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TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA

Pedro H. C. de Medeiros
2

SUMÁRIO

UNIDADE I – INTRODUÇÃO ................................................................................................. 4


ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS PARA A TEOLOGIA ....................................... 4
1. Transcendência e imanência de Deus ................................................................................. 4
1.1. Implicações da imanência:........................................................................................... 4
1.2. Implicações da transcendência .................................................................................... 4
2. Revelação natural, revelação especial, revelação proposicional e revelação pessoal ........ 5
UNIDADE II – INFLUÊNCIA DO ILUMINISMO NA FORMAÇÃO DA TEOLOGIA
CONTEMPORÂNEA ................................................................................................................ 6
UNIDADE III – IMMANUEL KANT E FRIEDRICH HEGEL: O RACIONALISMO
CRÍTICO E O IDEALISMO NA TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA ..................................... 8
I. Immanuel Kant (1724-1804) ............................................................................................... 8
II. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) ................................................................. 10
1. O espírito: ..................................................................................................................... 11
2. Verdade como um processo:......................................................................................... 12
3. Dialética:....................................................................................................................... 13
4. Filosofia, Teologia e História ....................................................................................... 13
5. Cristianismo .................................................................................................................. 14
6. A influência de Hegel ................................................................................................... 15
UNIDADE IV – TEOLOGIA LIBERAL CLÁSSICA ............................................................ 16
Introdução ............................................................................................................................. 16
I. Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834) ........................................................ 16
1. Inovações doutrinárias .................................................................................................. 18
II. Albrecht Ritschl (1822-1889) .......................................................................................... 20
1. Inovações doutrinárias .................................................................................................. 21
III. Adolf von Harnack (1851-1930) .................................................................................... 22
IV. Walter Rauschenbusch (1861-1918) .............................................................................. 23
V. Alta Crítica....................................................................................................................... 24
UNIDADE V – CONSERVADORISMO PROTESTANTE ................................................... 28
Introdução ............................................................................................................................. 28
I. Conservadorismo protestante ............................................................................................ 28
II. Fundamentalismo protestante .......................................................................................... 32
UNIDADE VI – NEO-ORTODOXIA ..................................................................................... 35
Introdução ............................................................................................................................. 35
I. Karl Barth (1886-1968) ..................................................................................................... 36
3

II. Emil Brunner (1889-1966) ............................................................................................... 39


III. Rudolf Bultmann (1884-1976) ....................................................................................... 42
IV. Reinhold Niebuhr (1892-1971) ...................................................................................... 44
4

UNIDADE I – INTRODUÇÃO

ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS PARA A TEOLOGIA

1. Transcendência e imanência de Deus

A teologia cristã ortodoxa, conservadora sempre buscou um equilíbrio entre a verdade


da transcendência e da imanência de Deus. Somente a partir desse equilíbrio, há uma relação
adequada entre a teologia, a razão e a cultura. Como ser transcendente, Deus não necessita do
mundo, ele é auto-suficiente (Is 55.8,9; Is 6.1-5). Como ser imanente, Deus está presente na
criação, está ativo no universo e envolvido nos acontecimentos do mundo e da história
humana (At 17.27,28; Jó 27.3; 33.4; 34.14,15; Sl 104.29,30; Dn 2.21; Mt 25.32). Uma ênfase
excessiva na transcendência de Deus, torna a teologia irrelevante para o contexto cultural da
sociedade. Uma ênfase excessiva na imanência torna a teologia presa de uma determinada
cultura (Jr 23.23).

1.1. Implicações da imanência:

A imanência significa que Deus faz grande parte de sua obra por intermédio de meios
naturais. Ele não restringe sua atuação a milagres. Pessoas descrentes são usadas por Deus:
Ciro (Is 44.28; 45.1) ou Nabucodonosor (Jr 25.9). Deus não se limita a agir diretamente para
cumprir seus objetivos. Ele tanto cura pelo milagre, quanto usando as mãos do médico.

Devemos ter apreço por todas as coisas criadas por Deus. O mundo é de Deus, e Deus
está presente e ativo no mundo. Podemos obter algum conhecimento acerca de Deus por meio
de sua criação. Toda ela veio à existência por intermédio de Deus e, além disso, Deus nela
habita de modo ativo. A doutrina da imanência de Deus implica dizer que há pontos em que o
evangelho pode fazer contato com o descrente.

1.2. Implicações da transcendência


5

Existe algo mais elevado que os seres humanos, algo mais elevado confere valor à
humanidade. Deus nunca pode ser completamente determinado pelos conceitos humanos.
Nossa salvação não é conquista nossa.

Sempre haverá uma diferença entre Deus e os seres humanos. Mesmo depois de
redimidos e glorificados, ainda seremos criaturas humanas. Nunca nos tornaremos Deus.
Portanto, a reverência é adequada em nosso relacionamento com Deus. Buscaremos a obra
genuinamente transcendente de Deus. Nunca negligenciaremos a oração (I Ts 5.17), pedindo
sua orientação e intervenção especial (Sl 40.1).

2. Revelação natural, revelação especial, revelação proposicional e revelação pessoal

Os seres humanos são finitos e Deus é infinito, não há como conhecer a Deus a menos
que ele se revele para nós. Os homens só podem conhecer a Deus se Ele se manifestar aos
homens. Somente a partir dessa manifestação os homens podem ter comunhão com Deus (Rm
11.34-36; Jo 1.9).

Revelação geral ou natural é Deus manifestando sua glória a todos os homens em


todos os lugares (Rm 2.14,15; Sl 19). Pela revelação natural, entende-se a revelação de Deus
por meio da natureza (Sl 19.1), da história (At 7), e na personalidade do homem (Gn 1.26).

Revelação especial é Deus se manifestando de forma particular para pessoas


específicas em épocas específicas (Nm 12.8; Is 6.1-8; Jr 1.1-2; Jo 1.9; II Tm 3.16; Hb 1.2; Ap
1.1). A revelação especial não ocorre mais nos dias de hoje. Paulo advertiu sobre a
possibilidade de alguém pregar outro Evangelho (Gl 1.8; II Ts 2.15; II Pe 3.2; Jd 17).

Revelação proposicional é Deus se manifestando por meio de sentenças e não somente


por experiências pessoais na vida de alguém (Ex 4.22; Jz 6.8; Ap 22.18,19).
6

UNIDADE II – INFLUÊNCIA DO ILUMINISMO NA FORMAÇÃO DA TEOLOGIA


CONTEMPORÂNEA

Deve-se destacar a importância do Iluminismo para a quebra do equilíbrio entre as


verdades sobre a imanência e transcendência de Deus. Tudo deveria ser razoável para ser
crido. Não há como compreender o que é a teologia contemporânea sem compreender as
mudanças que o iluminismo trouxe para a humanidade. O iluminismo foi marcado pelas
ideias de pensadores como Francis Bacon (1561-1626), empirismo, e René Descartes (1596-
1650), o método para se alcançar a verdade.

O iluminismo colocou o homem em posição elevada, valorizando as capacidades


humanas. Com o iluminismo, o homem tornou-se definitivamente o centro da História. “Ao
contrário do pensamento da Idade Media e da Reforma, que via a importância das pessoas
relacionada a seu lugar na história do agir de Deus, os pensadores do Iluminismo
determinavam a importância de Deus em termos de seu valor para a história da vida de cada
um”.

Durante a Idade Média, a revelação divina era considerada o árbitro supremo da


verdade, a razão humana deveria apenas compreender a verdade oferecida pela revelação. No
iluminismo, a razão humana substituiu a revelação, a razão passou a determinar o que deveria
ser considerado revelação. Antes cria-se para poder compreender. Agora era necessário
compreender para crer.

O meio iluminista para se obter o conhecimento era empregar a razão para sistematizar
o que era oferecido pela experiência e seguir a razão onde quer que ela conduzisse. Isso
contrariava o que ocorria antes, isto é, seguir cegamente as superstições proclamadas pelas
autoridades externas.

O iluminismo também enfatizou a moralidade humana ao invés dos dogmas, para eles
o raciocínio humano podia descobrir a lei moral natural escrita dentro de cada um e obedecê-
la. Os princípios do iluminismo eram a autonomia, a natureza, a harmonia e o progresso.

Os iluministas enfatizavam a religião natural em detrimento da religião revelada. “O


caminho intelectual para a primazia da religião natural sobre a religião revelada foi aberto
pelo empirista britânico John Locke. Ele lançou a tese revolucionária de que, uma vez
destituído de sua bagagem dogmática, o Cristianismo era a manifestação religiosa mais
racional. Sobre as bases dessa visão de Locke, os pensadores do Iluminismo construíram o
7

deísmo - uma alternativa teológica para a ortodoxia. Os teólogos do deísmo desejavam reduzir
a religião a seus elementos mais básicos, universais e, portanto, racionais.”

O deísmo entendia que a religião natural era racional, e por isso, todas as religiões
deveriam estar em conformidade com ela. Os deístas não entendiam a religião como um
sistema de crenças, mas sim como um sistema ético. O cristianismo nada mais era do que uma
manifestação religiosa dentre outras, participando de uma gradação até a religião perfeita e
universal.

Para fugir desse ceticismo e desvalorização do cristianismo criado pelo iluminismo, os


teólogos do século XIX decidiram ir além do iluminismo, mas baseados no pensamento de
três gigantes da filosofia: Immanuel Kant, G. W. Hegel e Friedrich Schleiermacher. As
principais contribuições desses pensadores para a teologia do século XIX foram: Kant, a
moral; Hegel, o intelecto; Schleiermacher, a intuição.
8

UNIDADE III – IMMANUEL KANT E FRIEDRICH HEGEL: O RACIONALISMO


CRÍTICO E O IDEALISMO NA TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA

I. Immanuel Kant (1724-1804)

Immanuel Kant nasceu na Alemanha, em 1724, foi educado dentro de um ambiente


protestante, pietista. Segundo Severo Hryniewicz, Kant sempre confiou no primado do
conhecimento científico. “É o típico pensador alemão, que não prima pelo estilo mas pela
profundidade do pensamento. Isto torna os seus escritos, às vezes, de difícil compreensão”. 1

Para Kant, a possibilidade de se experimentar a realidade, dependia da mente. Kant


procurou resolver um problema epistemológico deixado pelo empirismo inglês, pois para os
empiristas a mente era passiva no processo de conhecimento. Para John Lock (1632-1704),

a mente era uma tábua rasa, um recipiente vazio e desprovido de qualquer


ideia inata. Como resultado disso, ela é passiva no processo de
conhecimento. Ela simplesmente recebe 'impressões' do mundo externo
através dos sentidos e então formula ideias a partir das impressões
recolhidas.2
Esse pensamento resultou no ceticismo de David Hume (1711-1776) que dizia não ser
possível ao homem ter verdadeiro conhecimento das substâncias. Ao homem só seria possível
ter impressões, mas nunca alcançava a substância em si. A identidade dos objetos, portanto,
não estava fora do homem, mas no próprio homem.

Isso teve consequências sobre a religião natural, que estava submetida ao empirismo,
pois não era possível provar a existência de Deus a não ser por uma impressão interna. Kant
procurou responder a essas questões levantadas por David Hume.

Em Crítica da Razão Pura (1781), a metafísica foi colocada sobre bases sólidas. Para
Kant, “a mente tem um papel 'ativo' no processo de conhecimento”. Para Kant, o processo do
conhecimento não pode ser derivado apenas das experiências sensoriais.

