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A DIVINA HUMANIZAÇÃO

DE CRISTO
A Busca pelo Jesus Histórico e a Divindade de Cristo

Por Alan Capriles

A chamada busca pelo Jesus histórico é o esforço acadêmico de se


analisar a vida de Cristo pela perspectiva histórica, como um simples
homem, ou seja, despido de qualquer suposto mito que o identifique
como Deus. Neste sentido, os evangelhos e demais escritos do Novo
Testamento necessitam ser examinados com extrema cautela, uma vez
que qualquer milagre, especialmente o da ressurreição, não pode ser
avaliado (e muito menos abalizado) segundo os parâmetros históricos.

Não se trata de má vontade dos acadêmicos, mas do simples fato de que


o sobrenatural não pode ser comprovado por metodologia científica.
Além disso, os estudiosos asseguram que os evangelhos foram escritos
de 35 a 65 anos após a morte de Jesus, o que muito provavelmente
significa que seus autores não foram testemunhas oculares dos relatos
que escreveram. Para um historiador, o depoimento de alguém que
esteve presente no fato ocorrido é de grande relevância histórica. Mas,
segundo os pesquisadores, os evangelhos não foram escritos por pessoas
que conheceram Jesus pessoalmente. Como se não bastasse, existem
discrepâncias na leitura paralela dos evangelhos, ou seja, surgem
divergências quando comparamos a ordem e os detalhes descritos da
vida de Jesus em cada evangelho.[1]
Sendo assim, a pesquisa sobre o Jesus histórico consiste,
principalmente, numa tentativa de se retirar supostas camadas de mito
religioso que teriam sido acrescentadas sobre a pessoa do Nazareno. O
assunto é extenso e polêmico, mas acho necessário apresenta-lo
resumidamente a seguir, para somente depois revelar o impacto que
esses estudos causaram em mim.

A chamada primeira busca pelo Jesus histórico se deu em meados do


século XVIII, motivada pelo Iluminismo, o movimento europeu que
exaltava o uso da razão como a única forma de se chegar à verdade.
Muitos eruditos começaram a reescrever a vida de Jesus sob uma
perspectiva extremamente racional (leia-se: que nega sua divindade),
concluindo que o Nazareno poderia ter sido apenas um político mal
sucedido que tencionava ser o rei de Israel, ou talvez um curandeiro que
fazia uso de práticas terapêuticas, ou apenas um mito criado a partir de
narrativas do Antigo Testamento, ou simplesmente uma lenda, baseada
em pouquíssimo material histórico.

Tantas opiniões divergentes acerca de quem foi Jesus acabaram


resultando em ceticismo quanto à possibilidade de se conhecê-lo por
uma perspectiva histórica. Em 1911, Albert Schweitzer publicou sua
famosa obra sobre o assunto, na qual demonstrou que os pesquisadores
haviam falhado em suas biografias de Jesus porque cada autor projetava
nele o próprio ideal ético que mais almejava. A despeito disso,
Schweitzer também aventou sua hipótese acerca de quem foi o
Nazareno: apenas mais um profeta judeu apocalíptico, que a princípio
anunciava a vinda de uma figura escatológica, o Filho do Homem, o qual
desceria do céu para estabelecer o reino de Deus na terra, mas que
depois teria mudado de ideia, acreditando ser ele mesmo esse Filho do
Homem. O teólogo Rudolf Bultmann foi ainda mais pessimista quanto à
busca pela verdade histórica. Segundo ele, a única coisa relevante no
aspecto da história é que Jesus existiu. Qualquer tentativa de se saber o
que realmente aconteceu seria uma tarefa impossível do ponto de vista
metodológico, e desnecessária do ponto de vista teológico. Bultmann
afirmava que o importante é o Cristo da fé, ressuscitado e vivo no
coração de cada crente, o qual se baseava em tradições acerca de Jesus
que jamais poderiam ser historicamente comprovadas. Sendo assim, o
assunto parecia definitivamente morto e enterrado.

Mas eis que, após algumas décadas de compreensível silêncio, houve


uma ressurreição na busca pelo Jesus histórico. Reavivados por uma
nova pergunta, os pesquisadores desejavam então saber se
o Querigma (a exaltação fundada na cruz e na ressurreição) teria
alguma base na pregação de Jesus, ou seja, se determinados ditos e ações
provinham mesmo dele ou se eram visões posteriores da Igreja. Talvez
possamos estabelecer precisamente o início dessa segunda busca em 23
de Outubro de 1953, quando o professor Ernest Käsemann, na
conferência denominada O Problema do Jesus Histórico, defendeu a
criação de uma teologia baseada na realidade histórica sobre o que Jesus
de fato ensinou. Ele argumentou que isso não somente era necessário,
mas que já era possível, devido aos avanços nas áreas da Arqueologia,
História, Antropologia e Filosofia. Abandonava-se o interesse pela
cronologia dos eventos e da publicação de novas biografias de Jesus, mas
mantinha-se o ceticismo em relação aos milagres – uma herança do
Iluminismo. A partir de então o foco seria determinar quais
ensinamentos de Cristo eram autênticos ou não. Os parâmetros para
essa pesquisa começavam a consolidar-se, resultando em um boom no
interesse pelo Jesus histórico a partir do final do século XX.

Atualmente experimentamos o que se pode chamar de terceira busca,


na qual Jesus é reinserido em seu contexto judaico, possibilitando aos
judeus perceberem-no como parte de sua história. O interesse histórico-
social substituiu o teológico, razão pela qual agora se admite a
investigação de fontes não canônicas e até heréticas, tais como o apócrifo
Evangelho de Tomé. O maior exemplo desse empenho se deu na
formação do The Jesus Seminar, projeto norte-americano iniciado em
1985, no qual pesquisadores passaram a reunir-se duas vezes ao ano
para avaliarem Jesus segundo os modernos métodos da pesquisa crítica
e histórica.[2] Em sua primeira fase os participantes deveriam votar em
quais ditos seriam autênticos ou não, tratando a questão como se ela
pudesse ser resolvida democraticamente. Essa polêmica votação
estabeleceu que pouquíssimos ditos atribuídos a Cristo nos evangelhos,
incluindo o de Tomé, seriam provavelmente autênticos. Apenas quinze,
para ser mais exato! Isso causou desconforto para os pesquisadores
europeus, os quais discordam deste método, e indignação para muitos
teólogos que se perguntam de qual Jesus estaríamos falando.

As conclusões mais recentes acerca do Jesus histórico estão amplamente


disponíveis em língua portuguesa. Obras de pesquisadores
conceituados, como Geza Vermes, John Dominic Crossam e John Paul
Meier podem ser encontradas com certa facilidade nas melhores
livrarias brasileiras. O ex-pastor evangélico (agora agnóstico) Bart
Ehrman popularizou ainda mais o assunto, escrevendo livros com títulos
sensacionalistas, tais como “O que Jesus disse, o que Jesus não disse” e
“Como Jesus se tornou Deus”. Neste último, Ehrman escancara o que
até então estava nas entrelinhas dos demais autores, ou para a maioria
deles: Deus não se fez homem em Jesus, mas o próprio homem é que
teria elevado Jesus ao status de Deus.
Particularmente, o estudo do Jesus histórico não me levou a essa
conclusão. Na verdade, consolidou ainda mais a minha fé em Cristo. E
ninguém pode me acusar de leviandade, pois não somente li (e tenho)
todos os livros de Ehrman, com também li (e tenho) a maioria dos livros
de Crossan, Vermes, Schweitzer e as principais obras de autores ainda
não mencionados, tais como Reza Aslan e André Leonardo Chevitarese.
Este último merece especial consideração, por ser o historiador
brasileiro que mais tem incentivado o estudo do Jesus histórico em
nosso país. Tive o privilégio de participar de alguns cursos ministrados
na UFRJ por excelentes professores ligados a Chevitarese, tais como
Daniel Justi, Juliana Cavalcanti e Lair Amaro Faria.[3] Participei desses
cursos não como pastor ou teólogo, mas com a sincera disposição de um
aprendiz.

