

Lampião diz que é valente


É mentira, é corredor
Correu da mata escura
Que a poeira levantou

Lá vem Sabino mais lampião


Chapéu de couro e o fuzil na mão
Lá vem Sabino mais Lampião
Chapéu quebrado e o fuzil na mão

Lampião tava dormindo,


acordou muito assustado
Deu tiro na graúna,
pensando que era soldado

Lá vem Sabino mais Lampião


Chapéu de couro e o fuzil na mão
Lá vem Sabino mais Lampião
Chapéu quebrado e o fuzil na mão

No disco, ouvimos a voz de um narrador que conta que muitas vezes improvisavam nas
rodas de conversa e cantorias nos acampamentos, este tipo de músicas ou versos, mas chega a
levantar dúvidas sobre a veracidade do relato. “Agora, ele (Volta Seca) recorda a cantiga em
que os cabras faziam a brincadeira perigosa, mas fariam mesmo? De mexer com o Capitão
Virgulino, o terror do sertão”.
O filme ainda trabalha esta imagem do chefe horizontal (que comanda, mas não manda
no sentido autoritário ou déspota do termo), quando mostra um Lampião também brincalhão.
Por exemplo, quando joga perfume sobre a câmera.
142

Plano Nº 70 Frame de Baile Perfumado, 1996

Em Baile perfumado, há uma encenação deste acontecimento, mas com um sentido


completamente diferente. O ator Luiz Carlos Vasconcelos aparece com uma postura corporal
arrogante, extremamente vaidosa, com o queixo levantado e o olhar altivo. Ao se comparar os
frames vemos que o Lampião de Abrahão mantém a atitude brincalhona de alguém que se
prepara para uma festa, esbanjando perfume descontraidamente. As reinterpretações muitas
vezes se perdem nos estereótipos pré-concebidos, ou pela repetição impensada da narrativa
oficial, ou ainda pelas diferenças culturais que fazem com que seja difícil aceitar o que e
como as imagens estão mostrando. Transformar esta cena em que vemos um Lampião
divertido em um egocêntrico mostra que, para o cinema brasileiro que se debruçou sobre o
tema, parece inconcebível que o cangaceiro possa ser multifacetado como qualquer pessoa.
Nessa limitação do personagem, que se percebe no filme de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, o
que se evidência é uma certa cegueira de ver e mostrar esse Lampião lúdico que aparece no
filme de Benjamin Abrahão. Essa redução já tinha sido criticada por Pernambucano de
Mello, que foi consultor de Baile Perfumado. Diz ele que Luiz Carlos fez um cangaceiro
posando de “cafajeste em tempo integral, seguindo a tradição de Milton Ribeiro em O
Cangaceiro, de Lima Barreto, 1953” (SILVA, Entrevista, 2012), o que destoaria dos relatos
de pessoas que conviveram com Lampião e o descrevem como alguém educado, de fala
mansa e que raramente se alterava.
143

Plano Nº 61 (frame 1) Plano Nº 61 (frame 2)

Neste plano, Nº 61, em que Lampião está ajoelhado com um fuzil nas mãos, posando
pronto para a ação guerreira. O plano começa cortando a parte de cima do corpo do
personagem, mostrando apenas da cintura para baixo. A câmera sobe lentamente até mostrar o
tronco e a cabeça, mas cortando quase todo o chapéu. Em contraluz, a figura é quase uma
silhueta, tendo ao fundo a mata iluminada. Suponho que Lampião esteja em baixo de uma
árvore, pois a luz que passa entre as folhas faz brilhar os metais dos enfeites de sua roupa e
das balas do fuzil. Esta forma de filmar pode ser considerada uma falha de exposição de luz.
Porém, como já tinha mencionado, o erro depende muito de que ponto de vista se encara a
imagem e com que propósito. Esta é uma imagem bem expressiva, cheia de mistério. Ao não
permitir que se veja o rosto de Lampião, deixa-se dúvidas sobre suas feições e expressões
faciais. Assim, a encenação dele ajoelhado em posição de tiro, à espreita, de frente para o
espectador, faz com que o intercambio fictício de olhares, no sentido de Belting, seja ainda
mais perturbador. A silhueta que nos espreita é uma imagem muito recorrente nos filmes de
terror. Na versão da Cinemateca, embora seja ainda uma silhueta, na imgem, de melhor
qualidade, é possível perceber que ele fala alguma coisa.
144

Plano Nº 60 (frame 1) Plano Nº 60 (frame 2)

Em plano conjunto, Nº 60, Lampião e Maria Bonita caminham em direção à câmera. A


luz lateral sugere que seja um final de tarde. Eles caminham até que apenas Lampião fique no
quadro, num plano médio. Ele desembainha o longo punhal em direção à câmera e fala
alguma coisa. Uma pequena panorâmica, para a direita, enquadra novamente Maria Bonita. A
câmera volta para a esquerda e foca mais uma vez Lampião que diz mais alguma coisa e
guarda o punhal. Na entrevista que fiz com Pernambucano de Mello, ele disse que se fez uma
leitura labital deste plano. Segundo ele, Lampião teria dito: “Este aqui é pra furar todo mundo,
muita gente”. Outros comentam que ele teria dito “Este aqui é pra furar até o chifrudo”.
Agora, na minha leitura labial da segunda fala, me parece que ele diz: “É pra furar gente
ruim”.
Talvez o aspecto mais controverso e difícil da figura de Lampião seja diferenciar o
guerreiro do bandido. Estamos em plena guerra das imagens. Na cena em que o cangaceiro
saca seu punhal e caminha em direção à câmera, ele mostra a possibilidade das duas imagens:
o sorriso do guerreiro tranquilo e o ato acompanhado da fala, do guerreiro terrível. O fato de
Maria Bonita dividir este plano ajuda a ameniza a ferocidade que a exposição da arma e a
frase indicam.
O punhal aqui aparece como arma terrível que era. Sua única função era perfurar o
adversário, penetrando na altura do pescoço, descendo verticalmente, perfurando vários
órgãos e fazendo a vítima sangrar até a morte. O sorriso discreto de Lampião não consegue
exatamente evitar a aflição do observador ao ver arma tão terrível apontada para si.
Sobre o desenvolvimento do emprego do punhal, descreve Pernambucano de Mello,
Porque aqui, pela ausência de gume e, assim, da possibilidade de se adamar no
emprego doméstico, se está falando da nobreza de arma destinada apenas às justas,
na defesa ou no ataque, em apoio à espada, no passado mais remoto, ou como peça
de luta, no cangaço, até ser quase morta esta função pelo advento da espingarda de
repetição, salvando-se para o destino de executar o inimigo, no rito letal nordestino
do sangramento, ou para o golpe de misericórdia sobre ferido, até sublimar-se
cumulativamente em símbolo de status. (MELLO, 2010, p. 125)
145

Ninguém no bando de Lampião, por exemplo, deveria ir além dos 80 cm do exemplar


portado pelo chefe.

