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CADERNOS DE CIÊNCIAS

SOCIAIS APLICADAS
UNIVERSIDADE estadual do sudoeste da bahia

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Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb
C129c Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas. Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Ciências Sociais (Nepaad). Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA).
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Ano 4, n. 5/6, jan./dez. 2006. - Vitória
da Conquista: Edições UESB, 2009.

Início: Janeiro 1998. Reinício: Janeiro 2005.


Semestral.
ISSN 1808-3102

1. Direito civil (Brasil) – Sistema processual único. 2. Pequenas e médias empresas –


Vitória da Conquista (BA) – Administração. 3. Liberalismo – Economia solidária. 4. Economia
– Juazeiro do Norte (CE). 5. Ovinocaprinocultura – Economia – Nordeste Brasileiro. 6. Economia
florestal – Brasil – Políticas públicas. 7. Ciências contábeis – Estudo e ensino (Superior) – Brasil.
8. Jornalismo – Discurso. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. II. T.

CDD: 346.81 - 658.022098142 - 338.981- 636.30981 - 634.980981 - 657.07 - 808.06607


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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

CADERNOS DE CIÊNCIAS
SOCIAIS APLICADAS

ISSN 1808-3102
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 3-316 2006
Copyright © 2009 by Edições Uesb
Todos os direitos desta edição são reservados a Edições Uesb.
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação de direitos autorais (Lei 9.610/98).

CADERNOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

Número 5/6 – jan./dez. 2006


Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais Aplicadas (Nepaad).
Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA)
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas é uma publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Ciências Sociais Aplicadas (Nepaad) – DCSA – Uesb. As opiniões expressas nos artigos,
tanto de docentes e técnicos da Uesb, quanto de convidados, ou mesmo de traduções e envios
espontâneos à redação, são da inteira responsabilidade dos seus autores.
É permitida a reprodução de parte ou total dos artigos, apenas para fins didáticos e para citação
em obras de interesse científico, desde que seja citada a fonte, ficando proibida a reprodução para
outros fins por qualquer meio natural ou eletrônico conhecidos.
Os enfoques temáticos integrantes da publicação dos Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas
abrangem 5 (cinco) áreas de conhecimento: Administração, Ciências Contábeis, Direito,
Economia, Comunicação Social e Áreas afins.

Comissão Administrativa
José Antonio Gonçalves dos Santos (Coordenador) - NEPAAD/DCSA
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Sumário

Editorial ........................................................................................................9

Nº 5, jan./jun. 2006

Direito

O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade


de um sistema processual único e multifuncional
Maria Soledade Soares Cruzes........................................................................13

A possibilidade da pessoa casada constituir união estável


Claudia de Oliveira Fonseca............................................................................33

Criminalística: origens, evolução e descaminhos


Rodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli.......................................43

Administração

Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas


empresas: um estudo com empresários de Vitória da Conquista – Bahia
Marcelle B. Xavier, Francisco dos Santos Carvalho, José Carlson G. da Silva,
Adriano Alves de Rezende e Marco Antônio de Araújo Longuinhos.................61

Um olhar sobre a reforma do estado brasileiro nos anos de 1990


Wilson da Silva Santos .................................................................................79
Economia

Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte-CE: uma


discussão a partir da qualidade de vida dos residentes
Wellton Cardoso Pereira, José Raimundo Cordeiro Neto, Clério Ferreira de Sousa,
Eliane Pinheiro de Sousa e Marcos Antônio de Brito .....................................97

As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto


econômico camponês dessa atividade no Nordeste brasileiro
José Raimundo Cordeiro Neto .....................................................................113

Ciências Contábeis

Metodologia do ensino superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis


Márcia Mineiro de Oliveira..........................................................................131

Comunicação

Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica


Flaviano Oliveira Fonseca.............................................................................151

A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites


enunciativos da comunicação
Henrique Oliveira de Araújo........................................................................169

Nº 6, jul./dez. 2006

Direito

Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no


cotidiano de uma unidade prisional
Odilza Lines de Almeida e Eduardo Paes-Machado.....................................189
Sociedade do risco e moderno direito penal: tendências da política
criminal no Brasil após a Constituição de 1988
Carolina Porto Nunes .................................................................................213

Aspectos da violência urbana


Itamar Rocha dos Santos..............................................................................237

Administração

O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema


capitalista e seus limites e desafios a uma proposta de economia solidária
Maristela Miranda Vieira de Oliveira..........................................................251

Economia

Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas públicas e


perspectivas de cenário econômico
João Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda ...........................265

Comunicação

Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso


jornalístico
Moisés dos Santos Viana, Lúcia Gracia Ferreira, Adriana Guerra Ferreira e
Sandra Lúcia da Cunha e Silva...................................................................279

O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais,


sociais e ambientais na prática jornalística
Moisés dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos............................297

