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Colecção MARE NOSTRUM

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Fragmentos 40

ELOGIO AOS HABITANTES DE ÉLIS17


10 [7] ARISTÓTELES, Retórica III 14, 1416a 1 [É] deste tipo o
Elogio aos habitantes de Elis, da autoria de Górgias; na verdade, sem
qualquer prelúdio ou introdução, ele começa abruptamente com "Élis,
cidade ditosa1'.

ELOGIO DE HELENA
Este singelo Elogio de Helena é um precioso testemunho, elaborado pelo
próprio Górgias, da sua concepção do discurso. Este sofista ficaria célebre,
como refere Cícero no Orator (§§164-167), pelo uso acentuado de
determinadas figuras, chamadas gorgiânicas, como 0 isocólon, a antítese e o
homeoteleuto. Estas impregnavam o discurso de ritmo e musicalidade, de tal
forma que não era apenas a armação lógica das ideias, mas também, e
simultaneamente, 0 ritmo e a musicalidade, que determinavam a força per-
suasiva do discurso. Assim, aquilo a que chamamos persuasão incluía igual­
mente algo habitualmente designado por sedução. Não terá sido, pois, por
mero acaso que Górgias resolveu "divertir-se" escolhendo a sedutora Helena
para objecto deste encómio. Ele propõe-se ilibá-la contra 0 parecer da
tradição, que a apontava como culpada da guerra de Tróia por ter abando­
nado o marido, seduzida pelas palavras de Páris, também ele seduzido por
ela, um discurso vivo de beleza harmônica irresistível. Como seria habitual
em todos os seus discursos, também este reflecte uma sólida estruturação
que permite distinguir uma parte preambular (§§1-5) onde se anuncia a
propositio (§2), se faz a apresentação da elogiada (§§3-4) e se justifica a
inutilidade da narratio (§5). A argumentação propriamente dita inicia-se no §6
com a enumeração dos motivos (cátíaç) do procedimento de Helena,
seguidamente desenvolvidos: a força dos deuses Destino, T % i, e Necessi­
dade, ÂvcÍYKri, (§§6-7), a força sedutora do Discurso, Aoyoç (§§8-14), e o
fascínio de Eros (§§15-19). Estes motivos serão, no final da argumentação
(§20^, recapitulados na ordem inversa. No §21 Górgias enuncia os objectivos
alcançados com este seu discurso, entre os quais o do divertimento
(ncayvíov). Desta forma, o Elogio de Helena poderá considerar-se pioneiro de
outros do mesmo gênero que, alicerçados em assuntos ligeiros, eram
pretexto para cada um exercitar a sua habilidade. Segundo Guthrie'8, tanto 0
Elogio de Helena como a Defesa de Palamedes seriam exemplos de exercí­
cios retóricos sobre temas da mitologia, visando mostrar como, com 'sufi­
ciente habilidade e cinismo, se podiam defender causas que, à partida,
poucas hipóteses teriam de sucesso. A afirmação final de Górgias no Elogio
de Helena parece confirmar isto mesmo. De notar que Isócrates, seu dis­
cípulo, também escreveu um Elogio de Helena.

17 Górgias terá pronunciado este discurso numa festa em Olímpia. Tratar-se-ia dum
discurso deliberativo (cf. M. UNTERSTEINER, / Sofisti, I, Milano, Lampuqnani Nidri
Editore, 1967, p. 157).
18 W. K. C. GUTHRIE, Les Sophistes, trad. J.-P. COTTEREAU, Paris, Payot, 1976.
41 FO PnO Y EAENHE EFKfíMION

1 1 .( 1 ) Kóct}x©ç KÒhcX jièv eúavSpía, cptoucíti Sè KáUoç, ^ 1 % % & G Q & jía,

