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As representações sociais da violência doméstica:

ARTIGO ARTICLE
uma abordagem preventiva*

Social representations of physically abused


adolescents in violent homes: an preventive approach

Maria da Conceição N. Monteiro 1


Mara Aparecida Alves Cabral 2
Denise Jodelet 3

Abstract This study aims to identify the con- Resumo Este trabalho tem como objetivo
struction of three types of social representations identificar a construção de três tipos de repre-
pertaining to domestic violence: the violence it- sentações sociais: as da violência doméstica, as
self, the aggressors, and adolescent victims of vi- dos agressores e as que os adolescentes, agredi-
olence as seen by themselves. The study inter- dos na infância têm de si mesmos. Buscaram-se
viewed 90 adolescents in the city of Campinas, temas que norteassem uma proposta de preven-
São Paulo, in order to identify underlying ção da violência doméstica pesquisando-os em
themes to base a proposal for prevention of do- 90 adolescentes da cidade de Campinas, São
mestic violence in that city. The point of depar- Paulo. O ponto de partida foi analisar a proble-
ture was an analysis of the issues surrounding mática que envolve o fenômeno da violência
the domestic violence phenomenon and its rela- doméstica e sua relação com os comportamen-
tion to socially inadequate behaviors (rebel- tos socialmente inadequados (rebeldia, condu-
liousness and marginal or violent conduct) and tas marginais ou violentas) e seu efeito na au-
their effect on adolescents’ self-image. The da- to-imagem dos adolescentes. A dinâmica de co-
ta-gathering methodology included an initial leta de dados visou, através da entrevista ini-
interview and questionnaires and records from cial, dos questionários e das fichas de registro
the Regional Center on Child Abuse (CRAMI) do Crami – Centro Regional de Registro e Aten-
to identify reports of physical violence during ção aos Maus Tratos na Infância, Campinas – a
* Esta pesquisa recebeu childhood and to investigate the discourses em- identificar a notificação de violências físicas so-
apoio financeiro do ployed by the various social actors, taking a di- fridas na infância e a investigar os discursos dos
CNPq/Capes.
1 Centro Latino-Americano alogical perspective as the main source of infor- atores sociais, numa perspectiva dialógica, como
de Estudos da Violência mation and oral and written expression. The a principal fonte de informação e expressão oral
e Saúde “Jorge Careli”, analysis was both qualitative and quantitative. e escrita. A análise realizada foi de natureza
Fundação Oswaldo Cruz,
Av. Brasil 4036, sala 702,
The qualitative approach focused on discourse qualitativa-quantitativa. A primeira, destina-se
21040-361 Rio de Janeiro, content from a semantic and lexical perspective. ao exame dos conteúdos dos discursos, através
RJ, Brasil. The quantitative approach used a factor corre- da análise semântica e léxica. A segunda refere-
mcnm@ensp.fiocruz.br
2 Faculdade de Ciências spondence analysis aimed at identifying the se à análise fatorial de correspondência, que se
Médicas, Universidade core social representations of domestic violence destina a identificar os núcleos centrais das re-
Estadual de Campinas. in the two groups of adolescents (the study and presentações sociais da violência doméstica nos
3 Laboratório de Psicologia
Social, École des Hautes
comparison groups). dois grupos de adolescentes.
Études en Sciences Key words Social Representations; Adoles- Palavras-chave Representações Sociais; Ado-
Sociales, Paris, França. cence; Domestic Violence lescência; Violência Doméstica
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Monteiro, M. C. N.; Cabral, M. A. A.; Jodelet, D.

Introdução quanto um “produto dinâmico da atividade


mental” (Jodelet, 1994), que possibilita a emer-
A relação pessoal com o tema da violência do- gência de sinais e significados psicossociais,
méstica surgiu durante o atendimento às crian- pertinentes à vida cotidiana e à realidade so-
ças vitimadas, notificadas no Centro Regional cial, elaborados através do mundo das idéias
de Registro e Atenção aos Maus Tratos na In- e da modalidade de pensamento de cada ado-
fância (Crami) e atendidas nos hospitais e lescente.
prontos-socorros da cidade de Campinas, São Procuramos salientar entre as representa-
Paulo, no período de 1990/1991. ções da violência doméstica, a “função de
No primeiro atendimento as crianças ex- orientação” (Moscovici, 1976), que permite ao
pressavam sentimentos de medo, retraimen- adolescente agir, de acordo com suas repre-
to, submissão, inferioridade, apatia, revolta e sentações sociais, que podem orientar seus
vergonha. Sentimentos, esses, significativos de comportamentos e suas práticas.
suas vivências psicossociais e também presen- Entendemos as representações sociais co-
tes nos relatos dos agressores (pais ou respon- mo formas de pensamento utilizadas na co-
sáveis). Após o atendimento médico e hospita- municação, na compreensão e no ensino do
lar essas crianças retornavam para seus lares meio social, material e ideativo, que surgem
sem nenhuma forma de assistência ou acom- das observações dos atores sociais (sujeito) e
panhamento psicológico. de seus relatos de fatos e fenômenos sociais
Quatro anos depois, em visitas domicilia- (objeto) ocorridos. A construção das repre-
res, retornamos para entrevistar essas crian- sentações sociais inclui, também, as estrutu-
ças, que se encontravam vivendo o processo ras imaginárias e simbólicas dos adolescentes.