Normas para apresentação de trabalhos........................................313


Editorial

Com mais estes dois números dos Cadernos de Ciências Sociais


Aplicadas, damos prosseguimento às publicações das áreas de
Administração, Ciências Contábeis, Direito, Economia e Educação e
Cultura em geral, contando com contribuições de vários pesquisadores,
tanto da instituição quanto externos, como resultado de produções
acadêmicas sólidas e críticas. Os artigos submetidos e aprovados para a
composição deste número abrangem assuntos de produção no campo
atual da educação e do seu desenvolvimento, da gestão, da comunicação,
da segurança, da realidade pluralista do ambiente jurídico, da logística,
da contabilidade e governança corporativa, da política e expansão
econômicas e do planejamento. A escolha dos trabalhos aconteceu no
ano de 2008, utilizando como critério de seleção não apenas o conteúdo
científico, mas também os valores humanos revelados e a variedade de
pensamentos e conhecimentos que integram o universo educacional e
a originalidade na investigação acadêmica.
Neste volume, em especial, por decisão do Comitê Editorial,
estamos condensando duas publicações num único fascículo, de forma
a permitir, por um lado, a economia dos recursos públicos, e, por
outro, a regularidade das publicações como variável importante para
a consolidação da revista científica. A compreensão é que a pesquisa
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 9-10 2009
10 Editorial

acadêmica, prática ou teórica, deve alicerçar-se na divulgação de uma


abordagem pluralista, desvinculada de uma visão unicamente dogmática
e teórica, mas disposta a tratar de temas que admitam a existência
concomitante de conteúdos acadêmicos diversificados, que, por sua
própria dinâmica, não podem ser apreendidas num único saber. É
uma postura epistemológica e metodológica não fundada apenas na
justaposição de idéias e métodos, mas também numa experiência na
investigação de insights e abordagens múltiplas que possam dar conta
da essência dos fenômenos das áreas, conectadas com o universo
amplo das ciências sociais nos seus diferentes domínios e campo
multidisciplinar.
Na expectativa de que os trabalhos publicados possam subsidiar
as atividades acadêmicas e ações administrativas em organizações
públicas e privadas, asseveramos que a publicação dos Cadernos de
Ciências Sociais Aplicadas, como uma divulgação que abrange a grande
área de Ciências Sociais do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Ciências Sociais Aplicadas (NEPAAD) – DCSA – UESB, está aberta a
sugestões e estimula a publicação de trabalhos que contribuam para a
investigação e esclarecimentos de aspectos fundamentais à ampliação
do conhecimento científico em geral, como estímulo ao debate para o
desenvolvimento administrativo, contábil, econômico, jurídico e social,
dentro da Universidade Pública, Gratuita e de Qualidade.

Comissão Administrativa
número 5
jan./jun. 2006
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise
da viabilidade de um sistema processual único e
multifuncional

Maria Soledade Soares Cruzes1

Resumo: O Sincretismo do Processo Civil Brasileiro é uma análise da


viabilidade de um sistema processual único e multifuncional, em contraposição
à sua clássica repartição em espécies, ditas autônomas. Nega a realidade
jurídica da autonomia dos “processos” de conhecimento, execução e cautelar,
reconhecendo a inevitável alonomia entre eles. Constrói, assim, a idéia de um
sistema processual único e composto das funções de conhecimento, execução
e cognição sumária urgente.

Palavras-chave: Sincretismo. Processo Civil. Brasil. Viabilidade.

The syncretism of the brazilian civil procedure: an analysis of the


viability of a unique and multifunctional procedure system
Abstract: The Syncretism of the Brazilian Civil Procedure is an analysis of the
viability of a unique and multifunctional procedure system, in contraposition
to its classic distribution in species, said autonomous. It refuses the legal reality
of the autonomy of the knowledge, execution and remedy “procedures”,
recognizing the inevitable dependence among them. It builds, in this way, the
idea of a unique procedure system and composed of knowledge, execution
and urgent summary cognition functions.
Keywords: Syncretism. Civil Procedure. Brazil. Viability.
1
Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Faculda-
de de Tecnologia e Ciências (FTC)/Vitória da Conquista, Bahia. E-mail: msolesc@hotmail.com
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 13-32 2009
14 Maria Soledade Soares Cruzes

Introdução

Quantas ações, processos e sentenças são necessários para


solucionar uma única lide?
Num plano ideal, se “uma” é a lide, deveria encadear apenas “uma”
jurisdição, “uma” ação, “um” processo e, consequentemente, “uma”
sentença – capaz de modificar a realidade dos fatos, se necessário.
Ocorre que esta não foi a sistemática adotada pelo Processo
Civil Brasileiro que, em seus moldes clássicos, viu-se repartido em três
espécies necessariamente distintas e autônomas: os “processos” de
conhecimento, de execução, e cautelar.
Eis o propósito do presente estudo: negar tal repartição,
desvendando e desmitificando os obstáculos ao inevitável reconhecimento
da alonomia entre os “processos”, a fim de que se construa a idéia de um
processo sincrético (aquele concebido como sistema processual único, e
no qual há uma miscigenação das funções jurisdicionais), investigando
a sua viabilidade no sistema Processual Civil Brasileiro.

