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As múltiplas variações para conjugar a pobreza no feminino

Artemisa Coimbra

A Plataforma de Acção (PAP) – documento de política global


resultante da Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em
Pequim, em 1995, e prosseguida em 2000, 2005, 2010 – identificou doze
Áreas Críticas que constituem entraves à promoção das mulheres e que, por
esse facto, devem ser objecto de acções específicas: as mulheres e a
pobreza; a educação e a formação das mulheres; as mulheres e a saúde; a
violência sobre as mulheres; as mulheres e os conflitos armados; as
mulheres e a economia; as mulheres, o poder e a tomada de decisões; os mecanismos institucionais
para a promoção das mulheres; os direitos humanos das mulheres; as mulheres e os meios de
comunicação social; as mulheres e o ambiente; e as raparigas. Deu igualmente primazia à noção de
género e à necessidade de incluir a igualdade entre mulheres e homens em todas as instituições,
políticas e acções dos Estados que integram as Nações Unidas como uma questão de direitos
humanos.
É neste contexto que se enquadra a pobreza no feminino e se a entende como a negação
parcial ou total de direitos humanos fundamentais das mulheres.
As sociedades contemporâneas ainda assentam numa base genderizada socialmente desigual,
pelo que é necessário confrontar as desigualdades de poder e práticas discriminatórias, a fim de
confrontar os discursos, as linguagens e os modelos de cidadania marcados pela desigualdade e
exclusão, como argumenta Madeleine Arnot (2003, em Coimbra, 2008). Por estes motivos, a análise
da pobreza das mulheres, ou pobreza no feminino, não pode ser perspectivada apenas por uma
variável.
A participação das mulheres na actividade económica tem sido exponencialmente crescente.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de actividade das mulheres, em
Portugal, tem vindo a aumentar na última década, e, nos últimos dois anos, passou de 51,8%, em
2008, para 56%, em 2009. Ora, isto pressupunha uma melhoria dos seus rendimentos. Contudo, tal
não se verifica, ocorrendo um agravamento da sua situação em termos de pobreza, contrariamente
ao que se passa com os homens.
Este paradoxo foi explicado em 1978 por Diana Pierce que introduziu a noção de
feminização da pobreza, realidade que catapultou para a agenda a importância da perspectiva do
género nos estudos sobre a pobreza.

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A partir de diferentes entendimentos de pobreza no feminino, definiram-se três conceitos de
pobreza distintos: pobreza monetária, privação e pobreza subjectiva (Pereirinha et al.,2007).
O primeiro conceito, pobreza monetária, assenta sobretudo na variável rendimento, indicador
usado para avaliar a posição das mulheres em termos de bem-estar face a um nível mínimo
estabelecido normativamente.
O segundo conceito, privação, entende-se como o estado de privação das mulheres face a um
mínimo de necessidades de bem-estar considerado aceitável para se viver em sociedade, por força
da escassez de recursos materiais e imateriais, onde os recursos económicos constituem somente
uma das dimensões.
O terceiro conceito, pobreza subjectiva, avalia o bem-estar social percepcionado pelas
mulheres, ou seja, a sua conscientização do grau de privação relativamente à situação considerada
desejável em termos de bem-estar.
A pobreza no feminino passa a ser entendida não só em termos de ausência ou falta de
rendimento(s), mas em função de muitos e variados outros aspectos do bem-estar que integram
especificidades associadas às mulheres. Pereirinha et al. (ibidem) esquematizam estas interligações
da seguinte forma:

Como a pobreza não é neutra, a ferramenta analítica adequada à análise da feminização da


pobreza é, assim, a da perspectiva de género.