E aprendi muito, reconheço. Tanto nas aulas, quanto nos livros.


Aprendi, principalmente, o que os eruditos dizem acerca do Jesus
histórico e que venho listar a seguir como resumo do pensamento atual
sobre o assunto:
- Jesus teria nascido, crescido e passado a maior parte de sua vida em
Nazaré, uma aldeia insignificante, que sequer aparecia nos mapas, cuja
historicidade chegou a ser questionada, mas que foi comprovada por
meio da arqueologia;
- Jesus teria crescido sendo chamado de filho da prostituição, pois
ninguém acreditaria na história de que sua mãe foi engravidada pelo
Espírito Santo;
- Jesus teria sido analfabeto, como o restante dos camponeses pobres
que moravam em Nazaré, pois seria praticamente impossível que ele
aprendesse a ler morando naquela pequena e desprezível aldeia, onde
sequer haveria alguém para ensinar as letras;
- Jesus teria sido pedreiro (ofício ainda menos rentável que o de
carpinteiro) e possivelmente tenha trabalhado em Séforis, cidade greco-
romana mais próxima de Nazaré e que estava sendo reconstruída pelos
romanos no período da vida adulta de Jesus;
- Jesus teria sido um dos discípulos de João Batista, dando continuidade
ao ministério deste após sua morte, mas com sua própria mensagem;
- Jesus teria feito seu ministério público tal como um mendigo, ou
filósofo cínico, que pregava perambulando pelas aldeias sem ter onde
dormir;
- Jesus teria sido apenas mais um dentre os vários pregadores
apocalípticos judeus que surgiram antes e depois dele;
- Jesus teria tido menos seguidores do que se pensa e o número de
apóstolos talvez se resumisse a seis ou sete – doze teria sido uma
invenção posterior da igreja;
- Jesus não teria realizado milagres de qualquer natureza, mas era
reconhecido pelo povo como curandeiro e exorcista;
- Jesus não teria desejado morrer na cruz para salvar ninguém, mas
esperava por uma intervenção divina apocalíptica que não ocorreu;
- Jesus teria sido crucificado por causa de sedição - ou seja, pela suspeita
de que liderava um movimento contrário ao imperialismo romano - e
não por causa de seu discurso religioso;
- Jesus não teria sido sepultado, mas lançado numa vala comum, como
os demais condenados à crucificação, e seu corpo logo teria sido comido
por animais;
- Jesus não teria ressuscitado.

Por favor, examine mais uma vez a listagem acima. Não é fantástico que
alguém tão medíocre assim, como se revela Jesus nos parâmetros
históricos, tenha se tornado o personagem mais famoso e querido de
toda a história?

Seria mesmo possível que tudo mais quanto se lê no Novo Testamento


acerca de Cristo tenha sido inventado? Como poderia tamanha mentira
ir adiante, uma vez que muitas pessoas que conheceram Jesus ainda
estavam vivas enquanto Paulo pregava e escrevia suas epístolas sobre
Cristo? E por que alguém tão insignificante teria sido tão popularmente
comentado a ponto de sua memória ser preservada numa tradição oral
que deu origem aos evangelhos? E por que os evangelhos inventariam
fatos que complicariam sua credibilidade, tal como um dos apóstolos tê-
lo traído, ou sua ressurreição ter primeiro sido atestada por mulheres?
E por que os discípulos de Cristo dariam sua vida por algo que
soubessem não ser verdade?

Enquanto os pesquisadores do Jesus histórico buscam, de todas as


formas, comprovar a humana divinização de Jesus, para mim parece
claro que, quanto mais frágil e humano ele se revela, tanto maior se torna
o assombro, o milagre e a certeza de sua divindade.

Sinceramente, esse foi o resultado que tais estudos me causaram. Agora


percebo, impactado, que há um propósito divino na mais humilde
humanização possível de Cristo, bem como na atual redescoberta desse
Jesus frágil, desse Jesus homem. A saber: a nossa própria e definitiva
conversão a ele.

Alan Capriles

Notas
[1] A respeito das discrepâncias nos evangelhos, confira meu artigo
intitulado As Divergências nos Evangelhos Sinóticos.

[2] Uma excelente crítica ao The Jesus Seminar pode ser lida
em: http://www.reasonablefaith.org/portuguese/redescobrindo-o-
jesus-historico-pressuposicoes-e-pretensoes-do-jesus

[3] Lair Amaro Faria é autor da excelente obra “Quem vos ouve, ouve a
mim: oralidade e memória nos cristianismos originários”, a qual pode
ser encomendada pelo site da editora
Kline: http://www.klineeditora.com/catalogos.html

Referências bibliográficas

CHEVITARESE, André L. & FUNARI, Pedro Paulo. Jesus Histórico:


Uma Brevíssima Introdução. Rio de Janeiro: Kline Editora, 2012.

THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus Histórico: um Manual. São


Paulo: Edições Loyola, 2002.

ASLAN, Reza. Zelota: A Vida e a Época de Jesus de Nazaré. Rio de


Janeiro: Zahar, 2013.

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Marcadores: Apologética, Ateísmo, Crítica Textual do
NT, Evangelho, Jesus Histórico,Teologia
quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A CRUCIAL DIFERENÇA
ENTRE CRER E TER FÉ
Por Alan Capriles

A confusão que se faz entre fé e crença é um equívoco tão comum quanto


perigoso, mas desconfio que essa ignorância e risco não ocorram por
acaso. Por mais incrível que possa parecer, esse problema começa em
nossas bíblias, onde uma falha na tradução tem induzido milhões de
leitores ao erro. Um equívoco dessa natureza poderia ser facilmente
reparado, bastando que os tradutores corrigissem o texto, ou nos
alertassem a respeito disso, mas não há sequer uma nota de rodapé
sobre o assunto em nossas versões da Bíblia.[1] Como resultado, temos
traduções que falham em pontos cruciais e que se distanciam daquilo
que o autor queria realmente dizer.

É bem verdade que o equívoco entre fé e crença tem raízes muito mais
antigas do que se possa imaginar e seria injusto colocar a culpa somente
nos tradutores modernos. O assunto é mesmo tão antigo e crucial que
fico me perguntando se a simples explicação da diferença entre crer e ter
fé não teria evitado o absurdo das Cruzadas e da chamada Santa
Inquisição – vergonhosas páginas da história cristã, onde tanto sangue
se derramou em nome de Cristo. Sei que pode parecer que estou
exagerando, mas erros de interpretação podem realmente ocasionar
consequências catastróficas e é bem possível que esse equívoco tenha
sua parcela de culpa nesses terríveis episódios.