Durvinha, no filme Os Últimos Cangaceiros de Wolney

Este plano, assim como o de Durvinha apontando uma arma tornaram-se uma referência
iconográfica, repetidos em vários filmes e citados em diferentes manifestações artísticas, por
exemplo, os desenhos postados acima (s/d, autor desconhecido), nos planos de Os últimos
cangaceiros, de Wolney Oliveira, de 201120.

20
Estes desenhos circulam na internet em blogs sobre o cangaço (inúmeros), sem citação de autoria e data em
que foram feitos.
146

Plano Nº 60

Esboço e poster de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

A citação mais famosa é a de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, de


1964. Afinal, trata-se de uma transposição da imagem de um “mascate”, perdida nos porões
do DIP, para um dos filmes mais considerados do que se chamou de Cinema Novo Brasileiro.
Esta cena se tornou icônica no filme de Glauber Rocha a ponto de aparecer no pôster do
filme. E, a meu ver, isto atesta a potência das imagens criadas por Abrahão.

Sabe-se que a figura de Corisco em Deus e o Diabo é bicéfala, representa tando Corisco
quanto Lampião. Em geral, não se menciona o fato de esta imagem ser uma citação do plano
147

de Abrahão. Além disso, as análises iconográficas são muito escassas. Assim, não se alude ao
fato de haver, por assim dizer, uma iconografia mais austera ou anti-ornamental no filme de
Glauber Rocha. Por exemplo, há uma depuração dos “enfeites” da figura de Corisco, se
considerarmos principalmente o chapéu.

Cabo do punhal de Lampião.

Entretando, se considerarmos o punhal, percebemos que o filme torna ainda mais


complexo o tratamento dos adornos. O fino trabalho de ornamentação do cabo do punhal, traz
à tona a sofisticação da “estética do cangaço”. A meu ver, a partir da imagem de Lampião no
filme de Abrahão, Glauber resgata na figura de Lampião/Corisco, em Deus e o Diabo, essa
imagem poderosa do passado, que ousou se opor à maneira como o status quo – seja temporal
ou atemporal – construiu uma imagem preconceituosa do despossuido. Como em toda
recriação do passado se visa o presente, recuperar a luta cinematográfica pela constituição
política de uma memória é sempre atual. Na guerra das imagens, a miserabilidade material,
impingida concretamente e mantida a ferro pelo sistema socioeconômico, não pode consumir
o simbólico. A grandeza do filme de Glauber é que nele se evitou isso, não importa se foi de
maneira intencional ou não. Nesse sentido, retirar objetos de ornamentação não é abrir mão da
potência ornamental. Ao contrário, para que o simbólico se apresente em toda sua
potencialidade, haveria que recriar a imagem do cangaceiro fora da figura desgastada pelo uso
que as fotografias e o cinema tinham construído. Porém, isso não significava abrir mão da
força dos “adornos”. Ao despoja-la, se comparada à fotografia de um Corisco “real” (não
devemos esquecer que a imagem do cangaceiro fora sendo construída com o passar do tempo
e que a ostentação de ornamentação é um momento de sua história), parece-me, que se quer
evitar o desgaste que esta imagem já tinha sofrido devido ao seu uso indiscriminado. A opção
148

do punhal invertido destaca a ornamentação do instrumento e cria uma cruz bem


ornamentada, tal como a igreja católica reinventou este signo para dar-lhe um efeito retórico
mais sedutor e que não foi abandonado pela reforma protestante.
Esta retórica da ornamentação, que foi muito bem compreendida pelo bando de
cangaceiros e que aparece no filme de Abrahão, é retomada por Glauber Rocha. O Corisco
do cartaz deixa bem claro que se optou por colocar uma das figuras mais potentes que
marcaram o imaginário do nordeste brasileiro: o diabo loiro, mas para que ela se manifeste em
todo seu vigor, não se podia esquecer a outra, a de Lampião, que não por acaso é lembrada na
citação ao filme de Abrahão. Como se pode ver, a força figurativa do cangaceiro no cinema e
principalmente, no filme do “mascate” árabe, torna-se de fato visível como uma constelação
de dinamogramas, para além da construção de sua narrativa textual.
149

4 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa inicial para esta dissertação estava centrada na questão da estética elaborada
pelos cangaceiros, durante o período de sua existência, e de como essa estética teria sido
representada no cinema. Durante este processo, o que se tornou importante, no meu entender,
foi a questão da imagem do cangaço e de alguns cangaceiros, em especial, a imagem de
Lampião. Baseado, principalmente na iconografia, ou imagens em movimento, captadas pelo
fotógrafo e cineasta, Benjamin Abrahão, fui destacando as várias imagens elaboradas através
do tempo. O cangaço é um assunto que ainda provoca discussões e contrapõe teorias em meio
aos pesquisadores, historiadores e historiadores da arte. Acredito que grande parte do
interesse é causado pela potencia das imagens dos cangaceiros, que ainda não foram
totalmente esgotadas, e talvez, nunca se esgote. A cada novo estudo lançado, surgem artigos
reforçando o lado bandido ou herói dos cangaceiros. Ainda recentemente, o escritor e
jornalista, Lira Neto (João de Lira Cavalcanti Neto) publicou um longo artigo, Brutal
Lampião: Despido do mito, cangaceiro estava mais para narcotraficante do que para Robin
Hood21, onde elenca uma série de “semelhanças” entre os cangaceiros e os traficantes das
comunidades do Rio de Janeiro. Como tentei mostrar durante a dissertação, todos
estereótipos, do herói ao bandido, são possíveis nas leituras extraídas da iconografia e,
também, das imagens textuais: histórias, lendas, contos, cordéis etc. , que já se publicou e
continua a ser publicado sobre este período da história e seus personagens. Espero que esse
trabalho possa contribuir para a compreensão, não só do cangaço em si, fenômeno que ainda
será muito debatido, mas, também, sobre a importância das imagens nas construções das
narrativas históricas ou míticas a respeito de seus personagens.