de adolescer. Nem crianças nem adultos pare- Nesta pesquisa, esperamos que eles não regis-
ciam saber que caminhavam para um futuro, trassem somente suas opiniões, atitudes, ima-
acompanhadas de exigências sociais quanto à gens e experiências a respeito da violência do-
sua tomada de consciência e atuação na socie- méstica ocorrida na infância, mas que fossem
dade. Em seus relatos observamos muitos capazes de imaginar e de expressar o simbóli-
comportamentos, atitudes e opiniões agressi- co em suas representações sociais, e que em
vas ou violentas, desenvolvidas no contexto de suas práticas de vida pudessem dar um senti-
suas relações familiares e sociais. Eram con- do ao mundo em que vivem (Jodelet, 1994).
dutas freqüentemente caracterizadas por prá- As representações sociais da violência do-
ticas anti-sociais e delinqüentes. méstica referem-se à “construção sócio-cog-
A convivência com esses jovens e suas fa- nitiva” (Abric, 1994) ou seja, enfatizamos o
mílias conflituosas possibilitava diferentes conteúdo e o processo de pensamento, a com-
abordagens de pesquisa, nas áreas de cultura, preensão dos adolescentes em relação a este
educação e saúde, visando à assistência e prá- fenômeno social e a repercussão no contexto
ticas preventivas. que eles estão inseridos e são evidenciados.
Realizamos um trabalho descritivo e com-
parativo onde a conexão com as demais dis-
ciplinas permitiu a construção do objeto de Metodologia
pesquisa que se revelou através do discurso
dos jovens. Ressaltamos a importância dos da- Os procedimentos metodológicos utilizados
dos empíricos e os relatados pela literatura na coleta e análise das representações sociais,
sobre as estatísticas de morbidade e mortali- privilegiaram o conteúdo do discurso pesqui-
dade causadas pela violência doméstica. Con- sado na entrevista inicial e os eixos temáticos
sideramos o número de casos de violência si- pré-estabelecidos nos instrumentos de pesqui-
lenciosa ou não notificadas, essas, devido ao sa. Identificamos as categorias centrais retira-
medo do informante ser identificado. Obser- das da linguagem oral e escrita. Elas consti-
vamos a não notificação dos hospitais particu- tuem as representações sociais da violência do-
lares e a falta de mobilização da sociedade méstica para os adolescentes do grupo de estu-
quanto às violências domésticas ou familia- do (vitimados) e do grupo comparativo (não-
res, por considerá-las problemas que ocorrem vitimados).
em espaços privados. As observações referem-se às reações que
A construção teórica desta pesquisa enfo- os adolescentes apresentaram no momento da
ca o conceito de representações sociais, en- entrevista inicial e ao responderem aos instru-
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mentos de pesquisa. A pesquisadora registrou sentações de si mesmos, nas representações
outras reações ou acontecimentos significati- sociais do agressor e na violência doméstica
vos, ocorridos durante a visita domiciliar. contra crianças.
Foram estudados 90 adolescentes de am- Na análise quantitativa os dados prove-
bos os sexos, com idades compreendidas en- nientes das questões fechadas e abertas foram
tre 12 e 18 anos, que expressaram seu desejo tratados pelo programa Epi Info 6. Para isto,
de participar. Para atingir nossos objetivos fo- foi preparado um banco de dados com todas
ram pesquisados adolescentes representativos as questões dos instrumentos de pesquisa. As
da população alvo. Entendemos por popula- respostas às questões abertas também foram
ção alvo aquela constituída por adolescentes incluídas nesse banco, após todos os procedi-
com história de violência doméstica, do tipo mentos da análise qualitativa. Para elas, defini-
física, durante a infância. Por tratar-se de uma mos categorias, temas valorizados e rejeitados
população homogênea quanto à idade, esco- e palavras-chave. O tratamento estatístico per-
laridade e condições sócio-econômicas, con- mitiu a comparação dos grupos, o cruzamen-
sideramos o índice de 20%, das 256 ocorrên- to das variáveis, as freqüências e associações
cias notificadas, representativo desta popula- e, finalmente, a elaboração de tabelas e gráfi-
ção, o que resultou na estimativa de aproxi- cos. A análise fatorial de correspondência teve
madamente 60 sujeitos para compor o grupo como interesse principal identificar o núcleo
de estudo (Santos, 1987). central da representação social da violência fa-
Os 90 adolescentes responderam aos ins- miliar ou doméstica, através da técnica de as-
trumentos de pesquisa em situações específi- sociação livre. Esta técnica permitiu aos ado-
cas: Crami-Casa; Escolas-Escola; Vizinhos-Ca- lescentes escreverem as dez primeiras palavras
sa, no período de junho/1996 a março/1997. que lhes viessem à mente, a partir de uma ex-
Para os adolescentes que responderam em pressão indutora. A aplicação da análise fato-
casa, a aplicação foi individual. A aplicação rial de correspondência, como um teste de cor-
coletiva aconteceu nas escolas, em salas de au- relação de dados, teve como objetivo verificar
la. O tempo de duração para a entrevista inicial quais palavras estavam mais próximas dessa
e para a aplicação dos instrumentos de pes- expressão e se os vocábulos revelavam-se di-
quisa foi em média de duas horas. ferentemente entre os dois grupos de interes-
Salientamos que, ao término da coleta dos se, ou seja, o quanto cada vocábulo tinha χ 2
dados, a pesquisadora concluiu que o discur- estatisticamente associado a expressão indu-
so era constituído de um conjunto de opiniões, tora, considerando-se a posição da palavra
impressões, atitudes, crenças e ideologias; que evocada e em qual grupo ela se encontrava.
