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Transmissão causa mortis de direitos de propriedade

intelectual

TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS DE DIREITOS DE PROPRIEDADE


INTELECTUAL
The succession of intellectual property rights
Revista de Direito Privado | vol. 75/2017 | p. 191 - 208 | Mar / 2017
DTR\2017\464

Angelo Gamba Prata de Carvalho


Estudante de Direito da Universidade de Brasília. Integrante do Grupo de Estudos
Constituição, Empresa e Mercado. angelogpc@gmail.com

Área do Direito: Civil


Resumo: Os direitos de propriedade intelectual interpretam importante papel no
incentivo à inovação e, especialmente no caso dos direitos autorais, à criação artística e
científica. Embora seja de fundamental importância o estudo dos negócios bilaterais
envolvendo tais direitos, igualmente importante é a reflexão sobre a sucessão por morte
de tais direitos, tendo em vista a necessária proteção das obras do espírito humano após
a morte de seus criadores. Neste trabalho, em análise da doutrina e da jurisprudência
sobre direitos autorais, pretende-se esclarecer as peculiaridades do regime de sucessão
por morte desses bens incorpóreos, procurando tecer considerações acerca das
possibilidades para tais bens no campo do planejamento sucessório.

Palavras-chave: Sucessões - Propriedade intelectual - Direito de autor - Planejamento


sucessório - Bens Incorpóreos
Abstract: Intellectual property rights play an important role by incentivizing innovation
and – especially concerning copyright – arts and sciences. Even though it is essential to
study bilateral agreements regarding those rights, it is equally important to reflect about
its inheritance, considering the necessity to protect intellectual works after the creator’s
death. This paper, by analyzing the legal doctrine and the Brazilian case law on
copyright, intends to show the peculiarities of the inheritance of those incorporeal rights,
trying also to discuss the role of these rights on succession planning.

Keywords: Inheritance - Intellectual property - Copyright - Succession planning -


Incorporeal rights
Sumário:

1Introdução - 2Âmbito da proteção do direito de autor - 3A sucessão legítima dos


direitos de propriedade intelectual - 4A sucessão testamentária dos direitos de
propriedade intelectual: reflexões sobre o planejamento sucessório - 5Conclusão -
6Bibliografia

1 Introdução

Os direitos de propriedade intelectual, especialmente os direitos autorais, representam


importante incentivo à inovação e criação, de maneira que permitem aos autores de
obras literárias, artísticas e científicas a defesa da integridade de suas obras e, ainda, a
justa distribuição dos proventos decorrentes de sua reprodução ou exibição. Por essa
razão, os direitos autorais aparecem como um conjunto de direitos, apresentando-se, de
um lado, como direitos de personalidade do autor e, de outro, como direitos
patrimoniais.

A proteção da propriedade intelectual, apesar de receber normatização específica, está


submetida ao mesmo arcabouço normativo dos direitos reais, de maneira que a relação
entre autores e bens intangíveis advindos de seu esforço criativo é efetivamente de
propriedade. Nesse sentido, os direitos patrimoniais de autores podem ser livremente
transferidos para outrem, seja inter vivos, seja mortis causa.

Para o professor e bibliófilo José Mindlin, os familiares de escritores deveriam


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identificar-se como herdeiros em seus cartões de visita profissionais. Conflitos judiciais
concernentes a direitos autorais que já não mais pertencem aos autores das obras –
mas, sim, a seus herdeiros – levantam grandes controvérsias tanto em razão do
acentuado valor econômico de tais direitos quanto da especificidade do regime jurídico a
eles aplicável.

É certo que o Direito das Sucessões, conforme previsto pelo Código Civil
(LGL\2002\400), encontra aplicabilidade também no âmbito dos direitos de propriedade
intelectual, porém, suas normas são em alguma medida modificadas em razão da
natureza desses direitos e, antes de tudo, da necessidade de proteção conjunta dos
direitos morais e patrimoniais dos autores. Exemplo disso é o direito detido pelos
coautores sobreviventes de acrescer à parcela de direitos autorais que cabiam ao
coautor falecido sem deixar sucessores, previsto pelo art. 42, parágrafo único, da Lei
9.610/98. Além da sucessão legítima, a transmissão causa mortis de tais direitos levanta
importantes questões sobre o grau de amplitude do exercício da autonomia privada pelo
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autor que dispõe de seus direitos em ato de última vontade.

Neste trabalho, serão exploradas as características e as possibilidades da transmissão


causa mortis de direitos de propriedade intelectual no ordenamento jurídico brasileiro,
procurando elucidar tema pouco trabalhado pela doutrina nacional, embora seja dotado
de fundamental importância prática. Para tanto, inicialmente serão tecidas considerações
sobre o âmbito de proteção do direito de autor, de maneira a explicitar a sua estrutura e
a maneira por meio da qual aderem ao patrimônio dos indivíduos. Em seguida,
pretende-se expor a forma como a jurisprudência tem lidado com a legislação aplicável
ao tema para que, por fim, seja possível traçar um panorama dos limites e das
possibilidades do manejo de direitos de propriedade intelectual em planejamento
sucessório.
2 Âmbito da proteção do direito de autor

A Constituição Federal de 1988, no inc. XXVII de seu art. 5º, garante aos autores o
direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos
herdeiros pelo tempo que a lei fixar. No inciso seguinte, ficam assegurados o direito às
participações individuais nas obras coletivas e, ainda, o direito de fiscalização do
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aproveitamento econômico dessas obras. Dessa forma, a ordem jurídica procura
proteger as criações do espírito humano através da concessão de privilégios temporários
que garantem aos autores o direito de exclusividade sobre suas obras.