21
http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WThYnTPMxE4
150

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153

APÊNDICE A –

Decupagem de Lampião, o Rei do Cangaço (versão de Albuquerque)

Sequência 1 – Créditos Iniciais – composta de 7 planos.

Plano 1
Crédito de abertura :
“Iconografia do Cangaço
Ricardo Albuquerque (org.)”
O crédito de abertura aparece em branco sobre fundo preto com exceção da palavra cangaço que é
grafada em vermelho, num tipo de letra que emula um movimento ondulatório. Trata-se do título de um livro
organizado por Ricardo Albuquerque, 2011 e que foi acrescentado nesta montagem.
Plano 2
Intertítulo informando sobre o apoio de Adhemar Bezerra de Albuquerque à Benjamin Abrahão na
realização do filme nos anos de 1936 e 1937.
Plano 3
Intertítulo sobre o histórico do filme, o seu lançamento em 1937 e posterior apreensão pela ditadura de
Getúlio Vargas.
Plano 4
Intertítulo dando detalhes históricos sobre a recuperação de parte do filme em 1955 por Alexandre
Wulfes, e a reedição (10 minutos), com introdução de uma narração feita por Al Ghiu, e sua exibição nos
cinemas à época.
Plano 5
Intertítulo que fala da recuperação fotoquímica feita pela Cinemateca Brasileira, sobre a edição de Al
Ghiu, com patrocínio da Petrobras.
Plano 6
Intertítulo explica que esta é uma remontagem feita especialmente para o livro “Iconografia do Cangaço”,
de Ricardo Albuquerque, a partir do material restaurado pela Cinemateca Brasileira, na qual se acrescentou 4
minutos de imagens inéditas, como já se mencionou.
Plano 7

O título do filme:
LAMPIÃO
(O Rei do Cangaço)*

O título ressalta, a partir da escrita, o protagonista do filme, usando uma fonte em caixa alta e “enfeitada”,
destacando o nome de Lampião. O epíteto pelo qual se tornara conhecido até os dias de hoje – O Rei do
Cangaço é colocado entre parêntesis, com uma fonte “manuscrita”, Esta opção tipográfica parece tornar o
epiteto algo mais íntimo.
Sequência 2 - A paisagem – composta de 6 planos mostrando alguns elementos que compõe a vegetação
22
da caatinga .
Plano 1 - EXT.CAATINGA.DIA -
23
Um plano geral mostra um facheiro , centralizado, em contra-plongée. Estendendo as linhas verticais de
seus ramos para o alto, o facheiro é monumentalizado, o chão não aparece no enquadramento, criando-se a
sensação de que a árvore flutua no céu.
Plano 2 - EXT.CAATINGA.DIA -
Plano geral, em plongée mostrando um campo com xiquexique. O céu está fora do enquadramento,
apenas o chão está à mostra. O contraluz produz sombras transversais em direção à câmera.
Plano 3 - EXT.CAATINGA.DIA

22
Caatinga (do tupi: ka'a [mata] + tinga [branca] = mata branca). Este nome decorre da paisagem
esbranquiçada apresentada pela vegetação durante o período seco: a maioria das plantas perde as folhas e
os troncos tornam-se esbranquiçados e secos.
23
Facheiro, Facheiro Azul ou Mandacaru de Facho (Pilosocereus pachycladus). O facheiro atinge até 10 metros
de altura com ramificação verde-escuro e bastantes espinhos, ocorrendo nas caatingas dos estados do Piauí,
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia (Lima, 1996).
154

Primeiríssimo plano de ramos de xiquexique entrelaçados e sobrepostos em camadas que preenchem toda
a tela.
Plano 4 - EXT.CAATINGA.DIA -
O plano em contra-plongée de uma árvore seca revela seus galhos retorcidos contra o céu. No canto
inferior direito, um pedaço da beirada de um telhado desfocado. Apesar do telhado ser um objeto manufaturado,
as ondulações das telhas se somam ao retorcido dos galhos e faz com que ele pareça submetido às forças
plásticas da árvore. Esse dinamismo abrupto criado pelas curvas dos galhos, o efeito contrastado das partes
escuras da árvore contra o céu, remete a uma composição expressionista, na qual o contraste de claro/escuro está
presente. A linha retorcida que toma conta da tela é claramente expressionista.
Plano 5 - EXT.CAATINGA.DIA -
Plano em contra-plongée da mesma árvore, vista agora do interior da casa, por entre a estrutura de suporte
do telhado em ruinas. Das madeiras que serviriam para apoio das telhas (inexistentes), somente duas ripas
transversais, na metade superior da imagem, formam linhas retas. As outras madeiras são galhos não tratados de
árvore, que reproduzem as linhas retorcidas da árvore. Nesta interação entre a “natureza” e “cultura” – árvore e
casa, a primeira prevalece, pois aquilo que foi construído por mãos humanas parece estar sendo retomado pela
natureza.
Plano 6 - EXT.CAATINGA.DIA -
Plano em contra-plongée da mesma árvore. Os galhos, num emaranhado, preenchem todo plano e
extrapola para o extra-quadro. Essa textura de galhos retorcidos que preenchem o quadro trazem ao primeiro
plano os traços expressionistas. Esta forma de representar o sertão tem história. Pode-se encontrar nas gravuras
ou mesmo na pintura brasileira, por exemplo nas pinturas “Os retirantes”, “Criança morta” ou “Enterro na rede”,
de Portinari. Secas são: a vegetação e os homens que ali habitam.
Sequência 3 – Os Vaqueiros – Composta de 7 planos mostrando vaqueiros na pega do gado no mato.
Plano 7 - EXT.MATA.DIA -
Plano geral de 2 cavaleiros galopando cobertos pela vegetação da caatinga. Cavalgam na direção da
24
câmera, passam pelo lado esquerdo do quadro. Os cavaleiros, que correm no contraluz , formam manchas
escuras na paisagem esbranquiçada pelos efeitos do sol, acentuada pela superexposição do filme. A câmera
acompanha os cavaleiros e termina num plano geral mais fechado, a vegetação toma conta do quadro.
Plano 8 - EXT.MATA.DIA -
Este plano parece uma continuação do anterior, com a câmera em plano geral fechado na vegetação, onde
passam 4 cavaleiros mostrando a parte do tronco do cavalo e o cavaleiro sobre ele. Porém, ainda a mata
prevalece, pois está em primeiro plano, como se fosse uma cortina de folhas que envolve a ação dos
personagens.
Plano 9 – EXT.MATA.DIA -
O plano geral, é uma tomada um pouco mais aberta do que o plano anterior, dos cavaleiros passando
diante da câmera no meio da mata.