1
HRYNIEWICZ, Severo. Para filosofar hoje: introdução e história da Filosofia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edição do
autor, 1999, p. 397.
2
GRENZ, Stanley J.; OLSON, Roger E. A Teologia do Século 20: Deus e o mundo numa era de transição.
Cambuci, SP: Editora Cultura Cristã, p. 27.
9

Os sentidos só oferecem os dados brutos que a mente sistematiza quando


acontece o verdadeiro conhecimento. Acrescentou ainda que essa
organização das sensações (conhecimento) é possível através de certos
conceitos formais presentes na mente, que agem como um tipo de grade ou
filtro oferecendo parâmetros que viabilizam o conhecimento. 3
Dentre os vários conhecimentos fundamentais, há o tempo e o espaço. Para Kant, há
objetos que estão presentes na experiência humana, os fenômenos, e há objetos que estão além
da experiência sensorial, são os numena. “De acordo com Kant, um noumenon poderia tanto
ser um objeto que existe independente de qualquer relação com um sujeito conhecedor (o
'objeto em si') como também poderia ser um objeto que simplesmente não estamos equipados
para detectar”.4

Para Kant,

qualquer realidade que está além do espaço e do tempo não pode ser
conhecida através do empreendimento científico, pois a ciência baseia-se nas
experiências sensoriais. A razão 'pura' ou especulativa (ciência) pode, no
máximo, indicar que esses conceitos metafísicos são plausíveis, no sentido
de que nada daquilo que conhecemos no mundo empírico os contradiz.5
Kant afirma que não é possível ter conhecimento onde não há intuição sensível,
portanto, não há conhecimento científico na dimensão do fenômeno. Questões metafísicas,
embora não pudessem ser conhecidas pela razão pura, poderiam ser conhecidas pela razão
prática, ou a moral. “O mundo é, na verdade, um palco no qual os seres humanos
desempenham seus papéis; é uma esfera de valor moral”.6

Kant pensava que o dever, a moral, seria recompensada em uma outra esfera. Na
esfera fenomenal, os homens são sujeitos às leis da natureza, portanto, não são livres. Na
esfera numenal, os homens são livres, pois a obrigação moral exige a liberdade. “Cada
indivíduo deve ser compreendido tanto moralmente (como sujeito com liberdade de ação)
como cientificamente (vivendo sob as leis da causação física)”.7

Em outras palavras, para Kant, a moral do dever era formal e categórica, isto é, o que
importava era a vontade (forma) de fazer o bem, e não efetivamente o que o homem faz
(matéria), e somente aquilo que o homem deseja fazer sem implicações externas (“não furte”

3
Idem, Ibidem, p. 28.
4
Idem, Ibidem, p. 29.
5
Idem, Ibidem.
6
Idem, Ibidem, p. 30.
7
Idem, Ibidem, p. 31.
10

ao invés de “se não quiseres ser preso, não furtes”), deveria ser considerada como moral. 8
Numa frase de Kant, “age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na
dos demais, sempre como fim, nunca simplesmente como meio”.9

No campo da religião, para Kant, o mal era uma presença universal dentro de cada
homem, isso foi um rompimento com a Idade da Razão. No entanto, para Kant, era possível
ao homem superar esse mal radical. E, para ele, Jesus era o ideal dessa superação. Sem se
desligar totalmente do Iluminismo, Kant diz que o cristianismo deveria se submeter à religião
universal da razão. “Para ele, o Cristianismo não passava de um meio para o estabelecimento
do bem comum ético, um estágio dentro da introdução gradual da 'fé religiosa pura'”.10

Para Kant, a moral, isto é, “a virtude buscando a santidade”, é o verdadeiro significado


das histórias bíblicas. Invertendo a doutrina da graça, para Kant, “a verdadeira religião não
consiste no conhecimento daquilo que Deus fez ou continua fazendo por nossa salvação, mas
naquilo que nós devemos fazer para sermos dignos dessa salvação”. 11

Para Kant, Deus era aquele que garantia a moral. Não podia haver conhecimento sobre
Deus para além da moral. “Ele não baseou a moralidade na teologia, como fazia o pensamento
cristão clássico, mas sim a teologia na moralidade”.12

Existência de Deus – A prática da virtude não é acompanhada


necessariamente da felicidade. Como vimos, a vontade, quando dirigida pelo
fim de uma felicidade particular, não é propriamente moaral. Ora, se a lei
moral comanda a harmonia entre felicidade e vida virtuosa, mas no âmbito
fenomênico (mundo natural e social) tal não acontece, é preciso admitir um
ser bastante poderoso para realizar efetivamente tal harmonização, ou seja,
garantir que a vida virtuosa também seja uma vida feliz. Este ser é Deus. 13

II. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)

Friedrich Hegel nasceu na Alemanha em 1770, seu pai era um livre pensador (que
defende a supremacia da razão e não aceita qualquer dogma religioso), que educou seu filho
sob os princípios do iluminismo.

8
HRYNIEWICZ, op. cit., p. 405.
9
Idem, Ibidem, p. 406.
10
GRENZ, op. cit., p. 32.
11
Idem, Ibidem.
12
Idem, Ibidem, p. 33.
13
HRYNIEWICZ, op. cit..
11

A formação religiosa de Hegel, tanto em casa quanto no colégio, era


centrada nos aspectos racionais da religião, havendo pouco espaço para o
sobrenatural e o mistério. Em 1778, iniciou seus estudos de filosofia e
teologia no Seminário Protestante Stift, em Tübingen. (...) Também aí
reinava um clima de liberdade em termos de ortodoxia teológica e os
professores rivalizavam entre si na tentativa de repensar a teologia luterana
em função dos novos tempos.14
A filosofia de Hegel foi um importante marco que transpôs a Idade da Razão. Para os
iluministas, a natureza era uma realidade estática, algo acabado, podendo ser objeto do
conhecimento humano. A natureza era entendida como algo terminado e construído por um
Arquiteto. Embora Hegel, assim como os empiristas, enfatizasse o conhecimento científico e
objetivo, ele não aceitava que a experiência sensorial fosse a única base para o conhecimento,
nem que as ideias formadas por essas experiências fosse o principal método de se obter o
conhecimento. Hegel também não concordava com a ideia de que a realidade é estática e
completa, um objeto a ser captado pela razão. A realidade e a estrutura do pensamento
estavam em constante construção, eram processos dinâmicos. Esse era o início de uma
filosofia da história.

A filosofia para Hegel estava acima da ciência, pois ela não somente era meio de se
alcançar a verdade, mas também de concretizar a verdade absoluta.

Ao buscar a resposta para o problema do destino humano e do significado da


existência, ele esperava encontrar Deus não dentro da natureza, como um
Arquiteto distante, mas na 'Ideia', no significado por trás do processo da
história humana como um todo.15
Três conceitos eram centrais em Hegel: o espírito (Geist), a verdade como um
processo e a dialética.

1. O espírito:

Não há no português nenhuma palavra que transmita exatamente a ideia de Geist. A


palavra espírito é um sentido parcial para esse conceito. A palavra transmite a ideia de
racionalidade refletida (mente) com a dimensão sobrenatural (espírito).

14
Idem, Ibidem, p. 419.
15
GRENZ, op. cit., p. 36.
12

O Espírito era entendido como um sujeito ativo, um processo. Não pode ser
confundido como espírito humano, pois embora também esteja presente no homem, esse
espírito é o ser interior do mundo, o Absoluto, a única realidade. A história é a atividade do
Espírito, e por ela, ele toma forma objetiva e adquire consciência de si mesmo.

A filosofia do Espírito é a parte mais importante do sistema de pensamento hegeliano.


“Apesar de tomar a teologia cristã como símbolo de sua filosofia do espírito, Hegel concebe o
Espírito humanizado e imanente ao mundo”.16

Depois de se exteriorizar na natureza, o Espírito retorna a si mesmo através


da atividade do espírito presente no homem. Não há outra natureza pensante
senão o homem e, por isso, o homem não é natureza, mas espírito. Assim, a
Filosofia do Espírito se desenvolve como um grande tratado sobre o homem
como consciência que pensa a si mesmo e a todas as produções de seu
espírito.17
A Filosofia do Espírito de Hegel se divide em três partes. A primeira é a do Espírito
Subjetivo, em três fases, o Espírito aparece com a alma (antropologia), depois tem
autoconsciência (fenomenologia) e por fim aparece com a capacidade de conhecer
(psicologia). A segunda é a do Espírito Objetivo, quando o espírito sai da subjetividade e
surge como indivíduo que tem direito e moral, a partir desses dois princípios, todas as
instituições são criadas, começando pela família até alcançar o Estado. A terceira é a do
Espírito Absoluto, é parte mais interiorizada do espírito, manifestada pelo saber absoluto
(arte), pelo sentimento absoluto (religião) e pelo conceito absoluto (filosofia).18

2. Verdade como um processo:

Hegel não entendia a verdade como sendo uma conclusão racional alcançada por um
raciocínio correto. A verdade era um processo, a verdade era dinâmica.

Para Hegel, nesse processo de raciocínio, o objeto de conhecimento não podia ser algo
externo em relação ao sujeito conhecedor. O objeto deveria ser interiorizado pelo sujeito, a
esse processo ele dava o nome de “concepção”. A concepção maior, isto é, a complexa
interligação de todas as concepções, era a “Ideia” ou concepção do Absoluto.

16
HRYNIEWICZ, op. cit., p. 425.
17
Idem, Ibidem, p. 426.
18
Idem, Ibidem, p. 425-426.
13

Para Hegel, a verdade é a História, não os acontecimentos, mas o processo. “As


diferentes épocas da história humana são estágios, através dos quais o Espírito passa no
processo de auto-descobrimento”.19 Hegel tinha profunda admiração pelo passado. O
verdadeiro conhecimento era obtido na compreensão das origens da humanidade. Esse
conhecimento era alcançado principalmente por meio da história da cultura humana:
sociedade, religião, ética, arte, literatura e música.

3. Dialética:

A dialética, em Hegel, não é uma ideia humana, mas sim a descrição da realidade, da
história do Espírito pelo pensamento humano.

A filosofia cria os vários estágios de sua própria história ao passar por eles e
essa atividade é a sua verdade. A cada estágio, o estágio anterior é usado
como fundação, mas também é, ao mesmo tempo, negado. Assim, o estágio
anterior é tanto preservado quanto suspenso.20
A dialética é entendida como uma equação de tese-antítese-síntese. Há uma tese que é
contradita por uma antítese e da equação surge uma síntese, que por sua vez, torna-se uma
nova tese. A síntese cancela os pressupostos da tese e da antítese, mas ainda as preserva. A
dialética tem relação com o próprio processo do Absoluto tomando consciência de si. No
absoluto, a dialética se manifesta como um movimento de ser indeterminado (Sein) passando
a não-ser (Nichts) e vindo a ser (Werden). Mas esse ser se apoia em algo que já existe
(Dasein).

4. Filosofia, Teologia e História

Para Hegel, esses conceitos: espírito, verdade como um processo e dialética formam a
relação entre Filosofia, Teologia e História. Na religião, o Espírito Absoluto que se
desenvolve na História e adquire consciência de si mesmo na Filosofia é Deus. Deus se revela
na História. Assim, a filosofia se torna central para o conhecimento de Deus. “A religião

19
GRENZ, op. cit., p. 37.
20
Idem, Ibidem.
14

apropria-se da verdade na forma de imagens e representações, enquanto a Filosofia capta a


mesma verdade em sua 'necessidade racional'”. 21

5. Cristianismo

A grande preocupação teológica para Hegel era compreender o vir a ser de Deus.
Como isso estava relacionado à história, esse vir a ser era a união entre Deus e a humanidade.
Estava posta a metáfora da Encarnação.

Para Hegel, o cristianismo era a síntese entre a religião natural, do antigo Oriente, e da
religião artística, da antiga Grécia. O Cristianismo apresentava a grande verdade filosófica da
Encarnação. Nela ocorria a concretização histórica da unidade entre o divino e o humano. No
Cristianismo, Deus adquiria “consciência de si mesmo através da atividade religiosa do
espírito humano”.22

Para Hegel, há três momentos do Espírito Absoluto: o Ser Essencial, o Ser Existente e
o Ser Consciente. O primeiro é abstrato. O segundo é a existência, quando Deus se move para
fora de si mesmo na criação do universo, se relacionando com algo além dele. O terceiro é o
Espírito tomando consciência de si mesmo na Encarnação. “Na humanidade, Deus volta a si
mesmo, pois na vida religiosa, através da qual a humanidade vem a conhecer Deus, Deus
conhece a si mesmo”.23

Para Hegel, o Cristianismo demonstrava esse processo em termos de criação e


redenção. A Queda era o momento em que o homem deixava a inocência para tomar
consciência de si próprio, isso era necessário para haver a independência humana, sua
existência histórica. A Queda era má, mas necessária para haver a reconciliação, a unidade
entre Deus e a humanidade. Em Jesus, a unidade entre Deus e a humanidade se tornou
explícita na História. “Em Cristo, Deus passou da ideia abstrata para a individualidade
histórica e, ao fazê-lo, atingiu a realidade plena”.24

21
Idem, Ibidem, p. 39.
22
Idem, Ibidem, p. 40.
23
Idem, Ibidem.
24
Idem, Ibidem, p. 41.
15

Na crucificação, havia o cancelamento do Deus abstrato, do Ser Essencial. A


ressurreição era o advento do Espírito Absoluto na história, era a “concretização histórica
plena de Deus”.25

6. A influência de Hegel

David Friedrich Strauss (1808-1874) entendeu que todo o Novo Testamento era um
mito evangélico, algo fora da realidade, mas que expressava verdades teológicas.