As raízes desse problema remontam ao século IV, quando São Jerônimo,


a pedido do papa Dâmaso I, traduziu a Septuaginta e os manuscritos
gregos do Novo Testamento para o latim, resultando no que ficou
conhecido como Vulgata: a primeira versão da Bíblia para um só idioma.
Foi nessa inédita e ousada tradução que a confusão entre fé e crença teve
seu início.
Ao deparar-se com o verbo grego pisteuou, que significa ter fé, São
Jerônimo precisou encontrar um termo latino que o substituísse – uma
escolha que certamente não foi fácil.[2] Ocorre que na língua grega –
idioma mais rico que o latim – o substantivo fé(pistis) possui um
correlato verbal (pisteuou), ou seja, a fé pode ser conjugada
verbalmente, ao contrário do que ocorre no português e demais línguas
de origem latina[3]. Desta forma, não havendo verbo em latim para o
termo grego que significava a ação da fé, São Jerônimo optou por um
verbo latino que substituísse pisteuou e que, a seu ver, se aproximava do
que significava ter fé. Sua escolha foi o verbo credere (crer), que deriva
de cor do (dou o coração).[4] O problema está em que o verbo crer
também é sinônimo de acreditar e foi esse último sentido, o de crença -
e não o de “dar o coração” - que prevaleceu com o passar dos séculos.

A escolha de Jerônimo pode ter sido a melhor em sua época, mas


atualmente (e desde os últimos mil anos!) tornou-se um problema para
o entendimento de diversas passagens neotestamentárias.[5] Existe
mais de uma centena de versículos no Novo Testamento onde os leitores
facilmente confundirão fé com crença, pois onde agora lemos o verbo
“crer” originalmente o autor falava de “fé”.[6]

Não obstante, mesmo que São Jerônimo tivesse substituído o verbo


grego pisteuou por uma equivalência dinâmica[7] - o que resultaria na
tradução ter fé - ainda assim precisaríamos compreender o que o termo
fé (pistis) e sua ação (pisteuou) significavam naquela época.

Nos dias atuais a maioria das pessoas define a “fé” como meramente se
“acreditar” em alguma coisa. Entretanto, a fé praticada pelos primeiros
cristãos tinha um significado muito mais profundo do que apenas
concordar que Jesus tenha existido, ou acreditar em seus feitos.
Originalmente, “fé” tinha o sentido de confiança, consonância,
comprometimento, lealdade.[8] Ou seja, ter fé em alguém significava
estar em sintonia com essa pessoa. Não se tratava de apenas acreditar
em alguma doutrina, mas sim de se estar comprometido com esse
ensinamento. Desta forma, para os primeiros cristãos, somente aquele
que praticasse o que Cristo ensinou seria visto com alguém que tinha fé
em Jesus. E se alguém, mesmo sem conhecer nada sobre Jesus, andasse
de acordo com os ensinamentos de Jesus, tal pessoa estaria
demonstrando ter mais fé em Cristo do que um cristão desobediente.[9]

Mas, como antes já foi dito, esse conceito primordial de fé acabou sendo
deturpado no decorrer dos séculos e passou a ser substituído por uma
ideia de crença.[10] Agora já não tem muita importância quem você é,
mas sim aquilo em que você acredita. Obviamente, isso não ocorreu da
noite para o dia, mas em etapas muito sutis, geração após geração. Como
exemplo, cito um dos sermões de Lutero, onde ele explica que “a fé não
requer informação, conhecimento e certeza, mas uma livre entrega e
uma feliz aposta na bondade impercebida, não experimentada e
desconhecida [de Deus]”.[11] Isso nos demonstra dois fatos importantes:
primeiro, que já no século XVI o conceito de fé precisava ser definido,
pois havia quem pensasse em fé como informação, conhecimento e
certeza; e, segundo, que esse conceito já perdera o sentido original de
consonância e comprometimento, passando a ser visto – ao menos para
Lutero – como uma feliz aposta na bondade de Deus. Apesar de ser uma
bela definição para fé, a realidade é que, como vimos há pouco, tal ideia
não condiz perfeitamente com o conceito de fé que se tinha na palestina
do primeiro século.

Quando, por exemplo, Jesus ensinou que “tudo é possível ao que crê”,
não devemos entender esse crer como meramente acreditar. Uma
tradução mais correta seria “tudo é possível ao que tem fé”, ou seja,
àquele que está em sintonia com Deus. Feita essa ressalva, torna-se mais
fácil compreender o que Jesus quis dizer com “aquele que crê em mim
fará também as obras que eu faço e outras maiores fará”. Se o
termo crer desse versículo fosse meramente acreditar alguém poderia
dizer que Jesus houvesse mentido, pois milhares de pessoas realmente
acreditam em Jesus, mas nunca fizeram qualquer obra sequer parecida
com o que ele realizou. No entanto, se corretamente compreendemos
que o Senhor está falando de estarmos em consonância com ele, ou seja,
seguindo o exemplo que ele nos deixou, então desaparecem as dúvidas,
pois dificilmente encontra-se alguém que realmente ande como Jesus
andou, especialmente no que concerne à sua prática de renúncia e
constante oração – mas, quem o fizer, receberá do Pai a mesma virtude
que nele havia, podendo realizar as mesmas obras e outras ainda
maiores.

Mas o desconhecimento que a maioria das pessoas tem acerca desse


problema é tão comum quanto previsível. De fato, nossas versões do
Novo Testamento em português dão mesmo a entender que a salvação é
apenas uma questão de crença, o que nos induz a concluir que basta
acreditar que Jesus existiu, ou que ele morreu na cruz por nossos
pecados, para sermos salvos.[12] Mas a salvação não é uma questão de
crença e sim de fé. E ter fé em Cristo significa estar em harmonia com
seus ensinamentos – ou, como prefere dizer João (tanto em seu
evangelho quanto nas epístolas), ter fé significa permanecer nele. E
“nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele,
esse deve também andar assim como ele andou.” (1João 2:6) Paulo
prefere usar a expressão “estar em Cristo”, o que também traduz o
conceito primordial de fé – que significava estar em sintonia com Deus,
ou seja, com a sua vontade, que se resume no amor. Portanto, a fé
salvadora é um caminho no qual devemos andar e não uma crença que
precisamos acatar.

Quando Cristo afirmou que ele é “o” caminho para o Pai, sua clara
intenção foi apontar a si mesmo - tanto pela verdade de seus
ensinamentos, quanto pela prática de sua vida - como nosso referencial
de salvação. Ele não estava falando de crença, mas de nós andarmos em
sintonia com ele, ou seja, com o que ele nos ensinou e com a forma
humilde e cheia de compaixão como viveu. Isso é ter fé em Cristo e é
somente neste sentido que Jesus é o caminho, a verdade e a vida (João
14:6). Note que esse versículo não fala explicitamente de fé, nem de crer,
mas ele sempre é interpretado como se fosse uma questão de crença, ou
seja, como se a salvação ocorresse por se acreditar que Jesus é o
caminho, a verdade e a vida. Esse equívoco ocorre porque o atual
conceito de fé está de tal forma contaminada pela ideia de crença, que os
leitores do Novo Testamento ficam condicionados a interpretá-lo dessa
forma incorreta.