jtpáypmi Sè ápeTií, tóyffli Sè áWjteicr rà Sè èvavría toórav áKoonía. àvôpa


Sè Kai yuvaúca Kai Àóyov Kai èpyov Kai rnXiv Kai Jtpâyjm xprj tò jxèv áÇtov
ènaívou èrcaíwi Tijiáv, tô i Sè ávaÇían nijiov èreraSevai- forç yàp à^iapría Kai
àjiaOía \ik\i§m M í te Tà òtaivsTà Kai èjcaiveiv Tà p>p,tirá. (2) toô S’ atirou
àvSpòç Áiçai te tò Séov òp8Sç Kai èÀéyÇai xotiç p£pxj>ojxévouç 'EÀévrjv, yuvaiKa
rcepi fjç ó|ió<l!£DV0Ç Kai óiió-fW/oç Yéyovev fj te t Í v noirtrêv àKowávtfflv rá ra ç
f| Te toü òvójiaToç (jrfjurj, Ô Tt»v ctpjiopêv p,vrpT] yéyovev. èyè Ôè ftoúÀ,»|iai
Xoyia|ióv Tiva tô i Àóy<Bi ôotiç tt|v (ièv Katáòç àKoúouaav rauw ai xfjç aitíaç,
toòç Sè )i£jK(to(iévovç \|/eu5ojiévín)ç èmMÇaç Kai ôeíçaç TàJúieèç f| itafiaai xf^ç
à|xa6íaç.
(3) õ n nèv otiv ()n)oei Kai yévei xà npôm m v npówv âvõpãv Kai
yuvaucôv f| yuvfi nepi fjç õôe ó Àóyoç, otiK aôn^ov otiSè òMyoiç. Sf]Ax)v yàp éç
Hrycpòç (jèv Arjôaç, raxTpòç Sè tou pèv yevopévau Beoti, Àeyojiévou ôè Ôvt| toí>,
Twôápe© Kai Áióç, êv ó (xèv ôià tò eivai eôoçev, ó ôè ôià tò (jxxvai fjXéy%&n>
Kai f|v ô nèv àvôpôv KpàTioroç ò Sè róvxov Ttipawoç.
(4) ÈKtoioútov Sè yevonivri eo^e tò íoó0eov xáXXoç, ô Àafkrixra Kai ou
ÀaOoôoa èo%e- jtXeíoraç Sè JtÃeíaToiç èm9uníaç époroç èveipyàoaTo, êvi ôè
Fragmentos 41

11. 1 .0 ordenamento^ duma cidade está na coragem dos seus


cidadãos, o dum corpo na sua beleza, o duma alma na sua sabedo­
ria, o duma acção na sua excelência e o dum discurso na sua ver­
dade20. O contrário será o caos. Em relação, pois, a um homem e a
uma mulher, a um discurso e a uma acção, a uma cidade e a um
negócio de estado, convém elogiar o que for elogiável e censurar o
que for indigno. É que existe igualmente erro e ignorância em cen­
surar o louvável e em louvar o censurável. 2. Compete também ao
mesmo homem dizer o que é justo que se diga e refutar os detrac-
tores de Helena, uma mulher a respeito de quem são uníssonos e
unânimes quer o crédito que lhe concedem os poetas que escuta­
mos, quer a fama do seu nome, que transporta consigo a lembrança
de acontecimentos funestos. O que eu pretendo, ao dar uma lógica
ao discurso, é libertar da culpa quem sofre de tão má reputação,
desmascarar os que pela calúnia enganam e, mostrando a verdade,
fazer cessar a ignorância. 3. Não deixa de ser evidente, e para não
pouca gente, que a mulher de que se ocupa este discurso é, pela sua
natureza e pela sua genealogia, o que de melhor existe entre os
homens e as mulheres. Na verdade, todos sabem ter sido Leda sua
mãe e seu pai um deus, ainda que se referisse um mortal: Tíndaro,
este, e Zeus, aquele; um, porque o era, foi considerado como tal; o
outro, porque afirmava sê-lo, foi tratado com desprezo; um foi o mais
poderoso dos homens; o outro, o senhor do universo. 4. Senhora de
tal origem, ela foi possuidora duma beleza divina. E o que recebeu
não o escondeu, mas usou-o. Em muitos despertou inúmeras

19 Atribuímos ^o gr. Koa^oço mesmo significado que possuirá na lliada (XI, 187), ou
seja, o de "toda uma preparação ordenada". Estamos perante uma palavra que
concentra em si grande riqueza semântica, remetendo para uma determinada
concepção do mundo, da vida e da sociedade. Cf. Maria Helena da ROCHA
PEREIRA, Estudos de História da Cultura Clássica, I vol.: Cultura Grega, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, pp. 216-218, designadamente a n. 26.
20 O início deste discurso parece constituir uma profissão de fé no relativismo dos
valores, atendendo às várias definições apresentadas para kóohoç (cf. GUTHRIE,
op. cit., p. 260). De notar que, seg. Platão (Ménon, §§71 e ss.) Górgias recusava-se
a definir a virtude.
42

a é |i c a i ic o U à o é p m a m )v % a y £ v à v S p ô v èiti ixeyá^oiç jié y a <j>povowrav, fiv

o i (ièv r i k o ín m liEyéôi], o i Sè ewyEveíaç w a X m ã q etiSoÇíav, o í 5è à3ucf|ç iS ía ç


e-òe^íav, o i Sè oo(j>íaç ènucrfirou Súvc.puv éo% ov K ai ípcov áJtavxEç m ’ êpaxóç
xe (j)iA,0VÍK0\) (j)i^ o u [iíaç t e à v a ic fp m (5) tk m ç |iè v o S v K a i ôi’ oxi K ai ôíkdç