Plano 10 - EXT.CAMPO-MATA.DIA –
Em plano panorâmico (dir-esq), dois vaqueiros, perseguindo um(a) (boi/rês), penetram na vegetação. O
plano começa com a paisagem afastada, servindo de pano de fundo para a ação dos vaqueiros. No momento em
que os personagens penetram na mata, a paisagem envolve os atores e se torna novamente protagonista. Os
personagens são perseguidos pela câmera de Abrahão, ela acompanha o movimento do animal e dos vaqueiros,
até mostrar um terceiro vaqueiro, no final do plano.
Plano 11 - EXT.MATA.DIA –
Plano panorâmico (dir-esq) de 4 vaqueiros perseguindo 2 cabeças de gado em meio à vegetação. A luz é
vertical, projetando a sombra na parte de baixo dos personagens, formando uma pequena marca no chão. A
dinâmica da ação e o movimento de câmera fazem com que o fundo se torne borrado.
Plano 12 - EXT.MATA.DIA –
Neste plano, também panorâmico , vários vaqueiros com a ajuda de um cachorro, perseguem o gado. O
grupo preenche todo o quadro. Os personagens passam na frente da câmera tanto no primeiro plano quanto no
plano de fundo. A câmera acompanha os vaqueiros em primeiro plano, causando a fragmentação dos corpos de
animais e homens. O movimento desfoca e borra a ação.
Plano 13 - EXT.MATA.DIA –

24
O sol está “a pino”, formando sombras sob o cavaleiro curvado sobre o cavalo..
155

Esta panorâmica (dir-esq) se inicia com os vaqueiros perseguindo o gado. Eles estão mais próximos da
25
câmera. Um vaqueiro chega a pegar no rabo do animal . Nota-se em toda sequência, que Benjamin Abrahão vai
introduzindo os personagens aos poucos. Nos primeiros planos apenas cavaleiros correndo no mato, depois
introduz os animais sendo perseguidos, em seguida, o vaqueiro pegando o animal.
Além da questão da apresentação, quase didática do ofício do vaqueiro, no jogo cênico, ele vai se
aproximando de seu objeto aos poucos. Partindo de planos gerais chegando ao detalhe da ação.
Sequência 4 – Os Cangaceiros – Composta de 72 planos, mostrando vários aspectos da vida dos
cangaceiros:
Trabalho
Subsistência
Lazer
Devoção/Religiosidade
Batalha
Ornamnto
Plano 14 - EXT.CALDEIRÃO.DIA –
26
Com a câmera parada em plano geral, um cangaceiro aparece lavando roupa num caldeirão com seu
chapéu e equipamento no chão a seu lado. O caldeirão é cercado por cactos e uma vegetação bem cerrada.
Outros dois cangaceiros vindo do fundo, caminham em direção à câmera, carregando grandes potes. A câmera
vai descendo e fechando sobre um dos cangaceiros até que o plano se torne um plano americano, com o
cangaceiro olhando para a câmera e a paisagem do fundo desapareça. A luz é difusa, como num dia nublado. O
plano, que começa com faixas distintas de claro/escuro, formadas pela vegetação ao fundo e as grandes pedras
no primeiro plano, chega à imagem final com uma configuração diferente do que se viu até o momento. A
imagem gerada pelas grandes superfícies claras das rochas, com curvas mais longas e suaves cria espaços mais
amplos. Essa amplitude espacial dialoga paradoxalmente com a atividade mais tranquila exercida pelos
cangaceiros, quando comparada com a pega dos bois dos vaqueiros. Esta associação entre personagem e
paisagem parece desconstruir a visão violenta do cangaceiro.
Plano 15 - EXT.CALDEIRÃO.DIA –
O plano introduz uma associação de continuidade, faz o movimento inverso, começa fechado nos dois
cangaceiros que enchem os potes de água e caminham na direção oposta à da câmera, na direção da mata. Outros
três cangaceiros, dois armados de fuzis e um outro com o que parece ser um tronco de árvore nos ombros,
observam a cena.

Plano 16 - EXT. MATA.DIA –


27
Plano americano. Lampião com alguns membros de seu bando recebe o cangaceiro (?) com a água. Ele
cumprimenta o colega, que passa diante da câmera transversalmente. Existe uma relação de continuidade na ação
com o plano anterior, mas vê-se que não é o mesmo cangaceiro que chega. Não existe o aparato dos cangaceiros
que pegavam água na sequência anterior. O companheiro passa com a água e a câmera para por uns segundos
sobre Lampião e o resto do bando, que sorriem para a câmera.
É possível notar nesse instante a relação com um detalhe do xiquexique da sequência anterior com o
desenho formado pela sobreposição dos elementos da vestimenta dos cangaceiros.
Plano 17 - EXT.MATA.DIA –
Em close-up, Lampião recebe os outros cangaceiros trazendo água e os ajuda a colocar os potes no chão.
Eles se encontram na sombra de uma árvore. Uma cena típica de acampamento, com os cangaceiros exercendo
diferentes atividades. A luz que penetra através dos galhos e folhas da árvore ilumina parcialmente o rosto de um
dos cangaceiros, ao fundo duas mulheres trabalhando em algum preparo, uma delas maneja um facão.
Compondo a cena, uma calça estendida do lado direito e fumaça de uma fogueira. A câmera faz uma panorâmica
para a esquerda, revelando a chegada de um outro cangaceiro com o pote de água.
Plano 18 - EXT.CLAREIRA.DIA –
Em plano médio, aparece um cangaceiro ajoelhado enchendo algumas cabaças de água. Outro cangaceiro
aparece em pé ao fundo. A imagem mostra uma pequena clareira com um barranco ao fundo, o chão pedregoso
cria uma textura craquelada, de pedaços, que mistura terra e homem.
Plano 19 - EXT.MATA.DIA –