A solução, obviamente, não é deixar de ler a Bíblia, ou aguardar por uma


versão mais fiel ao texto grego, algo que pode jamais ocorrer. Minha
sugestão é que façamos uma releitura do Novo Testamento, na qual
estejamos cientes do verdadeiro sentido da fé e apercebidos de que esse
termo muitas vezes aparece substituído pela conjugação do verbo crer.
Para muitos talvez não seja uma releitura, mas uma primeira leitura,
pois quem aprendeu que "basta acreditar em Jesus para ser salvo"
raramente irá se interessar por seus ensinamentos. De fato, para que
seguir o que Jesus ensinou se, para ser salvo, basta acreditar que ele
existiu? Essa conclusão equivocada explica porque a maioria dos
evangélicos não se interessa pelos evangelhos; e aqueles que os leram
geralmente fizeram-no mais por curiosidade do que para andar no
caminho apontado e trilhado por Cristo. Sendo assim, a correta
compreensão da fé não somente trará o esclarecimento acerca desse
assunto, como despertará o real interesse por se conhecer e praticar o
que Jesus nos ensinou.

Outra consequência de uma correta compreensão da fé será uma atitude


mais misericordiosa para com o próximo, especialmente para com
aqueles que adotam diferentes crenças religiosas. Se deixarmos de
confundir fé com crença deixaremos de ser preconceituosos e
intolerantes, pois conseguiremos enxergar cada pessoa pelo que de fato
ela é, e não julgando-a segundo o que acredita. O fato é que nossas
crenças nem sempre revelam nosso ser, mas nossas atitudes perante o
próximo evidenciam nossa fé – a verdadeira fé que, em seu mais puro
sentido, revela-se na prática do amor.[13]
Alan Capriles

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Para melhor entendimento, aconselho a leitura de todas as notas de rodapé.


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NOTAS

[1] A única exceção que conheço é a tradução de Huberto Rohden , a


qual recebeu o título de "A Mensagem Viva do Cristo" e que contém
somente os quatro evangelhos.

[2] O trecho de uma carta que São Jerônimo teria escrito ao papa
Dâmaso I revela o seu temor para com a tradução do texto bíblico:
"Obrigas-me fazer de uma Obra antiga uma nova […] Qual, de fato, o
douto e mesmo o indouto que, desde que tiver nas mãos um exemplar,
depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se acha em
desacordo com o que está habituado a ler, não se ponha imediatamente
a clamar que eu sou um sacrílego, um falsário, porque terei tido a
audácia de acrescentar, substituir, corrigir alguma coisa nos antigos
livros? Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é que
vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o segundo é
que a verdade não poderia existir em coisas que divergem, mesmo
quando tivessem elas por si a aprovação dos maus". (Obras de São
Jerônimo, edição dos Beneditinos, 1693, t. It. Col. 1425).

[3] O mesmo ocorre na língua inglesa. Apesar de não ser um idioma de


origem latina, o inglês não possui verbo para o substantivo faith (fé) e,
sob a influência da Vulgata, as versões inglesas do Novo Testamento
substituíram o verbo grego pisteuou por believe(crer).

[4] ARMSTRONG, Karen – Em Defesa de Deus, pág. 98.

[5] Existe a suspeita de que São Jerônimo teria sido coagido pelo papa
Dâmaso I a fazer alterações em alguns trechos da Vulgata. Sendo isso
verdade, é possível que o próprio papa tenha sido pressionado por
Teodósio, o segundo imperador romano supostamente cristão e que
tinha interesses de tornar o cristianismo mais aceitável para os pagãos.

[6] Mais uma vez, a única exceção parece ser a versão de Huberto
Rohden, onde ele optou por ter fé como tradução para o verbo
pisteuou. Por exemplo, o famoso “para que todo aquele que nele crê
não pereça” foi traduzido por Rohden como “para que todo aquele que
nele tiver fé não pereça”. Interessante observar que essa não foi sua
primeira versão das Escrituras. Rohden, que foi padre jesuíta até 1945,
já traduzira todo o Novo Testamento diretamente do grego, mas,
estranhamente, nessa primeira versão manteve o equívoco da Vulgata.
Teria ele sido pressionado pela igreja católica para manter a tradição?
Ou ainda não havia se dado conta da gravidade do problema? Anos
depois, quando livre do catolicismo, Rohden escreveria o seguinte
alerta, em tom de desabafo: “A substituição de ter fé por crer há quase
dois mil anos está desgraçando a teologia, deturpando profundamente
a mensagem do Cristo.” (A Mensagem Viva do Cristo, pág. 91)

[7] A “equivalência dinâmica” é o método de tradução que procura


transmitir o sentido de determinada palavra, ou frase, tal como era
compreendida na época em que foi originalmente escrita.

[8] ARMSTRONG, Karen – Em Defesa de Deus; São Paulo: Companhia


das Letras, 2011, pág. 98. RODHEN, Huberto – A Mensagem Viva do
Cristo; São Paulo: Editora Alvorada, 1983, pág. 90 e 91. CHOURAQUI,
André – A Bíblia: O Evangelho Segundo Mateus; Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996.

[9] Algumas passagens nos evangelhos nos conduzem a tal conclusão.


Para se compreender melhor o assunto, aconselho a leitura de “A
salvação segundo Jesus Cristo”, onde apresento essa tese de maneira
pormenorizada.

[10] Fé não é crença, mas as seguintes definições de fé, formuladas no


último século, demonstram como seu conceito está completamente
deturpado por uma ideia de crença:
"Fé: crença, não baseada em provas, no que é contado por alguém que
fala sem conhecimento de coisas sem paralelo." (Ambrose Bierce)
"A fé pode ser definida, em resumo, como uma crença ilógica na
ocorrência do improvável." (Henry Louis Mencken)
"Fé é crença sem evidência." (Sam Harris)

[11] Lutero, Sermão 25:7, em Pelikan, The Christian Tradition, IV, p.


163.

[12] O atual conceito de salvação também necessita ser revisto, mas


espero escrever a respeito disso em outra ocasião.

[13] “Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão


têm valor algum, mas a fé que atua pelo amor.” (Gálatas 5:6)
“Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé
sem obras é morta.” (Tiago 2:26)

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Marcadores: Ateísmo, Crítica Textual do
NT, Despertamento, Reflexão, Teologia
quarta-feira, 3 de julho de 2013

OS DITOS DE "JESUS" NO
EVANGELHO SEGUNDO
TOMÉ

Por Alan Capriles

O relato de testemunhas oculares deu origem a muitos textos acerca de


Jesus, os quais, acredita-se, foram escritos a partir de meados do
primeiro século. Há evidências disso até mesmo nos evangelhos
canônicos, onde Lucas, por exemplo, inicia seu relato reconhecendo já
existirem muitas outras narrativas acerca de Cristo, fato que João parece
também indicar no último versículo de seu evangelho. É quase certo que
a maioria desses manuscritos tenham se perdido - primeiro devido a
natural preferência pelos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João,
que eram os melhores textos e, por isso, os mais copiados; e, segundo,
porque a canonização desses tornou aqueles outros "apócrifos" e,
consequentemente, proibidos. [1]