Ludwig Feuerbach (1804-1872) entendeu “Deus era a humanidade num estado de


auto-alienação”.26

Karl Marx (1818-1883) entendeu que a História era uma totalidade autônoma, mas
rejeitou o espiritualismo de Hegel, entendendo que a alienação humana deveria ser entendida
em termos socio-políticos e econômicos.

Ao tornar o cristianismo em filosofia, Hegel tornou o Deus transcendente dos profetas


em Espírito imanente que vem a ser na história da humanidade. A contribuição mais
importante de Hegel para a Teologia Contemporânea foi a ênfase na imanência. “Hegel
afirmou que 'Sem o mundo, Deus não é Deus'. Com isso, queria dizer que Deus não é um ser
autossuficiente por si mesmo; ele precisa do mundo para sua realização própria. A história do
mundo também é a história de Deus”.27

Seus seguidores teólogos podem ser considerados panenteístas. “Sob esse rótulo,
encontra-se qualquer ponto de vista que representa Deus e o mundo como sendo realidades
inseparáveis, porém distintas”.28 Um meio termo entre o teísmo tradicional e o panteísmo.

25
Idem, Ibidem.
26
Idem, Ibidem, p. 42.
27
Idem, Ibidem.
28
Idem, Ibidem.
16

UNIDADE IV – TEOLOGIA LIBERAL CLÁSSICA

Introdução

Teólogos liberais foram e são aqueles que tentam reconstruir a fé cristã a luz do
contexto filosófico, sociológico e histórico atual. Para eles, os pressupostos do iluminismo
não deveriam ser ignorados, mas assimilados de forma positiva. A teologia cristã deveria se
adaptar sem se perder, mas o resultado desse movimento foi muito negativo para a fé cristã. 29

Para os teólogos liberais clássicos, o cristão tinha a liberdade de criticar e reconstruir


crenças tradicionais. A teologia liberal clássica foca-se na dimensão prática ou ética do
Cristianismo. Procuravam centrar todo o discurso teológico no conceito de reino de Deus.

Outras fontes, para além da Bíblia, foram buscadas para dar autoridade ao
cristianismo. Não aceitavam mais o dogma da inspiração sobrenatural das Escrituras, por ter
sido enfraquecido pelas pesquisas histórico-críticas. Para os liberais, o estudante da Bíblia
deveria procurar dentro dela o “evangelho”, “o cerne e referencial eterno da verdade que não
podia ser corroído pelos ácidos do conhecimento científico e filosófico moderno”.30 Na
procura pela “essência do evangelho” na Bíblia, muitos relatos sobre milagres e questões
sobrenaturais como anjos, demônios e eventos apocalípticos foram simplesmente ignorados.

I. Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834)

Enquanto Kant estabelecia a ética e a moral como fundamento central para a religião e
Hegel, o intelecto. Schleiermacher estabeleceu a intuição, isto é, o sentimento como
fundamento para a religião.

Ele é considerado o precursor filosófico da chamada Teologia Liberal. Seu principal


objetivo foi restabelecer o papel do cristianismo na sociedade, tornando-o compatível com o
espírito do iluminismo, através de uma renovação na metodologia do estudo teológico.

29
Idem, Ibidem, p. 58.
30
Idem, Ibidem, p. 59.
17

Schleiermacher nasceu em Breslau, na Prússia (hoje Wroclaw, na Polônia), em 21 de


novembro de 1768. Em 1778, o pai de Schleiermacher experimentou uma renovação de sua fé
cristã pelo ministério dos pietistas moravianos. Schleiermacher estudou num internato pietista
e, posteriormente, num seminário pietista.

Em determinado momento de seus estudos teológicos, ele passou a questionar


doutrinas fundamentais da ortodoxia cristã, como a expiação substitutiva de Cristo, mas nunca
perdeu a ideia pietista de sentimento devocional. Em 1790, Schleiermacher foi ordenado na
Igreja Reformada da Prússia.

Quando estudou na Universidade de Halle, foi muito influenciado pela filosofia de


Kant e leu muito sobre a filosofia iluminista. No fim do século XVIII, a Alemanha passava
por um novo movimento filosófico, o romantismo31 que valorizava os sentimentos, a
imaginação e a intuição do ser humano. Nesse contexto, Schleiermacher passa a fazer parte de
um grupo de românticos céticos. Para defender a religião cristã diante das polêmicas surgidas
no interior desse grupo, ele escreve o livro Sobre a Religião: discursos aos ilustrados que a
desdenham (1799). “No livro, procurou defender a religião dos conceitos errados mais
comuns de que ela não passa de ortodoxia morta e moralismo autoritário que impede a
liberdade individual e aliena as pessoas de sua verdadeira humanidade”.32

Nesse livro, Schleiermacher misturava pietismo ilustrado e romantismo. Para ele, a


verdadeira religião não tem a ver com dogmas, mas sim com sentimento, 33 é uma “relação
direta com o Deus vivo, distinta da submissão doutrinária ou das proposições credais acerca
de Deus”.34

Em 1806, Schleiermacher deixa a Prússia, após ter sido invadida por Napoleão, e se
muda para Berlim, assumindo o pastorado da Igreja da Trindade. Nesse tempo, ele participa
da fundação da Universidade de Berlim e traduz muitas obras de Platão para o alemão. Dentre
essas obras produzidas em Berlim, podemos destacar a sua maior obra de Teologia
Sistemática, A Fé Cristã, lançada entre 1821 e 1822 e revisada em 1830. Essa obra foi
considerada pelos ortodoxos, como uma tentativa mal disfarçada de se falar da humanidade

31
Caracterizado pelas seguintes ideias: “a) exaltação da natureza e o consequente panteísmo; b) exaltação da
liberdade: ódio ao tirano, infração das convenções e das leis externas; c) apreço aos sentimentos fortes: paixões
colorosas e tempestuosas; d) abondono do conceito de razão do Iluminismo; e) superação dos limites da fé”.
HRYNIEWICZ, op. cit., p. 407.
32
GRENZ, op. cit., p. 46.
33
“Ser romântico significou viver uma condição de conflito interior permanente, na dilaceração do sentimento
que nunca se sente satisfeito, que se encontra em contraste com a realidade e aspira a algo mais; este algo mais,
no entanto, foge-lhe constantemente”. HRYNIEWICZ, op. cit., p. 409.
34
GRENZ, op. cit..
18

como se estivesse falando de Deus. Para os progressistas, essa obra conseguira ultrapassar os
dogmas autoritários em prol de uma fé que não entrava em conflito com a ciência.

Para Schleiermacher, a teologia deveria estar baseada na experiência humana, a


doutrina cristã não deveria exaltar Deus à custa da humanidade. Deus e a humanidade
deveriam estar unidos de forma intrínseca. Schleiermacher

tentou mostrar que a essência da religião encontra-se não nas provas


racionais da existência de Deus, nos dogmas revelados de modo sobrenatural
ou nos rituais e formalidades eclesiásticos, mas num 'elemento fundamental,
distinto e integrativo da vida e da cultura humana' – o sentimento de
dependência total em algo infinito que se manifesta nas coisas finitas e
através delas.35
Para Schleiermacher, os dogmas e sistemas de teologia eram estranhos à verdadeira
religião, eram tentativas de transformar a devoção em discurso. Ele “argumentava que a
religião pode existir sem os dogmas e conceitos, mas a reflexão sobre o sentimento religioso
acaba os criando, pois precisa deles”.36

No entanto, ele não acreditava numa religião genérica. Para ele, a devoção (forma)
sempre se expressa num modo concreto de vida religiosa (matéria).

Ao invés de ser uma proposta de sistematização de algum conjunto de


proposições reveladas de modo sobrenatural, a teologia cristã procura
oferecer um relato coerente da experiência religiosa dos cristãos. Tendo em
vista que essa experiência é fundamentalmente uma experiência de Deus
mediado em Jesus Cristo e através dele, todas as doutrinas devem estar
centradas em torno dele e relacionadas a ele e à sua obra redentora. 37
Dessa forma, as doutrinas não deveriam ser consideradas verdades absolutas, mas sim,
proposições sujeitas à revisão. As doutrinas devem ter como propósito expressar a consciência
cristã de Deus, ou seja, para Schleiermacher, as doutrinas são determinadas histórica e
culturalmente.

1. Inovações doutrinárias

35
Idem, Ibidem, p. 49.
36
Idem, Ibidem, p. 50.
37
Idem, Ibidem, p. 51.
19

a) Bibliologia

Para Schleiermacher, a Bíblia é importante, mas não essencial. Ela é um registro das
experiências religiosas das comunidades cristãs primitivas, mas não é absoluta, é apenas um
modelo para interpretar novas experiências. Por isso, também, a Bíblia não pode ser
considerada infalível ou inerrante, e nem de inspiração sobrenatural. A inspiração do Espírito
Santo sobre os escritores da Bíblia era um tipo diferente apenas em grau da influência dele
sobre outros crentes.

b) Teontologia

Para Schleiermacher não era possível descrever Deus. As descrições dos atributos de
Deus eram apenas a maneira como o sentimento de dependência absoluta está relacionado a
Ele. Falar sobre Deus é falar da experiência humana com Deus. Para ele, “Deus é a realidade
que determina todo o resto, é a causa absoluta de tudo - tanto o que é bom quanto o que é
mau; é o que realiza as ações, mas não está sujeito a elas”. 38 Deus era a causa do mal e autor
do pecado, pois se os homens estivessem sujeitos a qualquer outro poder, isso diminuiria a
onipotência de Deus. Dessa forma, o pecado era necessário para que houvesse a redenção.

Schleiermacher também rejeitava a realidade dos milagres, pois isso seria negar que
tudo o que ocorre é ordenado e causado por Deus. Como tudo está no controle de Deus,
acreditar em milagres, como algo que anula a ordem natural das coisas, seria uma contradição.
Por isso, ele não acreditava em oração intercessora, pois isso tornaria Deus dependente da
pessoa que está orando. Toda a ideia de sobrenatural era vista por Schleiermacher como algo
perigoso. Contrastar com Mt 7.7-10; Lc 11.5-13; Tg 4.1-3; Rm 8.26; II Rs 19.1-34; Is 38.1-
22.

Schleiermacher defendia que somente após estabelecer esses fundamentos, podia


haver equilíbrio entre ciência e fé, pois a ciência tratava das diversas causas, enquanto a
religião tratava da causa maior.

Ele também considerava a doutrina da trindade como algo inútil para a teologia cristã,
pois não dizia respeito à experiência religiosa.

38
Idem, Ibidem, p. 53.
20

Portanto, embora seu pensamento não seja panteísta, é panenteísta, ele não separava
Deus do mundo ou o mundo de Deus.

c) Cristologia

Schleiermacher rejeitava a doutrina tradicional da Encarnação, substituindo-a por uma


experiência da consciência de Deus. Para ele, a doutrina das duas naturezas não tinha lógica e
deveria ser descartada. Ao invés disso, ele defendia a ideia dos dois aspectos de Jesus, isto é,
“seu caráter ideal e sua capacidade de reproduzir esse caráter em outros”.39

Jesus era igual ao resto da humanidade, a diferença era que desde o início ele tinha
plena consciência de Deus. Era uma forma elevada de humanidade.