àjtéíã/rp -e xòv è p m a xíjv 'E té v rjv l a j ü v , oi> AéÇfiv xò y à p xoíç e tô ó a iv a í o a o i


Àéyeiv r ó r a v (xèv éx st, xép\|nv Sè o ò <(>Ép£i. xòv xpóvov Sè xrâi Àóyoi to v x o te vôv
twcEppàç èrci xqv á p x n v xou n è U o v ro ç tó y o u Ttpopíiooiiaj., K ai ftpoerçaojiai x à ç

a ix ía ç , õi’ à ç eík ò ç fjv YEvéaGai xòv xfjç 'E té v n ç eíç ttjv T p o ía v oxókov.
(6 ) f| y à p Tt>xnç p o o M p a a i K a i G eôv P ou À E Ú n aat K a i 'A v á y ia iç

^ í o n a o i v ércpaçEV à EicpaçEV, fj p i a i á p r a x a 8 £ t c a , f | k ó y o iç T t E io M o a , f |

é p c m à X o ü o a . e i |i è v o u v ô i à x ò itp ô x o v , à ç i o ç a i x i à a G a i ó a ix u ó |x e v o ç - Geoij

yàp 7cp oÔ U |iiav à v 9 p o m ív n i T c p o ^ e í a i à ô ú v a x o v k g & ú e iv . íréc(n)KE y à p o i) x ò

KpEÍOCTOV ÍMtÒ XOU fjOGOVOÇ KfflX.ÚEOSai, CÜÚM x ò T^OOOV D7K> XOÚ KpEtOOOVOÇ

à p x E O 0 a i K a i à y e o 6 a i , K a i x ò |i è v K p E io o o v fjyE K r0at, x ò 5 è f^ a a o v ã t e a ô a i . Geòç

8 ’ à v ô p ó jc a u K p E io a o v K a i p i a i K a i ao<j>íat K a i x o íç õ X X o iq . e í a S v x fii Tí>xtii K a i

x ô i 6 e ô t TÒv a i x í a v à v a 0 e x É o v , f | xf)v m è v n v xr|ç Ô W KÀEÍaç à T io to x é o v .

(7 ) eí ô è p i a i f ip n à o e n K a i à v ó n x o ç è p iá c r ô n K a i àSÍKcaç úPpía& n, õ í f t o v

õ x t ô [ iè v à p r c à o a ç é ç ú p p ío a ç Ttòíicriaev, f] S è à p r a x a 0 E ta a è ç i)P p io 0 E to a

èSixrró%TioEv. à ^ i o ç oí>v ó n è v è T n x e ip n a a ç p à p p a p o ç p à p p a p o v è j n x e íp n u a K a i

Jióyrai K a i vó|i<ui K a i épyrai X ó y o t [iè v a i x í a ç , vó(ixoi S è à x i f i i a ç , é p y o t S e Ç T p ía ç


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Fragmentos

paixões. Só com o seu corpo, atraiu a si os corpos de muitos homens


que aspiravam intensamente a altos feitos. Destes, uns possuiam
grandes somas de dinheiro, outros os pergaminhos duma ancestral
genealogia, outros p vigor característico da valentia, outros, ainda, a
força da sabedoria adquirida. E todos chegavam movidos pelo amor
sequioso de vitória ou pela sede invencível de glória. 5. Porquê e de
que forma alguém saciou o seu desejo raptando Helena, disso não
falarei. O dar-se informações a quem já está informado traz credibili­
dade mas não proporciona prazer. Por isso, omitindo agora do dis­
curso esse tempo passado, iniciarei de imediato o discurso e apre­
sentarei os motivos pelos quais o embarque de Helena para Tróia
surgia como natural. 6. Foi certamente pelos desígnios do Destino,
pelas resoluções dos deuses e pelos decretos da Necessidade, que
ela fez o que fez, quer tenha sido levada à força, convencida pelos
discursos, ou arrebatada pelo Amor. Ora se foi pelo primeiro motivo,
é o responsável quem deve ser chamado à responsabilidade. Na
verdade, não é possível à previdência humana impedir um desejo
divino. É da natureza das coisas não ser o mais forte detido pelo
mais fraco, mas sim o mais fraco ser comandado e conduzido pelo
mais forte. O mais forte comanda e o mais fraco vai atrás. A divin­
dade é mais poderosa que o homem, tanto na força como na
sabedoria e em tudo o mais. Se se trata, pois, de virar a acusação
contra o Destino e a divindade, liberte-se então Helena da infâmia. 7.
Se, porém, ela foi arrebatada pela força, tendo sido não apenas ile­
galmente forçada mas também injustamente ultrajada, é evidente que
procedeu injustamente quem a raptou e ultrajou, enquanto ela teve a
infelicidade de ser raptada e ultrajada. Logo, é o bárbaro que lançou
mãos a esta bárbara empresa que merece ser responsabilizado pelo
discurso, pela lei e pela acção. Pelo discurso, deverá ser declarado
culpado; pela lei, deverá ser votado ao ostracismo^; pela acção,