as informações precisavam ser ordenadas, or- Após a análise, selecionamos somente as pa-
ganizadas, analisadas e interpretadas; que a lavras que apresentaram contribuição relativa
utilização dos questionário mostrou dados e para formar o eixo de 0,51389 (100% da inér-
fatores explicativos da população alvo; que os cia). Os recursos matemáticos e estatísticos,
instrumentos de pesquisa abrangeram conteú- pertinentes ao método quantitativo, validaram
dos qualitativos e quantitativos; que as ques- os resultados das análises de conteúdo qualita-
tões formuladas foram distribuídas, confor- tivo, relativos ao agrupamento e à classifica-
me suas especificidades, entre perguntas aber- ção das categorias e dos temas identificados
tas e fechadas. A pesquisadora ficou convicta nas questões dos instrumentos de pesquisa.
da importância do método de análise qualita-
tivo-quantitativo, tendo como referência a ava-
liação e análise do projeto piloto. Resultados
Dessa forma, a análise qualitativa foi rea-
lizada através da dimensão semântica e léxica Nas representações que os adolescentes têm
(Bardin, 1988). Criamos categorias que cons- de si mesmos, verificamos, em 18,3% do gru-
tituíram-se de: 1) traços psicológicos; 2) rela- po de estudo, um discurso permeado de senti-
ções sociais; 3) relações familiares; 4) atribu- mentos de ansiedade e medo em relação às
tos físicos; 5) temas valorizados ou rejeitados condutas anti-sociais, como fugir de casa, rou-
no discurso; 6) contradições e sutilezas; 7) pa- bar e usar drogas: “quando eu tinha dez anos,
lavras-chave representadas por sinônimos ou minha mãe me botou de castigo de noite, ajoe-
vocábulos afins; 8) sentimentos e atributos lhada na calçada, de baixo de chuva. Outra vez
(positivos ou negativos) presentes nas repre- cortou os meus punhos dizendo que eu rouba-
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va. Quando eu olho prá minha mãe, eu sinto Outros traços psicológicos, expressos atra-
um mal-estar, eu fico doente. Eu sofro calada; vés de categorias rejeitadas (sentimentos de in-
eu me defendo saindo de casa”. satisfação, medo, apatia, tristeza, retraimento,
Os atributos físicos, evidenciados pelos ansiedade, submissão e agressão), já foram rela-
adolescentes com vivência de maus-tratos na tados no perfil das crianças e adolescentes vi-
infância, são referidos por 8,3%, que conside- timados (Haskett, 1990).
ram seu corpo como um tema valorizado na Na análise qualitativa das entrevistas, os
análise do conteúdo. Salientamos que a ima- sentimentos de rejeição e desaprovação veri-
gem corporal, na adolescência, vai lhe servir ficados em 11,6% dos adolescentes deste gru-
de apoio, de objeto de admiração e vaidade, po poderiam estar impulsionando condutas
representando um atributo de boa auto-esti- anti-sociais, tais como: fugas de casa, roubos e
ma; 8,3% foi um resultado que indica a neces- comportamentos delinqüentes, associados ao
sidade de novos estudos sobre a representação uso combinado de álcool e drogas. Estes resul-
do corpo entre os adolescentes vitimados na tados revelam a fragilidade dos jovens diante
infância. das drogas, da força e da sedução do álcool,
Os atributos simbólicos, expressos pelos que lhes permite “uma onda”, que os deixa di-
adolescentes em relação às categorias mais va- ferentes, talvez “outras pessoas”, mais alegres,
lorizadas, referem-se aos sentimentos de es- descontraídas e corajosas. Para aqueles que
perança. Desses, 33,3% referem-se a um pro- freqüentam os “sons de rua”, as drogas lícitas e
jeto de vida (desejo de retornar a estudar e su- ilícitas são acessíveis, “embalando” as noites
cesso no trabalho). Todavia, na análise das pa- de Campinas. Assim, os jovem que as usam re-
lavras-chave, a capacidade e o interesse pelo produzem os comportamentos de outros ado-
trabalho mereceram maior destaque, compa- lescentes, de países ocidentais.
rativamente ao sucesso escolar. Os relacionamentos sociais conflituosos,
Os relacionamentos familiares e sociais são associados à histórias de maus-tratos na in-
tímidos, com temas valorizados (gentileza/edu- fância, foram estatisticamente significativos
cação) em 20% nos adolescentes deste grupo, (χ2 - 0,05), sugerindo que 96,7% dos adoles-
nos quais estão presentes as exigências sociais centes têm dificuldades em lidar com um mí-
e o sistema de valores internalizados pela fa- nimo de conflito social. Eles reagem agressi-
mília. Os temas rejeitados (timidez/submis- vamente, evitando o diálogo e a solidarieda-
são), mostraram ser possível em 43,3% a pre- de entre seus pares, precipitando agressões fí-
sença de conflitos intrapsíquicos nessas for- sicas contra colegas da mesma idade
mas de relacionamentos. No grupo comparativo, 50% revelam tra-
Os traços psicológicos e relações sociais ços psicológicos de boa auto-estima e relacio-
(alegria/comunicação) identificados entre os namento social e familiar positivos.