A inevitável alonomia dos “processos” de conhecimento, de


execução e cautelar

A jurisdição é una por essência. Como bem ensina o professor


Theodoro Júnior (2002, p. 34), “a jurisdição, como poder ou função
estatal, é una e abrange todos os litígios que se possam instaurar em
torno de quaisquer assuntos de direito”.
Pois bem, o processo não é atividade por meio da qual se exerce a
função jurisdicional, como decorrência do exercício do direito de ação?
Sim. Então, por óbvio, se a jurisdição e a ação são unas, consequentemente,
o processo também o é, não podendo ser repartido.
É indiscutível que o Direito Brasileiro vigente foi estruturado
com base na idéia de autonomia entre os dois processos,
cognitivo e executivo. Tal se deu, até mesmo, pela inegável
influência das idéias de Liebman sobre nosso sistema processual.
Não nos parece, todavia, seja este o sistema adequado de lege
ferenda. A unicidade da jurisdição é inequívoca. [...]. Ora, em
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ... 15

sendo única a atividade jurisdicional, não parece razoável


afirmar a necessidade de dois [quiçá três] processos
distintos para que a tutela jurisdicional plena possa ser
prestada (CÂMARA, 2003a, p. 223-224, grifo nosso).

Assim, falar em repartição do processo em espécies autônomas


de conhecimento, execução e cautelar, constitui uma verdadeira afronta
à unidade da jurisdição, e se contrapõe ao clássico trinômio jurisdição –
ação – processo, sob o qual se alicerçou o Processo Civil Brasileiro.
É exatamente sob este fundamento de ordem lógica que surge a
idéia da alonomia processual. Ora, alonomia é exatamente o antônimo
de autonomia. Diz-se “alônomo” o “organismo que é dirigido por
estímulos provenientes do exterior” (SILVA et al. 1979, v. 1, p. 100).
Transpondo este conceito para o âmbito jurídico, a alonomia processual
seria, então, o reconhecimento da ineficiência dos “processos” que,
embora ditos autônomos, necessitam, em regra, um do outro para
cumprir o seu desiderato de resolução justa e efetiva do caso concreto
apresentado ao Estado, no exercício de seu poder jurisdicional.
Trata-se, na verdade, do primeiro (e significativo) passo rumo à
construção da idéia de um processo único, composto de funções – ou
atividades –, que, em regra, se entrelaçam com um fito principal: o
restabelecimento da ordem jurídica justa.

A irrealidade jurídica dos “processos” de conhecimento e de


execução em face de suas origens e tendências

Historicamente, a primeira das repartições do processo em


espécies autônomas foi entre “conhecimento” e “execução”. Como
bem relata Theodoro Júnior (1987), desde os primórdios do Processo
Civil Romano já se exigia ação e “processo” autônomos para a execução
da sentença condenatória proferida.
Contudo, no Direito Germânico, que passou a prevalecer após
a queda do Império Romano, embora individualista, iniciando-se pela
execução, não havia separação entre as atividades executiva e cognitiva,
sendo elas exercidas em um só processo.
16 Maria Soledade Soares Cruzes

Do confronto do Direito Germânico com o Romano, surgiu,


ainda na Idade Média, o direito comum ou intermédio, que conciliava os
aspectos positivos desses sistemas e também não aceitava a necessidade
de uma nova ação para que se chegasse à execução de uma sentença.

Fazia-se, assim, uma distinção até aquele tempo não aventada


pelos doutos, que era a existente entre a função cognitiva e
função executiva dentro da jurisdição e MARTINO DE FANO
concebia, então, a idéia de officium iudicius, que iria ser reconhecida
por todos os escritores do direito comum.
[...] Para o direito medieval, o officium iudicis, que provocou a
dispensa da actio iudicati nas execuções de sentença, compreendia
“todas as atividades que o juiz devia exercer naturalmente,
em virtude de seu ofício” (LIEBMAN, 1968, p. 53 apud
THEODORO JÚNIOR, 1987, p. 136, grifo nosso).

Ocorre que, após a Idade Média, o surgimento dos títulos de


crédito, aos quais foi reconhecida a eficácia executiva, impôs a necessária
diferenciação de dois procedimentos executivos: 1- o processo único
para as sentenças condenatórias; 2- o “processo” executivo contencioso
autônomo para os títulos executivos extrajudiciais.
Não obstante, as necessidades comerciais do século XVIII fizeram
com que as execuções calcadas em títulos extrajudiciais alcançassem maior
volume e relevância econômica do que as de sentenças condenatórias;
até que, em determinado momento, todo o “processo” executivo se
unificou, com exigida autonomia.
Ou seja, em decorrência da expansão de um instituto, o processo
abdicou ao seu avanço. Com efeito, não fosse por essa distorção histórica,
a idéia da dicotomia entre “processos” de conhecimento e de execução
jamais teria sido adotada pelo Direito Processual Civil Brasileiro. Ocorre
que, apesar das vozes que se levantaram2, ela foi abraçada pelo legislador
pátrio e, consequentemente, estudada pela doutrina, sob os seguintes
fundamentos:
2
A adoção não se deu de forma pacífica e tampouco unânime. Campos (1977, p. 311) – pouco
tempo após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1973 – registra que, entre os que
doutrinaram no sentido de ser a execução fase do processo estavam Gabriel de Rezende, Costa
Carvalho e outros, apoiados no pensamento de Eduardo Couture.
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ... 17