No entanto, a despeito de toda a perseguição, alguns manuscritos


conseguiram sobreviver e foram sendo descobertos com o passar dos
séculos. O achado mais significativo ocorreu em 1945, no alto Egito,
quando um camponês de Nag Hammadi encontrou uma jarra selada
contendo 52 tratados divididos em treze códices de papiro embrulhados
em couro. Acredita-se que esses textos foram preservados por cristãos
gnósticos no século IV, quando uma ordem do bispo de Alexandria
determinou que todos os documentos considerados heréticos fosses
destruídos, principalmente os que contivessem a influência do
Gnosticismo. [2]

Dentre os tratados, o que mais chamou a atenção foi o Evangelho de


Tomé, uma coleção de 114 ditos atribuídos a Jesus. Apesar de escrito em
copta, especialistas afirmam que esse texto foi traduzido do grego, com
sua datação original podendo oscilar entre o ano 50 e o início do segundo
século. Essa descoberta confirmou a suspeita de terem existido
evangelhos contendo apenas ditos do Senhor e fortaleceu a tese de que
o material comum somente a Mateus e Lucas tenha se originado de um
evangelho assim: o hipotético evangelho Q (de Quelle - Fonte em
francês).

O fato é que o evangelho de Tomé apresenta muitos versos similares ao


que encontramos nos evangelhos sinóticos, como, por exemplo: "nada
há de oculto que não seja manifestado", "quem tem ouvidos ouça", "tira
a trave do teu olho", "se um cego guiar outro cego, ambos cairão no
abismo", assim como as parábolas do semeador, do trigo e o joio, do grão
de mostarda e dos vinhateiros. Apesar da similaridade com os sinóticos,
essas passagens são menos rebuscadas no Evangelho de Tomé, o que
sugere sua composição para um estágio mais antigo da tradição oral.

Todavia não devemos concluir que tudo que há em Tomé seja confiável
somente porque esse evangelho representa uma tradição mais antiga. O
correto é reconhecermos que o evangelho de Tomé nos
apresenta alguns ditos autênticos de Jesus, oriundos da tradição oral,
mas que foram acrescidos de ensinamentos gnósticos, que nada tem a
ver com o Nazareno. O mesmo, aliás, pode ter ocorrido com outros
evangelhos apócrifos, desde que esses também tenham resquícios da
tradição oral, o que parece estar comprovado em Tomé.
Sendo assim, é bem provável que evangelhos apócrifos contenham
alguns ditos autênticos de Jesus que não foram lembrados nos
evangelhos canônicos. O livro de Atos corrobora com essa possibilidade
ao relatar que Paulo teria citado um dito de Jesus que não consta nos
evangelhos canônicos: "Mais bem-aventurada coisa é dar do que
receber." (Atos 20:35) De onde Paulo tirou isso? Se ainda não haviam
evangelhos escritos, certamente essa frase foi transmitida por alguma
tradição oral que preservava o que Jesus teria ensinado. Foram as
tradições orais, ou seja, o que era contado por testemunhas oculares, que
deram origem aos evangelhos - não somente os canônicos, mas também
outros evangelhos escritos na mesma época, como o Evangelho de
Tomé.

Sob essa premissa, o que nos cabe agora é a empolgante tarefa de


buscarmos ditos autênticos de Jesus nos evangelhos considerados
apócrifos. Apesar da mistura com o gnosticismo, tais evangelhos podem
estar guardando ensinamentos preciosos do Senhor - ensinamentos que,
além de não contradizer nossos tão queridos evangelhos canônicos,
poderão aprofundar o entendimento que temos desses evangelhos - ou
melhor, do único e autêntico evangelho de Cristo.

Finalizo com minha própria análise do Evangelho de Tomé,


selecionando os ditos exclusivos a esse evangelho que me parecem
autênticos, nascidos no coração do Senhor, posto que falam
profundamente ao meu coração:
Jesus disse: Aquele que procura, não cesse de procurar até
quando encontrar; e quando encontrar ficará perturbado; e
ao perturbar-se, ficará maravilhado e reinará sobre o
Todo. (v.2)
Jesus disse: Se aqueles que vos guiam vos disserem: vê, o
Reino está no céu, então os pássaros vos precederão. Se vos
disserem: ele está no mar, então os peixes vos precederão.
Mas o reino está dentro de vós e está fora de vós. (v.3a)
Jesus disse: “Bendito aquele que era antes de existir. Se vos
tornardes meus discípulos e ouvirdes minha palavra, estas
pedras vos servirão. (v.19a)
Disse Jesus: Ama teu irmão como tua alma, protege-o como
a pupila dos teus olhos. (v.25)
Disse Jesus: se dois fizerem as pazes em uma casa dirão à
montanha: mova-te, e ela se moverá. (v.48)
Disse Jesus: aquele que conheceu o mundo encontrou um
cadáver, e aquele que encontrou um cadáver, o mundo não
serve para ele. (v.56)
Felizes daqueles que forem perseguidos em seu coração;
estes são os que na verdade conhecem o Pai. (v.69a)
Disse Jesus: se derdes à Luz o que tendes dentro de vós, o
que tendes dentro de vós vos salvará. Se não tendes dentro
de vós, o que não tendes dentro de vós vos matará. (v.70)
Disse Jesus: muitos estão à porta, mas somente os solitários
entrarão na câmara nupcial. (v.75)
Disse Jesus: Se tiveres dinheiro, não o emprestes a juros,
mas dá-o àquele que não vai pagar-te. (v.95)
Disse Jesus: Aquele que beber de minha boca tornar-se-á
como eu, e eu mesmo tornar-me-ei ele, e todas as coisas
ocultas ser-lhe-ão desveladas. (v.108)
Seus discípulos disseram a ele: Quando virá o Reino? Disse
Jesus: Ele não virá só por esperá-lo; não dirão: Ei-lo aqui!
Ou ei-lo acolá! Mas o Reino do Pai está espalhado sobre a
terra e os homens não o veem. (v.113)
_____

Por Alan Capriles


________________________________________________
_____

[1] Evangelhos canônicos e apócrifos


- Canônico é o nome que se dá aos livros admitidos pela igreja como
sendo inspirados pelo Espírito Santo. A lista foi definida no Concílio de
Nicéia, em 325, na qual somente quatro evangelhos (Mateus, Marcos,
Lucas e João) foram admitidos como sagrados.
- Apócrifo (do grego apokryphos, pelo latim apokryphu) significa,
literalmente, algo oculto, secreto. Na antiguidade o termo designava
livros pertencentes a seitas secretas, mas posteriormente passou-se a
usar o termo apócrifo para qualquer livro considerado herético. Além
de Tomé, há dezenas de outros evangelhos apócrifos, destacando-se os
de Pedro, de Felipe, de Maria Madalena e o polêmico evangelho de
Judas, descoberto em 2006.