adolescentes vitimados na infância, poderiam A referência ao corpo, como objeto de va-
estar significando: imagem idealizada; elabo- lorização, foi verificada em 16%, embora, em
ração da agressão; e mecanismo de negação da 33,3%, as representações de si mesmos consti-
violência doméstica sofrida. tuem-se de temas rejeitados, na imagem pes-
A capacidade de sonhar foi expressa por soal, quando esta se contrastava com o ideal de
33,3% do grupo de estudo, ou seja, um terço beleza cultuado pela sociedade. As represen-
desta amostra demonstrou sentimentos de es- tações de si mesmos enfocam valores impos-
perança no futuro. Este resultado pareceu-nos tos pela sociedade através da mídia, que veicu-
pouco significativo, à medida em que 66,7% la como a figura ideal: jovem bonito, livre, for-
do grupo de estudo não valorizaram esse te- te, porém, magro. Tal como no grupo de estu-
ma que, para Davitz e Davitz (1992), está re- do, os atributos físicos rejeitados, referem-se
lacionado à fantasia do adolescente – o meca- também ao corpo associado às primeiras trans-
nismo pelo qual ele planifica seu futuro, seus formações físicas do início da puberdade, aos
ideais profissionais e pessoais. conflitos intrapsíquicos da perda do corpo da
Neste grupo, 40% dos adolescentes refe- infância e surgimento de um corpo que se mo-
rem-se a sentimentos de desvalorização (bai- difica, possibilitando a “crise normal” da ado-
xa auto-estima) e características pessoais des- lescência (Aberastury & Knobel, 1981).
trutivas (condutas anti-sociais e violentas), co- As representações de si mesmos revelam-
mo reflexos da vivência de maus-tratos físicos se através de valores e caracteres positivos e
na infância e identificação com o agressor. negativos que descrevem a imagem pessoal e
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a imagem social dos adolescentes. Em níveis ma noite de inverno, nos pôs para dormir nu-
quantitativos, a imagem pessoal foi expressa ma construção ao lado de nossa casa”.
por valores positivos, os quais, no grupo de Neste trabalho, as representações sociais
estudo, foram menos freqüentes em relação dos agressores revelam aspectos psicopatoló-
ao grupo comparativo, principalmente entre gicos e problemas emocionais graves, da mes-
os adolescentes notificados no Crami/Campi- ma forma que o modelo multidimencional
nas. A imagem social dos adolescentes, com descrito por Gelles (1973) destaca os aspectos
vivência de violência na infância, revela gen- sócio-culturais, o status sócio-econômico, as
tileza, timidez e trabalho, contrariamente, ao experiências prévias com a violência e enfati-
grupo comparativo que elegeu sete atributos za a necessidade de um exame minucioso do
positivos para descreverem sua imagem social: contexto psicossocial dos familiares violentos.
sonhador, calmo, gentil, alegre, atencioso, sim- Os 60 adolescentes do grupo de estudo
pático e trabalhador. consideraram que as atitudes agressivas contra
O afeto depressivo e a timidez foram iden- as crianças e os adolescentes são tomadas em
tificados em 32% do total da amostra do gru- 42%, pelos pais, em 32%, pelas mães; em 26%
po de estudo. Este perfil psicológico foi ex- os agressores são irmãos, avós, padrastos ou
presso através de condutas de medo, retraimen- outros parentes.
to e isolamento, associadas às dificuldades do As representações do grupo de estudo tra-
processo de socialização, em relação ao grupo duzem o processo de identificação com o
comparativo que se mostrou mais espontâneo agressor e permitem a reprodução da agres-
e menos controlado. Este afeto foi manifesta- são: “acho que todos sentem ódio e rancor das
do pela tristeza, solidão e choro, que podem es- lembranças das brigas, mas eu sou esperto e que-
tar associados à privação afetiva na infância. rido nas ruas pelos outros; fui líder de grupos de
A imagem física, para os adolescentes do gru- adolescentes, tinha meu horário no Taquaral
po de estudo (34%) e para os adolescentes do (para assaltar as pessoas) mas não chamava
grupo comparativo (27%), destaca o corpo co- ninguém para participar. Quando alguém que-
mo um atributo negativo expresso através de ria entrar no grupo, devia me obedecer. Prefiro
críticas, descontentamentos e insatisfações em lidar com camaradas inteligentes, que me ou-
relação à imagem de si mesmo. vem e não agem precipitadamente”.
O corpo como uma categoria valorizada Os acontecimentos de violência são fre-
foi identificado em 20% dos adolescentes do qüentemente veiculados pela mídia. A revista
grupo comparativo contra 10% do grupo de Veja (1997) publicou reportagem sobre ado-
estudo. De um modo geral, o grupo de estudo lescentes de classe média que colocaram fogo
descreveu-se mais negativamente em relação num índio que dormia numa parada de ôni-
ao grupo comparativo. bus, em Brasília. Atos como este podem estar
As representações sociais dos agressores expressando as relações conflituosas de “po-
no grupo de estudo expressam-se por meio de der” dentro da família, ou significando a pon-
um discurso ambivalente, oscilando entre os ta de um iceberg que denuncia a ausência de
sentimentos de raiva, medo, piedade, tristeza e proteção sócio-familiar ou a negligência dos
desejo de ajudar os agressores que, em 74%, papéis atribuídos aos dirigentes do Estado e
eram os seus pais. aos pais de família.