II. Albrecht Ritschl (1822-1889)

Ritschl nasceu em 1822, na Prússia. Estudou nas universidades de Bonn, Tubingen e


Halle. Foi influenciado pelo pensamento de Schleiermacher, Kant e Georg Lorenz Bauer
(1755-1806).40 Tornou-se professor na Universidade de Bonn em 1846. Em 1864, foi para
Gottingen, onde permaneceu até morrer. Sua obra mais importante foi um tratado de três
volumes A doutrina cristã da justificação e reconciliação, publicados entre 1870 e 1874.

Para Ritschl, o conflito entre ciência e teologia ocorria por não se saber distinguir o
que era científico do que era religioso. Para ele, “o conhecimento religioso está ligado ao
valor das coisas para atingir o bem maior do indivíduo”.41 A natureza de Deus só podia ser
conhecida quando se estabelecia qual era o seu valor para a nossa salvação.

Ritschl não aceitava a dependência da teologia à metafísica. Não concordava em


colocar Deus como objeto da filosofia. “A teologia só está interessada em Deus à medida que
ele afeta moralmente a vida das pessoas, ajudando-as a alcançar o bem maior”.42 Esse bem

39
Idem, Ibidem, p. 55.
40
Teólogo luterano, professor de línguas orientais e crítica bíblica nas Universidades de Altdorf (1788) e da
Universidade de Heidelberg (1805), Alemanha, ficou conhecido por aplicar o método histórico-crítico no estudo
bíblico do Antigo e Novo Testamentos, sem considerar qualquer dogma pré-existente e eliminando qualquer
referência sobrenatural ou lendária do texto bíblico.
41
Idem, Ibidem, p. 61.
42
Idem, Ibidem.
21

maior era o reino de Deus revelado em Jesus Cristo. Dessa forma, a função da teologia era a
“investigação da experiência coletiva moral e religiosa do reino de Deus na igreja”.43 A norma
da teologia para Ritschl não era a Bíblia, mas sim, um conjunto de ideias apostólicas que
deveria ser encontrado por uma séria pesquisa histórica. Para ele, ao contrário de Kant, Deus
podia sim ser conhecido de fato por seus feitos.

1. Inovações doutrinárias

a) Deus e o Reino de Deus

Ritschl não tinha quase nada a falar sobre Deus em si. Para ele, a teologia cristã só
deveria dar atenção para o impacto que Deus exercia sobre as pessoas e no julgamento
apropriado desse impacto. O mesmo se pode dizer sobre a trindade, sobre a onipotência,
onisciência ou onipresença, questões do interior de Deus não sendo possível articular com o
julgamento de valores.

Para ele, a questão central era a afirmação cristã de que Deus é amor. “Ritschl estava
muito mais interessado no reino de Deus do que no próprio Deus. Jesus havia proclamado o
reino de Deus, que, de acordo com Ritschl, é a unidade dos seres humanos organizados de
acordo com o amor”. Para Ritschl, “a finalidade própria de Deus, sua razão de ser, por assim
dizer, é a mesma que a nossa – o reino de Deus”.44

b) Pecado e Salvação

Pecado era aquilo que se opunha ao reino de Deus, que era o bem maior da
humanidade. O pecado não é um ato intencionalmente errado ou uma disposição inerente para
o mal. Para Ritschl, o pecado era egoísmo, é o antagonismo do ideal do reino de Deus
centrado em torno do amor. Além disso, o pecado não era herdado, mas era universal no
sentido de que todos os homens pecam.

43
Idem, Ibidem, p. 62.
44
Idem, Ibidem, p. 63.
22

O reino de Deus era religioso e ético. A parte religiosa era a relacionada à justificação,
o momento em que Deus declarava o homem pecador perdoado. A parte ética era a chamada
para o ideal ético de amar o próximo. Salvação não tinha relação com o gozo da vida eterna,
do pós-vida, embora isso não fosse negado. Salvação era o participar desse reino de Deus na
terra.

c) Cristologia

As ideias de Ritschl sobre Jesus Cristo fundamentam todo o movimento posterior,


característico da teologia liberal em busca do Jesus Histórico. Para ele,

A verdadeira avaliação de Jesus esta interessada em sua conduta histórica,


em suas convicções religiosas e em seus motivos éticos e não em suas
supostas qualidades inatas ou em seus poderes, “pois é através das primeiras
características mencionadas e não destas últimas é que ele exerce uma
influência sobre nós”. Assim, Ritschl argumentava que a afirmação da
divindade de Jesus é um julgamento que os cristãos fazem tomando por base
o valor de sua vida ao efetuar a salvação. Pelo fato de ter se transformado no
portador único do reino de Deus, ele é visto pelos cristãos como tendo o
mesmo valor que Deus.45
Jesus havia recebido a vocação divina para ser a incorporação perfeita do reino de
Deus entre os homens, e a cumpriu perfeitamente. Sobre a preexistência de Cristo, Ritschl
dizia que ele já existia apenas no sentido de que suas obras já eram eternamente conhecidas
por Deus e faziam parte de sua vontade. Por fim, seu interesse estava no impacto que o
exemplo de Jesus teve sobre a história. Diante disso, sua teologia não tinha muito a dizer
sobre a ressurreição e ascensão de Jesus. Um dos efeitos dessas ideias foi o surgimento do
Evangelho Social.

III. Adolf von Harnack (1851-1930)

Harnack foi professor de História da Igreja na Universidade de Berlim, de 1888 até


1921. Era amigo íntimo do imperador alemão Frederico Guilherme Vitor Alberto ou Wilhelm

45
Idem, Ibidem, p. 64.
23

II da Alemanha. Em 1914, Harnack recebeu do imperador o título de cavaleiro e escreveu o


discurso do imperador anunciando o início da 1ª Guerra Mundial.

Sua obra O que é Cristianismo? procura identificar o cerne da essência do evangelho.


Para Harnack, Jesus proclamou a mensagem sobre Deus, o Pai, e não sobre si mesmo. As três
verdades fundamentais sobre o evangelho seriam: “o reino de Deus e sua vinda; Deus, o Pai, e
o valor infinito da alma humana; e a retidão mais elevada e o mandamento do amor”. 46 Para
ele, muito pouco do Evangelho havia no Antigo Testamento, e mesmo no Novo Testamento,
ele estava incrustado com histórias de milagres.

IV. Walter Rauschenbusch (1861-1918)

Enquanto Harnack não aceitava vincular o ideal do Reino de Deus com questões
políticas, Rauschenbusch procurou fazer exatamente isso. Seu ministério pastoral ocorreu na
região conhecida como Hell's Kitchen em Nova York, numa Igreja Batista Alemã, entre 1886-
1897, uma região muito pobre da cidade. Lá, envolveu-se com movimentos socialistas e
chegou a fundar um jornal socialista religioso.

Em 1891, entra em contato com as ideias de Ritschl, na Alemanha. Quando retorna


para os Estados Unidos, se torna o maior expoente do movimento recém-criado do
“Evangelho Social”.

Seus escritos tratam das aplicações práticas dos objetivos éticos do reino de Deus para
a vida social concreta. Sua principal obra é Cristianismo e a Crise Social, publicado em 1907.
“Esse livro apresentava em linguagem severa o enorme abismo entre a riqueza e a pobreza na
América e afirmava que ser um cristão em meio a essa crise social significava trabalhar para a
salvação de estruturas econômicas que perpetuavam a pobreza”. Rauschenbusch liderou um
movimento na América, para que “não apenas almas individuais, mas entidades corporativas
inteiras e estruturas sociais [fossem] levadas ao arrependimento e a salvação”.47

Em 1912, ele publicou seu segundo maior livro A cristianização da ordem social.
Nessa obra, ele pedia à sociedade americana,

46
Idem, Ibidem, p. 69.
47
Idem, Ibidem, p. 70.
24

a socialização das principais indústrias, apoio por parte dos sindicatos e a


abolição de uma economia centralizada na cobiça, na competição e no lucro
como principal motivação. Para ele, todas essas mudanças significavam uma
cristianização gradual da ordem social - uma aproximação progressiva do
reino de Deus na sociedade humana.48
Sua terceira principal obra, a Teologia Sistemática do evangelho social, Uma teologia
para o Evangelho Social, de 1917, procurou redefinir cada uma das doutrinas cristãs em
termos de realidade social e histórica do Reino do Amor. Para ele, a salvação era a
socialização voluntária da alma, Jesus teria sido aquele que democratizou a concepção de
Deus.

V. Alta Crítica

Pode-se dizer que a prática exegética e hermenêutica da Teologia Liberal, conhecida


como Alta Crítica, é a influência mais deletéria da Teologia Liberal. Antes de tratarmos das
características da Alta Crítica, precisamos compreender o fundamento dela, que é o método da
análise histórica-crítica praticada por esses teólogos.

O conhecimento histórico se dá pela análise das fontes, que basicamente são


documentos que registram dados passados. As fontes primárias, aquelas que foram produzidas
no momento do fato ocorrido, devem passar por um crivo crítico no intuito de verificar a
autenticidade delas. A primeira fase é a crítica externa dos testemunhos, isso se faz
comparando com outros documentos da mesma época que já há consenso sobre sua
autenticidade e datação, caso falte esses documentos, faz-se a comparação com o contexto
sociocultural da época em questão. A segunda fase é a crítica de restituição, nessa fase o
documento é restaurado em seu estado original, preenchendo-se lacunas, corrigindo-se erros
de cópia, eliminando interpolações. Erros podem ser descobertos a partir de incorreções
gramaticais ou anacronismo (quando se atribui a um autor conhecimentos que ele não poderia
dispor na época dele). A terceira fase é a crítica de procedência, que determina a data, o lugar
de origem e a autoria da fonte.

Outro grupo de operações é chamado de crítica interna das fontes. A primeira fase
dessa crítica interna é a hermenêutica, verifica-se a linguagem, as convenções culturais, note-
se que as formas de se expressar mudam com o tempo. A segunda fase é a crítica de

48
Idem, Ibidem.
25

sinceridade, para determinar até que ponto são críveis as informações contidas em
determinado documento, o princípio que rege essa fase é a desconfiança sistemática, deve-se
desconfiar enquanto não houver certeza dos motivos pelos quais determinado autor fez
determinado registro. Nessa fase o historiador também se preocupa em verificar se
determinado registro era voluntário (documentos oficiais que são feitos para ficarem na
história) ou involuntário (registros pessoais que autor não fez para ficar na história), esses
últimos são preferidos para crítica de sinceridade.49

A partir desses pressupostos, que surgiram durante o iluminismo, que se solidificaram


com o positivismo50 surge a Alta Crítica, que é o “cuidadoso estudo do pano-de-fundo
histórico de cada texto da Bíblia”, diferenciando-se da baixa crítica, que é “uma tentativa de
determinar se o texto que temos é aquele que saiu das mãos do escritor”.51

Para Cairns, a parte mais deletéria da Alta Crítica é a tentativa de destruir a natureza
sobrenatural da Bíblia, transformando-a em apenas mais um documento humano, um relato
evolutivo da religião na consciência humana.

A Alta Crítica se popularizou com os estudos sobre o livro de Gênesis realizado pelo
médico francês Jean Astruc (1684-1766), que em 1753, dividiu o primeiro livro da Bíblia em
duas partes, propondo o uso de duas fontes distintas para formulação final do livro bíblico. A
primeira fonte seria caracterizada pelo uso do nome Elohim para Deus, a segunda, mais antiga
pelo nome Iavé, para Deus. A esses estudos, Johann Eichhorn (1752-1827), que também
considerava a Bíblia como apenas um livro humano, deu o nome de Alta Crítica.