21 Processo de banir da sociedade um proeminente cidadão que se tornara impopular,


em vigor na Atenas do séc. V a.C. Todos os anos a Assembleia decidia que
houvesse um "ostracismo", sem se mencionarem nomes. Se assim acontecia, cada
cidadão podia escrever num caco (gr. ffo-tpaKov) o nome de qualquer cidadão que
achasse bem que fosse honrosamente afastado da cidade por dez anos. Se se
reunissem seis mil votos, ou mais, contra qualquer homem, era-lhe forçoso partir,
sem outra sanção. Era este um meio de afastar o chefe duma facção perigosa.
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TOjceiv i] ôè piao M o a Kai xftç raxxpíSoç axepTieeícia Kai xêv (f>ÍWv


ò p * a v i o 6 £ i o a rab ç o ü k ôv e í k ó t o ç èÀeriteí-n jiô P iA q v f | KaicoÀoyrieeÍTi; ó |ièv yàp
èSpaoE Ôsivá, f| 8è éreaêe- ôím iov oôv xrçv pèv oiKxipat, xòv ôè jucrfpai.
(8) ei Ôè Xáyoç b neíoaç Kai xrjv àjtaxí|0aç, otiSè icpòç tom o
%ak£nòv àíCoA.aytíaaaeai Kai xrçv aixíav àTco.Vóaaaüai êôe. Ã,óyoç SDváorqc;
jxéyoíç èoúv, ôç oiitKçxná-wi oéjjmi Kai à^aveoxáim Getóxaxa epya àjtoÃExer
Stfvãroíyàp Kai (Jtójtov r a w a i Kai Mot^v à<t)eÀ£Ív Kai %apàv evepyàaao0ai
Kai £À£ov èroxD^fpjai. T aw a ôè éç oikoç è^ei ôeí^cr (9) Sei ôè Kai ôóçrji ÔEtÇai
xoiç àKaómxrv xrçv jioít^jiv àrcaoav Kai vo(j.íÇ© Kai ôvo|iáÇm Xóyov ê%ovra
Hètpov tjç xoi>ç ÒKOTOvraç eiof^Ge Kai <|>pÍKn nepí^oPoç Kai eleoç iroA/úôaKpuç
Kai 7CÓ0OÇ<j)iÃ,OTcev«riç, èic’ àX X m pim xe jcpayjxáxfflv Kai oojiáTOJV ewruxíaiç Kai
ôucmpayíaiç iSiov ti mBrilia Ôià xêv Xóyov énaflev f| y^yn. # p e Sf| rcpòç aXKov
àK’ àXkoü p£Taaxffl tóyov. ( 10) a i yàp év0eoi Sià Xóyrnv è m ib a i èraxyrayoi
fjôovfiç, àmywyoi A/íwcnç yívovtar ouyyivonévn yàp xf|i ôóÇt|i xfjç y-ü%ftç f|
ôíjvaniç xr\ç èraoiôfiç éteX^e Kai êm oe Kai nexèoxriaev awriv yanxeiai. yonxeíaç
ôè Kai |iayeíaç ôioaai xè%vai eijpryvaai, a i eim xrafjç ájiaprniiaxa Kai ÔóÇriç
áicaxfinaxa. (11) òaot ôè. õaauç itepi ôctov Kai E7t£iaav Kai TtEÍfonxn ôè itre-u&íj
Xá/ovT^áaavreç. eí |a.èv yàp raxvxeç ropi nàviov efyov.xôv xe 7iapoixo(ièvfflv
|ivtiiit)v xrôv xe jKxpóvxmv èw oiav tov xe ^leXXóvwv jcpóvoiav, oò>k àv ó(j.oíoç
ójioioç fjv ó Âóyoç, otç xà vov ye ome nvno&nvai xò 7tapoi%ójj£vov auxe
Fragmentos 43