25
Esta é a maneira como os vaqueiros pegam o gado na caatinga. A vegetação fechada não permite a utilização
de laços.
26
Como são chamadas essas formações rochosas que acumulam água em meio à caatinga.
27
Ele parece estar vestido com roupa de paisano.
156

Em plano americano, câmera parada, Benjamin Abrahão aparece recebendo um cantil das mãos de um
cangaceiro e observado por um segundo, bebe do cantil de forma generosa, são 15 segundos bebendo água. A
paisagem atrás é de mata fechada, com um cacto no lado direito do quadro. A luz é difusa, como no plano
anterior, provavelmente pelo dia estar nublado.
Plano 20 - EXT.MATA.DIA –
Em plano americano, câmera na mão. Três cangaceiros carregam ramos de folhas para forrarem uma
tenda armada no mato. A câmera acompanha os cangaceiros para a direita até que esses colocam a forragem e se
viram, posando para a câmera. O cangaceiro em primeiro plano tem, praticamente, a cabeça cortada o que faz do
plano, um detalhe do tronco dos cangaceiros, mostrando as camadas das roupas, equipamentos e armas dos
personagens. A tenda montada atrás deles é de um tecido estampado semitransparente, fundindo-se com a
folhagem da mata. Os cangaceiros viram-se novamente para seus afazeres e o plano é interrompido.
Plano 21 - EXT.MATA.DIA –
Plano panorâmico (dir-esq, esq-dir), mostra vários cangaceiros, com um cachorro, sentados sob a tenda
armada.
Plano 22 - EXT.MATA.DIA –
Plano panorâmico, câmera na mão. A câmera percorre os cangaceiros sob a tenda da direita para
esquerda, Abrahão parece notar ao fundo um cangaceiro tocando sanfona, a câmera volta e permanece sobre ele
alguns segundos, vai em sua direção e aparece um cangaceiro em pé fora das tendas. A câmera mostra esse
cangaceiro, percorre seu corpo de cima a baixo e volta a mostrar os cangaceiros sob a tenda. As paisagens de
fundo, quando superexpostas (iluminação), trazem sempre uma textura impressionista, dissolvidas na luz
esbranquiçada. Neste plano, contrastam com a estrutura das tendas, feitas com galhos de árvores que nunca
conseguem imprimir na imagem o corte da linha reta.
Plano 23 - EXT.MATA.DIA –
Plano médio, com dois cangaceiros e Maria Bonita ao centro. Sob uma pequena tenda, Maria Bonita
costura com uma máquina de mão, olhando para a câmera. Atrás dela, um cachorro deitado e o cangaceiro do
lado direito, ajoelhado, mexe no que parece ser uma pequena caixa. A câmera faz uma panorâmica para
esquerda.
Plano 24 - EXT.MATA.DIA –
Continuando o movimento de câmera do plano anterior (pan.dir-esq) aparecem em plano geral, os
cangaceiros de costas, ajoelhados diante de uma imagem do sagrado coração de Jesus, fixada sobre um poste de
madeira. A frente do bando, em pé, estão duas pessoas. Uma delas usa um vestido até o meio da canela, que pela
superexposição à luz, assemelha-se a uma túnica branca. A luz do sol penetra por entre as árvores em ângulo,
iluminando pontualmente e de maneira irregular, partes dos corpos dos cangaceiros, criando uma cena
campestre, num jogo de luz e sombra que remete ao barroco/rococó.
Plano 25 - EXT.MATA.DIA -
Em plano médio (câmera na mão), a câmara caminha entre os cangaceiros em direção à imagem de Cristo
e dos cangaceiros à frente. A imagem final deste plano mostra algo insólito mas muito presente nos filmes sobre
o tema – A ligação da religião com as armas. A relação se faz no paralelismo do poste que suporta a imagem de
cristo com o cano do fuzil de um cangaceiro.
Plano 26 - EXT.MATA.DIA –
Em plano geral, os cangaceiros são mostrados de frente, ajoelhados, com Lampião em primeiro plano
tirando o chapéu, e seu punhal da cintura. Lampião conduz a oração lendo um missal ou pequena bíblia à frente
do grupo. A câmera na mão passeia nervosamente mostrando todo o bando até se fixar por alguns segundos em
Lampião. A mudança do angulo da câmera, com relação ao plano anterior, causa uma mudança na incidência da
luz, criando uma atmosfera um pouco diferente. Ao fundo uma grande árvore, com seus galhos diluídos pela luz,
parece fazer a ligação entre a terra, os personagens e o céu.
Plano 27 - EXT.MATA.DIA
Em plano geral, do mesmo ponto de vista do plano anterior, os cangaceiros, ajoelhados, se benzem,
colocam seus chapéus ao mesmo tempo que se levantam e saem. A câmera tenta percorrer toda a cena, se
movendo de um lado ao outro. A última imagem é a de Lampião, em primeiro plano, colocando o punhal na
cintura.
Plano 28 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral, câmera na mão. Um grupo de cangaceiros parece observar um companheiro carneando um
animal abatido. Do lado esquerdo da cena um dos cangaceiros aponta a arma para o animal, já morto.
Plano 29 - EXT.MATA.DIA –
Com a câmera na mão, em panorâmica (esq-dir-esq), Abrahão percorre a cena onde três cangaceiros
aparecem tirando a pele do animal, cercado por boa parte do bando. O plano começa e termina mostrando
Lampião, que o tempo todo olha para a câmera.
Plano 30 - EXT.MATA. DIA –
157