Os direitos de exclusividades proporcionados pela propriedade intelectual têm por


objetivo o incentivo à inovação e à produção literária e científica. Em contrapartida ao
esforço criativo envidado na elaboração de obras inovadoras, concedem-se monopólios
artificiais aptos a recompensar os autores e, de outro lado, o direito de atribuição de
autoria à obra. Nesse sentido, é importante distinguir Propriedade Industrial de
propriedade intelectual: ao passo que a primeira é associada aos bens de utilidade
industrial, isto é, as patentes de invenção, modelos de utilidade, marcas e outros direitos
descritos pela Lei 9.279/96, a segunda se refere à propriedade sobre as obras literárias,
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artísticas e científicas, comumente identificada com a noção de “direito de autor”.

Os direitos de exclusividade advindos da proteção do direito de autor podem ser


defendidos em grande medida em razão de serem os direitos reais o paradigma aplicável
à propriedade intelectual. Apesar de a propriedade intelectual receber tratamento
específico pela ordem jurídica brasileira – no caso dos direitos autorais, na Lei 9.610/98
–, aplicam-se subsidiariamente as normas do direito comum de propriedade, na forma
do Código Civil (LGL\2002\400), à medida que é dado aos autores usar, fruir e dispor de
suas obras, bem como o direito de sequela, condicionado inclusive por eventuais
máculas ao conteúdo de suas criações. Tal percepção, contudo, já encontrou forte
resistência sobretudo no direito alemão por autores de renome como Josef Kohler, para
quem o conceito de propriedade (Eigentumsbegriff) se tornaria cada vez menos preciso à
medida que fosse aproximado da ideia de propriedade intelectual (geistiges Eigentum),
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sendo prejudicial para o sistema jurídico a volatilização das diferenças entre a


propriedade de bens corpóreos (Sacheingentum) e o direito dos bens incorpóreos (
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Immaterialgüterrecht). Conforme ao que afirma Denis Barbosa, atualmente a aplicação
subsidiária do direito de propriedade comum à propriedade intelectual parece inevitável:

“A aplicação subsidiária das normas do direito comum em matéria de propriedade parece


ser inevitável. Segmento do Direito, fração divisionária do Direito Privado, as normas da
propriedade em geral não têm tamanha autonomia e continência a ponto de se tornarem
um direito a parte. Discute-se, isso sim, se é aplicável o regime geral dos direitos reais
àquelas ‘propriedades’ específicas, derivadas da aquisição originária, pela criação, do
privilégio ou registro (...). Ora, as ‘propriedades’ das patentes, direitos autorais e marcas
são direitos absolutos, exclusivos, de caráter patrimonial. Onde encontraremos normas
relativas a figuras jurídicas similares, senão nas disposições referentes com direitos
reais? Na inexistência de normas específicas e na proporção em que as regras aplicáveis
a coisas tangíveis o são à atividades humanas, os direitos reais serão paradigma dos
direitos de propriedade industrial”.

A identificação do direito de autor como direito de propriedade intelectual, nesse sentido,


permite que as criações do espírito sejam tuteladas por intermédio do instrumental
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reservado à defesa dos direitos de propriedade, munindo o autor de meios poderosos
para a proteção de suas obras. Vale notar que os direitos autorais apresentam também
especificidades importantes, como é o caso de sua limitação temporal, porém, é
importante esclarecer que tais direitos têm natureza complexa, desdobrando-se em duas
componentes principais: os direitos morais e os direitos patrimoniais de autor.
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Na verdade, conforme ao que sustenta Pontes de Miranda, os direitos autorais são um
feixe de direitos. De um lado, coloca-se o direito autoral como direito de personalidade
(direito moral do autor) e, de outro, como direito autoral de exploração econômica do
bem intangível. O direito de exploração econômica da propriedade intelectual parece ser
sua faceta mais simples, pois diz respeito justamente à contrapartida financeira que dá
estímulo à inovação e, com isso, pode ser traduzido em termos monetários. Ainda
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segundo Pontes de Miranda, o direito autoral de exploração é direito dominical, ou seja,
direito de propriedade propriamente dito, podendo o titular aliená-lo totalmente ou
alienar isoladamente algum dos seus elementos, a exemplo do direito de representação,
de edição, entre outros.

A noção de direitos morais de autor afasta-se da ideia de propriedade para integrar a


esfera dos direitos de personalidade, garantindo ao autor a prerrogativa de defender a
integridade de sua obra e sua liberdade de criação. Os direitos morais de autor estão
descritos no art. 24 da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98), a saber: (i) o de
reivindicar a autoria da obra (direito de paternidade); (ii) o de ter seu nome ou
pseudônimo utilizado como sendo o do autor, na utilização da obra; (iii) o de conservar a
obra inédita; (iv) o de assegurar a integridade da obra, podendo opor-se a quaisquer
modificações que possam prejudicar a reputação ou honra do autor; (v) modificar a
obra, antes ou depois de utilizada; (vi) retirar a obra de circulação, quando importar em
afronta à imagem do autor; e (vii) ter acesso a exemplar único e raro da obra quando se
encontrar em poder de outrem, com vistas a preservar sua memória.

Importa ressaltar que os direitos autorais devem observar determinados limites, bem
como a propriedade, que deve ser compatibilizada com outros direitos relevantes
enunciados também pelo texto constitucional. A grande limitação ao direito de autor sem
dúvida é o tempo, que estabelece, em homenagem ao interesse geral de acesso às
criações do espírito humano, termo final de fruição desses direitos. No direito brasileiro,
impõe o art. 41 da Lei de Direitos Autorais que o prazo de proteção aos direitos
patrimoniais é de 70 anos, contados do primeiro dia do ano subsequente à morte do
autor. Findo o prazo, a obra passará ao domínio público, na forma do art. 45 do mesmo
diploma. Observe-se que tal prazo se refere aos direitos patrimoniais, porém, a
Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário, determina em seu art. 6 bis que,
independentemente dos direitos patrimoniais e mesmo depois da cessão desses direitos,
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os direitos morais do autor conservam-se pelo menos até a extinção dos direitos
patrimoniais. Sustenta-se, ainda, que os direitos morais seriam imprescritíveis, podendo
o autor ou seus sucessores, a qualquer tempo, insurgirem-se contra o uso indevido,
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alteração ou não atribuição de créditos.

