Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
193
OS DOMÍNIOS DE INANNA:
PERMANÊNCIAS DE UM CULTO AO
SAGRADO FEMININO NA MESOPOTÂMIA
The kingdoms of Inanna: permanecenses of
worship in the sacred feminine in Mesopotamia
Simone Aparecida Dupla*
RESUMO
O presente artigo analisou o culto ao sagrado feminino entre os perío
dos de Uruk antigo e o paleobabilônico, através da deusa sumério/
babilônica Inanna/Ishtar, e justificou a sobrevivência desse culto tribal
cuja característica principal foi a prática do hieros gamos como relação
dessa divindade com o inconsciente coletivo. Inanna era um arquétipo
mutante que, tendo sua origem na noite dos tempos, transformou-se em
um culto estatal onde garantia o poder temporal do rei através do rito
do casamento sagrado e sua própria sobrevivência devido às rupturas
que ocorreram no culto à fertilidade.
Palavras-chave: sagrado feminino; hieros gamos; mito; inconsciente
coletivo; Inanna.
ABSTRACT
The present article was analyzed the sacred cult to the feminine enters
the periods of Uruk and to old Babilonian, through the Sumerian/
Babilonian goddess Inanna/Ishtar, and justified the survival of this tribal
cult whose main characteristic practice was it of it Hieros Gamos as
relation of this deity with the collective unconscious. Inanna was one
archetype mutant that having its origin in the night of the times it was
changed into a state cult where guarantee the secular power of the king
through the rite of the sacred marriage and its proper survival due the
ruptures that had occurred in the cult the fertility.
Key-words: sacred feminine; sacred union; myth; collective uncons-
cious; Inanna.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
194 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 195
3 WOLKSTEIN, Diane; KRAMER, S. N. Inanna: Queen of heaven and earth. New York:
Harper & Row, 1983.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
196 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 197
5 ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 16.
6 ELIADE, op. cit., 2008, p. 9.
7 McCALL, Henrietta. Mitos da Mesopotâmia. São Paulo: Moraes, 1999. p. 74.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
198 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 199
O mito, sendo uma narrativa sagrada e/ou estatal, deve ser reme-
morado, lembrado por todas as gerações, e são esses documentos orais,
textuais ou arqueológicos que nos permitem compreender essas culturas,
seus universos mentais e narrar por nossa vez sua história.
A religião e a religiosidade mesopotâmica mantiveram presentes
seus principais mitos nas novas formas de culto que, assim como a socieda-
de, se dinamizaram após a urbanização, buscando, dessa forma, integrar o
florescente ambiente citadino às antigas manifestações religiosas do campo
originadas com a agricultura, posteriormente unida à pecuária, preservando
assim uma tradição religiosa milenar.
11 BOTTERÓ, J. La religión más antigua: Mesopotamia. Madrid: Trotta, 2001. p. 47. (a)
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
200 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
12 Id., p. 83.
13 JUNG, op. cit., p. 20.
14 SANTOS, Antonio Ramos dos. O sagrado na Balilónia antiga. Lisboa: Cadmo, 1997,
p. 70.
15 Podemos acrescentar que suas raízes ou função primeva permaneceram inalteradas, que
sobreviveram no inconsciente coletivo, já que, ainda segundo Jung, os arquétipos tornam-se conscientes
apenas parcialmente. Perpetuados no inconsciente coletivo, os mitos adaptam-se à situação social vigente,
guardando em sua essência as características de seus arquétipos primordiais.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 201
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
202 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 203
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
204 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
cantaram hinos a Inanna durante a festa do hieros gamos, entre eles Iddin-
-dagan,26 Gudea27 e Su-Su’em.28
Além disso, vários reis foram objeto de hinos que referenciavam
sua pessoa como o “santo esposo de Inanna”, no hino a Enlilbani,29 “des-
tinado ao deleite de Inanna”, como o rei Shulgi,30 “desejado para esposo
de Inanna”, no caso do rei Lipit-Ishtar.31 Dumuzi tornou-se uma espécie
de avatar representado pelos reis que se sucederam no trono da Mesopotâ-
mia, encarregados de satisfazer as exigências da Jovem Senhora e garantir
prosperidade, fecundidade e fertilidade em todos os aspectos.
Como mostra o trecho a seguir, retirado de um balbale32 de Inanna:
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 205
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
206 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
39 A fragilidade da deusa pode ser percebida nas linhas do mito A árvore de Hullupu, onde
a divindade precisa de ajuda para desocupar a árvore que serviria para seu trono e sua cama. Para mais
detalhes do mito: WOLKSTEIN, Diane; KRAMER, S. N. Inanna: Queen of heaven and earth: her stories
and hymns from sumer. New York: Harper & Row, 1983.
40 Aquela que pratica o sexo sagrado, prostituta sagrada.
41 PEINADO, op. cit., p. 36.
42 Id., p. 40.
43 Gênero literário cuja recitação era acompanhada de instrumentos musicais.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 207
se algum deus pode comparar-se a ela e diz ainda o poeta: “Los dioses son
bandadas de (temerosos) pajáros, (pero) yo soy reina, yo!”.44
A sede de poder e glórias de Inanna parece ilimitada, os mitos
revelam que ela vai conquistando aos poucos todos os domínios, pois con-
quistou os Mes (Medidas Sagradas) do deus Enki, o Eanna do deus An e até
mesmo o Grande Abaixo ou Mundo Inferior da deusa Erishkigal, embora
este último apenas parcialmente e por um preço bem alto.