Eichhorn prosseguiu nesses estudos e concluiu que não somente o Gênesis, mas todo o
Hexateuco, incluindo o livro de Josué, era formado por fontes múltiplas. Hermann Hupfeld
(1796-1866), em 1853, sugeriu que o Pentateuco era obra de vários autores. Julius
Wellhausen (1844-1918) e Karl Heinrich Graf (1815-1869) formularam a teoria que ficou
conhecida como hipótese documental, utilizada por todos os seguidores da Alta Crítica. As
fontes utilizadas para formar o Pentateuco teriam sido: a Javista (J), produzida em torno de
950 a.C., no reino do sul; a Eloísta (E), produzida em torno de 850 a.C., no reino do norte; a
Deuteronomista (D), produzida em torno de 600 a.C., em Jerusalém, durante o período da

49
FLAMARION, Ciro. Uma introdução à História. 6ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 45-53.
50
Teoria histórico-social, fundada por Auguste Comte (1798-1857), que entendia o desenvolvimento das
sociedades divididas em três fases consecutivas: mitológica, metafísica e positiva, sendo essa fase a mais
perfeita, onde tudo seria regido pelo conhecimento científico e o mundo seria governado pelos grandes homens e
pelos grandes pensadores.
51
CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos séculos: uma história da Igreja Cristã. 2ª ed. São Paulo: Vida
Nova, 1995, p. 392.
26

reforma religiosa; e a fonte Sacerdotal (S), produzida por volta de 500 a.C., pelos Kohanim,
durante o exílio babilônico. Essa hipótese ficou conhecida pela sigla JEDP.

Posteriormente, o livro do profeta Isaías se tornou alvo da Alta Crítica, sendo dividido
em duas partes (1-39; 40-66), e depois em três (1-39; 40-55; 56-66), e há os que defendam
quatro fontes para Isaías. Depois Daniel foi o alvo, colocando sua produção durante a revolta
dos macabeus (168-165 a.C.), ao invés do século V a.C., durante o exílio.

“Os críticos mostraram o desenvolvimento da ideia de Deus, desde o primitivo deus


dos trovões no Monte Sinai até o Deus monoteístico e ético dos profetas”.52

Sobre o Novo Testamento, o primeiro estudo pela Alta Crítica foi feito por Hermann
Reimarus (1694-1768), em 1778, negou a possibilidade dos milagres e lançou a hipótese de
que as histórias de milagres neotestamentárias eram fraudes.

Ferdinand Baur (1792-1860), partindo da lógica hegeliana, fez uma distinção entre
aqueles que eram influenciados pela teologia petrina e os que eram influenciados pela teologia
paulina, uma distinção entre a Lei e o Messias, do lado petrino, e a Graça, do lado paulino.
Somente no século II é que a Igreja fez a síntese entre as duas teologias, essa síntese estaria
presente no Evangelho de Lucas e nas Cartas Pastorais. “Baur, então, colocou as datas dos
livros do Novo Testamento nesta estrutura hegeliana retrocendendo-as ou avançando-as, de
acordo com as tendências petrina, paulina ou sintetizadora que refletissem”. 53

Na década de 20 e 30, com o desenvolvimento da crítica da forma, passou-se a


analisar como os Evangelhos teriam sido transmitidos até seu registro escrito. “Essa
abordagem pretendia que os evangelhos contêm verdades acerca de Cristo que podem ser
localizadas somente após serem descobertos os meios da tradição e a forma em que a verdade
está contida”.54

Quem segue essas análises críticas, entende que a essência do Evangelho está nos
ensinos éticos de Jesus, que Paulo transformou em uma religião redentiva.

“A Vida de Jesus” (1835-1836) de David Strauss resumiu todas estas ideias.


Strauss negou os milagres e a integridade do Novo Testamento, bem como a
deidade de Cristo, que era visto como um homem que pensava ser o Messias.
A Alemanha, antigo berço da Reforma, foi a terra em que a crítica se
desenvolveu. A história da Alemanha de Hitler ilustra bem o ponto a que

52
Idem, Ibidem.
53
Idem, Ibidem, p. 393.
54
Idem, Ibidem.
27

chegam os homens quando negam a revelação de Deus na Bíblia,


substituindo a revelação pela razão e pela ciência como autoridades para o
pensar e para o proceder.55

55
Idem, Ibidem.
28

UNIDADE V – CONSERVADORISMO PROTESTANTE

Introdução

Na conjuntura do século XIX, em que diversas linhas teológicas, procurando


contextualizar as doutrinas cristãs ao mundo moderno, estavam se adaptando ao pensamento
filosófico iluminista nos métodos de se estudar a Bíblia, tornando-a apenas um livro humano
e que apenas continha alguns elementos de verdade divina. Um grupo de teólogos se levantou
para confrontar a teologia liberal e reafirmar as doutrinas centrais da fé cristã, além de
restabelecer o papel da Bíblia como totalmente sendo Palavra de Deus infalível e inerrante.

Neste capítulo trataremos desse movimento de retorno à autoridade da Bíblia como


Palavra de Deus conhecido como conservadorismo protestante.

I. Conservadorismo protestante

O conservadorismo ortodoxo se caracterizou pelo retorno a prática do método


escolástico56 de teologia e a forte ênfase nas Escrituras como verbalmente inspiradas e
proposicionalmente infalíveis e inerrantes.

O conservadorismo protestante norte-americano do século XIX tinha como núcleo o


Seminário de Princenton, que passou a utilizar como livro texto de Teologia Sistemática a
obra de Francis Turretin (1623-1687), um teólogo calvinista suíço.

Turretin foi um “expoente típico da ortodoxia protestante (...) no estilo


escolástico e na metodologia” porque “nele, mais uma vez, encontramos as
distinções intermináveis e sutis, os contornos rígidos, a sistematização
rigorosa e a abordagem proposicional característicos do fim do
escolasticismo medieval. Portanto, há motivo mais que suficiente para
chamar Turretin e seus contemporâneos de ‘escolásticos protestantes”. 57

56
Escolasticismo protestante foi um método de se estudar teologia, desenvolvido a partir do século XVII e
XVIII, em que se privilegiava a lógica, a retórica e a coerência para compreensão das principais confissões de fé
do protestantismo.
57
OLSON, Roger. História da Teologia Cristã: 2.000 anos de tradições e reformas. São Paulo: Editora Vida,
1999, p. 571-572.
29

Turretin defendia tão enfaticamente à inspiração verbal das Escrituras, que quase a
considerava como uma transcrição do Espírito Santo. A teologia sistemática de Turretin, para
quem se formava no seminário de Princeton, era única e exclusiva teologia verdadeira da
doutrina protestante.

Os professores que se destacaram nesse período no seminário de Princeton, que


utilizavam Turretin, eram Archibald Alexander (1772-1851), Charles Hodge (1797-1878) e
seu filho Archibald Alexander Hodge (1823-1886) e Benjamim Breckinridge Warfield (1851-
1921). A tríade Alexander-Hodge-Warfield, dominou o ensino de Princeton de 1812 até 1921.

Hodge foi o principal influenciador do conservadorismo protestante norte-americano.


Nasceu em 1797, foi aluno de Archibald Alexander no Seminário de Princeton e estudou pelo
material de Turretin. Depois de se formar, foi para Europa para dar continuidade aos estudos
teológicos. Na Europa, teve contato com o pensamento de Schleiermacher e de Hegel.

A partir desses contatos, Hodge viu a necessidade de encontrar um sistema filosófico


que fundamentasse apropriadamente a teologia ortodoxa. Esse fundamento, ele encontrou no
realismo escocês do bom senso de Thomas Reid (1710-1796) que evoluiu para o empirismo
de John Locke (1632-1704), que se contrapunha ao idealismo cético de David Hume (1711-
1776).58

A filosofia do senso comum de Thomas Reid aplicada à religião foi sistematizada por
John Witherspoon (1723-1794), sexto presidente do Colégio de New Jersey, futura
Universidade de Princeton, nos seguintes pontos: a universalidade da verdade, considerada a
mesma em todo o tempo e lugar, independente das circunstâncias; a capacidade da linguagem
de expressar o mundo real ou transmitir fielmente a realidade; a capacidade da memória em
conhecer objetivamente o passado, mantendo-se o registro dos fatos de forma inalterada.
Esses pressupostos aplicados à teologia podem ser enunciados como universalidade,
linguagem e memória; nada poderia comprometer a compreensão dos fatos. A verdade bíblica
era universal. A linguagem dos seus autores não pode ser reinterpretada para harmonizá-la
com um possível conflito com as ciências naturais. Para terem feito seus registros, os

58
Para Hume, não há ideias inatas nos homens, todas as ideias surgem de impressões, que são combinadas entre
si pela imaginação, assumindo as mais variadas fórmulas. Dessa forma, ele recusava qualquer ideia metafísica.
Para ele, não há valores éticos universais e também não há Deus, pois “a ideia de Deus nasce como expressão do
sentido de temor e de esperança, que toma conta do homem diante das forças da natureza e do mistério que o
circundam”. HRYNIEWICZ, op. cit., p. 389.
30

escritores sagrados recorreram à memória das testemunhas dos fatos. Portanto, o


armazenamento dessas informações é fiel à revelação original.59

A partir de Reid, Hodge procurou revivificar a tradição da teologia como ciência


racional em sua base.

Em sua extensa obra de três volumes Teologia Sistemática (1871-1873),


Hodge explicou o método apropriado da teologia de coletar e organizar os
dados da revelação divina nas Escrituras, assim como a ciência moderna
colhe e organiza os dados da natureza.60
Para Hodge, a Bíblia era infalível e verbalmente inspirada, um conjunto de
proposições (declarações da verdade) divinamente inspiradas, “que só aguardavam para serem
organizadas por seres humanos racionais, orientados e iluminados pelo Espírito Santo”. Para
ele, a inspiração bíblica não era somente sobre as ideias, mas também sobre as palavras da
Bíblia. Ele exaltou o aspecto divino das Escrituras e desvalorizou o aspecto humano. Para
Hodge, “é compreensível que qualquer mente se encha de temor ao contemplar as Sagradas
Escrituras repletas de verdades sublimes, que falam com autoridade em nome de Deus e
permanecem tão milagrosamente livres do toque poluidor dos dedos humanos”.61 Embora
tenha indiretamente concordado que a Bíblia contêm discrepâncias não esclarecidas, ele
entendia que elas não eram fundamento racional para negar a sua infalibilidade.

A contribuição de Ritschl ainda estava por vir, o combate de Hodge era principalmente
sobre Schleiermacher. Para Hodge, a teologia subjetiva de Schleiermacher “privava o
cristianismo de seu conteúdo doutrinário e o reduzia a uma intuição mística”. 62 Para ele, o
cristianismo não podia se separar do sistema de doutrinas. Esse sistema doutrinário verdadeiro
do cristianismo é a ortodoxia protestante clássica, qualquer discordância desse sistema deveria
ser considerada como heresia ou apostasia.

Hodge defendia a doutrina calvinista da eleição, embora fosse infralapsariano e não


supralapsariano.63 Condenava o arminianismo e dizia que esse sistema era um atalho ao

59
MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. 2ª
ed. São Paulo: Edições Loyola, 1990, p. 116-117.
60
OLSON, op. cit., p. 573.
61
Idem, Ibidem.
62
Idem, Ibidem, p. 574.
63
“O Supralapsarianismo sugere que o decreto de eleição de Deus logicamente precede Seu decreto de permitir
a queda de Adão — de forma que sua condenação é, antes de tudo, um ato de soberania divida, e somente
secundariamente um ato de justiça divina. (...) O Infralapsarianismo (também conhecido como “sub-
lapsarianismo”) sugere que o decreto de Deus permitir a queda precede logicamente Seu decreto de eleição.
Assim, quando Deus escolheu o eleito e ignorou o não-eleito, Ele estava contemplando todos eles como criaturas
31

liberalismo teológico. Para Olson, “a teologia de Hodge é uma repristinização do


escolasticismo protestante dos séculos XVII e XVIII”. 64

Seu sucessor em Princeton, Warfield manteve o instituto livre das influências do


liberalismo no período em que esteve à frente do seminário (1887-1921). No entanto, já nesse
período, a denominação presbiteriana, mantenedora do seminário, passou a enfrentar uma
longa controvérsia com o movimento da alta-crítica.

Um dado curioso sobre esses conservadores, é que, no primeiro momento, nem Hodge
nem Warfield entenderam ser a teoria da evolução uma ameaça real à ortodoxia protestante.
Segundo Olson,

Warfield estudou biologia no ensino secundário e sempre se considerou um


crente do evolucionismo. Obviamente, da mesma forma que todos os
conservadores, opunha-se à evolução naturalista e considerava a evolução,
caso fosse a verdade, um recurso que Deus usou na criação. 65 (p. 575)
As principais formas pelas quais, esse conservadorismo do século XIX preparou o
terreno para o fundamentalismo foram as seguintes: ênfase na identificação do cristianismo
com uma doutrina correta; o destaque para a revelação como verdade objetiva e proposicional
transmitida pela inspiração sobrenatural em uma Bíblia inerrante; e o combate à teologia
liberal.