[2] Gnosticismo
A palavra "gnóstico" vem do termo grego gnosis, que significa
"conhecimento". O gnosticismo se aplica a diversos grupos de cristãos
esotéricos que proliferaram no século II. Seus adeptos formulavam
outra ideia de Cristo. Viam-no como uma emanação do Pneuma ou o
Espírito do Pai, e o chamavam de Ophis, ou símbolo da Sabedoria
divina manisfestada na matéria. Acreditavam que o conhecimento, e
não a fé, era o caminho para a salvação.
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Marcadores: Apócrifos, Crítica Textual do NT
sábado, 16 de fevereiro de 2013

A MAIS NOVA
(PER)VERSÃO DA BÍBLIA

Por Alan Capriles

Enquanto me esforço no estudo do grego, a fim de melhor


compreender os textos do Novo Testamento, sou informado da mais
recente versão da Bíblia, se é que podemos chamar isso de versão.
Apesar de ser ainda uma proposta digital e independente, não duvido
que em breve algum editor ganancioso e sem escrúpulos comprará os
direitos para publicação. Confira um trecho que, a meu ver, mais
parece uma piada de mau gosto:

Chegando um playboyzinho perto de Jesus, puxava saco dele: "Bom


mestreeeeeeeeee... o que eu preciso fazer pra descolar essa tal vida
eterna, heim?". E Ele respondeu: "Pode parar com a adulação. Bom é o
pai, eu sou bonzinho. Mas tipo, se quer curtir a balada da vida eterna,
obedece os mandamentos". E o playboy retrucou: "Que
mandamentos?". Jesus continou a bordoada: "Não mate, não roube,
não minta, não pegue a mulher de ninguém, respeite seus pais e ame as
outras pessoas como se elas fossem você mesmo". O playboy então
respondeu: "Qualé Jesus... eu sempre fiz isso aí tudo. Se tem um cara
bom nessas paradas, sou eu. Que mais eu preciso fazer?". E Jesus
soltou o hadouken final: "Se você quer ser 'o cara', então vende tudo o
que tem e dá pra quem não tem nada. Faz a diversão dos pobres, mano!
Aí vem viver comigo, nessa nossa vida loka". Então o cara abaixou a
cabeça e saiu de fininho, por que era rico pra caramba e sentiu pena de
se livrar dos carros, videogames, da empresa e do apartamento no
Guarujá.
Jesus continou esculhambando: "É mais fácil ganhar uma briga do
Chuck Norris, do que entrar gente rica no céu". Os discípulos já ficaram
alvoroçados com essa conversa: "Vixi! Então quem vai conseguir ser
salvo? Tamo perdido!". E Jesus ensinava: "Salvar-se é realmente
impossível. Mas relaxem, por que Deus pode fazer qualquer coisa".
Pedro fez questão de perguntar qual o futuro deles mesmos, só pra
prevenir. E Jesus explicou: "Vocês que largaram tudo pra serem meus
seguidores, vou garantir umas cadeiras estilosas no céu, pra julgarem
as doze tribos de Israel. Quem deixou as coisas materiais ou a família
por minha causa, vai receber cem vezes mais no céu (menos sogra,
claro), além da vida eterna."
A princípio, quando me deparei com a perversão acima, eu havia
decido não comentar sobre o assunto. Mas depois, refletindo melhor a
respeito, considerei ser uma boa oportunidade para escrever o que
penso sobre as diversas versões (e perversões) da Bíblia. Para ser
franco e objetivo, minha opinião é que até o presente momento ainda
não temos uma versão que seja, ao mesmo tempo, verdadeiramente fiel
aos melhores manuscritos e de fácil leitura para o povo brasileiro.

Penso que, para ser fiel ao que o autor bíblico pretendia dizer (e
considero isso importantíssimo), não precisamos necessariamente usar
palavras estranhas ao nosso vocabulário. E, por outro lado, para que
todos compreendam os textos, não precisamos alterar frases. Existem
alternativas, mas elas parecem não ser levadas em conta pelos atuais
tradutores, que vão de um extremo a outro.

Percebo também que parte desse problema está numa quase idolatria
dos evangélicos pela versão de João Ferreira de Almeida, como se fosse
ele mesmo quem tivesse escrito os textos originais da Bíblia. Já está
comprovado que essa versão contém erros de tradução e que não foi
baseada nos melhores manuscritos em hebraico e grego. Mas muitos
evangélicos insistem teimosamente nessa versão. Aliás, a Sociedade
Bíblica Brasileira já está preparando mais uma repetição do mesmo
tema, que será uma atualização da versão Almeida Revista e
Atualizada. Como será que irão chamá-la depois de pronta? Talvez seja
"Almeida Revista e Reatualizada".

Brincadeiras a parte, o fato é que não temos uma versão em português


que seja realmente fiel aos melhores manuscritos das Escrituras e
adequada para o povo brasileiro. Sendo assim, aconselho que cada um,
assim como eu, se esforce em estudar o grego. Ao menos as principais
passagens. Não que isso seja necessário para a sua salvação, mas
certamente irá lhe salvar de versões pervertidas que não sejam tão
evidentes como a que publiquei nesse artigo.

Alan Capriles
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Marcadores: Crítica Textual do NT, Denúncia
sábado, 24 de novembro de 2012

JESUS EXISTIU?

Por Bart D. Ehrman

Em uma sociedade em que as pessoas ainda afirmam que o Holocausto


não aconteceu, e em que há afirmações contundentes de que o
presidente americano é, na verdade, um muçulmano nascido em solo
estrangeiro, é alguma surpresa aprender que a maior figura da história
da Civilização Ocidental, o homem sobre quem foi construída a mais
poderosa e influente instituição social, política, econômica, cultural e
religiosa do mundo – a Igreja Cristã – o homem que é adorado,
literalmente, por bilhões de pessoas hoje – é alguma surpresa ouvir que
Jesus nunca sequer existiu?

Essa é uma afirmação feita por um grupo pequeno mas crescente de


escritores, blogueiros e viciados em internet que chamam a si mesmos
de mitologistas. Esse grupo extraordinariamente vociferante de
negativistas sustenta que Jesus é um mito inventado para propósitos
nefastos (ou altruístas) pelos primeiros cristãos, que modelaram seu
salvador através da linhagem divina de um homem pagão que também
nasceu de uma virgem em 25 de dezembro, que também fez milagres,
morreu como expiação pelo pecado e foi, então, ressuscitado dos mortos.

Poucos desses mitologistas são realmente estudiosos formados em


História Antiga, religião, estudos bíblicos ou qualquer campo similar,
sem falar nas línguas antigas geralmente estudadas por quem quer dizer
alguma coisa com algum grau de autoridade sobre um professor judeu
que (supostamente) viveu na Palestina do primeiro século. Existem
algumas exceções: das centenas – milhares? – de mitologistas, dois (que
eu saiba) realmente têm doutorado e credenciais em áreas relevantes de
estudo. Mas mesmo tendo isso em conta, não há um único mitologista
que ensina Cristianismo Primitivo ou até mesmo as civilizações da
Antiguidade Clássica em alguma instituição de ensino superior
respeitada no mundo ocidental. E não é de se admirar o porquê. Essas
opiniões são tão radicais e tão pouco convincentes para 99,99 por cento
dos verdadeiros especialistas daquela área como seria para eles pegarem
uma vaga de emprego em um respeitado departamento de Religião como
criacionistas ou como defensores da formação do mundo em seis dias
num departamento de Biologia.