Plano americano de Lampião, com a câmera na mão mais uma vez movendo-se da direita para esquerda.
No plano de fundo, desfocado, aparecem os cangaceiros terminando a tarefa de carnear o animal. A câmera se
move em pan para a esquerda onde aparece uma nuvem de fumaça (de uma fogueira) que cobre totalmente o
quadro, deixando a tela branca. Uma pequena interrupção com uma tela preta e a ação parece continuar sem
quebra de continuidade, com a dissipação da fumaça.
Plano 31 - EX.MATA.DIA –
O grupo reaparece, a câmera volta a enquadrar Lampião.
Plano 32 - EX.MATA.DIA –
Em plano geral, Lampião aparece sentado na sombra de uma árvore com alguns cangaceiros. Um
cangaceiro aparece no quadro entregando uma tigela com comida para Lampião, que a repassa para outra pessoa
(somente o antebraço aparece pegando a tigela). A diferença de luz entre a sombra onde os cangaceiros se
encontram e o fundo, ensolarado, cria um contraste grande entre o primeiro plano e o plano de fundo. No plano
de fundo o que se tem é uma cortina desfocada de folhas e luz, enquanto que no primeiro plano, onde estão os
cangaceiros, o que sobressai são as manchas das formas dos cangaceiros e um piscar de brilhos causados tanto
pela luz refletida nos metais das roupas e armas, quanto pelos raios de luz que conseguem penetra a sombra. Isto
remete às pequenas irregularidades da madeira na xilogravura dos cordéis.
Plano 33 - EXT.MATA.DIA –
Em plano geral, aparecem sob a sombra de uma árvore: Benjamin Abrahão, Maria Bonita, Lampião e
mais alguns cangaceiros. Todos aparecem comendo. Neste plano a relação de contraste entre fundo e primeiro
plano não é tão grande. Um cangaceiro aparece atrás de uma companheira, que está ao lado de Maria Bonita e
faz como se estivesse batendo em sua cabeça com alguma coisa (brincadeira?).
Plano 34 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral em contra-plongée (chega a cortar parte da o corpo de Lampião), um movimento de pan da
direita para esquerda, mostra o bando comendo sob a sombra de uma árvore. O plano mostra o chão, onde
aparecem algumas cabaças e é possível observar os calçados (alpargatas) dos cangaceiros.
Plano 35 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral em contra-plongée, onde aparecem 3 cangaceiros comendo.
Plano 36 - EXT.MATA.DIA –
Em plano médio, aparecem Maria Bonita, Juriti (João de Souza Lima) e Lampião. Maria bonita serve uma
bebida em uma caneca esmaltada para Lampião. Juriti está no centro da imagem, olhando para a câmera,
enquanto Maria Bonita e Lampião, centram o olhar na ação de servir e ser servido. No plano de fundo, um quarto
cangaceiro aparece. A câmera move-se ligeiramente para a direita, tirando Maria Bonita do quadro, lampião,
bebe, baixa a caneca e olha para a câmera. A câmera move-se novamente para a esquerda e termina o plano com
Maria Bonita, Juriti, um cangaceiro e Lampião enquadrados.
Plano 37 - EXT.MATA.DIA –
Em plano médio, Maria Bonita serve Benjamin Abrahão com a mesma bebida, aparentemente, na mesma
caneca. Lampião observa ao fundo. Um outro cangaceiro aparece e é servido também.
Plano 38 - EXT.MATA.DIA –
Em plano geral, vultos do bando de cangaceiros aparecem caminhando da sombra das árvores para uma
pequena clareira toda iluminada pelo sol. A câmera faz um movimento para a direita e depois para a esquerda,
enquanto os cangaceiros continuam caminhando para frente, numa situação de combate, onde não se vê o
inimigo. O plano termina com uma cangaceira em primeiro plano apontando para o fundo.
Plano 39 - EXT.MATA.DIA –
Em plano geral, os cangaceiros avançam pela mata iluminada. A vegetação esbranquiçada pela
superexposição, por vezes, cobre os cangaceiros, sendo quase impossível identifica-los. A câmera, na mão,
move-se de um lado para outro. Dois cachorros seguem o grupo.
Plano 40 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral, câmera na mão. Os cangaceiros aparecem na clareira iluminada, andando de costas, numa
ação de retirada de um combate. Apontam os rifles para um lado e outro como se estivessem atirando. A câmera
move-se tentando seguir os movimentos dos cangaceiros. A mata aparece alta ao fundo.
Plano 41 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral, com a câmera na mão, os cangaceiros avançam em direção à câmera como se atirassem. Um
cangaceiro cai e é socorrido pelos companheiros, protegidos por alguns cangaceiros que permanecem na frente
“atirando”.
Plano 42 - EXT.MATA.DIA –
Este plano é o plano 37 que parece ter sido colocado duas vezes no filme.
Plano 43 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral, em que aparecem alguns cangaceiros e cangaceiras num ação de retirada em batalha,
apontando suas armas para a câmera, saltando e rindo. Eles caminham da clareira em direção à mata. Conforme
158