A Lei de Direitos Autorais traz disposições específicas sobre a transmissão dos direitos de
autor, porém, é pouco detalhista no que concerne à transmissão causa mortis desses
direitos. Nas seções a seguir, serão exploradas as possibilidades e os limites da
transferência dos direitos autorais pela via da sucessão legítima ou testamentária.
3 A sucessão legítima dos direitos de propriedade intelectual

Restando claro que a face patrimonial dos direitos de propriedade intelectual é análoga à
propriedade de coisas, é também lógico que caberá ao autor o direito exclusivo de uso,
fruição e disposição da obra literária, artística ou científica que produziu (Lei 9.610/98,
art. 28). Por serem direitos patrimoniais, transmitem-se por herança ou legado com o
advento da morte do autor. No direito brasileiro, os direitos patrimoniais de autor
perduram por 70 anos contados do dia 01 de janeiro do ano seguinte a seu falecimento,
obedecida a ordem sucessória da lei civil (Lei 9.610/98, art. 41). Dessa forma, é clara a
aplicação dos preceitos do direito sucessório aos direitos de propriedade intelectual.
Vale, nesse sentido, esclarecer as peculiaridades da sucessão desses bens incorpóreos
no direito pátrio, de maneira a elucidar a amplitude das possibilidades de disposição post
mortem desses direitos.

Ocorre que, em razão de os direitos autorais dividirem-se em direitos morais e


patrimoniais, o ordenamento brasileiro traz disposições específicas para cada uma
dessas faces da proteção das criações do espírito humano. Embora sejam os direitos
morais verdadeiros direitos da personalidade do autor e que, portanto, em regra não se
transmitiriam aos herdeiros, é importante que se discorra de forma específica acerca das
normas aplicáveis a esses direitos na sistemática do direito de autor, para que depois
seja melhor compreendido o regime aplicável aos direitos patrimoniais.
3.1 Os direitos morais de autor e a sucessão

Preceitua o § 1º do art. 24 da Lei de Direitos Autorais que, por morte do autor,


transmitem-se os direitos: (i) de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; (ii) o
de ter o nome do autor ou seu pseudônimo indicado ou anunciado na utilização da obra;
(iii) o de conservar a obra inédita; e (iv) o de assegurar a integridade da obra,
opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma,
possam prejudicá-la ou atingir o autor em sua reputação ou honra.

A exposição do dispositivo é importante para que se demonstre que, apesar de a lei


dizer que os direitos de autor se transmitem, é necessário que se compreende que, por
se tratarem de direitos da personalidade, são eles intransmissíveis. Tanto é assim que,
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segundo Gustavo Tepedino, os direitos de personalidade se extinguiriam “com a morte
do titular, em decorrência de seu caráter personalíssimo, ainda que muitos interesses
relacionados à personalidade mantenham-se tutelados mesmo após a morte do titular”.
Desse modo, não faria sentido sustentar que os direitos de personalidade do autor
seriam transmitidos a seus herdeiros, mas, sim, que caberá aos herdeiros a legitimidade
para defender a integridade e a autoria da obra, de maneira a resguardar os direitos do
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autor morto.
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É por essa razão que Giorgio Jarach sustenta serem transmitidas, na verdade,
faculdades decorrentes dos direitos morais de autor, e não propriamente os direitos.
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Acrescenta Pontes de Miranda, nesse ponto, que “Os titulares do direito autoral de
exploração e os titulares do direito à defesa da verdade e da honra dos mortos são
legitimados às respectivas ações e à questão prejudicial da identificação pessoal da
obra”. Dessa forma, a legitimidade para garantir a defesa dos direitos de personalidade
do autor falecido caberá tanto ao cônjuge, ascendentes e descendentes, legitimados à
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defesa da imagem do falecido (CC, art. 20, parágrafo único); quanto aos herdeiros dos
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direitos patrimoniais, tanto legítimos quanto testamentários. A legitimidade dos


herdeiros testamentários para agir em defesa da obra autor da herança foi, inclusive,
confirmada em interessantes ações ajuizadas perante o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro em razão de violação às obras do poeta Manuel Bandeira, quando foram
considerados aptos a ajuizar demandas visando à proteção da imagem do autor por
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alterações de suas obras.

Os herdeiros, segundo a doutrina francesa, são os “guardiões naturais da memória” do


autor (les gardiens naturels de as mémoire), de maneira que são legitimados para agir
em seu nome como depositários de seu pensamento e defensores de uma personalidade
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que sobrevive ao corpo físico, conforme assinalou Desbois. Ainda segundo o autor, seu
interesse pessoal nesse ponto é secundário, à medida que ele sozinho não é capaz de
garantir suficiente proteção aos interesses póstumos do autor. Por essa razão, os
herdeiros legítimos – em concorrência – somente serão os protetores legais dos direitos
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morais de autor se não houver pessoa designada em testamento para tal missão.

Observe-se, portanto, que os direitos de personalidade consubstanciados na noção de


direitos morais de autor não se transferem, com ocorre com todos os demais direitos da
personalidade. O que é transferível, na verdade, são as faculdades oriundas de tais
direitos para a defesa em juízo da personalidade do autor defunto. Tanto é assim que a
prerrogativa de defesa dos direitos morais está ligada também aos direitos patrimoniais,
tendo em vista que mesmo os herdeiros testamentários poderão acionar o Judiciário
nesse intuito. Trata-se, na verdade, de incidência do chamado “direito à nomeação”, isto
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é, a prerrogativa de ligar o nome do autor à obra. A nomeação da obra, por isso, é de
extrema relevância para o detentor dos direitos patrimoniais, à medida que seus direitos
pouco valerão se a obra não estiver associada ao nome de seu autor.
3.2 Os direitos patrimoniais

Pelo fato de serem direitos patrimoniais e, portanto, disponíveis, já se comentou que os


direitos autorais podem perfeitamente ser transmitidos pela via da herança. Cabe,
portanto, discorrer sobre algumas das controvérsias que circundam a sistemática da
sucessão legítima dos direitos de autor, tema pouco comentado pela doutrina brasileira.