Porém, diferente dos fundamentalistas, os conservadores tinham profundo


conhecimento filosófico, linguístico e histórico-teológico, além de serem defensores da
grande tradição do cristianismo católico-ortodoxo. “Os fundamentalistas posteriores
repudiaram boa parte dessa tradição e sustentariam a ideia da apostasia imediatamente
posterior à era apostólica e da redescoberta do evangelho verdadeiro somente com sua própria
pregação e doutrina”.66 (p. 575).

caídas”. JOHNSON, Phillip R. Notas sobre o supralapsarianismo e infralapsarianismo. Disponível em:


<http://www.monergismo.com/textos/predestinacao/infra_supra_phil.htm>. Acesso em: 12 jun. 2017.
64
OLSON, op. cit..
65
Idem, Ibidem, p. 575. Interessante notar que os missionários presbiterianos que trabalharam no Brasil no
século XIX, egressos de Princeton, combatiam o evolucionismo. Cf. MEDEIROS, Pedro H. C. de. Pelo
progresso da sociedade: a imprensa protestante no Rio de Janeiro imperial. Dissertação (mestrado em História)
UFRRJ, Rio de Janeiro, 2014, p. 41.
66
OLSON, op. cit..
32

II. Fundamentalismo protestante

Enquanto a teologia liberal foi caracterizada por um reconhecimento e acomodação às


reivindicações da modernidade ao pensamento cristão, a teologia fundamentalista foi o
reconhecimento máximo das reinvindicações da ortodoxia contra a modernidade e os
postulados da teologia liberal.

Embora tenha procurado manter a ortodoxia protestante clássica, o fundamentalismo


redundou em uma teologia racionalista, separatista e absolutista. Esse sistema cristalizou as
doutrinas protestantes. A partir deles, os sistemas doutrinários deveriam ser aceitos na íntegra
ou rejeitados totalmente. Aqueles que rejeitam são tidos como heréticos ou apóstatas.

O período de ápice da teologia fundamentalista foram os anos de 1910 a 1960, quando


seus propugnadores alcançaram o máximo do ideal separatista até começarem a se
desentender com relação aos “fundamentos da fé”.67

No início esses fundamentos, que precisavam ser resgatados contra a deturpação


modernista, eram poucos e bastante óbvios. Mas, entre 1940 e 1950, a quantidade de
doutrinas ditas fundamentais para a fé cristã cresceu, ocorrendo a tensão entre os
fundamentalistas, principalmente com relação a doutrinas pré-milenistas, da terra jovem e da
semana da criação com dias literais.

Os teólogos fundamentalistas podem ser definidos como cristãos que defendem um


sistema doutrinário bastante conservador contra a teologia liberal, que, além disso, promovem
e exigem a exclusão de cristãos, de igrejas e seminários, que sejam culpados de participar ou
permitir o liberalismo teológico. Defendem a crença na inspiração sobrenatural e verbal da
Bíblia, que por sua vez deve ser considerada totalmente inerrante em questões teológicas,
históricas e naturais. Defendem a hermenêutica literalista e se opõem a qualquer desvio desses
princípios ou crenças fundamentais do protestantismo conservador ortodoxo.

O marco para o início do fundamentalismo como movimento distinto na história do


cristianismo é o ano de 1910 com a publicação de uma série de brochuras intituladas The
fundamentals. Empresários inspirados pelas grandes reuniões avivalistas do evangelista
Dwight Lyman Moody (1837-1899) e chocados com o avanço da teologia liberal
patrocinaram a publicação e distribuição gratuita de doze compilações de ensaios escritos por

67
Idem, Ibidem, p. 570.
33

eminentes estudiosos protestantes conservadores. O primeiro volume continha textos de


James Orr (1844-1913) sobre o nascimento virginal e de Warfield sobre a divindade de Cristo,
e uma apreciação de um cônego anglicano sobre a alta crítica.68

Posteriormente, uma série de outras edições com as doutrinas fundamentais foram


sendo publicadas. No entanto, algumas doutrinas que antes não eram consideradas essenciais
passaram a ser consideradas fundamentais para esse grupo, dentre essas doutrinas, o pré-
milenismo. A teologia de Princeton, nunca havia apoiado essa doutrina.69

A partir de 1919, o fundamentalismo passa a ter uma tendência cada vez mais
sectarista e passa a aplicar testes para verificar se os cristãos permaneceriam seguros e puros
quanto à doutrina. O principal personagem do fundamentalismo, no período do ápice do
movimento, década de 1920, foi J. Gresham Machen (1881-1937), aluno de Warfield no
Seminário de Princeton, que por sua vez, foi professor de Princeton entre os anos de 1906 até
1929. Com a morte de Warfield em 1921, Machen torna-se diretor do seminário.

A principal obra de Machen foi Christianity and liberalism, publicada em 1923. Nessa
obra, Machen considerou o liberalismo teológico como uma religião diferente do cristianismo.
Em uma polêmica com o pastor batista liberal de Nova Iorque, Harry Emerson Fosdick (1878-
1969), Machen saiu vitorioso e os fundamentalistas o adotaram como seu porta-voz erudito,
embora Machen nunca tivesse aceitado ser chamado de fundamentalista. Ele não concordava
com as ideias pré-milenistas e antievolucionistas radicais. Era um amilenista professo. Em
1929 foi afastado da Igreja Presbiteriana acusado de insubordinação.70

Depois de Machen deixar a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América, e o


seminário de Princeton em 1929 para fundar outra denominação e outro seminário, o
fundamentalismo caiu em declínio. Entretanto, surgiram outros importantes fundamentalistas
depois de Machen, como John Rice (1895-1980), Bob Jones (1883-1968) e Carl McIntire
(1906-2002), mas que insistiam no sectarismo, recusando a convivência ou cooperação com
outros cristãos conservadores moderados que conviviam ou que cooperavam com os cristãos
não fundamentalistas. O próprio evangelista Billy Graham foi rejeitado pelos
fundamentalistas por sua convivência amistosa com protestantes não fundamentalistas e com
católicos romanos.

68
Idem, Ibidem, p. 576.
69
Note que, pelo credo das Assembleias de Deus, nós professamos a doutrina pré-milenista como a que mais
condiz com os ensinamentos bíblicos sobre como se dará a segunda vinda de Jesus Cristo.
70
“Em um julgamento eclesiástico infame no qual nem sequer teve o direito de se defender”. OLSON, op. cit., p.
578.
34

O rompimento definitivo entre fundamentalistas e conservadores ocorreu na década de


1940 quando Carl McIntire, acusando outros protestantes conservadores de abandonarem o
fundamentalismo verdadeiro, organizou o Concílio Americano de Igrejas Cristãs, que
abrangia apenas as igrejas e denominações fundamentalistas puras e separadas. Em
contraposição, os evangélicos conservadores, liderados por Harold John Ockenga (1905-
1985), fundaram, no ano seguinte, a Associação Nacional de Evangélicos, que agregou muitos
pentecostais, batistas, reformados e cresceu, ao contrário daquela.

A discordância entre os dois grupos dizia respeito às atitudes para com os cristãos não
conservadores, para com os católicos romanos e para com a cultura, a educação, a ciência e a
interpretação bíblica. As profissões de fé de uma e de outra revelam suas diferenças, os
fundamentalistas tem que pensar igual em tudo, da doutrina à política.
35

UNIDADE VI – NEO-ORTODOXIA

Introdução

Os neo-ortodoxos tiveram como principal objetivo reinterpretar as doutrinas centrais


da antiga ortodoxia cristã para o mundo moderno. Os neo-ortodoxos aceitavam com
naturalidade as ideias do iluminismo, principalmente com relação ao criticismo bíblico. Mas
criticavam a cultura cristã gerada pelo liberalismo, principalmente devido à forte ênfase na
teologia natural.

Como fundamento filosófico, os neo-ortodoxos partiram das ideias de Soren


Kierkegaard (1813-1855), conhecido como o “dinamarquês melancólico”. Kierkegaard, que
pertencia à Igreja Luterana Dinamarquesa, procurou destacar as contradições que havia entre
o cristianismo primitivo e a versão contemporânea do cristianismo dinamarquês.

Kierkegaard combatia principalmente a filosofia de Hegel, aceita pelos intelectuais


cristãos dinamarqueses de sua época. Para Kierkegaard, a verdade não era impessoal ou
racionalista, mas sim “uma incerteza objetiva presa a um processo de apropriação da mais
apaixonada origem interior”.71

Combatendo a religião natural, Kierkegaard disse que havia uma distinção entre o
cristianismo e a religião socrática. Na religião socrática, a verdade já estava dentro do
indivíduo e para que a verdade viesse à tona, era necessário um mestre para que o indivíduo
se apercebesse da verdade. Na religião de Jesus Cristo, o indivíduo não possui a verdade, pois
ele vive no engano, o mestre é necessário para levar a verdade ao indivíduo e dar as
possibilidades para que ele a receba, esse mestre é o redentor.

Para Kierkegaard, no entanto, esse ensinamento está envolto em um paradoxo, pois o


mestre que é Deus se tornou homem, nossa felicidade está fundamentada numa historicidade
provável, embora não haja garantia de que seja certa. Por ser paradoxo, a verdade só pode ser
alcançada pela fé e não pela razão. A segurança do cristão “está na profunda preocupação,
temor e tremor santo e não numa segurança complacente”.72

71
GRENZ, op. cit., p. 74.
72
Idem, Ibidem, p. 75.
36

I. Karl Barth (1886-1968)

O teólogo mais influente da neo-ortodoxia foi Karl Barth. Barth nasceu em 1886, na
Basileia, Suíça. Após ter estudado nas universidades de Berna, Berlim, Tübingen e Marburg,
finalmente decidiu seguir o pensamento ritschiliano. Ele recebeu a influência de Harnack, em
Berlim, e de Wilhelm Herrmann (1846-1922), em Marburg, dois ritschilianos.

Em 1908, ele foi ordenado ministro da Igreja Reformada Suíça e assumiu o cargo de
pastor assistente em Genebra. Naquele tempo, ele pregava no mesmo salão em que Calvino
havia pregado. Em 1911, ele assume uma pequena congregação em Safenwil.

Diante da posição tomada pelos seus mestres com relação à política de guerra do
imperador Wilhelm II somado ao fato de que a teologia liberal ritschiliana não o auxiliava na
tarefa de pregar o evangelho para o povo daquela congregação, fizeram com que Barth
tomasse a decisão de abandonar de vez a clássica teologia liberal.

A partir dessa decisão, ele começa um estudo profundo e sério das Escrituras, sua
principal intenção era exercer da melhor forma seu pastorado em Safenwil. Durante esse
período de estudo, ele afirma ter encontrando “O Estanho Mundo Novo Dentro da Bíblia”.73
Ele afirmou ter descoberto que a Bíblia não falava dos pensamentos humanos sobre Deus e
sim sobre os pensamentos de Deus para o homem.

Com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, Barth passa a estudar a epístola
de Paulo aos Romanos, publicando a primeira versão de sua principal obra em 1919. Nesse
comentário, Barth afirma tanto a validade do método histórico-crítico para estudo das
Escrituras, quanto a doutrina da inspiração verbal, dando preferência para esta última. Era
uma revolução na teologia, não mais uma teologia vinda de baixo, mas sim do alto.

Para ele, verdades como o caráter distinto de Deus, do evangelho, da eternidade e da


salvação, não poderiam ser alcançados pela experiência universal humana ou pela razão, mas
sim pela revelação de Deus numa atitude de obediência. Por enfatizar o confronto entre Deus
e o homem, a teologia de Barth ficaria conhecida como teologia dialética ou teologia da crise.
Barth afirmava que as verdades de Deus jamais poderiam ser sintetizadas de forma racional,
pois elas são paradoxais, essas verdades só podiam ser aceitas por fé.