deverá sofrer um castigo. Quanto à que foi violentada, exilada da


pátria e privada dos amigos, porque não há-de ser mais razoável
apiedarmo-nos dela em vez de a difamarmos? Na verdade, ele fez
coisas revoltantes, enquanto ela as suportou; é justo, então, que dela
tenhamos compaixão e dele horror. 8. Mas se foi o Discurso que a
convenceu e lhe enganou a mente, também não será difícil defendê-
-la disso e libertá-la da acusação, como passo a fazer. O Discurso é
um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase impercep­
tível leva a cabo acções divinas. Na verdade, ele tanto pode deter o
medo como afastar a dor, provocar a alegria e intensificar a com­
paixão. Que isto é mesmo assim, vou-o demonstrar. 9. É necessário,
porém, que eu o demonstre também à opinião dos ouvintes. Eu
concebo e designo igualmente toda a poesia como um discurso com
ritmo. Um temor reverenciai, uma comovida compaixão e uma
saudade nostálgica insinua-se nos que a ouvem. Por intermédio das
palavras, o espírito deixa-se afectar por um sentimento especial,
relacionado com sucessos e insucessos de pessoas e acontecimen­
tos que nos são alheios. Mas, adiante! Passemos deste a um outro
argumento. 10. Na verdade, os discursos harmoniosos, inspirados
pelos deuses, provocam uma sensação de bem-estar, dissipando a
tristeza. A força da palavra mágica, convivendo com a opinião do
espírito, fascina-o, convence-o e transforma-o por encantamento.
Descobriram-se dois processos de encantamento e magia, que são
os erros do espírito e os enganos da opinião. 11. Quantos con­
venceram e convencem outros tantos a propósito de outras tantas
coisas, forjando um falso discurso. Na verdade, se todos, a respeito
de tudo, conservassem tanto a memória do passado como a noção
do presente e a previsão do futuro, o discurso não seria igualmente
idêntico para aqueles, que neste momento não conseguem facil-
0K£\|/aa0ai tò raxpòv oírce navretíoaaOai TòjaéÀXov emopoç é^ev ©orceicepi tôv
jcXeíoTfflv oi jcM otoi tt(v ôóçav oújípctóUív rqi yujcni rapéxovrai. fj Sè SóÇa
G(|)aÀepà Kai àpépaioç o&ja o<|>a?lepaíç Kai à(tefkxíoiç eòroxíaiç TEepipàAÃei
toòç am fji xp»|iévo\iç (12) [tíç dbv aM a KG>W>ei vopÁaai m i Tqv 'EÀévnv imò
Ãóyotjç èÂ0eív òjioíaç àv ovx èKOÍkrav éaicep ei piaTnpfflv piai fptáobYi;] [tò
yàp Tfjç Jteitoüç eçtv |ièv oiíôajxâç èotKev àváyKt]i, Tf|v Sè Sovapav Trçv aüxrjv
èvEij. Xoyoç yàp t^ux^v à rcetoaç, fjv ijceiaev, rivaymoe ra i ja8éa0ai toíç
Àeyofiévoiç m i owaivéoai toíç m)wn)jJ.évoiç. ô |xèv ow íceíaaç óç àvaymaaç
àStKei, f) ôè iteioGeiaa óç àvayma0eíaa tô i Àoyon |_iáTr)v àKoóei mKÔç. (13)
ô ti ô’ fi iceieó rcpomauoa tô i Àòyoi m i -rnv yt>xíiv èrujtóoaTo õraaç èfkróÀeTo,
XPH (JaÔeív icpÔTOv |ièv toòç tôv p£TecopoX,óy<DV Xáyovç, omveç Sóçav àvn
SòÇtiç ttjv jxèv à^etópevoi Trjv ô’ èvepyaaá|xevoi Tà am ara m i àdríka
(jrcáveoGai toíç Tfjç òóçnç òp,jiamv ènoúioav. Seòrepov Sè toúç avaymíouç Sià
Xóyav àyôvaç, èv olç èíç Ã-óyoç jcoXvv ò%kov érep\|íe m i ejceioe té%vhi ypaifeíç,
oòk ò&n0eíai A^xÔeíç- T pú o v Sè <t>iÂoacxjxí>v Aàycov á(XÍXA.aç, èv atç SeÍKWcai
m i yvó|iTiç Tà%oç óç efyieràpoÀov ranoôv tt^v títç Só^nç rckmv. (14) tòv amòv
Sè Xóyov è%ei f) Te raô Xóyou Swa^iç Jtpòç Tr)v xfiç y-uxíiç Tàçiv f| Te tôv
Fragmentos 44