A transferência da titularidade dos direitos de autor pela sucessão legítima importa, de


fato, na transferência da propriedade e das prerrogativas dela advindas, de modo que as
medidas tomadas pelos herdeiros para a defesa dos direitos do autor defunto não são
vinculadas pelos atos do autor quando em vida. Vale notar que o fato de o autor não ter
se insurgido em vida contra a utilização – ainda que comercial – de suas obras não retira
de seus sucessores a possibilidade de fazê-lo após a sucessão, pois o conjunto de
prerrogativas que a lei reconhece a todo criador intelectual sobre suas produções passa
aos seus sucessores, que se tornarão legitimados a defendê-las em juízo. Por essa
razão, os herdeiros do pintor modernista Di Cavalcanti puderam insurgir-se contra a
veiculação de obras do artista nas capas dos livros de Jorge Amado, o que jamais foi
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contestado pelo próprio pintor.

Apesar de parecer claro o regime aplicável à transmissão legítima dos direitos de autor,
questões de direito intertemporal poderão emergir dessa matéria, tendo em vista a
longa duração de tais direitos. Dessa maneira, ainda é comum que casos de direitos
autorais sejam apreciados à luz de diplomas antigos, e não da Lei 9.610/98.

Diferentemente do diploma anterior (Lei 5.988/73), a atual lei de direitos autorais não
limita a ordem de sucessão, razão pela qual são perfeitamente aplicáveis as regras do
Código Civil (LGL\2002\400). Contudo, a longevidade dos direitos de autor ensejam
questões de direito intertemporal, à medida que a lei anterior estabelecia prazos muito
mais alongados e que a sucessão regula-se pela lei vigente à época de sua abertura (CC,
art. 1.787). Segundo o diploma de 1973, os filhos, os pais ou o cônjuge do autor
gozarão de forma vitalícia dos direitos de autor que lhes forem transmitidos mortis causa
(art. 42, § 1º), ao passo que os demais sucessores gozavam de prazo de 60 anos para
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fruir dos direitos herdados (art. 42, § 2º). Observe-se que a lei de 1973, em seu art. 47,
considerava sucessores apenas os seus herdeiros até o segundo grau, na linha reta ou
colateral, bem como o cônjuge, legatários ou cessionários. Na lei de 1998, ora vigente,
aplica-se a ordem de vocação hereditária conforme exposta no Código Civil de 2002.
Note-se, no entanto, que a longevidade dos direitos autorais pode também ensejar
questões de direito intertemporal entre o Código Civil de 1916 e o de 2002, o que pode
ser ilustrado com dois casos concretos expostos a seguir.
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Em caso julgado em 2007 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, decidiu-se que a
sobrinha de Plínio Corrêa de Oliveira (fundador da conhecida Sociedade Brasileira de
Defesa da Tradição, Família e Propriedade, morto em 1995, antes da Lei 9.610/98), não
seria sua herdeira para efeito da Lei de Direitos Autorais, de maneira que os negócios
jurídicos por ela praticados para a cessão dos direitos do tio seriam nulos, tendo os
direitos passado ao domínio público por ausência de sucessores. O TJSP apreciou
questão relativa ao direito intertemporal também em 2004, quando julgou caso relativo
aos direitos autorais sobre as obras do escultor Victor Brecheret. No acórdão em
comento, afirmou-se a incidência das normas do Código Civil de 1916 à sucessão do
escultor, morto em 1955, de maneira que seus direitos foram transmitidos aos seus
filhos, com exclusão da viúva. Por essa razão, foi declarada nula a parte de contrato de
doação celebrado pela viúva que versava sobre a cessão dos direitos autorais de
Brecheret, pois a mesma não era titular desses direitos.

Importa, ainda, notar que os herdeiros não são obrigados a manter os direitos autorais
recebidos em sua indivisibilidade, sendo perfeitamente possível a realização de partilha
de tais ativos. Pode-se tanto partilhar direitos de obras diversas entre os herdeiros, em
havendo pluralidade de obras na sucessão, quanto partilhar direitos específicos que
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emergirem do feixe de direitos autorais. Por exemplo, é possível que se atribua a um
herdeiro o direito de reprodução da obra e a outro o direito de traduzi-la ou, em outro
exemplo, pode-se atribuir a um herdeiro o direito de reprodução da obra nos países
americanos, enquanto a outro herdeiro caberá reproduzi-la nos países europeus.

Em síntese, embora a sucessão de direitos autorais seja regulada pela Lei 9.610/98 e
subsidiariamente pelo Código Civil (LGL\2002\400), a sucessão por morte de tais direitos
apresenta peculiaridades importantes, verificáveis sobretudo em casos concretos.
Importante questão é a referente à passagem ao domínio público, que merece ser
abordada em item específico.
3.3 A transferência ao domínio público por força de lei

A passagem dos direitos autorais ao domínio público é questão de fundamental


relevância para a compreensão da sucessão causa mortis desses direitos, à medida que,
não havendo herdeiros, passarão ao domínio público, o que somente ocorreria
naturalmente no fim do período de fruição. É o que impõe o inc. I do art. 45 da Lei de
Direitos Autorais, segundo o qual pertencem ao domínio público as obras de autores
falecidos que não tenham deixado sucessores. Note-se, portanto, que aos direitos
autorais aplica-se regime especial no caso de falta de herdeiros, à medida que sua
propriedade não passa ao Estado (CC, art. 1822), mas, sim, ao domínio público, aqui
compreendido como “o conjunto de bens que não mais têm seus aspectos patrimoniais,
nem parte dos morais, submetidos ao monopólio legal (...), de modo que fica livre a
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qualquer pessoa fazer uso daquela obra, independentemente de autorização”.