73
Idem, Ibidem, p. 77.
37

Em 1931, Barth teria alcançado a maturidade de seu pensamento teológico ao escrever


A Fé Buscando o Entendimento, um estudo sobre o teólogo escolástico medieval Anselmo de
Canterbury (1033-1109).74 Para Barth, Anselmo não era um racionalista, mas sim alguém que
subordinava a razão à fé. Com a mente, procurava-se entender aquilo que pela fé já era aceito.
A teologia só poderia ser feita num contexto de oração e obediência. A teologia cristã não era
uma ciência objetiva e desapaixonada, ela só era possível através da graça e da fé. Sua
teologia continuou a ser negativa no sentido de rejeitar a teologia natural, mas também era
positiva, no sentido de entender ser possível um verdadeiro conhecimento de Deus em Jesus
Cristo através da fé.

Depois do estudo de Anselmo, Barth passou a se dedicar a sua teologia sistemática, A


Dogmática da Igreja, inacabada em treze volumes quando faleceu em 1968. O que marca essa
obra é o fato de não haver prolegômenos, a tradicional introdução filosófica dos manuais de
Teologia Sistemática. Para Barth, em Jesus Cristo, Deus estabelece uma analogia entre si e a
humanidade. “O conhecimento de Deus não é uma capacidade inata da natureza ou da
experiência humana, mas é possível apenas porque Deus graciosamente o concede em Jesus
Cristo, que é tanto Deus quanto homem”.75 Não se deve provar a pessoa de Cristo, ela só é
aceita pela fé.

Barth, enquanto antinazista, ajudou a redigir, em 1934, a Declaração de Barmen, que


declarava que Jesus Cristo é o único Senhor para o cristão, fazendo oposição àqueles que
tinham elevado a pessoa de Hitler a messias. Devido a sua rejeição de saudar a Hitler em suas
aulas, iniciando-as sempre como uma oração, Barth foi demitido da universidade de Bonn em
1935, retornando para Basileia e permanecendo na universidade da Basileia até a sua morte.

Para Barth, em Cristo, Deus revela a si mesmo e não somente algumas informações ou
um modo de vida. Deus só pode ser conhecido por Jesus Cristo e por mais nada. A fé em
Jesus Cristo é a própria autenticidade dessa verdade. Para Barth, a fonte da teologia só pode
vir da Palavra de Deus, mas essa Palavra consiste de três formas:

A primeira forma é Jesus Cristo e toda a história dos atos de Deus que
levaram até a vida de Jesus e estão relacionados a ela, bem como à sua morte
e ressurreição. Essa é a própria revelação, o evangelho em si. A segunda

74
“Segundo Anselmo, que propunha a tese da inteligência da fé (intellectus fidei), o mais elevado grau a que o
homem pode aspirar, antes da visão beatífica de Deus, é a compreensão, até onde for possível, dos conteúdos da
fé”. Para ele, “Deus é o ser em relação ao qual nada de maior pode ser pensado”. HRYNIEWICZ, op. cit., p.
344.
75
GRENZ, op. cit., p. 80.
38

forma consiste nas Escrituras, a testemunha privilegiada de toda a revelação


divina. Por fim, a proclamação do evangelho através da igreja constitui a
terceira forma. As duas últimas formas são Palavra de Deus apenas num
sentido instrumental, pois tornam-se Palavra de Deus quando Deus as utiliza
para revelar a Jesus Cristo.76
A Bíblia não é a Palavra de Deus num sentido estático. A Palavra de Deus é
acontecimento é o próprio Deus relatando seu agir. “A Bíblia torna-se Palavra de Deus em
um acontecimento”.77 Os registros bíblicos seriam apenas a tentativa humana de reproduzir a
Palavra de Deus. Barth entende “a inspiração da Bíblia como uma decisão divina que é
tomada continuamente na vida da igreja e de seus membros”. A comprovação de que a Bíblia
é a Palavra de Deus não dependeria de evidências externas e internas e sim que “a Bíblia é a
Palavra de Deus, pois sempre de novo, independente de qualquer decisão ou iniciativa
humana, Deus a usa para realizar o milagre da fé em Jesus Cristo”.78 Barth entendia que a
Bíblia tem autoridade sobre todos os homens, mas era subordinada a Jesus Cristo.

A teologia de Barth é absolutamente cristocêntrica, o princípio, o meio e o fim da


teologia cristã é Jesus Cristo, sua vida, morte, ressurreição, exaltação e união eterna com
Deus, o Pai. Para Barth, atrás da realidade existe sempre a possibilidade. “Se Jesus Cristo é
quem a fé indica que ele é – a inigualável revelação do próprio Deus -, então, de algum modo,
ele deve ser idêntico a Deus e não simplesmente um agente ou representante de Deus”. 79 Ele
preferia utilizar o termo forma ao invés de pessoa, pois para ele, o termo pessoa implicava
personalidade, e Jesus Cristo não era uma personalidade diferente do Pai. Para Barth, “Pai,
Filho e Espírito Santo são formas divinas de ser que existem eternamente dentro da unidade
absoluta de Deus”.80

Para Barth, Deus era aquele que ama em liberdade. Ao estudar os atributos de Deus,
ele os dividiu em duas categorias: as perfeições do amor divino e as perfeições da liberdade
divina. Substituindo a tradicional separação entre imanência e transcendência de Deus. Para
ele, a liberdade de Deus e o amor de Deus deveriam ser enfatizados e equilibrados. “O amor
de Deus é sua livre escolha de criar a comunhão entre os seres humanos e ele próprio através
de Jesus Cristo”.81 As perfeições desse grande amor são santidade, misericórdia, retidão,
paciência e sabedoria. No entanto, a liberdade de Deus demonstra que, embora o amor de
Deus fosse real e eterno, ele não era necessário. Deus continuaria sendo amor mesmo que ele

76
Idem, Ibidem, p. 82.
77
Idem, Ibidem.
78
Idem, Ibidem, p. 83.
79
Idem, Ibidem, p. 84.
80
Idem, Ibidem, p. 85.
81
Idem, Ibidem.
39

não optasse por amar o mundo. Deus não precisa do mundo para ser amor. Deus é absoluto
em relação ao mundo. As perfeições da liberdade de Deus são sua unidade, onipresença,
constância, onipotência, eternidade e glória. Mas Deus também não é prisioneiro de sua
liberdade, ele escolhe projetar-se livremente para fora de si mesmo e entrar em comunhão
com o mundo pela profunda unidade em Jesus Cristo.

Para Barth, a cruz de Jesus Cristo foi o acontecimento supremo da entrada de Deus na
história da humanidade, “o Filho de Deus vai para o 'país distante' para tomar sobre si a ira e a
rejeição divinas que a humanidade tanto merecia”. Isso significa que “Jesus Cristo é o homem
eleito e rejeitado (maldito), sendo que todos os seres humanos estão incluídos nele e são por
ele representados”.82 A doutrina da eleição de Barth é cristomonística, isto é,

Jesus Cristo é o único objeto da eleição e da maldição de Deus. Nenhum


decreto terrível de predestinação dupla divide a humanidade em salva e
maldita. Pelo contrário, todos estão incluídos em Jesus Cristo, que é tanto o
Deus que elege como o ser humano eleito por ele, e os benefícios de sua
obra salvadora estendem-se sobre todos eles. É somente ele quem sofre a
rejeição de Deus e, obviamente, isso é Deus rejeitando a si mesmo: “na
eleição de Jesus Cristo, que é a vontade eterna de Deus, Deus oferece ao
homem... eleição, salvação e vida; e a Si mesmo designa... rejeição, perdição
e morte”. Assim, para Barth, a predestinação significa que, desde a
eternidade, Deus decidiu absolver a humanidade a um alto preço para si
mesmo.83
Para Olson, “enquanto Schleiermacher errou ao procurar falar de Deus, falando da
humanidade em alta voz, Barth errou ao falar da humanidade, falando de Deus em alta voz”.84

II. Emil Brunner (1889-1966)

O segundo teólogo relevante da neo-ortodoxia foi Emil Brunner. Brunner nasceu em


1889, em Zurique, na Suíça, e foi educado na tradição reformada. Recebeu grau de doutor em
Teologia pela Universidade de Zurique em 1913. Lecionou por toda a sua vida nessa mesma
universidade, de 1924 até sua aposentadoria em 1955, também lecionou na Universidade de
Princeton entre 1938 e 1939 e na Universidade Cristã de Tóquio, entre 1953 e 1955.

82
Idem, Ibidem, p. 86.
83
Idem, Ibidem, p. 87
84
Idem, Ibidem, p. 91.
40

O seu foco era contra a teologia liberal clássica do século XIX e contra o pensamento
hegeliano na teologia. Seu combate era contra a ideia de que a razão humana pudesse captar o
ser de Deus. “Se Deus é aquilo... que o Teísmo afirma que Ele é, então Ele não é o Deus da
revelação bíblica, o Senhor soberano e Criador, Santo e Misericordioso. Mas, se Ele é o Deus
da revelação, então Ele não é o Deus do Teísmo filosófico”.85 Brunner também combatia a
teologia do conservadorismo protestante, por identificar as palavras das Escrituras com a
Palavra de Deus. Além disso, Brunner também discordava de Barth, que era seu vizinho
(morando a poucos quilômetros de sua casa). Sua discordância era principalmente com
relação à doutrina da eleição de Barth.

Para ele, a revelação é um encontro entre o Eu e o Tu, entre o indivíduo e Deus. O


fundamento filosófico de Emil Brunner foi o existencialismo. Seu principal referencial
filosófico foi o judeu Martin Buber (1878-1965).

Para Brunner era necessário inicialmente fazer uma distinção entre a verdade e o
objeto e entre a verdade e o vós. Era necessário diferenciar o que era o mundo dos objetos e o
que era o mundo das coisas. O conhecimento de Deus não podia ser tratado como o
conhecimento de objetos. A essência do cristianismo está na ocorrência do encontro entre
Deus e a humanidade. O conhecimento sobre Deus é pessoal e transcende o dualismo sujeito-
objeto presente no conhecimento racional. A verdade cristã é gerada pela crise do encontro
entre Deus e a pessoa humana, Deus fala, a pessoa responde. “Essa verdade chega até o
homem sob a forma de uma convocação pessoal; ela não é fruto da reflexão; portanto, desde o
início, ela o torna diretamente responsável”. 86

Para Brunner, todo o problema da teologia moderna se centrava no fato de se ter


colocado o sujeito e o objeto um contra o outro e depois ter subordinado um ao outro. Brunner
entendia que palavras e proposições sobre Deus não são revelação, pois transformaria Deus
em um objeto a ser examinado.

O tipo de revelação que Brunner enfatiza acontece em dois momentos:


historicamente, na encarnação de Deus em Jesus Cristo e, no tempo presente,
no testimonium spiritus internum, o testemunho interior do Espírito Santo
sobre Jesus Cristo que torna Cristo um contemporâneo do crente.87

85
Idem, Ibidem, p. 93.
86
Idem, Ibidem, p. 94.
87
Idem, Ibidem, p. 95.
41

Assim como Barth, Brunner entendia que a revelação não é Deus comunicando algo
sobre si, mas sim comunicando seu próprio ser. “A palavra falada é uma revelação indireta,
quando serve de testemunha para a verdadeira revelação: Jesus Cristo, a manifestação pessoal
de Deus Emanuel”.88

Para Brunner, o teologismo, colocava a doutrina e a teologia no lugar da fé pessoal. A


crença de que as palavras são a revelação em si, faz com que a verdadeira fé venha a
sucumbir. “Mesmo o testemunho dos apóstolos, indispensável à fé, não é objeto da fé em si.
A doutrina, que é a reflexão racional sobre o testemunho e os ensinamentos dos apóstolos está
ainda mais distante da essência da fé”.89 As Escrituras, embora sejam testemunho
indispensável de Jesus Cristo e fonte de fé, não poderiam ser consideradas como verbalmente
inspiradas por Deus e nem como proposições infalíveis da Palavra à humanidade.