Por que, então, o movimento mitologista vem crescendo, com


defensores tão confiantes de suas opiniões e contestações – mesmo bem
articuladas – em sua radical denúncia da ideia de que Jesus realmente
existiu? É, em grande parte, porque esses que negam [a existência de]
Jesus são os mesmos que denunciam a religião – um tipo de pessoa que
agora está muito na moda. E que melhor maneira de caluniar a visão
religiosa da grande maioria das pessoas do mundo ocidental, que se
mantém, apesar de tudo, predominantemente cristã, do que a alegação
de que o fundador histórico de sua religião era, na verdade, o produto da
imaginação de seus seguidores?

Mas a visão dos fundadores era diferente. A realidade – triste ou salutar


– é que Jesus era real. E este é o tema de meu novo livro, “Jesus existiu?”.

É verdade que Jesus não é mencionado em nenhuma fonte romana de


sua época. Mas isso não deveria ser contabilizado para se negar sua
existência, uma vez que essas mesmas fontes quase não mencionam
ninguém de sua época e lugar. Nem mesmo o famoso historiador judeu,
Josefo, ou até, mais particularmente, a figura mais poderosa e
importante de sua época, Pôncio Pilatos.
Também é verdade que as nossas melhores fontes sobre Jesus, os
Evangelhos, estão cheias de problemas. Eles foram escritos décadas após
a vida de Jesus por autores tendenciosos que estão em desacordo uns
com os outros em cada linha. Mas os historiadores nunca podem
descartar fontes apenas porque elas são tendenciosas. Você pode não
confiar na visão de Rush Limbaugh de Sandra Fluke, mas ele certamente
fornece evidências de que ela existe.

A questão não é se as fontes são tendenciosas, mas se fontes


tendenciosas podem ser usadas para fornecer informação histórica
confiável, uma vez que o joio tendencioso é separado do cerne histórico.
E os historiadores têm buscado meios de fazer isso.

Com relação a Jesus, temos numerosos relatos independentes de sua


vida nas fontes por trás dos Evangelhos (e os escritos de Paulo) – fontes
que foram originalmente escritas em aramaico, a língua nativa de Jesus,
e que podem ser datadas dentro de apenas um ano ou dois de sua vida
(antes de a religião cristã ser mudada para converter os pagãos). Fontes
históricas como essas são bastante surpreendentes para figuras antigas
de qualquer tipo. Além disso, temos escritos relativamente extensos de
um autor do primeiro século, Paulo, que adquiriu sua informação da
vida de Jesus dentro de alguns anos e que sabia, em primeira mão, de
Pedro, o discípulo mais próximo de Jesus e de seu próprio irmão Tiago.
Se Jesus não existiu, você pensaria que seu irmão saberia.

Além disso, a afirmação de que Jesus foi simplesmente inventado não se


sustenta. Os alegados paralelos entre Jesus e os deuses-salvadores
“pagãos” na maioria dos casos residem na imaginação moderna. Não
sabemos quantos outros nasceram de uma virgem, morreram como
expiações pelo pecado e, em seguida, foram ressuscitados dos mortos
(apesar do que os sensacionalistas afirmam ad nauseum em suas
propaladas versões).

Além disso, aspectos da história de Jesus não teriam simplesmente sido


inventados por quem deseja fabricar um novo salvador. Os primeiros
seguidores de Jesus declararam que ele era um Messias crucificado. Mas
antes do Cristianismo, não havia absolutamente nenhum tipo de judeu
que pensava que haveria um futuro messias crucificado. O Messias era
pra ser uma figura de grandeza e poder que derrotaria o inimigo.
Qualquer um que quisesse inventar um messias faria dessa forma. Por
que os cristãos não fariam também? Porque acreditavam
especificamente que Jesus era o Messias. E eles sabiam muito bem que
ele foi crucificado. Os cristãos não inventaram Jesus. Eles inventaram a
ideia de que o Messias tinha de ser crucificado.
Alguém pode escolher repetir as preocupações de nossos
menosprezadores culturais modernos e pós-modernos da religião
institucionalizada (ou não). Mas, certamente, a melhor maneira de
promover qualquer agenda desse tipo é negar o que virtualmente todos
os historiadores sensatos do planeta – cristãos, judeus, muçulmanos,
pagãos, agnósticos, ateus, o que for – concluíram baseados em uma
gama de evidências históricas convincentes.

____________________________

Resenha do livro "Did Jesus Existed?" (Jesus Existiu?) escrito por Bart
D. Ehrman, mas ainda não publicado no Brasil.
Bart Ehrman é um historiador e teólogo norte-americano que tem se
destacado como um dos principais estudiosos do cristianismo primitivo,
tendo se doutorado pela Universidade de Princeton e atualmente sendo
docente da Universidade da Carolina do Norte. Alguns de seus livros já
foram lançados em português, como "O que Jesus Disse? O que Jesus
não Disse?", "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?", "Pedro, Paulo e
Maria Madalena", "Evangelhos Perdidos", entre outros. Como agnóstico
declarado, sua firme posição em assegurar que Jesus existiu causou
grande incômodo entre aqueles que negam sua existência.
O texto foi traduzido por Betone Souza e compilado de seu blog.
Veja o texto original em inglês clicando aqui.
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Marcadores: Apologética, Artigos de Terceiros, Ateísmo, Crítica
Textual do NT, Teologia,Trecho de Livro
terça-feira, 20 de novembro de 2012

AS DIVERGÊNCIAS NOS
EVANGELHOS SINÓTICOS
TRÊS DIFERENTES HISTÓRIAS, MAS UM SÓ
ENSINAMENTO
Por Alan Capriles

Temos a sorte de haver não apenas um, mas quatro evangelhos


canônicos, ou seja, reconhecidos pela igreja como inspirados por Deus.
[1] Os três primeiros – Mateus, Marcos e Lucas – são chamados de
evangelhos sinóticos, pois apresentam a vida de Jesus seguindo uma
sinopse bastante parecida. Quase todas as histórias contadas em
Marcos, por exemplo, são também contadas em Mateus e em Lucas. No
entanto, isso não significa que haja unanimidade quanto à maneira
como estas histórias são contadas. Isso fica claramente demonstrado
nos relatos a seguir, onde comparo três passagens paralelas dos
evangelhos sinóticos:
“Entretanto, os fariseus, sabendo que ele fizera calar os saduceus,
reuniram-se em conselho. E um deles, intérprete da Lei,
experimentando-o, lhe perguntou: Mestre, qual é o grande
mandamento na Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu
Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu
entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo,
semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes
dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (Mateus 22:34-
40)
“Chegando um dos escribas, tendo ouvido a discussão entre eles, vendo
como Jesus lhes houvera respondido bem, perguntou-lhe: Qual é o
principal de todos os mandamentos? Respondeu Jesus: O principal é:
Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás, pois,
o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo
o teu entendimento e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que
estes. Disse-lhe o escriba: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste
que ele é o único, e não há outro senão ele, e que amar a Deus de todo
o coração e de todo o entendimento e de toda a força, e amar ao
próximo como a si mesmo excede a todos os holocaustos e
sacrifícios. Vendo Jesus que ele havia respondido sabiamente,
declarou-lhe: Não estás longe do reino de Deus. E já ninguém mais
ousava interrogá-lo.” (Marcos 12:28-34)
“E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de
pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida
eterna? Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como
interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo
o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o
teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Então,
Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás. Ele,
porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu
próximo? Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de
Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais,
depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos,
retiraram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia um
sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de
largo. Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o,
também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho,
passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se,
pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o
sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou
dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro,
dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to
indenizarei quando voltar. Qual destes três te parece ter sido o
próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-
lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então,
lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.” (Lucas 10:25-37)*
Apesar de retratarem o mesmo acontecimento da vida de Jesus, todos
os evangelistas o relataram de maneira diferente. Segundo Lucas, por
exemplo, Jesus não respondeu diretamente qual seria o grande
mandamento da Lei, mas devolveu a pergunta para o intérprete da Lei,
que lhe dá uma sábia resposta. No entanto, para Mateus e Marcos, é o
próprio Jesus quem responde imediatamente a questão. Ora, qual dos
dois deu a resposta? Não há como se conciliar essa questão. Mas vejamos
ainda como a mesma história tem desfechos diferentes, segundo o relato
de cada evangelho.