A razão de ser dessa exceção à regra geral do Direito das Sucessões provém tanto do
interesse geral de que a obra caia no domínio público e seja, então, acessível ao público
geral, quanto dos embaraços eventualmente trazidos ao Estado se fosse incumbido de
gerir esses direitos. Caberá ao Estado tão somente a defesa da integridade da autoria da
obra caída em domínio público, na forma do § 2º do art. 24 da Lei 9.610/98.

Contudo, a excepcionalidade da ausência de herdeiros para direitos de autor torna


obscuro o procedimento aplicável a tais bens. Sabe-se que, não havendo herdeiros
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conhecidos, aplica-se o procedimento da herança jacente, constante do art. 738 e


seguintes do Código de Processo Civil de 2015. Sabe-se também que ao Estado não se
aplica o princípio da saisine – segundo o qual a herança se transmite no momento da
abertura da sucessão (CC, art. 1.784), pois ele não é herdeiro, mas, sim, um sucessor
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irregular, adquirindo a propriedade tão somente a partir da declaração de vacância.
Ocorre que não se trata propriamente de transmissão de propriedade ao Estado, mas do
fim do monopólio sobre as obras, representado pela passagem ao domínio público. A
dúvida sobre a questão se acentua sobretudo quando se verifica que o Superior Tribunal
de Justiça já pontuou que “não existindo herdeiros e sucessores, a obra cairá em
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domínio público automaticamente”.

Não parece defensável – e sequer foi desenvolvida pelo STJ no julgado acima citado – a
tese segundo a qual aos direitos autorais não se aplica o procedimento da herança
jacente e que, em contrapartida, aplica-se a saisine. Esse ponto de vista prejudicaria em
grande medida os direitos de herdeiros que sejam desconhecidos no momento da
sucessão. Não se pode perder de vista que direitos de propriedade intelectual refletem
relação de domínio e, portanto, podem ser quantificados em valores econômicos, de
maneira que seria ilegítima a supressão da propriedade dos herdeiros, ainda que a
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princípio desconhecidos. Por essa razão, em conformidade com a opinião de Pouillet, a
passagem das obras ao domínio público depende de uma sucessão vacante, sendo o
Estado legitimado para defender a integridade das obras tanto durante o período de
jacência quanto após a vacância.

Por fim, não se pode esquecer que as obras cairão em domínio público também em
razão do advento do termo final do direito de exclusividade próprio aos direitos autorais.
4 A sucessão testamentária dos direitos de propriedade intelectual: reflexões sobre o
planejamento sucessório

Expostos os contornos da sucessão legítima dos direitos autorais, a presente seção tem
por objetivo delinear as modulações pelas quais a autonomia privada permite que passe
a sucessão de direitos de propriedade intelectual. Embora seja o direito de autor matéria
regulada por lei específica e que dispõe de algumas regras próprias para a sucessão, tal
especificidade não tem o condão de tolher a vontade do autor no que diz respeito às
suas obras, mas, sim, de possibilitar exploração e circulação econômica de seus direitos
patrimoniais. O direito patrimonial de autor, como já se comentou, pode ser dividido em
diversos elementos, como direitos de reprodução em mídias diversas, de edição, de
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atualização, entre outros direitos que, como aponta Pontes de Miranda, estão
desatrelados dos suportes físicos que os representam.

Importa discorrer, dessa forma, sobre em que medida são válidas as cláusulas
testamentárias por meio das quais o autor reparte os elementos de seus direitos autorais
e, ainda, em que medida poderão essas cláusulas apartar o direito moral do direito
patrimonial, à medida que o direito brasileiro determina a sucessão de alguns dos
direitos morais do autor. Trata-se de discussão essencial para o tema do planejamento
sucessório e, no caso específico do direito de autor, para o cumprimento da última
vontade do titular dos direitos autorais no que concerne à manutenção e à defesa de sua
obra, tendo em vista as inúmeras dificuldades advindas de potenciais conflitos entre
herdeiros.
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O testamento, segundo Nevares, é negócio que serve à realização da dignidade da
pessoa humana, à medida que serve para que o particular estabeleça tanto a destinação
de seu patrimônio quanto a realização de atos concernentes a seus direitos de
personalidade. Trata-se de verdadeira função promocional do testamento, que se
apresenta no âmbito dos direitos autorais sobretudo nas determinações relativas ao
exercício do direito de paternidade, da integridade e da divulgação das obras. Por essa
razão, a ideia de planejamento sucessório adquire caráter especial, pois se refere não
apenas à divisão do patrimônio intelectual conforme à vontade do autor morto, mas
também à realização de sua vontade final. A publicação contrária à vontade do autor,
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por essa razão, será ilícita e não concederá justa causa ao privilégio de exploração
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econômica da obra.

Tal função promocional do testamento, apesar de ter por fundamento a necessidade de


respeito à vontade do autor, comumente entra em conflito com a noção de interesse
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geral ou interesse público. É claro que pretenso interesse público não poderá servir de
fundamento para suplantar direitos patrimoniais, porém, em que medida atos
extrapatrimoniais de última vontade podem ser desrespeitados em nome de interesse
maior do que o particular do autor? Caso clássico é o de Franz Kafka, que deixou para
seu amigo Max Brod tanto seus trabalhos publicados como os não publicados,
fornecendo instruções expressas de que as obras deveriam ser destruídas no advento de
sua morte. Brod desrespeitou o desejo de Kafka e, por isso, a humanidade pôde ter
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acesso a obras como O processo, O castelo e Amerika.

No caso de Kafka, não haveria quem reclamasse pelo respeito a seu desejo final, porém,
seria possível sustentar que herdeiros legítimos em casos semelhantes se insurgissem
contra ato do herdeiro testamentário que atentasse contra a vontade do testador. É
certo que os herdeiros ou legatários de direitos de propriedade intelectual detêm o
direito de publicar obra inédita, porém, a vontade do autor pode obstá-lo ou garantir tal
faculdade a terceiro. Contudo, não se pode esquecer que direitos autorais produzem
reflexos pecuniários e que, portanto, são de interesse também dos credores do autor
defunto.

