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Universidade Federal Fluminense (UFF)

Departamento de Filosofia (GFL)


Avaliação de Filosofia e Cultura I
Gianluca F. B. Vilela
31/10/2017

Na década de 1930, Walter Benjamin se dedica ao tema da experiência em ensaios como A obra
de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (escrito em 1935 e publicado pela primeira vez em
1936), O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936) e Sobre alguns temas em
Baudelaire (1939). Tratam de modificações das manifestações artísticas e do modo como são
experienciadas, que correspondem aos processos históricos ocorridos nas sociedades modernas.

Em Sobre alguns temas em Baudelaire, Benjamin analisa, a partir da trajetória do poeta francês,
a relação entre o tema da experiência e a formação da metrópole moderna, que tem Paris como o
seu paradigma. A análise começa por uma investigação acerca do sucesso de público obtido em As
flores do mal (1857), a principal obra de Charles Baudelaire: como isso foi possível, já que “as
condições para a recepção da poesia lírica se deterioraram”?1

Desde o final do século XIX, Benjamin percebe a existência de correntes filosóficas que
perseguem a formulação de uma “verdadeira” experiência em contraponto com aquela que “se
manifesta na vida normalizada, desnaturada, das massas civilizadas”, oferecendo o exemplo da
filosofia de Henri Bergson.2 Benjamin localiza em Marcel Proust, romancista do século XX
influenciado por Baudelaire, como um autor que testou a teoria da experiência de Bergson através
da distinção entre memória voluntária e memória involuntária. No primeiro volume de Em busca do
tempo perdido (“No caminho de Swann”, de 1913), o narrador relembra da sua infância em
Combray se utilizando de sua memória voluntária, que armazena informações de caráter individual,
fragmentária e pobre. Após o seu esquecido ritual da madeleine com chá, ele acessa a memória
involuntária, que tem a capacidade de resgatar experiências simultaneamente individuais e
coletivas, contínuas e ricas.

Em seguida, Benjamin vai até Sigmund Freud para aprofundar a sua investigação sobre a
memória voluntária e a memória involuntária em Proust. Tendo em vista aqueles que passaram por
circunstâncias traumáticas, Freud formula uma teoria sobre os choques perceptivos, em que a
consciência tem a função de apará-los por uma questão de autopreservação. Por conta desse
mecanismo de defesa contra o choque, Benjamin sustenta que a lembrança consciente é pouco

1 BENJAMIN, 2006, p. 106.


2 Ibidem.
fecunda para a experiência digna de produção poética, podendo se questionar: “até que ponto a
poesia lírica se pode fundar numa experiência para a qual a vivência do choque se tornou norma”?3

A partir dos diálogos entre Proust e Freud, Benjamin apresenta a distinção entre experiência e
vivência. A primeira está associada à memória involuntária proustiana e ao inconsciente freudiano,
que a distensão psíquica permite um contato acumulativo com os acontecimentos, enquanto a última
tem o esquema da memória voluntária e da lembrança consciente, que a neutralização perceptiva
impede que seja desfrutado a completude e a singularidade dos acontecimentos. As duas noções
correspondem a um tipo de experiência, que está atrelada a uma correspondente percepção espaço-
temporal, sendo a vivência considerada a experiência vivida pelo indivíduo moderno, enquanto a
experiência propriamente dita (e a capacidade de compartilhá-la) se encontra atrofiada no período
moderno.

Com essa diferenciação, Benjamin introduz uma das teses centrais do seu ensaio, que é um
diagnóstico da modernidade do século XIX e diz respeito sobre a experiência do choque. Uma vez
que a consciência apara o choque, as impressões estarão mais próximas do conceito de vivência, já
que o indivíduo não se deixa atravessar por experiências:

Quanto maior for a participação do momento de choque em cada uma das


impressões recebidas, quanto mais constante for a presença da consciência no
interesse da proteção contra os estímulos, quanto maior for o êxito dessa sua
operação, tanto menos essas impressões serão incorporadas na experiência, e tanto
mais facilmente corresponderão ao conceito de vivência. (BENJAMIN, 2006, p.
113)

Tendo em vista a tese sustentada, Benjamin defende que Baudelaire apenas conseguiu encontrar
leitores para os seus poemas, mesmo em tempos de deterioração da poesia lírica por conta da
normalização da vivência do choque, porque ele foi capaz de colocar “a experiência do choque no
âmago do seu trabalho artístico”.4 Segundo Benjamin, Baudelaire conseguiu a façanha de produzir
poesia lírica com base na experiência vivida pelo metropolitano moderno.