eles avançam para longe da câmera, a paisagem de galhos brancos, retorcidos, destacam-se no resto da mata
escura. A câmera na mão move-se de um lado a outro seguindo os cangaceiros.
Plano 44 - EXT.MATA.DIA –
Pano inicial geral, onde sete cangaceiros, sendo duas mulheres. Durvinha e Virginio, avançam em direção
à câmera apontando suas armas e fazendo menção de atirar. Eles sorriem enquanto executam a ação, olhando e
apontando para a câmera o tempo todo. O quadro é preenchido com pedaços seus corpos. Durvinha para diante
da câmera formando um plano médio, ela baixa a arma e sai da cena, revelando a paisagem da caatinga atrás de
si.
Plano 45 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral. Lampião à frente do bando saindo da mata fechada. A luz é quase frontal, iluminando os
cangaceiros que estão no primeiro plano e criando manchas de claro/escuro que se movem na saída dos
cangaceiros da mata, no plano de fundo. O grupo para, Lampião mexe na caixa da luneta, o plano é cortado.
Plano 46 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral. A partir do mesmo ponto, interrompido no plano anterior, Lampião tira a luneta da caixa,
olha através dele. Em seguida tira o punhal da cintura, e com ele, aponta em várias direções. Outros cangaceiros
do bando, acompanham o ato de desembainhar o punhal. A câmera se move de um lado para o outro para tentar
acompanhar a ação do grupo.
Plano 47 - EXT.MATA.DIA –
Em plano geral, numa relação de continuidade com o plano anterior, Lampião guarda o punhal e o grupo
segue, passando paralelamente diante da câmera que acompanha a ação do bando. Os cangaceiros portam seus
rifles nos braços.
Plano 48 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral em que aparece uma mata serrada e Benjamin Abrahão. Lentamente ele caminha na direção
da câmera, saindo da mata, olhando para um lado e para outro, como se estivesse perdido. Abrahão, tem na mão
uma faca. Incialmente ele está totalmente envolvido pela mata, aparecendo apenas sua cabeça. O quadro fica
totalmente tomado pela textura das folhas, de vários formatos, dos arbustos e árvores, ajudados pela incidência
direta da luz.
Plano 49 - EXT.MATA.DIA –
Em plano geral, Juriti (na frente) e Marreca (Marculino Pereira) saem da mata e caminham por um campo
28
de macambira . Eles caminham na direção da câmera, gesticulando, até que o plano termine num close-up de
Juriti.
Plano 50 - EXT.MATA.DIA –
Em plano geral, com uns ramos de xiquexique em primeiro plano, Juriti e Marreca caminham em direção
à câmera. Juriti para por um momento diante do cacto e como no plano anterior, ele aponta em várias direções e
parece dizer algo. Passam esbarrando nos espinhos. Como o movimento é de caminhar na direção da câmera, o
plano acaba se fechando para um plano médio, mostrando o cangaceiro e o cacto.
Plano 51- EXT.MATA.DIA –
O plano geral, mostra a chegada de dois cangaceiros a um acampamento, eles conversam com os que
estavam no acampamento e geram um certo alvoroço. Cangaceiros passam diante da câmera em todas as
direções, como se tivessem sido avisados de que teriam “visita”. É uma cena de bastante ação que termina com
Lampião apontando, como se estivesse orientando a movimentação dos cangaceiros.
Plano 52 - EXT.MATA.DIA –
Em plano médio, Juriti aparece chegando ao acampamento, passa diante de vários companheiros e é
recebido por Lampião. Lampião gesticula de maneira ríspida, diz alguma coisa para ele, que da meia volta e sai
de quadro. Uma cangaceira ao fundo gesticula, imitando Lampião (?) sorrindo.
Plano 53 - EXT.MATA.DIA –
Em plano médio, Maria Bonita e Verônica, sorrindo, se aproximam de uma árvore no canto
direito/primeiro plano da câmera. Elas penduram alguns equipamentos (correias, chapéus) num gancho colocado
no tronco da árvore.
Plano 54 - EXT.MATA.DIA –

28
Macambira (Bromelia Laciniosa), é o nome popular de uma planta da famí-
lia das Bromeliáceas, cujo rizoma serve de alimento,
por ocasião das secas, tanto para as pessoas como para
os animais.
159

Começando em plano médio (slow motion?), aparecem: Durvinha, Moderno (Virgínio Fortunato da
Silva) e Luiz Pedro. Moderno e Luiz Pedro caminham em direção à câmera, Moderno na frente. O plano se
fecha, faz um movimento de panorâmica para esquerda e para a direita, terminando num detalhe do rosto de
Moderno e Durvinha. Durante o movimento de pan pode-se notar as barracas montadas entre as árvores ao
fundo. Moderno e Durvinha falam alguma coisa no final do plano.
Plano 55 - EXT.MATA.DIA –
Em Plano americano, Lampião no meio da mata, caminha em direção à câmera carregando um rifle nos
braços. A ação termina em primeiríssimo plano no rosto de Lampião que diz alguma coisa.
Plano 56 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral, câmera fixa, onde aparecem do lado direito do quadro, Lampião conversando com Benjamin
Abrahão. Ambos estão na sombra de árvores, no meio da mata, iluminados por réstias de sol.
Plano 57 - EXT.MATA.DIA –
O plano PP (Primeiríssimo Plano), inicia com uma relação de continuidade com o plano 54, com Lampião
falando. A câmera, na mão, faz um movimento para cima, mostrando o chapéu do cangaceiro. Este plano remete
aos closes nos westerns de Sergio Leone.
Plano 58 - EXT.MATA.DIA –
Em plano médio, Lampião conversa com Benjamin Abrajão. Este plano tem uma relação de continuidade
com o plano 55. É possível que seja a continuação do mesmo take, que foi cortado.
Plano 59 - EXT.MATA.DIA –
Com uma panorâmica em plano geral da direita para esquerda, Abrahão mostra vários cangaceiros, alguns
em pé, outros sentados. Vê-se os dois cachorros na frente dos cangaceiros. A pan termina com um plano
conjunto de Lampião e mais três cangaceiros na cena.
Plano 60 - EXT.MATA.DIA –
Em plano conjunto, Lampião e Maria Bonita caminham em direção à câmera. A luz lateral, sugere que
seja um final de tarde. Eles caminham até que somente Lampião fique no quadro num plano médio. Ele
desembainha o longo punhal e por leitura labial podemos entender a frase: “Este aqui é pra furar todo mundo,
muita gente... É pra furar gente ruim”. A câmera faz um pequeno movimento em pan para a direita mostrando
Maria Bonita e volta para Lampião, que diz mais alguma coisa e guarda o punhal.
Plano 61 - EXT.MATA.DIA –
Em plano médio a câmera faz um movimento de tilt de baixo para cima, mostrando Lampião, ajoelhado e
com um fuzil na mão, em posição de tiro. Ele está na sombra.
A cena está exposta para a mata ao fundo, que aparece desfocada. De Lampião vê-se apenas o brilho dos
metais dos enfeites de sua roupa e das balas do fuzil ressaltados de sua silhueta.
Plano 62 - EXT.MATA.DIA –
Um plano conjunto de Benjamin Abrahão manuseando um exemplar do jornal “O BLOBO”, com
Lampião e alguns cangaceiros. Eles riem e Benjamin Abrahão oferece o jornal para Lampião.
Plano 63 - EXT.MATA.DIA –
Num corte seco (como se o plano tivesse se rompido e emendado), Lampião pega o jornal da mão de
Benjamin Abrahão.
Plano 64 - EXT.MATA.DIA –
Em plano americano, Lampião aparece lendo, sentado sob uma árvore. Ao fundo um cangaceiro sentado,
costurando.
A câmera faz um movimento transversal, para o lado e para cima, mostrando Juriti e um outro cangaceiro,
em pé ao lado de Lampião.
Plano 65 - EXT.MATA.DIA –
Em plano conjunto, Lampião, aparece sentado sob uma árvore, escrevendo com uma caneta tinteiro.
Maria Bonita, em pé, ao lado de Lampião, segura o tinteiro.
Plano 66 - EXT.MATA.DIA –
Em plano conjunto, Lampião aparece sentado, contando dinheiro, no meio de outros cangaceiros.
Lampião entrega o dinheiro para um homem que está em pé, ao lado dos cangaceiros, de costas para a câmera. O
homem pega o dinheiro e se afasta do bando, para a mata superexposta. O homem é um paisano, nota-se pelas
roupas, talvez um coiteiro.
Plano 67 - EXT.MATA.DIA –
Em plano médio, Maria Bonita aparece colocando vários colares e correntes. Um cangaceiro a seu lado
mantem as correntes no braço, enquanto Maria Bonita retira uma a uma e coloca em seu pescoço. Maria Bonita
usa um vestido estampado, claro, enquanto que o cangaceiro aparece como uma silhueta. A câmera na mão
acompanha o movimento de Maria Bonita, pegando e colocando as correntes. Finalmente Maria Bonita pega o
chapéu das mãos do cangaceiro e o coloca na cabeça. Ambos saem do quadro, restando a vegetação.
Plano 68 - EXT.MATA.DIA –
160