A evidência da autonomia do processo de execução pode ser


dada através dos seguintes fatos:
a) nem todo processo de conhecimento tem como consequência
uma execução forçada: o cumprimento voluntário da condenação,
por exemplo, torna impossível a execução forçada; e as sentenças
declaratórias e constitutivas não comportam realização coativa
em processo executivo;
b) nem toda execução forçada tem como pressuposto uma
sentença condenatória obtida em anterior processo de
conhecimento, haja vista a possibilidade de baseá-la em títulos
extrajudiciais;
c) os processos de cognição e execução podem correr ao mesmo
tempo, paralelamente, como se passa na hipótese de execução
provisória (THEODORO JÚNIOR, 2004, v. 2, p. 9)

O conhecimento é a expressão da atividade jurisdicional por


excelência. Não é possível “jurisdizer” sem conhecer. Neves (1997, p. 205),
chega a ponto de afirmar que o conceito de jurisdição não abarca outros
“processos” que não o de conhecimento. Neste diapasão, Bermudes (2002,
p. 94), ao comentar o “processo” de conhecimento, afirma que “as duas
outras espécies, autônomas embora, são tributárias dele”.
Ora, se são “tributárias” e sendo inegável a interdependência,
certamente não há de se falar em autonomia. Mas, analisando os
argumentos nos quais ela se sustenta, poder-se-ia questionar: seria a idéia
de um “processo” de conhecimento puro um fundamento plausível para
a autonomia entre os “processos” de conhecimento e de execução?
Para que se possa responder com eficácia a tal questionamento,
há de se averiguar a tradicional classificação das ações de cognição
em declaratórias, constitutivas e condenatórias, cujo critério distintivo,
segundo Liebman (2003, p. 157), “é dado pelo efeito característico próprio
da sentença correspondente a cada categoria de ação”. Segundo esta
classificação, a tutela condenatória é a única que necessita de um novo
“processo” para cumprir seu desiderato, qual seja, o cumprimento de um
comando que imponha uma prestação a ser cumprida pelo réu, indo além da
mera declaração do direito. Já a declaratória e a constitutiva formam a idéia
de um “processo” de conhecimento puro, encerrando-se numa só fase.
18 Maria Soledade Soares Cruzes

Pois bem, sob a égide de um processo único, composto das “fases”


de conhecimento e de execução, e sendo necessária apenas a primeira
fase para que se garanta às partes o efetivo e justo desenvolvimento
e conclusão da atividade jurisdicional, para que seria necessária uma
segunda fase? Para nada, por óbvio. Não é porque se dispensa uma
segunda ou uma primeira fase que há de se dividir um instituto em
espécies, enchendo-o de percalços e de vãs repetições que de nada
auxiliam no regular, célere e efetivo desenvolvimento da atividade
jurisdicional. Ou seja, a resposta à questão posta é não, definitivamente
a idéia de um “processo” de conhecimento puro – constitutivo e
declaratório – não é argumento forte o suficiente para sustentar a
autonomia dos “processos”.
Além disso, é imprescindível observar que os outros argumentos
que sustentam esta relação de autonomia também podem ser postos em
prova ante a nova realidade doutrinária e legal do Direito Processual Civil
Brasileiro, em especial no que tange à evolução que se deu no campo das
sentenças condenatórias decorrentes do juízo cível. Foi este exatamente
o objeto de estudo do professor Theodoro Júnior, ao desenvolver como
tese para o seu doutoramento em Direito Constitucional na Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, o tema “A execução
de sentença e a garantia do devido processo legal”, do qual concluiu:

[...] Houve, historicamente, longos períodos do direito processual


em que essa dicotomia entre o conhecimento e a execução
inexistiu, mesmo entre os povos que hoje a consagram. [...]. Aqui
mesmo, dentro de nosso sistema processual, grande é o número
de procedimentos especiais que fogem do padrão dicotômico,
para adotar o unitário (despejo, possessório, depósito, etc.); e o
mais interessante é que são eles os que melhor desempenham a
função de, rápida e adequadamente, compor os litígios deduzidos
em juízo. Por que não generalizar o sistema? (THEODORO
JÚNIOR, 1987, p. 256, grifo nosso).