Apesar de não ser um tema central em 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono (2013),
Jonathan Crary trata sobre a experiência e a influência das novas tecnologias sobre o aparato
perceptivo. 24/7 é uma abreviação mais comumente utilizada na língua inglesa e significa “24 horas
por dia, 7 dias por semana”. Essa expressão é utilizada para falar de atividades ininterruptas que
3 Ibidem, p. 112.
4 Ibidem, p. 113.
acontecem no decorrer de um tempo homogeneizado. Para Crary, o sistema capitalista anseia
produção e consumo na temporalidade 24/7, já havendo empresas que operam nesse sentido. No
capitalismo contemporâneo, ou tardio, o sono é contraproducente demais para ser sustentado, por
isso haveriam pesquisas que buscariam reduzir a necessidade humana de dormir. 5 A tese central do
livro é de que o sono é a última barreira do capitalismo, sendo que este é, nesse momento, “uma
experiência desligada de ideias de necessidade e natureza”, porque existem meios artificiais de
conseguir o seu domínio mesmo que parcial.6

Assim como Benjamin, Crary pretende fazer um diagnóstico da modernidade a partir do ponto
de vista perceptivo. Em algumas de suas referências, chega a remontar a René Descartes, John
Locke e David Hume para exemplificar “alguns dos filósofos que desprezavam o sono por sua
irrevelevância para o funcionamento da mente e para a busca do conhecimento”. 7 De alguma forma,
esses filósofos modernos antecipam uma certa desvalorização do sono na vida em sociedade a partir
dos séculos XVII e XVIII.

Certas inovações técnicas na modernidade são reflexos para modificações perceptivas em Crary,
assim como em Benjamin. A iluminação pública fez com que as pessoas circulassem, consumissem
e trabalhassem por mais tempo com a promessa de mais segurança. Era uma medida que permitiria
a instauração da temporalidade 24/7 na vida de várias pessoas durante gerações. A ideia de
iluminação perpétua está muito presente nos planos de metrópoles modernas e abala tanto a
percepção que se pode ter do dia, assim como que da noite. Crary afirma que “24/7 é parte de uma
imensa incapacitação da experiência visual”.8

É sabido que o tempo atual está imerso por novas tecnologias que se incorporam ao dia-a-dia em
uma velocidade estonteante, principalmente para aqueles que vieram de gerações anteriores. Crary
está atento às pesquisas de domínio sobre o sono, assim como ao fenômeno cotidiano das pessoas
que estão cada vez mais dependentes de seus smarthphones; e Benjamin estava analisando a
extensão do trabalho fabril na vida dos operários, assim como a relação entre arte e reprodução
técnica, especialmente cinema e fotografia.

Uma vez que há semelhanças entre os diagnósticos de Benjamin e Crary, pode-se entender que o
ponto de convergência está no tema da experiência, presente em Sobre alguns temas em Baudelaire
e 24/7. Apesar de Crary não falar especificamente de manifestações artísticas e suas transformações

5 No capitulo um, Crary apresenta alguns exemplos de tentativas de domínio sobre o sono: os estudos de
pesquisadores estadunidense sobre o pardal de coroa branca, que consegue migrar por longas distâncias sem
dormir; o anúncio de um consórcio espacial russo-europeu para instalação de satélites com o objetivo de iluminar
regiões remotas; as técnicas de privação de sono como formas de tortura em prisões, como Guantánamo. C.f.
CRARY, 2014, p. 11-18.
6 Ibidem, p. 22.
7 Ibidem, p. 21-22.
8 Ibidem, p. 42.
(mesmo citando algumas referências das artes visuais), como Benjamin, os seus estudos indicam
um empreendimento sobre a internet, as redes sociais e as “novas máquinas” no âmbito da
“redefinição da experiência e da percepção”:

No momento, a operação e os efeitos particulares de novas máquinas ou redes específicas


são menos importantes do que a redefinição da experiência e da percepção pelos ritmos,
velocidades e formas do consumo acelerado e intensificado. (CRARY, 2014, p. 48)

Percebe-se a semelhança dos diagnósticos de Benjamin e Crary no que diz respeito ao tema da
experiência, sobretudo na relação entre transformações técnicas e modos de percepção sensorial.
Aliás, Crary lembra da visão dos críticos do século XIX, aqueles que eram da época de Baudelaire.
Essa tradição enxerga a “padronização da experiência” como “uma das características definidoras
da modernidade ocidental”.9

Mesmo assim, trata-se de abordagens distintas: Benjamin está analisando principalmente as


manifestações artísticas, enquanto Crary trata sobre a organização temporal das comunidades
humanas; e de épocas distintas: Benjamin está pensando nos processos históricos que remetem às
grandes metrópoles do século XIX, enquanto Crary localiza especialmente os fenômenos do
capitalismo atual, que estão associados ao ambiente digital da internet.

Por mais que Benjamin esteja tratando do que Crary considera um processo de homogeneização
do tempo, ao dizer que “o indivíduo que se vê privado de experiência sente-se como se tivesse sido
expulso do calendário”, ele não tem a organização temporal como ponto central do seu ensaio. 10
Crary se propõe a refletir a temporalidade 24/7, como uma lógica almejada no sistema capitalista,
ao falar, por exemplo, que "(...) a vida cotidiana é o repositório no qual os rudimentos persistentes
da experiência pré-moderna, incluindo o sono, são realocados" 11, ou seja, que a instância da “vida
cotidiana”, ou pública, se apresenta como resistente aos planos de domínio sobre o sono e a
consolidação do projeto de consumidor e trabalhador 24/7.

Portanto, a diferença dos diagnósticos de Benjamin e Crary reside nos estágios do capitalismo
que expõem. Benjamin pensa no surgimento das grandes metrópoles e a sua relação na obra de
Baudelaire, que retrata, por exemplo, a “paixão à última vista” em meio ao cenário urbano em seu
poema “A uma passante”; também apresenta Egdar Allan Poe, uma das maiores referências
literárias de Baudelaire, em seu conto intitulado “O homem da multidão”, que tem as massas de

9 Ibidem, p. 86.
10 BENJAMIN, 2006, p. 139.
11 CRARY, 2014, p. 78.
Londrês como protagonista. Os “encontrões da multidão” estão imanentes na obra de Baudelaire,
segundo Benjamin, e se apresenta como uma experiência característica da modernidade:

Ser presenteado com os encontrões da multidão é uma experiência que Baudelaire


assinala, entre todas as outras que fizeram da sua vida aquilo em que ela se tornou,
como determinante e inconfundível. (BENJAMIN, 2006, p. 148)

Crary pensa na instauração do mundo digital no contexto do capitalismo contemporâneo e os


seus impactos perceptivos, sobretudo sobre o sono. Segundo Crary, o sono deve ser preservado “no
nível mais mundano da experiência cotidiana”, evitando os danos aos indivíduos e às comunidades
humanas.12 A indistinção entre o âmbito público e o âmbito privado é uma das características
determinantes para o colapso do sono e, por sua vez, da vida em sociedade na atualidade. Crary
defende que não existe vida possível no capitalismo 24/7, mas mostra no início do seu ensaio, de
forma apocalíptica, alguns experimentos que buscam mascarar as limitações dos seres humanos,
sendo exemplificado pela necessidade de sono, considerada até então “natural”:

Não é possível harmonizar seres vivos com as demandas do capitalismo 24/7 , mas existem
inúmeros incentivos para suspender ou disfarçar ilusoriamente algumas das limitações
humilhantes da experiência vivida, seja emocional ou biológica. (CRARY, 2014, p. 109-
110)

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”. In. A modernidade. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2006.

CRARY, Jonathan. 24/7. O capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ed. 34, 2014.

12 Ibidem, p. 137.

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