mente recordar o passado, reflectir o presente e prever o futuros?. De


sorte que, para a generalidade dos assuntos, a generalidade das
pessoas assume a opinião como conselheira^. Mas a opinião, sendo
incerta e inconstante, lança os que dela se servem em incertas e
inconstantes situações. 12.24 Que motivo nos impede, pois, de pensar
que também Helena se terá deixado seduzir do mesmo modo pelos
discursos, não de sua livre vontade, mas como se fosse arrastada
por uma força poderosíssima? De facto, no que respeita à situação
de persuasão, esta não é de modo algum apenas parecida com a
necessidade, mas possui a mesma força25. É que o discurso persua-
sor da mente, persuade-a, força-a tanto a, acreditar no que foi dito
como a consentir no que é feito. Portanto, é quem persuade que é
culpado de prática de violência, ao passo que a que foi persuadida,
porque constrangida pelo discurso, é, sem razão, objecto de má
reputação. 13. Que a Persuasão, saída do discurso, também mani­
pula a mente a seu bel-prazer, há que compreendê-lo antes de mais
por aqueles discursos dos astrônomos que, destruindo uma opinião
com outra opinião por eles criada, fazem com que as coisas incríveis
e nada evidentes surjam como verosímeis aos olhos da opinião.
Depois temos os inevitáveis debates, em que um só discurso, quando
redigido com arte, encanta e convence toda uma multidão, mesmo
sem respeitar a verdade; em terceiro lugar, as discussões filosóficas,
em que a rapidez do pensamento se mostra capaz de tornar
facilmente alterável a credibilidade da opinião. 14. Relação idêntica
possuem a força do Discurso em ordem à disposição do espírito e a

2^ Evidencia-se aqui a filosofia relativista de Górgias e dos sofistas. O conhecimento


é, de um modo geral, impossível e o único guia é a opinião (ôcítja), que é falível. Um
dos elementos essenciais na arte de persuadir é o sentido da ocasião (Kcupdç) do
momento oportuno. O orador deverá adaptar as suas palavras ao auditório e à
situação. Cf. GUTHRIE, op. cit., p. 278. Este tema já fora abordado no tratado do
N ãoser.
23 O sofista será aquele que domina, com a sua arte, todo o campo da experiência
onde reina a opinião, susceptível de ser sempre transformada.
24 A tradução dos dois primeiros períodos deste parágrafo assenta sobre urri texto
diferente do proposto por DIELS-KRANZ. A deterioração do manuscrito, nesta
passagem, deu azo a múltiplas conjecturas de reconstituição do texto grego (cf.
DIELS-KRANZ, op. cit., pp. 291-292). Dessas, seleccionámos duas que nos
pareceram garantir maior fidelidade à dinâmica transportada pelo discurso.
25 A Persuasão (neifiró) era, para os Gregos, uma deusa poderosa.
45