A Senhora do Entardecer era sublime, cantavam os poetas, se ale-
grava quando os homens faziam amor e quando se exercitavam na guerra,
possuía características dos deuses maiores, como Utu e Nannar, quer dizer,
era tão resplandecente quanto o sol ao alvorecer e como a lua à noite.
As oferendas a Inanna eram as mais variadas, eram acesos incensos
nos terraços ou em “lugares acolhedores” ou, ainda, nos corredores das
muralhas. Normalmente, eram colocados no alto para encher o céu com
perfumes, imolavam-se ovelhas, purificavam os altares para as oferendas,
onde encontrava-se todo tipo de libações.45
Esta manifestação de agradecimento à deusa com as oferen-
das remonta novamente aos primórdios do culto, pois se ofereciam em
agradecimento pela abundância e, em desejo de prosperidade, ofertavam
manteiga, frutas, cerveja de trigo, mel, vinho e flor de farinha,46 produtos
da terra, dádivas da própria deusa da vida. A flor de farinha indicava que
os campos estavam em flor, que a colheita seria favorável, assim como
os outros produtos indicavam prosperidade, fertilidade e fecundidade tão
caras ao homem mesopotâmico em sua vida material e demonstração de
prosperidade que refletia na vida espiritual.
Era na festa do hieros gamos que o culto a Inanna encontrava o
seu ápice, principalmente no momento do Grande Rito: o Akitu, pois os
documentos fazem menção a esta festa do Ano Novo, onde se comemorava
a abundância das colheitas, o êxito nas batalhas e onde a hierofania recriava
novamente o mundo e o homem tornava-se contemporâneo destes eventos.
Durante esse festival, havia a licenciosidade sexual, orgias sagradas
e profanas, sendo que o sexo desde épocas ancestrais era uma maneira de
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
208 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
47 Ibidem, p.44.
48 Ibidem, 1988, p.46.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 209
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
210 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
Considerações finais
53 BARBAS, Helena. A saga de Inanna (antologia de poemas). Lisboa: 2004 (revisão 2006).
p. 3.
54 Id., p.18.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto... 211
ciranda cultural e temporal no/do culto, pois ele ligava as práticas de piedade
popular (sua origem tribal) às legitimações das elites (estatais e religiosas).
Inanna foi uma divindade ligada a distintos campos de ação do ho-
mem religioso mesopotâmico, por ter sido uma deusa uraniana, como indica
seu nome: Senhora do Céu tem como uma de suas principais características
a soberania, no entanto, o modo de governar de Inanna possuía atributos
singulares, pois ela não governava apenas os homens, os deuses e a nature-
za, governava a força motriz que os fazia viver e sobreviver sobre a terra.
Os domínios de atuação da deusa Inanna sobreviveram às mudan-
ças de reis e de clima. Resistiu na mentalidade coletiva como arquétipo
mutante, modelo exemplar, sagrado entrelaçado ao profano, mundo divino
reflexo do humano e humano do divino. Mostrou sentimentos tão humanos,
como o ódio, o amor, a vingança, a volúpia, o desejo, mostrou sua face de
mulher caprichosa e arrogante, escolheu seus amantes de sangue nobre ou
plebeu, escolheu suas joias e seus reinos, estendeu seus territórios físicos e
espirituais. Tais características se estenderam às mulheres e influenciaram
seu modo de vida, tornando-as uma espécie de extensão da personalidade
da divindade.
Manteve sua essência de culto agrário mesmo no contexto do culto
estatal, os documentos escritos passaram do sumério para o acádio e a força
dessa tradição sobreviveu em cultos reencenados no decorrer de milênios.
As relações sexuais na Mesopotâmia possuíam um estatuto que
nossa concepção ocidental cristã desconhece e, portanto, torna difícil a
apreensão.
Inanna era a deusa do sexo por excelência, sua sexualidade ao
mesmo tempo humana e divina ditava regras comportamentais, estendia às
mulheres comuns o prazer divino, uma vez que servia de modelo à sociedade.
Era possível, portanto, que o sexo servisse como forma de encontro com o
sagrado, uma forma de prestar culto à divindade.
A extensão e a durabilidade temporal desse culto estiveram asso-
ciadas às suas relações com as classes populares, campesinos e citadinos
que alimentavam uma crença na deusa regente da vida e da morte. Essa
crença popular, de origem tribal, foi perpetuada através das festas, dos
hinos, dos templos e possivelmente também permitiu que algumas de suas
características sobrevivessem para além das fronteiras espaçotemporais,
para além da sociedade material extinta posteriormente.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR
212 DUPLA, S. A. Os domínios de Inanna: permanências de um culto...
55 O vocábulo aqui tem duplo sentido e refere-se tanto ao sentido junguiano como ao utilizado
por Eliade.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 193-212, jul./dez. 2012. Editora UFPR