Por essa razão, a menos que os herdeiros possam demonstrar que a publicação da obra
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inédita prejudicaria o bom nome do autor, os credores poderiam, no sentir de Stolfi,
pleitear judicialmente a publicação da obra para posterior incremento do monte
hereditário. Sendo demasiadamente gravosa, tal medida poderia ser substituída – na
discordância dos herdeiros – pela compensação dos credores pelos lucros não
percebidos. Não pode o ordenamento, por óbvio, aceitar que herdeiros, sem qualquer
motivo, recusem-se a publicar obra cuja edição não foi oposta pelo morto, prejudicando
em grande medida o direito de credores. Tal ponto de vista encontra guarida no direito
brasileiro, tendo em vista inclusive que, segundo o art. 1.813 do Código Civil
(LGL\2002\400), os credores poderiam até mesmo aceitar a herança em nome de
herdeiros que renunciassem a seus direitos sucessórios.

Expostas as linhas gerais sobre a função do testamento no planejamento sucessório de


direitos de propriedade intelectual, vale tecer considerações sobre alguns temas
específicos referentes à sucessão testamentária, especialmente no que toca ao alcance
das faculdades do testador.
4.1 Limitações à livre disposição dos direitos patrimoniais de autor

Embora seja legítima e recomendável a produção de testamento para a destinação


correta de direitos de propriedade intelectual, cumprindo importante função de
resguardo da dignidade do autor, a lei naturalmente impõe alguns limites à disposição
patrimonial. Com isso, é importante que se demonstrem esses limites e também as
possibilidades de que dispõem os testadores para o planejamento da sucessão de seus
direitos.

Partindo-se da noção de que direitos autorais são, na verdade, um feixe de direitos, é


natural concluir que sua transferência poderá ser total – quando o direito se transmite
juntamente de todas as faculdades a si atinentes – ou parcial – quando ocorre algum
33
tipo de cisão do direito de reprodução da obra. Assim, como já se comentou, é possível
que uma mesma obra possa ser transmitida a diversos herdeiros, que exercerão sua
propriedade no limite do que for estabelecido em testamento.
34
Segundo Pontes de Miranda, a cisão do direito de reprodução pode ser: (i) temporal;
(ii) espacial; ou (iii) de conteúdo, podendo esta ser diferida também no tempo e no
espaço e, ainda, ser qualitativa ou quantitativa. Com isso, pode um autor definir que o
direito de exploração vigerá por determinado período de tempo, constituindo
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Transmissão causa mortis de direitos de propriedade
intelectual

propriedade resolúvel a termo (cisão temporal); que um herdeiro somente poderá


explorar os direitos autorais no Brasil, enquanto outro pode fazê-lo no resto do mundo
(cisão espacial); que uma pessoa receberá o direito de reproduzir a obra em
representação teatral, ao passo que outra poderá reproduzir a obra em peça
cinematográfica (cisão de conteúdo qualitativa). É claro que, não havendo disposição
expressa sobre a cisão ou diferenciação entre elementos do direito patrimonial de autor
– direito de tradução, direito de reprodução, direito de edição, entre outros –
35
presume-se que a vontade do autor era a da transmissão total.

Diferentemente do que ocorre em outras jurisdições, como é o caso da portuguesa, o


direito brasileiro não impõe limitação de grau de parentesco para a sucessão de direitos
36
autorais. Contudo, o ordenamento pátrio impõe importante limitação à livre disposição
patrimonial dos indivíduos: a legítima, prevista pelo art. 1.846 do Código Civil de 2002,
segundo o qual pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens
da herança. Além disso, na forma do art. 2.002, não se pode esquecer que os
descendentes que concorrem à sucessão de ascendente comum são obrigados a igualar
as legítimas, de maneira a conferir o valor de doações que possam ter recebido em vida.

Com isso, a disposição dos direitos concernentes a obras protegidas pelo direito de autor
deverá também levar em conta a legítima. Se determinado autor tem como seus únicos
bens os seus direitos autorais, não faz sentido sustentar que, por ato de sua vontade,
pode-se burlar a regra legal. Inclusive, tendo em vista que a vontade do testador poderá
modular os direitos a ser transmitidos, é necessário que tais atos somente possam
prevalecer se ocorridos no âmbito da parte disponível do patrimônio do morto. Atos de
disposição, aqui, não serão apenas aqueles que destinam os bens a outrem, mas
também aqueles que limitam os direitos a ser recebidos a título de herança ou legado.

Exemplo disso é a passagem de obras ao domínio público. Ora, se é possível que, em


vida, o autor transmita suas obras ao domínio público, é claro que na morte o mesmo
pode ser feito. Assim, a perda do valor patrimonial das obras passadas ao domínio
público consiste em variável essencial para a definição do valor da legítima, que seria
fraudada em situação contrária. Observe-se que, caindo a obra em domínio público,
acompanham-na todos os elementos dela cindidos. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça
37
de São Paulo, ao apreciar caso no qual se discutiam os direitos de edição do Tratado
de Direito Comercial Brasileiro de J. X. Carvalho de Mendonça, declarou que, passada a
obra ao domínio público, o direito à edição também se extingue, à medida que é espécie
do direito autoral que finda.
38
Questão interessante é levantada por Sérgio Branco ao mencionar o caso de Mark
Twain, que determinou que sua autobiografia somente fosse publicada após 100 anos de
sua morte, quando, portanto, a obra já teria caído em domínio público. Indaga o autor
se, passados os 100 anos, os herdeiros de Twain poderiam se opor à publicação da obra
ou se, por outro lado, qualquer pessoa poderia pleitear acesso à obra, que estaria em
domínio público. Mesmo que o autor expressamente proíba a publicação de alguma de
suas obras, como ocorreu com J. D. Salinger, seria possível que alguém acessasse tais
textos quando de sua passagem para o domínio público? A conclusão do autor é que,
como todo direito de personalidade, o direito moral do autor tende a desvanecer pelo
tempo, de maneira que tais questões poderão ser mais facilmente respondidas no que
diz respeito à guarda desses direitos. Nesses casos, contudo, poderão os herdeiros
argumentar que seu quinhão no qual estão contidos direitos autorais sob essas
condições não tem o mesmo valor patrimonial que teria se estivesse livre de gravames.
Dessa maneira, pode-se reduzir o contingente da parte disponível da herança.