(jiap^ÚKWV TffiÇlÇ JtpQÇ XT$V TÔV 0ffi|láxfflV <|>OTtV. ÔCOTep y à p TÔV (j)ap|iáKfflV
áÁÃouç ãX ka xujioòç èk xou oôpaxoç èÇáyei, K ai xà pièv vóaou tà Sè [Mau
jtaúei, owxu K ai tôv Jióymv o í iièv èA,únnoav, oi Sè étep\|/av, oi Sè èí^piioav, oí
Sè eiç e á p a o ç K axéorncrav x c è ç àKoúovxaç, oí Sè m 6oí uvt Kascíji xrçv n|n>XTjv
è (jía p ^ á K e w a v K ai èÇeyoiíxeuaav.
(15) Kai &n [ièv, ei Ãóym èneíadn, owk f{8ÍKrpev àÀÀ’ ffróxrpev, elprytai-
Tqv Sé 'ceTápnrv aixíav xêi xexápxm Xòym õiéÇeiju. ei yàp épfflç V ó ram a
jcávxa Jtpáçaç, oi) xakem c, SiacjieúÇexai xrçv tt,ç Xeyojiévnç yeyovévat ánapxiaç
aixíav. à yàp òpôjiev, è%ei (jrómv obx fjv íp eíç 6é/\oji£v, á k V f|v ém oxov éxuxe-
Sià Sè xfjç òyemç í) \|/uxt) Kàv xoíç xpóicoiç xujioüxai. (16) atixúca yàp oxav
jtolép,ia cópaxa Kai rcoÃi|iiov èrci 7toÀe|iíoiç ÓJCÃ.ior|i KÓoy.ov %aX%ói> Kai
oiSfipou, xoú [lèv àã^r|Ttipi.ov xoíi Sè Jtpop^fpaxa, ei Ôeáoexat f) õ\|nç, èxapáx&n
Kai èxápaçe xqv yuxriv, ®ote iK&kmaç, kivSúvou xou néMovxoç ôç õvxoç
«jíe-úyovxnv éKT&ayévxeç. íaxupà yàp fi ouvn0eia xou vá^ou Sià xòv <j>ó[k)v
è^DiKÍaÔn tov àjcò xnç ô\|/eoç, tjuç eKtkm oa ènoírpev à^eXrioai Kai xou ratarô
xou Sià xòv vó|xov Kpivo|xévou Kai xou àya0oú xoü Sià xqv viicnv yivo^évou.
(17) fjSri Sé xiveç iSóvxeç <(>oPepà Kai xou rcapòvxoç èv xrâi Jtapóvxi xpóvoi
<j>povntiaxoç èçeaxriaav oftroç àitéo|3eoe Kai èçf|Xaoev ó (f>ópoç xò vánua.
ita K ko i Sè |iaxaioiç tcóvoiç Kai Setvaiç vóooiç Kai ôixnáxoiç (iavíaiç
jcepiéícecov oikffiç eiKÓvaç xôv ópa^évcov itpaynáxmv f) òyiç èvéypayev èv xôi
<j>povri(xaxi. Kai xà (ièv ôei|xaxoúvxa n ík X à |ièv jtapaXeíjcexai, õfioia S’ èoxi xà
raxpaXeiJiójieva oíájcep xà Xeyójxeva. (18) à X kà htjv oi ypa4(eíç õxav èk icoUôv
Fragmentos 45

prescrição dos medicamentos para a saúde do corpo. Na verdade,


assim como certos medicamentos expulsam do corpo certos
humores, suprimindo uns a doença e outros a vida, do mesmo modo,
de entre os discursos, uns há que inquietam, outros que encantam,
outros que atemorizam, outros que incutem coragem no auditório,
outros ainda que, mediante uma funesta persuasão, envenenam e
enfeitiçam o e spirite. 1 5 . E que fique dito: se ela se deixou
convencer pelo discurso, não agiu contra a lei; pelo contrário, teve
pouca sorte. Passo entretanto a expor a quarta causa com um quarto
argumento. Se foi realmente o amor que causou tudo isto, não será
difícil eximi-la da responsabilidade pela falta, que dizem ter cometido.
De facto, as coisas que nós vemos possuem uma natureza, não a
que nós queremos, mas a que foi atribuída a cada um. Pois bem!
Através da visão, a mente é afectada igualmente no seu
comportamento habitual. 16. Na verdade, sempre que a vista
contempla formações bélicas e 0 seu bélico uniforme, juntamente
com 0 seu bélico armamento de bronze e de ferro, tanto de defesa
como de ataque, logo ela se perturba perturbando a mente, a ponto
de muitas vezes, aterrorizadas, as pessoas fugirem do perigo
potencial como se ele fosse real. Com efeito, a forma habitual de
viver, garantida pela lei, é destruída pelo pânico provocado pela visão
que, entrando no espírito, provoca 0 desprezo quer daquilo que é
considerado nobre pela lei, quer daquilo que de vantajoso é trazido
pela vitória. 17. Há quem, tendo visto coisas terríveis, perca também
nesse preciso instante a presença de espírito face à situação que se
lhe apresenta. É assim que 0 medo bloqueia e destroi a lucidez.
Muitos caem em sofrimentos vãos, em doenças terríveis e em
loucuras incuráveis: de tal modo a vista grava no espírito as imagens
dos acontecimentos presenciados. E muita coisa pavorosa fica
omitida, mas 0 que é omitido é idêntico ao que é referido. 18. Por
outro lado, os pintores quando, a partir de muitas cores e corpos,