Em 1994, o Legislativo brasileiro, atento à inquietude dos


processualistas, que clamavam por uma maior efetividade do processo,
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ... 19

deu o considerável passo inicial rumo à convocada generalização.


A primeira grande Reforma do Código de Processo Civil de 1973
introduziu, em seu art. 461, a previsão da tutela específica3 das obrigações
de fazer e não-fazer, rompendo-se com um dogma, na medida em que
se permitiu que o devedor inadimplente, a partir de então pudesse sofrer
a sanção no próprio “processo” de conhecimento, independentemente
de uma nova relação processual.
Destarte, tais inovações trouxeram consigo a previsão das ações
mandamentais e das executivas lato sensu, duas espécies de ações que
não se enquadram na repartição clássica entre as de conhecimento e
execução. Configuram verdadeiros pontos de interseção que dispensam
“processo” executivo ex intervallo para a garantia do efetivo provimento
jurisdicional.
Assim, ante esta bem sucedida modificação, foi promulgada a Lei
nº 10.444/2002, um dos instrumentos representativos da segunda grande
Reforma do Código de Processo Civil (CPC), que estendeu a aplaudida
tutela específica das obrigações de fazer e não fazer às obrigações de
dar, introduzindo o art. 461-A no referido diploma processual.
Recentemente, essa tendência abolicionista do “processo” de
execução deu mais um passo significativo com a publicação da Lei nº
11.232/2005 que alterou o CPC, retirando, definitivamente, a liquidação
e a execução da sentença cível do Livro II do Código (que trata de tal
“processo”) e as incorporando ao Livro I, que diz respeito ao “processo”
de conhecimento. Desse modo, a liquidação de sentença foi reduzida a
um “mero incidente procedimental” (SHIMURA, 2005, p. 243), e foi
alterada toda a sistemática dos provimentos condenatórios, com o fito
de “tornar a execução de sentença como mera fase, subsequente à fase
do conhecimento, amalgamando num único processo as duas atividades,
cognitiva e satisfativa” (p. 242).
Com essas relevantes alterações estruturais, o conceito de
sentença, que já despertava intermináveis discussões doutrinárias e
jurisprudenciais, por conta da antiga redação do §1º do art. 162 do
CPC, passou a ser ainda mais debatido. Sem adentrar especificamente
3
Obtenção do mesmo resultado que teria caso a obrigação fosse cumprida espontaneamente.
20 Maria Soledade Soares Cruzes

nesta celeuma, acata-se no presente estudo, o entendimento de Câmara


(2006, p. 24), segundo o qual, “a sentença do direito processual civil
brasileiro continua a ser o que sempre foi: o ato do juiz que põe fim
ao ofício de julgar, resolvendo ou não o mérito da causa”. Assim, a um
único processo, uma única sentença.
Feita essa consideração conceitual e conhecida essa nova realidade
alônoma das sentenças condenatórias provenientes do juízo cível, alguns
questionamentos podem ser vislumbrados: Os demais títulos executivos
judiciais (previstos no novel art. 475-N do CPC) e os extrajudiciais
(previstos no art. 585 do mesmo código) seguiram esta evolução? São
exceções, ou entraves, para o reconhecimento da completa alonomia
processual?
Seguindo as novidades acima delineadas, Shimura (2005, p. 245,
grifos do autor) dividiu os títulos executivos judiciais em dois grupos
distintos, o dos provenientes de um juízo cível de primeiro grau e o dos
que dele não provêm:

De conseguinte, dá-se a fusão de dois processos em uma única


relação processual (sincretismo processual), pelo menos quando
o título executivo judicial se consubstanciar em sentença
condenatória proferida no processo civil, sentença homologatória
de conciliação, transação ou acordo extrajudicial, e o formal ou
certidão de partilha.
Quer dizer, continuará havendo processo autônomo de execução
quando o título executivo judicial for sentença penal condenatória
transitada em julgado, sentença arbitral ou sentença estrangeira,
homologada pelo Supremo Tribunal Federal [leia-se: Superior
Tribunal de Justiça, em face da modificação trazida pela EC nº
45/2004], caso em que se exige, como ainda hoje vigora, ordem
de citação do devedor, no juízo cível, para liquidação ou execução,
dependendo da hipótese.

Como se pode observar, segundo a atual sistemática do CPC, já


se pode qualificar como parcialmente autônomo o “processo” executivo
calcado em título executivo judicial, uma vez que a autonomia se restringe às
hipóteses previstas nos incisos II, IV e VI do art. 475-N daquele código.
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ... 21