Em plano geral, Maria Bonita sai de uma pequena trilha, caminhando em direção à câmera. Está como
vestido do plano anterior, com os bornais, uma pequena caneca amarrada ao corpo, lenço e chapéu. Ela para
diante da câmera, em plano médio, tira o chapéu sorrindo, vira-se e volta pela mesma trilha, recolocando o
chapéu, sempre seguida por um cachorro.
Plano 69 - EXT.MATA.DIA –
Em plano médio, Lampião aparece retirando seu revolver e pendurando num galho de árvore fincado no
chão.
Plano 70 - EXT.MATA.DIA –
Num plano americano, Maria Bonita aparece penteando Lampião. A câmera faz um movimento para
baixo e para o alto e Lampião joga, generosamente, perfume sobre si e Maria Bonita. Lampião, brinca e joga
perfume na direção da câmera.
Plano 71 - EXT.MATA.DIA –
Em plano americano, Lampião aparece pegando o chapéu das mãos de um cangaceiro. O plano mostra
vários bornais e outros objetos pendurados (provavelmente num pedaço de galho fincado no chão)
Plano 72 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral. Dois casais de cangaceiros aparecem dançando. Os cangaceiros, fumando, sorrindo, parecem
se divertir. Apesar do baile, estão com todos apetrechos, inclusive as armas. Ao fundo vê-se um pano estampado
estendido na mata, como se fosse uma tenda.
Plano 73 - EXT.MATA.DIA –
O mesmo plano anterior.
Plano 74 - EXT.MATA.DIA –
O mesmo plano .
*Parece que o plano 71 foi colocado 3 vezes no filme.
Plano 75 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral. Benjamin Abrahão conversa com Lampião. Mesmo plano 55, colocado novamente.
Plano 76 - EXT.MATA.DIA –
Este plano é outra inserção do plano 57.
Plano 77 - EXT.MATA.DIA –
Reprodução do plano 54 com o plano 56.
Plano 78 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral. Benjamin Abrahão, Corisco e Dada caminham por uma trilha, saindo da mata em direção à
câmera.
Eles param diante da câmera num plano conjunto, atendendo a um gesto de Abrahão, olham para a
câmera e continuam conversando.
Plano 79 - EXT.MATA.DIA –
Plano geral do bando, com Lampião à frente diante de um cartaz de Cafiaspirina. Lampião faz menção de
distribuir o comprimido para cada um dos presentes.
Plano 80 - EXT.MATA.DIA –
Lampião “lê” o cartaz de Cafiaspirina, apontando cada frase. A câmera “passeia” de um lado a outro
como se estivesse acompanhando a leitura feita por Lampião. Num movimento final, faz uma panorâmica para a
direita, mostrando o resto do bando.
Plano 81 - EXT.MATA.DIA –
Plano em close-up de Lampião. Ele tira o chapéu e olha para a câmera.
Plano 82 - EXT.MATA.DIA –
Plano conjunto de Lampião e Juriti lavando um cachorro.
Plano 83 -EXT.MATA.DIA –
Plano geral. Virginio de mãos dadas com Durvinha e Luiz Pedro de mãos dadas com Nenem, caminham
na direção da câmera até que o plano fecha na direção de Virginio e Durvinha.
Plano 84 - EXT.MATA.DIA –
Em Plano americano, Lampião aparece sob uma árvore com outro cangaceiro. Lampião olha para a
esquerda e a câmera faz um pequeno movimento (pan) para a direita.
Plano 85 - EXT.MATA.DIA –
Em plano geral. Um cangaceiro está em pé à direita do quadro. Juriti caminha na frente de Benjamin
Abrahão na direção da câmera. Benjamin Abrahão para diante do cangaceiro e o cumprimenta. Juriti e Benjamin
passam à esquerda da câmera deixando o cangaceiro em plano americano com a paisagem da caatinga ao fundo.
Plano 86 - EXT.MATA.DIA –
Plano Geral. Um grupo grande de cangaceiros seguem em fila, saindo da mata. Eles passam da esquerda
para a direita da câmera num movimento transversal, seguidos por um cachorro. Depois que passam a câmera se
detém por alguns segundos, mostrando a entrada da mata.
Plano 87 - EXT.MATA.DIA –
161

Em plano médio, cangaceiros passam diante da câmera no meio do mato. Em continuidade com o plano
anterior.
Plano 88 - EXT.MATA.DIA –
Plano conjunto. Maria Bonita e outros cangaceiros estão sob uma árvore. Maria Bonita folheia o que
parece ser um caderno. Benjamin Abrahão entra no quadro da esquerda, cumprimenta Maria Bonita e alguns
cangaceiros e sai.
Plano 89 - EXT.MATA.DIA –
O plano mostra as cabeças cortadas de Lampião, Maria Bonita, Quinta-feira, Luiz Pedro, Mergulhão,
Electrico, Caixa de Fósforo, Enebina, Casarana, Diferente e um não identificado.
Sequência 5 – Créditos finais – Composta de um plano mostrando a relação de créditos de direitos: autoral,
moral e de imagem.
Plano 1
Créditos finais
Direito autoral:
Instituto Cultural Chico Albuquerque
Direito de Imagem
Sociedade do Cangaço
Direito moral:
Família Abrahão

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