Em Mateus a história termina mais abruptamente, com Jesus apenas


acrescentando que “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas” – revelação que, aliás, não consta dos demais
evangelhos. Marcos, por outro lado, acrescenta que o escriba teria
comentado a resposta de Jesus e que este, vendo “que ele havia
respondido sabiamente, declarou-lhe: Não estás longe do reino de
Deus.” Esse é o final da história para Marcos, o qual apenas acrescenta
que “já ninguém mais ousava interrogá-lo.”

Em Lucas, como já foi dito, Jesus não responde diretamente a pergunta,


mas a devolve para o intérprete da Lei, que acaba respondendo a questão
por ele mesmo levantada. Jesus apenas avalia que sua reposta foi correta
e acrescenta: “Faze isto e viverás”. Mas, ainda segundo Lucas, o
intérprete da Lei “querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o
meu próximo?” – uma nova questão, que resulta na famosa parábola do
bom samaritano. Mas o diálogo ainda prossegue, com Jesus lhe
perguntando, ao final da parábola: “Qual destes três te parece ter sido o
próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe
o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe
disse: Vai e procede tu de igual modo”.

Pois bem, não há como se negar que temos aqui três histórias diferentes.
E provavelmente jamais saberemos o que realmente aconteceu: se foi
Jesus quem deu a resposta (Mt e Mc) ou se foi o intérprete da Lei (Lc);
se houve apenas essa pergunta (Mt) ou se o diálogo se prolongou um
pouco mais (Mc) ou muito mais (Lc); se o escriba fez um comentário que
foi elogiado por Jesus (Mc), ou se foi o contrário (Lc); se Jesus disse para
o intérprete da Lei “não estás longe do reino de Deus” (Mc) ou se disse
“faze isto e viverás”(Lc), ou se não disse mais nada (Mt). Não temos
como saber os detalhes do que realmente ocorreu. E também não é
possível juntar as três histórias em uma só, como você mesmo poderá
comprovar.

Mas será que esses detalhes têm alguma relevância quanto ao ensino por
detrás dessas histórias? Definitivamente não! Apesar de não sabermos
com exatidão o que aconteceu, o fato é que nas três histórias o ensino
permanece o mesmo. Esse é apenas um exemplo dentre vários outros
que encontramos na leitura comparativa dos evangelhos. E a conclusão
será sempre a mesma, a saber, a de que as histórias contém divergência
nos detalhes, porém não nos ensinamentos.

Como pode ser isso? Por que motivo há divergências entre os


evangelhos, ainda que sejam nos detalhes? A resposta é tão simples que
corremos o risco de não considerarmos suas implicações.

As evidências indicam que os acontecimentos ocorridos no ministério


público de Jesus não foram imediatamente colocados no papel. Algum
tempo teria se passado até que algum discípulo começasse a escrever a
respeito do que Jesus disse e do que ele fez. Quanto tempo? Semanas?
Meses? Anos? Tenho minhas dúvidas, mas o fato é que a maioria dos
estudiosos do assunto assevera que décadas se passaram entre a
crucificação de Jesus e a escrita do primeiro evangelho. Enquanto isso,
os ensinamentos de Jesus e as histórias sobre Jesus eram contados de
boca, naquilo que os eruditos chamam de tradição oral. Um desses
eruditos, por exemplo, concluiu sua pesquisa sobre o assunto com a
seguinte consideração:
“Com efeito, não há nesse trabalho a presunção de se identificar por
meio de quem as tradições de e sobre Jesus foram transmitidas até o
momento em que começaram a ser vertidas por escrito por autores
igualmente anônimos. Pois, mesmo que tenham se iniciado com o
apóstolo Pedro, ou com familiares de Jesus de Nazaré, é crucial ter em
conta as armadilhas da memória.” [2]

O que esse pesquisador está afirmando, em outras palavras, é que


mesmo que as fontes para a escrita dos evangelhos tenham sido
testemunhas oculares, essas mesmas testemunhas podiam se equivocar
quanto a detalhes dos acontecimentos. De fato, isso explicaria as
divergências entre as três histórias que acabamos de analisar – e as
demais divergências entre os evangelhos. Se a teoria estiver correta, cada
um dos evangelistas teria sido influenciado por diferentes tradições
orais que buscavam relatar a mesma história. Como se diz, “quem conta
um conto, aumenta um ponto” (e às vezes omite ou até muda um ponto).
Felizmente, como ficou demonstrado, os pontos acrescentados ou
omitidos não alteraram o cerne da mensagem, que é o amor.

Mesmo que os autores de Mateus e Lucas tenham se utilizado de Marcos


como fonte para seus evangelhos, como creem os eruditos, eles podem
ter alterado algumas histórias, não por má fé, mas segundo a influência
de outras testemunhas que entrevistaram, ou de tradições orais que já
conheciam.

Como se não bastasse, nenhum dos quatro evangelhos foi escrito por
historiadores. Sendo assim, eles não estavam buscando a exatidão
histórica quando organizaram os ensinamentos de Jesus, mas sim a
maneira mais apropriada para se facilitar sua memorização e meditação.
Isso explicaria porque a ordem dos acontecimentos muda em cada um
dos evangelhos. Quando o autor de Lucas, por exemplo, tomou
conhecimento da parábola do bom samaritano (que não é contada nos
outros evangelhos), o melhor lugar que ele encontrou para ela foi inseri-
la no contexto do maior mandamento na Lei.

Portanto, não devemos ler os evangelhos buscando exatidão histórica,


mas revelação teológica. Quando nos apercebemos disso, os temores se
dissipam, as peças se encaixam e podemos descansar na certeza de que
“o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade.”

Alan Capriles

* Todos os relatos bíblicos na versão Almeida Revista e Atualizada –


SBB .
____________________________________

Notas:

[1] Digo que temos sorte por haver quatro evangelhos na Bíblia Sagrada
porque, caso tivéssemos apenas um relato canonizado, dependeríamos
da arqueologia ou de alguém encontrar por acaso os fragmentos dos
demais evangelhos, tal como ocorreu em 1945, quando evangelhos
“apócrifos” foram encontrados em Nag Hammadi.

[2] “Quem vos ouve, ouve a mim”: Oralidade e Memória dos


Cristianismo Originários / Lair Amaro dos Santos Faria – Rio de
Janeiro: Kline 2011. Pág. 128

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