Já os títulos executivos extrajudiciais, apesar de terem sido


submetidos a uma plausível reformulação pela Lei nº 11.382/2006 (que
simplificou, consideravelmente, o seu procedimento) permaneceram
como fundamento da autonomia do “processo”, regulando-se pelo
Livro II do CPC.
Esclarecidas essas premissas, é chegado o momento de responder
ao questionamento posto: Não, definitivamente, os títulos extrajudiciais
e os judiciais que ainda necessitam de “processo” autônomo não
configuram nem exceções e nem entraves ao reconhecimento da
completa alonomia processual. É que, em regra, o processo se inicia com
o conhecimento e deságua na execução. São suas duas fases tradicionais.
Sendo, entretanto, dispensada a primeira fase, há de se instituir outra
espécie de “processo”? Não, isto não se coaduna com a idéia de um
processo único. Seria, sim, apenas um “ultrapassar de fases”, ou seja, não
havendo necessidade da primeira, passa-se diretamente à segunda.
É exatamente neste sentido que caminha Ramos (2006, p.
119-120):

Ora, qual a funcionalidade atual do Livro II (processo de


execução) se a tendência dos tribunais brasileiros é no sentido
de aceitar ação condenatória mesmo que o respectivo autor já
disponha de título extrajudicial – o que obviamente ocorre pelo
fato de o CPC nada impor em sentido contrário -, e se atualmente
o sistema processual positivo tem meios de tornar mais efetiva
a tutela jurisdicional executiva pelos caminhos do art. 461
e 461-A? Resposta: não há no sistema nada que impeça o
portador de título executivo extrajudicial de valer-se de uma ação
que viabilizará a tutela jurisdicional satisfativa, e mais efetiva,
nos termos do art. 461 ou do art. 461-A do CPC, inclusive em
relação à prestação pecuniária, que obviamente não deixa de
ser uma obrigação de entrega (obrigação de dar coisa certa,
no caso, dinheiro).
[...] penso que as técnicas de tutela jurisdicional atualmente
previstas no Livro I podem ser utilizadas sem que seja necessária
a utilização do procedimento da execução contra devedor
solvente prevista.
22 Maria Soledade Soares Cruzes

Como se pode observar, o autor derruba com maestria os entraves


apresentados neste estudo, ao entender que, além da Lei nº 11.232/2005
ter acabado com o processo de execução calcado em qualquer título
executivo judicial, o Livro II, que estaria reservado aos extrajudiciais,
deve ser definitivamente abolido do CPC. Com efeito, é perfeitamente
compatível com o sistema atual a aplicação das técnicas do Livro I aos
títulos executivos extrajudiciais.
Eis uma idéia digna dos mais sinceros aplausos; uma verdadeira e
genuína constatação da irrealidade jurídica da autonomia dos “processos”
de conhecimento e execução no Processo Civil Brasileiro, consagrando-
se a inevitável alonomia dos mesmos.

O combalido “processo” cautelar

Bem, afora a bipartição acima analisada, o Direito Processual Civil


Brasileiro reconheceu, ainda, um terceiro gênero, o “processo” cautelar,
concebido com a finalidade de garantir o seguro e efetivo desenrolar do
“processo” principal, assegurando a utilidade do seu resultado.
Como bem relata Neves (1997, p. 205-206), diferente do que se
deu com os “processos” de conhecimento e de execução que passaram
por uma verdadeira evolução, esta espécie processual demonstra-se
enfraquecida desde a sua essência.
A verdade é que o “processo” cautelar configura um acessório,
um apêndice dos demais “processos”, tendo sido, equivocadamente,
erigido ao cargo de tertium genus. Ele não vive por si, estando sempre na
dependência da propositura de outra relação processual, no seio da qual
poderia ser desenvolvido, seja em sua abertura, seja de forma incidental,
sem a necessidade de um novo “processo”.
Neste diapasão, cumpre ressaltar que, embora não se compartilhe,
no presente estudo, da idéia de um processo repartido em espécies, se
os processualistas optaram por dividi-lo, exigência, no mínimo lógica,
seria que ele figurasse, no dizer de Câmara (2003b, p. 01), como um
“segundo gênero” (e não como “terceiro”).
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ... 23