26 No Górgias de Platão surge igualmente este paralelismo entre os efeitos do


discurso no espírito e dos medicamentos no corpo.
46

Xpfflij.áT©v K ai o<ap.áxa>v i v o ô ji a K ai o x f j i a teXeífflç àjiep y áaro v x ai, xépJimxTi

tt]v õ y i v t] Sè x ê v àvôptávx® v sto írp iç K ai f| x ô v àyaÀjiáxiiíV è p y a o ía Géav


fjS eiav ícapéoxexo to í ç ô jjjia a iv . oírao t à p i v /.m e ív x à Sè nofteív JtécjroKe xfiv

óh|íiv. m X X à Sè koA Ioíç m X X ô v êprn a K ai nóBov èvepyáÇ exai rcpayp.áx©v K ai


offijiáxfflv. (19) e i ofiv xrâi xoí> 'AJieÇávSpoo c ó jia x i xò Trjç B A ivriç õjip,a fp 6 è v
jtp o ô u jiía v K ai ã ^ X k a v épmxcç xrji y-oxni raxpéSffiice, xí ecrajiaaxóv; ôç e i jxèv

8eòç ô v éxei Ô£fflv 6 e ía v S ú v ajiiv , r â ç à v ó f|aoü)v eir| xofixov àraccrao S ai K ai

à |it) v a o 6 a i Suvaxóç; e i 8’ èax iv àv G p ém v o v v ó c rrp a K ai y u x fjç á y v ó r p a , ov)%


é ç á[iápTTi|xa n e n irté o v àXX’ é ç àTÓ%Tpa v o jito té o v f^G e y à p , ó ç fjA,0e, xúxnç

à y p e ò n a a iv , at) yvótiTiç p o u te ú ij-a a iv , K a i èp o ro ç à v á y r a i ç , o ò xéxvrçç

TtapacrKenaíç.
(20) thdç aõv xpii ÔÍKaiov f|yrjoaa0ai xòv xrlç 'EÃivriç h®^ov, f|xiç elx’
èpaaGeioa eíxe ÀóycDi íceioGeíaa píat, àpm a0eiaa eíxe m ò Ôeíaç àváyicriç
ávayKaoOetoa E7tpaçev à èrcpaçe, raxvxoç Suxfjjetyei xqv aixiav;
(21) àífieí/lov xéh X òym ÔWK^eiav yuvaiKÓç, èvènetva xôi vó|KDi ôv
èGénriv èv àpxni xoô Àóyou- èjietpá&nv KaxaÀÍxiai |iíó|i,ou àSiKÍav Kai ôóçr|ç
àjiaBiav, èfkn)W|&nv ypá\|/ai xòv Ãóyov T&évnç |_ièvèyKÓjiiov, è|iòv Sè míyviov.
Fragmentos 46

acabam por modelar, com perfeição, um corpo e uma figura, deleitam


aí a vista: a produção de estátuas de homens e a criação de imagens
de deuses proporcionam aos olhos uma contemplação agradável.
Nestas condições é natural que a vista se aflija em relação a umas e
se apaixone em relação a outras. Por outro lado, múltiplos objectos
provocam em muita gente paixão e desejo em relação a muitas obras
e corpos. 19. Portanto, se o olhar de Helena sentiu afeição pelo corpo
de Alexandre e transmitiu à mente o combate de Eros, que há nisso
de estranho? Se ele é um deus, dotado da força divina dos deuses,
como poderia o mais fraco rejeitá-lo e afastá-lo de si? Se se trata
duma doença humana e dum erro de ignorância da mente, não há
que condenar isso como uma falta, mas julgá-lo como um infortúnio:
na verdade, aconteceu da forma que aconteceu, devido aos enredos
da fortuna e não aos conselhos da inteligência, devido aos
constrangimentos do desejo e não aos preparativos da arte. 20. Que
necessidade haverá, pois, de considerar justa a condenação de
Helena que, se fez o que fez por se ter apaixonado, por ter sido
persuadida pelo discurso, arrastada pela violência ou forçada pela
deusa da Necessidade, fica completamente ilibada da acusação?27
21. Com este discurso afastei a ignomínia que pesava sobre uma
mulher e permaneci fiel ao objectivo que fixei no início do discurso;
tentei destruir a injustiça duma censura e a ignorância duma opinião;
quis fazer deste discurso um elogio para Helena e um divertimento
para mim.

27 Górgias recapitula, pela ordem inversa, os motivos atrás enunciados, a partir dos
quais desenvolveu a sua argumentação. No parágrafo seguinte, e sempre fazendo
apelo à memória do auditório, ele recorda os objectivos do discurso referidos no
início (§2).

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