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Não sendo possível explanar com mais profundidade esta questão, dado o contexto a que se
destina a presente reflexão, fiquemos com as inferências de algumas dessas dimensões, recorrendo
ao relatório de 2007 sobre a pobreza no feminio em Portugal, de Pereirinha et al (ibidem).
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• [quanto ao] rendimento, diferentes formas de obtenção e gestão dos recursos financeiros que
poderão existir dentro da família e que muitas vezes conferem uma posição desfavorável à
mulher;
• desenvolvimento de formas contratuais mais flexíveis e de vínculo precário, medidas que
incidem sobretudo nas mulheres, com repercussões inevitavelmente negativas nos anos
vindouros da reforma;
• as mulheres desempenham funções sobretudo nos sectores tradicionais do comércio, do
alojamento, da restauração e nos serviços sociais e pessoais;
• apesar de mais escolarizadas do que os homens, as mulheres portuguesas ocupam
geralmente posições hierárquicas inferiores relativamente aos homens, auferem menores
remunerações e detêm contratos de trabalho menos favoráveis, quer em termos de vínculo
como de horário;
• a taxa de desemprego feminino é superior à taxa de desemprego masculino, tanto em termos
de curto como de longo prazo;
• [no] agregado [familiar], as situações de pobreza ocultada de alguns membros da família,
nomeadamente daqueles que detêm tradicionalmente menor poder, como sejam as mulheres
e as crianças;
• em muitas famílias, as mulheres (…) são mais penalizadas pelas assimetrias de poder na
relação conjugal, que se traduz, no limite e num número considerável de casos, em violência
doméstica;
• situações de privação vivenciadas de forma diferenciada no seio da família, designadamente
pelas mulheres, que tradicional e culturalmente detêm um papel mais gregário do que o
homem e que, por isso, chamam preferencialmente a si as carências;
• do ponto de vista do ciclo de vida, a pobreza para as mulheres pode agravar-se no período
de transição da vida escolar para o mercado de trabalho e, mais tarde, na fase de reforma;
• as alterações na composição da família, em particular a ocorrência de divórcio ou separação,
reflectem-se de forma particularmente gravosa nas mulheres;

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• a monoparentalidade é crescente: em cerca de 80% das famílias o representante é do sexo
feminino. Estes agregados são particularmente vulneráveis à pobreza, uma vez que muitos
deles dependem exclusivamente do rendimento materno;
• a escassez de oferta de equipamentos públicos de apoio quer para crianças como para idosos
tem consequências particularmente negativas nas mulheres, uma vez que são estas quem
tradicionalmente se ocupam destes elementos do agregado;
• cumulativamente à profissão, é às mulheres que cabe preferencialmente o cuidado dos filhos
e as tarefas domésticas, os quais representam trabalho não pago.»

Aproveitemos esta última inferência e retiremos conclusões sobre a acentuada assimetria na


partilha do trabalho não pago entre mulheres e homens a partir do seguinte quadro:

Quadro 1 – Tempo de trabalho semanal da população com emprego, por sexo (horas e minutos)

Tempo de trabalho Tempo de deslocação Tempo de Tempo de


pago (casa-trabalho-casa) trabalho não trabalho total
pago
Homens 43h30 2h48 9h24 55h42
Mulheres 41h06 2h36 25h24 69h00
Fonte: Cálculos próprios, com base em European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions,
4.º Inquérito Europeu às Condições de Trabalho, 2005.

Estes dados, inseridos no Relatório do CITE de 2006-2008, mostram que, “em média, os
homens afectam, em cada semana, mais 2 horas e 24 minutos ao trabalho pago (emprego principal e
segundo emprego, quando este existe) do que as mulheres. No entanto, em relação ao trabalho não
pago – tarefas domésticas, prestação de cuidados a crianças e prestação de cuidados a familiares
idosos/as ou com deficiência - as mulheres despendem semanalmente mais 16 horas, por
comparação com os homens. Daqui decorre um tempo de trabalho total (no qual se contabiliza
também o tempo de deslocação casa-trabalho-casa) que é claramente superior para as mulheres,
num diferencial que, em cada semana, ultrapassa as 13 horas.”
Assim como a divisão sexual do trabalho gera formas de injustiça distributiva genderizada,
também o androcentrismo se reflecte em diversas áreas da vida: no direito (leis da família, código
penal), moldando as construções legais dos conceitos de privacidade, autonomia, igualdade, até às
políticas governamentais, incluindo as reprodutivas, na ciência e na cultura, contribuindo para a
estereotipia e para a aniquilação simbólica das mulheres. Estas são algumas questões que reclamam
reconhecimento e, como argumenta Nancy Fraser (2003), “a injustiça de género só pode ser
remediada por uma aproximação que inclua ambas as políticas de distribuição e reconhecimento”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COIMBRA, Artemisa (2008) – Crónicas de mortes anunciadas – Violência doméstica, imprensa e
questões de género em articulação com a educação da cidadania, Dissertação de Mestrado,
Porto: FPCEUP

Declaração e Plataforma de Acção de Beijing (Pequim) (2010), Nova Iorque, Nações Unidas.
[Online], http://www.un.org/womenwatch/daw/beijing15/index.html, 22/03/2010

FRASER, Nancy e HONNETH, Axel (2003), Redistribution or Recognition. A political-


-philosophical exchange, Londres: Verso

PEREIRINHA, J. A. [coord.], BASTOS, A., MACHADO, C., NUNES, F., FERNANDES, R.,
CASACA, S. F. (2007), Género e Pobreza: Impacto e Determinantes da Pobreza no Feminino –
relatório Final – Versão provisória sujeita a revisão. Mimeo

RELATÓRIO do CITE de 2006-2008. Mimeo

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