Os adolescentes, ao relatarem as represen- Este trabalho, com 90 adolescentes, sobre
tações sociais dos agressores, nem sempre o fi- a representação do agressor é preocupante, se
zeram com tranqüilidade; havia o silêncio, as considerarmos que, em um espaço de reflexão
reticências e, principalmente, o medo e a ver- singular, em 98,6% dos adolescentes, houve
gonha de revelarem que experiência com pais uma necessidade de falar de justiça, sentimen-
agressores faz parte de suas histórias de vida. tos de ódio, vingança, medo e indignação. Estes
Em 65%, os discursos apresentaram conteú- sentimentos, além de fazerem parte da estru-
do ambivalente: “é uma maldade agredir os fi- tura das representações sociais dos agressores,
lhos, mas, em relação ao meu pai, eu gosto de- expressam atitudes que estes adolescentes en-
le, eu me orgulho de meu pai, eu gosto dele”; em contram para se proteger, defender ou reagir
35% apresentaram conteúdos constituídos de aos perigos deste fenômeno psicossocial. A ex-
atos e sentimentos de crueldade: “meu pai cor- pressão de sentimentos negativos ou a repro-
tou minha perna com a faca da cozinha”; “eles dução de condutas agressivas pelos adolescen-
usam revólveres, facas, e paus”; “meu pai, nu- tes, em espaços públicos, são adequáveis à fun-
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ção do saber (Moscovici, 1976), como uma for- centes deste grupo, inclui elementos indica-
ma de conhecimento que permite compreender dores, sejam substantivos ou adjetivos, de de-
e explicar a realidade através da comunicação sejos de justiça ou de vingança, seguidos de
social, na vivência das relações com seus pais justificativas e desculpas das atitudes de seus
ou responsáveis. Nas representações sociais agressores. Estes resultados requerem estudos
dos agressores, no grupo de estudo, nota-se o mais aprofundados e especificamente direcio-
processo cognitivo expresso na reprodução da nados à análise das funções geradoras ou or-
violência, mobilizado pelos sentimentos de re- ganizadoras desses discursos.
volta e indignação pela vivência dos maus-tra- Os adolescentes, sem história de maus-tra-
tos: “acho que os pais agressores deveriam levar tos físicos na infância, expressaram as repre-
uma pisa de couro, como fazem com os filhos.” sentações sociais dos agressores, através de in-
“Ser preso”. “Pedir perdão aos agredidos”. “Fi- formações que receberam da mídia, de histó-
car preso no mínimo cinco meses”. “Levar uma rias infantis e de pessoas que passaram por es-
multa e pagar em dinheiro”. “Separar-se do fi- sas situações. Este grupo revelou também, sen-
lho para sofrer um dia”. “Ser instruídas como timentos de revolta, ódio e indignação pela
devem educar e criar os filhos, e se isso não for imagem dos agressores. O grupo comparati-
suficiente, devem perder a guarda dos filhos, pa- vo define o agressor com base em seu entendi-
ra outros parentes”. “Quando ele maltratar os mento individual, constituído de elementos
filhos deve levar um surra também”. “Devem fi- psicológicos, sociais e morais associados à
car na cadeia e não sair nunca mais”. “Pagar idéia de maus-tratos contra crianças. Enquan-
com a mesma moeda”. Estes sentimentos inter- to os adolescentes, que têm histórias de maus-
nalizados vão interagir em suas relações so- tratos físicos na infância, expressaram senti-
ciais e podem expressar uma tomada de posi- mentos ambivalentes sobre seus agressores,
ção (Moscovici, 1976) para o desenvolvimen- aqueles não vitimados, na faixa etária entre
to de comportamentos agressivos e violentos 12 e 16 anos, mostraram, em seus relatos, opi-
contra seu grupo social e contra a sociedade niões e atitudes com grande intensidade de
de um modo geral. Ao identificar-se com o violência.
agressor, o adolescente poderá desenvolver a No decorrer da análise, identificamos a
função da repetição freqüente, ou seja, é pro- presença de um discurso contraditório no gru-
vável que ele reproduza episódios de agressão, po comparativo, com conteúdo extremamen-
manifestados até mesmo por uma situação de te agressivo, não em relação à vivência de
estresse. A identificação com o agressor pro- maus-tratos, mas direcionado ao agressor: “os
tege-o contra os temores de aniquilamento e agressores são pessoas ruins que não prestam”.
pela antecipação de uma recorrência. As crian- “Eles devem sofrer um acidente”. “Ver a morte
ças agredidas precisam repetir a situação da na cara deles, sem perdão”. “Eles devem sofrer”.
agressão, em uma tentativa de obter o contro- “São pessoas monstruosas que bebem e xingam”.