Segundo um colega de Brunner em Zurique, Paul King Jewett (1919-1991), Brunner


era incoerente com relação à doutrina da inspiração verbal, ele variava da inspiração verbal ao
abandono total da autoridade escriturística. Embora refutasse a revelação como algo
proposicional, “ele reconheceu que, sem a presença de um certo elemento proposicional, a
revelação divina não pode servir de ‘fonte e norma’ da doutrina cristã. A revelação fica sendo
apenas uma experiência subjetiva”.90

Brunner refutava a ideia de que pela revelação natural era possível provar a existência
de Deus. No entanto, ao contrário de Barth, ele dizia que a imagem de Deus ainda residia na
humanidade. Dessa forma, para ele, a capacidade do homem de receber e aceitar a Palavra de
Deus permaneceu mesmo após a queda. “Ele acreditava que o reconhecimento de tal
consciência mínima de Deus é indispensável para a missão da igreja e da teologia, pois é o
que as leva a uma articulação inteligível da fé”.91

Diante disso, Barth respondeu a Brunner com um contundente “Não!”. Barth acusou
Brunner de “negar implicitamente a salvação pela graça e somente através da fé e de estar
voltando à teologia católica ou (pior ainda!) à teologia neoprotestante (liberal) da salvação, ao
defender a cooperação entre a graça e o esforço humano”.92

88
Idem, Ibidem.
89
Idem, Ibidem, p. 96.
90
Idem, Ibidem, p. 98.
91
Idem, Ibidem, p. 99.
92
Idem, Ibidem.
42

Brunner rejeitava a doutrina da eleição de Barth e a tradicional predestinação de


Calvino. Para ele, crer em Jesus Cristo e ser um dos eleitos era a mesma coisa, assim como
não crer em Jesus Cristo e não ser um dos eleitos também era a mesma coisa.

III. Rudolf Bultmann (1884-1976)

Bultmann não era um teólogo sistemático, mas sim um exegeta do Novo Testamento.
Ele queria tornar a fé cristã e bíblica compreensível à mentalidade moderna. Para isso, buscou
empregar uma interpretação existencialista do Novo Testamento. Assim como Barth,
condenava o antropocentrismo da teologia liberal e considerava que o conhecimento sobre
Deus só poderia ser alcançado através da Palavra, numa resposta de fé do indivíduo.

Sua principal referência filosófica era o existencialista Martin Heidegger (1889-1976).


Bultmann estudou nas universidades alemães de Tübingen, Berlim e Marburg. Lecionou na
Universidade de Marburg de 1921 até 1951. Embora fosse contra o nazismo, ele nunca se
envolveu em política antinazista, por isso, talvez, nunca tenha sido demitido do cargo que
ocupava na universidade durante o regime nazista.

Para Bultmann,

o conteúdo dos Evangelhos apresentava um Jesus que já havia sido


encoberto pelas formas de pensamento do contexto helenista em que os
livros tinham sido escritos. Na verdade, o Novo Testamento não se
preocupa, de fato, com o Jesus da História. Ele se concentra no Cristo da
fé.93
Bultmann afirma que o Jesus Histórico não era essencial para a fé, mas sim o
Kerygma, a mensagem que a igreja primitiva pregava. O próprio Novo Testamento não estava
interessado em apresentar esse Jesus Histórico.

A fé não surge a partir dos resultados da pesquisa histórica. A questão


principal da fé não é a capacidade de se adquirir conhecimento sobre Jesus
histórico, mas sim um confronto pessoal com Cristo no presente. Como
resultado disso, o Jesus histórico tem pouca relevância para a fé. A fé não é o
conhecimento de fatos históricos, mas a resposta pessoal ao Cristo com o
qual nos deparamos na mensagem do evangelho, a proclamação do agir de
Deus em Jesus.94

93
Idem, Ibidem, p. 103.
94
Idem, Ibidem, p. 104.
43

Para ele, não há base para a fé, nem nas boas obras, nem no conhecimento objetivo. A
fé não pode ser construída, ela é uma dádiva da graça de Deus, que chega a nós pelo kerygma.
O agir de Deus na história não pode ser conhecido pela história, mas somente pela fé. O Jesus
Histórico não é o centro da revelação de Deus.

Para Bultmann, a mensagem do Novo Testamento estava envolta em mitos. Todavia,


ao contrário dos liberais, que entendiam ser necessário eliminar os mitos para encontrar o
verdadeiro evangelho, Bultmann a interpretação dos mitos, pois, do contrário, o próprio
kerygma seria destruído. A esse método de exegese, ele denominou desmitologização. Para
ele, mito era a forma de pensamento que representa a realidade trascendente em termos deste
mundo, mas para evitar a ideia de que qualquer discussão sobre Deus fosse entendida como
mito, ele redefiniu o termo como “qualquer expressão que possa comprovadamente ser
excluída pelo enfoque na ciência natural característica da mentalidade moderna”.95

Bultmann discordava da ideia de que o texto bíblico continha princípios eternos e


universais esperando para serem descobertos por meio da hermenêutica. Para ele, as nossas
questões é que determinam as respostas que receberemos do texto e nossa relação com o
assunto é que determina nossas questões. O existencialismo seria a base para formularmos as
questões.

Sobre a transcendência de Deus, Bultmann não considerava essa transcendência como


algo atemporal, mas sim significando que “Deus está diante de nós no momento existencial da
decisão, dirigindo-se a nós com a sua Palavra e confrontando-nos com o desafio de responder
96
pela fé, criando desse modo a verdadeira existência”. Dessa forma, não se pode falar de
Deus de modo objetivo, mas apenas relacionado a nós, ou seja, não podemos falar sobre Deus,
mas apenas falar de Deus.

Para Bultmann, a morte e a ressurreição de Jesus não tinham o poder de expiação ou


salvação. Para ele, o importante era o sentido da cruz e da ressurreição para a existência. A
cruz, um fato na vida de Jesus, representava o julgamento libertador de Deus sobre a
humanidade. A ressurreição, que Bultmann não aceitava falar em termos de acontecimento
histórico, era a exaltação do crucificado à posição de Senhor. Por fim, fé era o desejo de
compreender a si mesmo como tendo sido crucificado e ressurreto com Cristo.

95
Idem, Ibidem, p. 106.
96
Idem, Ibidem, p. 108.
44

Segundo Olson, a teologia de Bultmann tinha uma exegese unilateral, uma fé


privatizada e um Deus limitado. Exegese unilateral porque o Novo Testamento não trata
apenas do Kerygma ou de soteriologia, e a fé não cria a história, mas a história é a base da fé.
Fé privatizada por ser extremamente existencialista, ele não tratou de aspectos da comunidade
cristã ou sobre a sociedade, também só tratou da justificação, mas não da santificação e do
viver cristão. Um Deus limitado porque eliminou verdades sobre a eternidade de Deus e sobre
o agir de Deus no mundo.

IV. Reinhold Niebuhr (1892-1971)

Niebuhr, que pode ser considerado último teólogo de relevância da neo-ortodoxia,


tinha por objetivo aplicar a fé cristã na dimensão social da vida. Foi pastor de uma
congregação constituída em sua maioria por operários da montadora Ford. Criticou a ideia do
progresso e a ideia do aperfeiçoamento da humanidade. Para ele, a sociedade só pode oferecer
ao homem uma justiça parcial, por isso, o máximo que o homem pode fazer é tornar a
situação de hoje mais justa que a de ontem. O reino de Deus é inalcançável, um padrão
impossível de ser atingido, mas está sempre presente para confrontar o homem.

Seu principal enfoque estava na doutrina ortodoxa da natureza do homem. Para ele, o
homem é uma existência criada e finita tanto no corpo quanto no espírito, por isso, rejeitava
as antropologias dualistas. Depois, os homens devem ser vistos como imagem de Deus e não
em termos de faculdades racionais. Por fim, os homens devem ser considerados pecadores,
alvos do amor, mas não dignos de confiança.

Para ele, o pecado era a principal doutrina que tinha que ser resgatada no mundo
moderno. O pecado estava enraizado no coração do ser humano. O pecado fora ocasionado
pelo mau uso da singularidade humana, o transcender-se a si mesmo, recusando-se a se
reconhecer como criatura. A questão central não era saber como seres finitos poderiam
conhecer a Deus, e sim como um povo pecador poderia ser reconciliado com Deus. O pecado
não era um desvio moral herdado, e sim ansiedade gerada pela finitude (sua contingência) do
homem e por sua liberdade (o se pôr para fora do mundo). A ansiedade faz com que o homem
transforme o caráter finito em eterno, a fraqueza em força, a dependência em independência,
ao invés de confiar na fonte suprema de segurança que é o amor de Deus.
45

A fé é a aceitação de nossa dependência de Deus, e o pecado é a negação de nossa


condição de criaturas. O pecado apareceria de duas formas: pela sensualidade, que nega a
liberdade humana e nos faz regredir à natureza animal; e pelo orgulho, que nega nossas
limitações e afirma nossa independência, esse orgulho pode ser o poder, o conhecimento, a
virtude ou espiritual.

Ele aceitava tanto a revelação geral quanto a privada ou especial. Ele concordava que
a revelação ia de encontro à razão, mas não negava ser possível o reconhecimento da verdade.
Niebuhr, contrariamente à Bultmann, procurava demonstrar como os mitos bíblicos ainda
falavam à situação moderna, essa também repleta de mitos, porém falsos.

Assim como outros teólogos neo-ortodoxos, a proposta construtiva de


Niebuhr lançava mão de uma visão dialética da relação entre o tempo e a
eternidade. O eterno é revelado no temporal, mas não se limita a ele. A
História e a existência humana são significativas, mas sua fonte e seu
cumprimento encontram-se além da História.97
Para ele, “só se pode falar do transcendente através do uso de mitos, que servem como
símbolos da verdadeira realidade. (...) Quando entendidos corretamente como afirmações da
relação entre o eterno e o temporal, os mitos da fé cristã são relevantes para nossa época”. Ele
considerava a Queda como mito, não um acontecimento histórico, mas sim “uma afirmação
profunda sobre a universalidade do pecado e suas origens na finitude e na liberdade do
homem”.98

Ele não aceitava ver a salvação em termos de conhecimento de Deus, para ele a
salvação era vida de fé em meio às contradições da existência no mundo. A fé não é provada,
é vivida. A fé é encarar as inseguranças da vida e reconhecer que elas só podem ser superadas
por Deus. Para ele, “o significado da cruz não é consequência lógica de fatos observáveis da
História, sendo visível apenas através dos olhos da fé”. A cruz revela a verdade profunda
sobre a humanidade e Deus, revela a condição humana e o pecado. “A cruz é a declaração do
julgamento divino sobre o pecado humano. Por outro lado, esse símbolo proclama o amor
divino e o perdão do pecado”.99

Para ele, os símbolos escatológicos também não devem ser considerados como literais.

97
Idem, Ibidem, p. 128.
98
Idem, Ibidem.
99
Idem, Ibidem, p. 129.
46

O símbolo da volta de Cristo é uma expressão de fé na suficiência da


soberania de Deus e na supremacia absoluta do amor. O julgamento final
afirma a importância da distinção entre o bem e o mal. E a ressurreição
implica que a “eternidade completará e não anulará” a variedade encontrada
no processo temporal e que a dialética da finitude e liberdade não tem uma
solução humanamente concebível.
Viver pela fé significa encontrar “a segurança absoluta além de todas as
seguranças e inseguranças da História”, isto é, no Deus transcendente da
História.100
As principais críticas à sua teologia são o fato de ser fideísta,

assim como Bultmann, Niebuhr argumentava que a chave para o significado


da História não podia ser encontrada na própria História, mas era
desvendada apenas para os olhos da fé, para aqueles que pudessem enxergar
seu significado transcendente além dos processos da vida.101
Outra crítica é a sua tendência em limitar a transcendência de Deus. “Ao colocar os
acontecimentos revelatórios da história na esfera do mito, ele parece ter eliminado a
possibilidade de tais acontecimentos desvendarem a realidade de um Deus transcendente, que
é verdadeiramente capaz de agir no mundo”.102

Também é acusado de ser um teólogo pessimista, por só destacar o caráter trágico da


luta entre o amor divino e a resistência humana.

100
Idem, Ibidem, p. 131.
101
Idem, Ibidem, p. 132.
102
Idem, Ibidem.

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