Em síntese, os direitos de propriedade intelectual devem ser interpretados de forma


sistemática, apesar de disporem de regramento específico, para que os testamentos
desempenhem de forma efetiva sua função promocional, isto é, a proteção da vontade
final do autor e, portanto, de sua dignidade como indivíduo e como artista.
5 Conclusão

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Transmissão causa mortis de direitos de propriedade
intelectual

A transmissão causa mortis dos direitos de propriedade intelectual é tema ainda pouco
trabalhado pela doutrina brasileira, muitas vezes exposto de forma difusa e com pouca
reflexão sobre os desdobramentos dessa transferência. O presente artigo teve por
objetivo mapear o arcabouço jurídico aplicável à sucessão dos direitos autorais e, então,
apresentar interpretações capazes de conformar e conciliar os direitos patrimoniais –
enquanto efetivo direito de propriedade – e os direitos morais de autor – enquanto
instância de proteção da personalidade e da dignidade do artista.

A pesquisa levada a cabo neste trabalho evidenciou que falta clareza quanto aos
procedimentos aplicáveis à sucessão dos direitos autorais, o que decorre inclusive de
termos inadequados empregados pelos tribunais. Os precedentes explorados ao longo do
artigo demonstram, ainda, que os conflitos verificados atualmente são regidos pela
antiga Lei de Direitos Autorais, tendo em vista a longevidade de tais direitos, razão pela
qual é essencial que seja claro o debate sobre direito intertemporal no âmbito da
propriedade intelectual.

Por fim, os casos apresentados neste trabalho, mesmo sendo referentes aos direitos de
personalidades altamente reconhecidas no meio cultural, apresentam conflitos que em
substancial medida poderiam ser evitados ou ao menos mitigados mediante a realização
de testamento. O testamento, por conseguinte, deve ser entendido não somente como
meio de garantia da partilha na forma almejada pelo testador, mas também como
instrumento eficaz de proteção à sua dignidade.
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Transmissão causa mortis de direitos de propriedade
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1 AUGUSTO, Sérgio. O colecionador de sombras. São Paulo: e-galáxia, 2015.

2 O presente trabalho utilizará a expressão “planejamento sucessório” para designar os


atos a ser tomados por autores para assegurar a que suas obras sejam adequadamente
tuteladas após a sua morte, não alcançando, ao menos para os fins deste trabalho, a
repercussão tributária dos direitos de propriedade intelectual.

3 Segundo José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003. p. 276), não haveria razão plausível para a posição dos direitos
de propriedade intelectual entre os direitos individuais do art. 5º, à medida que não têm
natureza de direito fundamental do homem. Segundo o autor, seria mais razoável que se
inserissem entre as normas da ordem econômica. Nesse sentido, entende Denis Borges
Barbosa (Direito civil da propriedade intelectual: o caso da usucapião de patentes. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 41-42) que a opção do constitucionalista pelo
ingresso da propriedade intelectual no núcleo duro constitucional teve como objetivo a
legitimação extrema dos proprietários, sendo necessária a compatibilização dessas
disposição com outros direitos constitucionais sensíveis.

4 É necessário salientar que a propriedade intelectual é comumente definida como


gênero do qual são espécies da Propriedade Industrial e o direito de autor, porém, este
trabalho, inclusive pelo fato de referir-se especificamente aos direitos autorais, adotará
“propriedade intelectual” e “direito de autor” como sinônimos, na linha do que propõe
Pontes de Miranda (Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, v.
XVI, p. 7-8.

5 OHLY, Ansgar. Geistiges Eigentum? JuristenZeitung, v. 58, n. 11, jun. 2003. p. 547.

6 BARBOSA, Denis Borges. Tratado da propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Renovar,


2010. v. I. p. 197.

7 Nesse sentido, ver: RECHT, Pierre. Le droit d’auteur, une nouvelle forme de propriété.
Paris: Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1969.

8 PONTES DE MIRANDA, Op. cit., v. XVI. p. 10.

9 PONTES DE MIRANDA, Op. cit., v. XVI. p. 65.

10 TJRS, Apelação Cível 7001.882.223-9, Rel. Des. Odone Sanguiné, Data de


julgamento: 23.05.2007, 9ª Câmara Cível, Data de publicação: 23.05.2007.

11 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.
34.
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Transmissão causa mortis de direitos de propriedade
intelectual

12 É o que defende José de Oliveira Ascensão (Direito civil: sucessões. 4. ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 1989. p. 47), para quem “Tudo nos leva a concluir que não há
nenhuma aquisição dos direitos pessoais do de cuius. Estes, mesmo quando não são
direitos de personalidade, trazem sempre a marca da personalidade do titular”. O direito
moral, conforme ressalta o Visconde de Carnaxide (Tratado da propriedade literária e
artística. Porto: Renascença Portuguesa, 1918. p. 234; 256), “resulta da soberania plena
dos autores sôbre as suas obras tanto antes como depois da sua publicação”. A
reprodução ou a alteração das obras literárias, artísticas e científicas podem ser
obstadas em razão da vontade do autor não pelo fato de tais atos poderem acarretar em
perda pecuniária, já que os direitos patrimoniais podem ser livremente cedidos, mas,
sim, por interferirem na dignidade e na liberdade intelectual do autor. Com a morte do
autor, a defesa de sua personalidade pode ser exercida inclusive em face dos herdeiros e
mesmo que a obra tenha caído em domínio público.