le e dividir o “poder” com o agressor, a partir “Devem ser amarrados e alguém dar uma surra
de uma identificação com o mesmo, para neu- de chicote bem grosso em praça pública e rece-
tralizar os sentimentos de inatividade e ani- ber a prisão perpétua”. “Precisam receber a mes-
quilamento associados aos maus-tratos. ma violência que eles fizeram no outro”. “Ir pa-
Neste estudo notamos a representação do ra a prisão e morrer na cadeia de tanto remor-
agressor: 42% referem-se ao pai como o mem- so”. “A punição deve ser ao nível de sua violên-
bro da família que pratica mais agressões con- cia”. “Devem morrer ou ficar isoladas”. “Devem
tra os filhos. Os sentimentos ambivalentes em ir para a cadeira elétrica ou a cadeia”.
relação aos pais fazem parte do processo de Para este grupo, a representação do agres-
construção das representações sociais que os sor, tal como as representações da violência
adolescentes têm de seus agressores. doméstica, também é construída por elabo-
A reflexão sobre a imagem de um agressor, rações que circulam no meio ambiente, per-
sendo parte de instituições sagradas e de mo- tencentes ao imaginário social, que proclama
delo de identificação, expressa discursos que punições severas aos agressores. Um exemplo
desculpabilizam os comportamentos agressi- destas idéias e atitudes são os linchamentos
vos dos pais contra os filhos. Todavia, o nú- públicos.
cleo central, ou seja, a estrutura nuclear que Nesta perspectiva, o agressor é visto como
se constitui pela freqüência de palavras (Aissa- um fenômeno social cruel, que ocorre no inte-
mi, 1990; Abric, 1994), em 98,6% dos adoles- rior desta sociedade e que, segundo os relatos
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desses adolescentes, merece punição severa Nesta mesma ótica, quatro anos depois, os
porque ameaça a vida dos jovens e transgride filhos e os enteados, num momento singular,
a moral e a lei. expressaram suas representações sociais ela-
Nos adolescentes com idade acima de 16 boradas a partir de efeitos nefastos que os con-
anos, as representações sociais dos agressores flitos dos pais exercem em suas vidas, seus sig-
expressam uma preocupação quanto à ausên- nificados e as condições psicossociais vividas
cia de políticas públicas que efetivamente pro- na infância, sendo elas responsáveis por seus
piciem proteção social, psicológica e médica. comportamentos na adolescência.
No relato desses atores sociais, não foi enfati- Na identificação do núcleo central, obser-
zada apenas a ação de denunciar, mas reivindi- vamos que os dois grupos encontravam-se em
cações de mudanças nas áreas de educação, oposição. O maior valor de contribuição rela-
saúde, trabalho, lazer e cultura como alterna- tiva foi determinada pelo grupo comparativo,
tivas para recuperar os pais e os filhos vitima- no vocábulo angústia – como uma sensação
dos. As representações sociais dos agressores desagradável, independente da vivência trau-
não suscitam o desejo de retaliação, mas um mática. O sentimento de angústia diante da
sentimento de compaixão por aqueles que es- “morte” foi o vocábulo, em toda a análise, que
tão em sofrimento. Para eles, as atitudes e a obteve o maior valor de contribuição relativa
imagem dos agressores estão comprometidas (0,052791). Pareceu-nos que ele é intensamen-
pela rede de causalidade psicossociológica, te sentido, como sensação muito desagradá-
compreendida, nesta pesquisa, como decor- vel, diante de uma ameaça que este grupo re-
rente de um determinado tipo de Estado, que latou como não vivenciada.
favorece o desenvolvimento da violência do- O vocábulo surra materializa o desconhe-
méstica, através da ausência de proteção e da cido, refletindo-se na realidade, ao aproximar-
repressão social. “Eles têm pouco dinheiro pa- se da expressão violência familiar. Os outros
ra a família”. “Não têm trabalho”. “Acho que eles vocábulos, com altos índices de contribuição
devem ser tratados por uma psicóloga e, se não relativa, expressam poder constituído na fa-
der certo, perder a guarda de seus filhos”. “Eles mília; aspectos psicológicos; solicitação da lei;
estão doentes e precisam de ajuda”. “São pessoas e características sociais do contexto familiar
amargas, solitárias, desconfiadas, medrosas e (Tabela 1).
tristes”. “Pessoas que maltratam seus filhos de- O Núcleo central da expressão violência
vem receber assistência”. “São pessoas fracas, fi- familiar, a morte está representada, simboli-
cam todas vermelhas e se sentem doentes... são camente, com o maior valor de contribuição
pessoas agressivas, violentas e cheias de dúvi- relativa (0,052536). Considerando que nesta
das”. “São pessoas muito nervosas, você sente amostra 42% dos pais são os agressores e 35%
quando a pessoa é violenta”. não têm contato com o pai, o vocábulo morte
As representações sociais da violência do- poderia estar expressando a perda ou a ausên-
méstica são constituídas por aspectos psicos- cia paterna. Para Kovács (1991), a morte sim-
sociais, presentes neste fenômeno social. Iden- bólica refere-se a perdas não-resultantes da
tificamos, entre eles: o alcoolismo, a drogadi- morte física, mas às vivências de separação, ou
ção, o baixo nível de escolaridade dos pais, as às perdas afetivas. Dessa forma, a ausência pa-
precárias condições sócio-econômicas, a ausên- terna impede o contato real e afetivo tornan-
cia de desejo pela maternidade e paternidade, do inexistente a relação pai-filho.