Mas, apesar dos seus percalços teóricos, as medidas cautelares se


expandiram de tal forma que os tribunais passaram a se deparar com
distorções como as “ações cautelares satisfativas”, com fundamento
no art. 798 (poder geral de cautela). É que a doutrina e os tribunais
haviam atribuído à tutela cautelar a natureza de não-satisfatividade e o
procedimento ordinário era dotado de uma complexidade que não o
tornava capaz de efetivamente satisfazer os direitos do jurisdicionado.
Ou seja, havia uma nuvem cinzenta a ser preenchida: a das “medidas
sumárias satisfativas” (MARINONI, 2002, p. 119).
Foi assim que, para cessar os questionamentos, a Reforma do
Código de Processo Civil de 1994 (arts. 273 e 461) criou a possibilidade
da antecipação da tutela no próprio “processo” de cognição ou de
execução, buscando-se, desse modo, ampliar a cobertura das tutelas de
urgência e estabelecer objetos distintos a serem assegurados pela cautelar
e pela antecipação de tutela. Segundo Marinoni (2002, p. 124), a primeira
teria por fim assegurar a viabilidade da realização de um direito, não
podendo, entretanto, realizá-lo; haveria de servir, sempre, como objeto
de referibilidade a um direito acautelado. A outra, por sua vez, ainda
que calcada em um juízo de aparência, seria “satisfativa sumária”, ou
seja, satisfaria diretamente o direito pleiteado.
Contudo, embora plausível tal tentativa, a distinção no cotidiano
forense não se revelou tão simples. Não obstante, a introdução, pela Lei
10.444/2002 (CPC, art. 273, § 7º), da fungibilidade entre as medidas
urgentes, de modo que a cautelar possa agora ser concedida a título de
tutela antecipada, no bojo do próprio “processo” de conhecimento, pôs
um ponto final na questão.
Cumpre observar que, em que pese a tentativa de Dinamarco
(2003, p. 92) de ampliar tal fungibilidade4, acata-se, no presente estudo, o
posicionamento de Theodoro Júnior (2001, p. 94), ao ressaltar que ela é, na
verdade, de mão única (apenas da tutela antecipada no que tange a cautelar,
e não, em sentido inverso). “De fato, a simples leitura do novo § 7º do art.
4
Trata-se da pretensa “fungibilidade de mão dupla”, assim explanada por Dinamarco (2003, p.
92): “O novo texto não deve ser lido somente como portador da autorização a conceder uma
medida cautelar quando pedida a antecipação da tutela. Também o contrário está autorizado, isto
é: também quando feito um pedido a título de antecipação de tutela, se esse for seu entendimento
e os pressupostos estiverem satisfeitos. Não há fungibilidade em uma só mão de direção”.
24 Maria Soledade Soares Cruzes

273 nos leva a concluir que não está permitida a fungibilidade ‘progressiva’:
de providência cautelar para medida antecipatória, esta mais rigorosa do que
aquela” (RODRIGUES; JORGE; DIDIER JR., 2003, p. 90).
É que, a tutela antecipada é incidental, seja no “processo” de
conhecimento, seja no de execução, ao passo que a cautelar se dá em
“processo” autônomo. Então, por que instituir um novo “processo”
(com todos os ônus a ele inerentes5), se o objeto pleiteado pode
ser efetivamente desenvolvido no próprio bojo do principal? Seria
consideravelmente desnecessário.
É neste contexto que surgem os seguintes questionamentos:
“Processo Cautelar: ainda é útil?” (DIDIER JR., 2005); “é o fim do
processo cautelar?” (RODRIGUES; JORGE; DIDIER JR., 2003, p. 87).
Analisando o ordenamento jurídico brasileiro vigente poder-se-ia afirmar
que, se não é o fim, é ao menos um grande indicativo; uma verdadeira
demonstração de que é viável a sobrevivência do Processo Civil Brasileiro
sem a necessidade de um “processo” cautelar autônomo.
Mas, há doutrinadores brasileiros que entendem que ainda
restaram alguns resquícios da autonomia do “processo” cautelar:

Pelo que ora visualizamos, restarão ao processo cautelar


autônomo duas únicas utilidades: a) como ação cautelar
incidental (art. 800 do CPC), tendo em vista a necessária
estabilização da demanda acautelada (arts. 264 e 294 do CPC),
que já fora ajuizada, e também como forma de não tumultuar o
processo com o novo requerimento; b) nas hipóteses em que a
ação cautelar é daquelas que dispensam o ajuizamento da ação
principal, exatamente porque não se trata de medida cautelar
(exibição – arts. 844 e 845 do CPC; caução – arts. 826 a 838
do CPC), ou porque não se trata de medida cautelar constritiva
(produção antecipada de provas, arts. 846 a 851 do CPC).
RODRIGUES; JORGE; DIDIER JR., 2003, p. 87-88).

Ora, eles apontam como solução para este primeiro resquício,


“a criação de dispositivo normativo que expressamente autorize
a formulação ulterior de pedido cautelar, nos mesmos autos da
5
Petição inicial, custas, defesa, provas, recursos etc.
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ... 25

demanda de conhecimento” (RODRIGUES; JORGE; DIDIER JR.,


2003, p. 87-88).
Mas, o exercício da função jurisdicional de cognição sumária
urgente, não-satisfativa, não há de tumultuar o andamento do processo,
e nem o exercício das demais funções. Pelo contrário, as partes poderão
resolver o motivo da urgência dentro de uma mesma relação processual.
Então, o que seria mais benéfico aos jurisdicionados: a instituição de
uma nova relação processual ou a discussão de uma questão incidental
como uma função/atividade do magistrado (sendo, assim, garantida a
celeridade que a urgência pugna)? Certamente, a segunda opção.
Desse modo, ousa-se discordar da sugestão dos doutrinadores
Abelha Rodrigues, Cheim Jorge e Didier Jr., para afirmar que a visão
do processo em funções já é, por si, capaz de solucionar esse primeiro
empecilho, sem a necessidade da criação de um novo instituto, e nem
de uma nova relação processual.
No que tange ao segundo resquício, o que aparenta tratar-se de
um “processo” cautelar puro, é na verdade, medida satisfativa, havendo
de se falar, portanto, em tutela antecipada. Ora, se a tutela jurisdicional
se satisfaz em uma mera antecipação de tutela, ótimo! O processo há
de se encerrar em uma só fase, ou melhor, através do exercício de uma
única função jurisdicional.
Assim, desarticulados os possíveis resquícios, acata-se, a exemplo
do que se fez no item anterior, a sensata sugestão de Ramos (2006, p.
114), segundo o qual, “o processo civil brasileiro não perderia em nada se
uma eventual lei de Reforma simplesmente derrogasse o CPC no tocante
aos dispositivos de seu Livro III”. Às suas idéias, mais uma vez, sinceros
aplausos! É o completo reconhecimento da alonomia dos “processos”
de conhecimento, de execução e cautelar.