13 JARACH, Giorgio. Manuale del diritto d’autore. Milão: U. Mursia & C., 1968. p. 184.

14 PONTES DE MIRANDA, Op. cit., v. XVI. p. 47.

15 Nesse sentido, ver: STJ, REsp 1.209.474/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino,
Data de Julgamento: 10.09.2013, 3ª Turma, Data de Publicação: 23.09.2013; STJ, REsp
1.422.699/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Data de Julgamento 01.09.2015, 2ª Turma,
Data de Publicação: DJe 24.09.2015.

16 TJRJ, Apelação cível 0106397-37.2007.8.19.0001, Rel. Des. Mario Assis Gonçalves,


Data de Julgamento: 21.01.2014; 3ª Câmara Cível; Data de Publicação: 23.01.2014;
TJRJ, Apelação cível 0093893-96.2007.8.19.0001, Rel. Des. Antonio Saldanha Palheiro,
Data de Julgamento: 13.03.2013, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação:15.03.2015.

17 DESBOIS, Henri. Le droit d'auteur. Paris: Dalloz, 1950. p. 650-655.

18 É o que também preceitua José de Oliveira Ascensão (Direito autoral. Rio de Janeiro:
Forense, 1980. p. 133): “Quando não há titularidade dos direitos pessoais, o herdeiro
fica excluído de qualquer exercício do direito de autor. Não quadra ao sistema da lei que
ele possa ainda arrogar-se a defesa de valores da personalidade do autor defunto, sem
fundamento em faculdades compreendidas no direito de autor”.

19 PONTES DE MIRANDA. Op. cit., v. XVI, p. 49-51.

20 TJRJ, Apelação cível 0025519-91.2008.8.19.0001, Rel. Des. José Roberto Portugal


Compasso, Data de Julgamento: 02.04.2013, 9ª Câmara Cível, Data de Publicação:
12.04.2013.

21 TJSP, Apelação cível 0086456-56.2000.8.26.0000, Rel. Des. Waldemar Nogueira


Filho, Data de Julgamento: 30.08.2007, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de
Publicação: 20.09.2007.

22 POUILLET, Eugène. Traité théorique et pratique de la propriété litéraire et artistique


et du droit de représentation. 3. ed. Paris: Imprimerie et libraisi générale de
jurisprudence, 1908. p. 281.

23 BRANCO, Sérgio. O domínio público no direito autoral brasileiro: uma obra em


domínio público. Rio de Janeiro: Lumen Juris. p. 55.

24 Ver, por todos: TARTUCE, Flavio. Direito civil: Direito das sucessões. 8. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2015. p. 64.

25 STJ, REsp 1.422.699/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Data de Julgamento


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Transmissão causa mortis de direitos de propriedade
intelectual

01.09.2015, 2ª Turma, Data de Publicação: DJe 24.09.2015.

26 POUILLET, Op. cit.. p. 284.

27 PONTES DE MIRANDA, cit., v. XVI. p. 66.

28 NEVARES, Ana Luiza Maia. A função promocional do testamento. Rio de Janeiro:


Renovar, 2009. p. 312.

29 DESBOIS, Op. cit. p. 516.

30 Questão polêmica foi tratada em caso apreciado pelo Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro (TJRJ, AI 0011414-69.1995.8.19.0000, Rel. Des. Newton Paulo Azeredo da
Silveira, Data de Julgamento: 19.12.1995, 8ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ
08.03.1996), referente aos direitos autorais do maestro Heitor Villa-Lobos. Os direitos de
Villa-Lobos foram transmitidos mortis causa a sua viúva, Lucilia Guimarães Villa-Lobos,
que por sua vez legou os direitos a seus irmãos. Entendeu o TJRJ que “O direito autoral
possui cadeia sucessória restrita e própria. Nela, não se incluem pessoas estranhas, à
relação legal. Com isso se assegura a propagação da arte e do belo, para enlevo da
humanidade, sem embaraços”. Com isso, e tendo em vista que os negócios jurídicos
referentes a direitos autorais devem ser interpretados de forma restritiva (incluindo,
portanto, os testamentos), entendeu o Tribunal que os direitos do maestro deveriam cair
em domínio público em vez de passarem ao legatário, pois o interesse geral e público
em acessar as referidas obras se sobrepõe ao particular. Ocorre, no entanto, que direitos
patrimoniais de autor encerram relação de domínio e somente poderão ser limitadas pelo
advento do termo final de duração do direito de exclusividade, razão pela qual a decisão
a que chegou o TJRJ é extremamente controvertida.

31 O caso de Kafka e suas posteriores repercussões, inclusive disputas referentes à


questão do patrimônio cultural, foram tratados por Judith Butler (Who owns Kafka?
London Review of Books. v. 33, n. 5, p. 3-8, mar. 2011). A respeito do tema, ver
também: MERRYMAN, John Henry. Two ways of thinking about cultural property. The
American journal of international law. v. 80, n. 4, p. 831-853, out. 1986.

32 STOLFI, Nicola. Il diritto di autore. 3. ed. Milão: Libraria, 1932. p. 612-613.

33 PONTES DE MIRANDA, Op. cit., v. XVI. p. 76.

34 PONTES DE MIRANDA, Op. cit., v. XVI, p. 76-78.

35 NONATO, Orosimbo. Estudos sôbre sucessão testamentária. Rio de Janeiro: Forense,


1957. p. 119.

36 ASCENSÃO, Op. cit., 1980. p. 133.

37 TJSP, Agravo de Instrumento 9052290-34.2003.8.26.0000, Rel. Des. J. G. Jacobina


Rabello. Data de Julgamento: 02.12.2003, 4ª Câmara de Direito Privado.

38 BRANCO, Op. cit., p. 192-193.

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