associados aos conflitos psicológicos e às de-
pressões que possibilitam negligência, aban-
dono, abusos psicológicos; as psicopatologias,
como a pedofilia, quando ocorrem abusos se- Tabela 1
xuais e estupros, direcionadas às crianças da
família ou do agrupamento familiar. Palavras Contribuição relativa
No estudo das características psicossociais
Angústia 0,052791
dos agressores, os pais revelaram seus conflitos
Surra 0,045250
vivenciados no cotidiano familiar. Em suas ex-
Poder, casa, egoísmo 0,037708
pressões, observamos desesperança, inquieta-
Dor, prisão 0,030166
ção e insatisfação com a vida, em decorrência
Agressão, favela, 0,022625
da impossibilidade de desenvolverem-se co-
cocaína, crack
mo indivíduos e cidadãos (Monteiro, 1992).
168
Monteiro, M. C. N.; Cabral, M. A. A.; Jodelet, D.

A morte, poderia estar sendo sentida como mos defender que é possível minimizar os
uma perda irreversível, brusca, evocando sen- maus-tratos contra os filhos, através de pro-
timentos de tristeza, sofrimento e agressão, que gramas ligados à proteção social do Estado e,
também constituem o núcleo da expressão vio- principalmente, por meio de estímulos efica-
lência familiar no grupo de estudo (Tabela 2). zes nas áreas de educação, saúde e cultura.
Em 83,3%, as representações sociais da vio- Os adolescentes, através de seus gestos, fa-
lência doméstica traduzem atos e comporta- las e (ou) silêncio, parecem apreender o mun-
mentos agressivos vivenciados por esta popu- do e a realidade que os cerca, sem saber o que
lação, ou seja, os adolescentes expressaram lhes espera no futuro, como indivíduos e ci-
aquilo que estava inscrito em suas histórias de dadãos. As representações das violências pra-
vida. Não observamos somente a carência ma- ticadas por eles: assalto à mão armada, abuso
terial como o componente principal de suas sexual, agressão aos velhos, assassinatos em si-
representações sociais. Muito mais que a po- tuações específicas (defesa pessoal ou estresse),
breza material, percebemos a ausência das fun- foram consideradas leves e médias, atingindo
ções parentais na dinâmica familiar, dificultan- a escala de 5% a 10% em freqüências isoladas
do o desenvolvimento adequado da responsa- no grupo de estudo.
bilidade e manutenção da prole, através de As condutas anti-sociais, como fugir de ca-
uma renda mensal (66% das famílias ganham sa, chutar portas, gritar e xingar os parentes e
menos de um a três salários mínimos) que lhes amigos, lançar objetos nas pessoas atingiram as
garanta condições de sobrevivência com dig- freqüências de 25% nos adolescentes deste
nidade. mesmo grupo.
Na fala desses adolescentes, a ausência dos Desta forma, podemos considerar que a
pais foi traduzida pela falta de harmonia, se- banalização da violência é, também, uma con-
renidade, amor e carinho que, somente alguns, seqüência de vê-la, diariamente, em casa, nas
tiveram a oportunidade de vivenciar. Na aná- ruas e na mídia, fazendo parte do cotidiano
lise do significado destas representações so- das pessoas, quando todos podem participar
ciais, a falta acaba por atingir o mundo dos dela, como agentes ou vítimas. São significa-
sentimentos e das emoções. dos que demonstram não só o sadismo como
Observamos um discurso no qual as víti- uma necessidade de causar dor ao outro, mas,
mas, pais e filhos, parecem inimigos, represen- principalmente, o exercício do domínio dos
tantes dessa unidade social, em que os adoles- adultos entre si e (ou) em direção à criança
centes expressam o seu ódio e revolta. Em meio agredida. Nesta ênfase, o masoquismo, como a
a sentimentos de desesperança, os adolescen- aceitação às situações de constrangimento e
tes revelam, em seus discursos, conflitos psi- humilhação descritas pelos adolescentes em
cossociais e contradições entre o desejo pessoal seus relatos, enfatiza os atributos rejeitados
e a realidade social, da qual fazem parte na po- em sua auto-imagem, que devem merecer a re-
sição de excluídos. flexão dos gestores públicos no que concerne
Certamente não existirão respostas para às políticas de saúde mental e de educação.
esses comportamentos, se não pensarmos na As representações sociais da violência do-
multicausalidade, presente neste fenômeno méstica estão qualitativamente relacionadas
psicossocial e imbricada em suas representa- ao alcoolismo e drogadição, gerando problemas
ções sociais, construída através de condições emocionais que podem desencadear compor-
de pobreza das famílias residentes em favelas e tamentos violentos no adolescente, indepen-
arredores de Campinas. Com isto, pretende- dentemente de fatores genéticos ou biológicos
mas, principalmente, ligados às influências
ambientais e sociais.
Entendemos o caminho político como uma
Tabela 2 das alternativas expressa pelos adolescentes,
uma possibilidade de minimizar os problemas
Palavras Contribuição relativa da violência doméstica, através do cumpri-
mento de providências previstas no Estatuto
Morte 0,052536
da Criança e do Adolescente e de ações de po-
Tristeza 0,037708
líticas públicas de proteção à família – meta
Sofrimento 0,027325
prioritária para prevenir, ou se pensarmos de
Agressão 0,022625
forma mais racional, para abolir os sentimen-
169

Ciência & Saúde Coletiva, 4(1):161-170, 1999


tos de desesperança, abandono, privação e des- generalizada, na medida em que ela possui ra-
proteção, simbolizados pela cronificação da mificações sociais e causa sofrimento a todos
violência doméstica. Essas representações os indivíduos, em todos os segmentos da so-
(83,33%) manifestam-se pela privação afeti- ciedade (Cardoso, 1980).
va; pela ausência do papel dos pais e de estru- Tanto na violência privada quanto na vio-
turação da célula familiar; e deficiência na ad- lência pública, 20% dos 90 adolescentes, reve-
ministração das relações interpessoais. Elas nos laram o desejo de mudanças sociais capazes
mostram relações conturbadas, enunciadas de evitar os efeitos de singularidades psicoló-
inicialmente pelos conflitos e depois pelas cri- gicas. Eles descreveram ações e desempenhos
ses que refletem maciçamente nas crianças e sociais que precisam de reações políticas em
nos adolescentes. Sendo a família uma insti- direção às atitudes antiéticas de pessoas que
tuição social, é dever do Estado definir uma detêm o poder, para prevenir e proteger a so-
política pública para protegê-la. ciedade das violências em geral, mas que agem
No grupo comparativo, as representações contrariamente: “um dia, um policial mandou
sociais da violência doméstica traduzem a eu encostar no muro, deu uma revista geral, pe-
ideologia do senso comum, em solicitação de diu dinheiro. Eu falei que não tinha, aí eles me
justiça associada ao sentimento de sofrer como chutaram, me mandaram embora, empurran-
características da solidariedade entre os ado- do...” “Não sei, até hoje, porque os policiais me
lescentes. Elas denunciam atitudes de auto mo- bateram...” “Apanhei da polícia, com pedaço de
ralização, como tentativa de se sanear a vio- madeira e recebi coronhadas”.
lência doméstica. A vunerabilidade psicossocial, tanto do
agressor quanto da vítima, requer, também, a
atenção dos profissionais das áreas de saúde
Considerações finais mental e educação. Em alguns relatos a psico-
patologia parece explicar os comportamentos
Procuramos destacar neste trabalho, o que os desviantes, embora, a grosso modo, a violência
adolescentes pensam, sentem e elaboram so- doméstica se apresente nesta pesquisa como
bre o abuso físico na infância e em quais áreas uma construção social, porque os comporta-
eles ancoraram suas representações sociais. mentos agressivos ou muito violentos dos pais
Após a análise minuciosa desse conjunto contra os filhos parecem munidos de um con-
de representações sociais, consideramos que junto de significado social que lhes dão esta
os temas-centrais aqui apresentados articu- referência (Doise & Papastamou, 1987).
lam-se com as disciplinas diretamente ligadas Consideramos que, através do cumprimen-
às propostas de prevenção primária e secun- to do Estatuto da Criança e do Adolescente e
dária que atendam não só à criança e ao ado- de políticas públicas de assistência à família –
lescente, após a agressão, mas que haja solu- meta prioritária na prevenção deste fenôme-
ção de continuidade e assistência integrada no social – seja possível abolir os sentimentos
aos equipamentos sociais, às unidades básicas de desesperança, abandono, privação e despro-
de saúde e aos hospitais e prontos-socorros. teção, simbolizados pela cronicidade de agres-
A assistência universalizada aos parentes sões físicas contra crianças e pelo desenvolvi-
protege a criança e o adolescente de modelos mento de comportamentos anti-sociais e vio-
de identificação inadequados, considerando- lentos desenvolvidos pelos adolescentes.
se que o contingente de agressores, que cons- Dos 90 adolescentes, 65% destacaram ca-
titui nossa complexa realidade social está au- tegorias que norteiam uma proposta interdis-
mentando, devido à nossa diversidade cultu- ciplinar de prevenção primária e secundária,
ral, que tem regras morais diferenciadas e que, através do desenvolvimento de políticas pú-
devido aos acontecimentos políticos e sociais, blicas que propiciem, efetivamente: 1) infor-
propiciam oscilações sócio-econômicas. mação e educação, proteção familiar e social,
Dentre os temas centrais de prevenção, os assistência médica e psicológica às crianças e
resultados desta pesquisa revelam, também, aos adolescentes vitimados, possibilitando seu
que as representações sociais da violência do- desenvolvimento mental e emocional saudá-
méstica ou familiar estão associadas indireta- veis; 2) assistência à saúde mental das famílias
mente à ausência de proteção do Estado, que em sofrimento mental, visando curar as se-
deveria proporcionar mecanismo na luta con- qüelas psicológicas; 3) implantação de progra-
tra esse arbítrio cotidiano e contra a violência ma interdisciplinar direcionado ao atendimen-
170
Monteiro, M. C. N.; Cabral, M. A. A.; Jodelet, D.

to a alcoolistas, dependentes químicos, desem-


pregados e desajustados sociais, buscando o
equilíbrio afetivo, social e cognitivo, integrado
ao ambiente familiar; 4) formação e orienta-
ção de policiais, quanto à abordagem e con-
dutas direcionadas às crianças e aos adoles-
centes, no desempenho de seus trabalhos.

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