A idéia de um sistema processual único e multifuncional

O termo “sistema” traduz a idéia de miscigenação, harmonia,


coordenação, enfim, processo. As partes que integram um sistema hão
26 Maria Soledade Soares Cruzes

de ser coordenadas, interdependentes e acopladas por meio de aspectos


de ligação que as tornam indissociáveis, formando um todo harmônico
e coordenado6.
Ocorre que, como restou relatado, o Processo Civil Brasileiro
foi estruturado como um conjunto de “processos” (de conhecimento,
de execução, e cautelar); de modo que, o que era para constituir um
todo harmônico traduz-se numa contraditória repartição em sistemas
autônomos entre si, atribuindo-se a cada um, fim próprio.
É chegada a hora de restabelecer a ordem natural das coisas,
negando a autonomia ou independência dos “processos” de
conhecimento, de execução e cautelar, e unificando, definitivamente, o
sistema processual. Trata-se, pois, no apropriado dizer de Ramos (2006,
p. 112), de um “movimento de ruptura”.
É este o caminho que parece trilhar Zavascki (2000, p. 09), quando
observa a relatividade da segmentação do processo em espécies:

Tutela de conhecimento, tutela executiva e tutela cautelar


constituem, nos moldes clássicos acima reproduzidos, as
três espécies de tutela jurisdicional e com base nelas é que
também o legislador brasileiro de 1973 formulou a estrutura do
sistema processual civil: a cada espécie de tutela correspondem
“processo”, “ações” e “procedimentos”, com seus princípios e
normas próprias e separados em Livros específicos.
Está longe de ser absoluta, entretanto, em nosso sistema, a
segmentação da tutela jurisdicional, consideradas as espécies
clássicas acima elencadas.

Ousa-se ir além: tal segmentação, além de ser relativizada,


deveria ser abolida do sistema processual civil brasileiro, pois com ele
é, definitivamente, incompatível.
Contudo, a questão não se resume ao indubitável reconhecimento
da idéia de um sistema processual civil único no direito brasileiro.
Envolve, essencialmente, a busca por uma melhor forma de se organizar
este sistema. Assim, em busca de uma solução ideal, duas opções (ou
6
Neste sentido, ver: Bueno (1996, p. 609), Silva et al. (1979, v. 2, p. 1609) e Cunha (1996, p.
728).
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ... 27

critérios organizacionais) parecem, inicialmente, viáveis: 1) a multiplicação


de fases processuais; 2) a multifuncionalidade processual.
A primeira consiste na concepção de um processo único,
desenvolvido num desenrolar de fases (o conhecimento, a execução
e a cognição sumária urgente), na busca da justa solução para a lide
apresentada ao Estado-juiz. Este critério resolveria, facilmente, a questão
da repartição do processo, no que tange às argumentações acerca dos
“processos” de conhecimento, execução e cautelar puros.7
Mas, quando se dá uma miscigenação de fases, quebrando a
linearidade natural do processo, melhor se faz recorrer à sua visão como
um conjunto de funções jurisdicionais a serem exercidas pelo Estado-
juiz a fim de que se garanta ao jurisdicionado um devido processo legal.
Nesta visão, o juiz há de exercer suas funções apenas quando necessárias
à resolução da lide, sejam elas concomitantes, antecedentes ou únicas
(bastando-se por si mesmas).
A multifuncionalidade, como critério organizacional, satisfaz,
assim, a todo e qualquer questionamento contrário à reunião dos
“processos” tidos como autônomos no atual sistema processual
brasileiro 8. E o que se entende como viável para uma possível
implantação desta idéia no Direito Processual Civil é algo que se coadune
com a noção de: função de cognição (ou conhecimento), de execução
e cognição sumária urgente.
Não se manteve, propositadamente, para a terceira função
jurisdicional, a mesma nomenclatura e objetivo do “processo” cautelar,
como se deu nas funções de conhecimento e de execução. É que, como
se viu, o “processo” cautelar é uma medida de cognição sumária e de
caráter urgente, que serve para assegurar o regular andamento do feito
principal, não sendo, portanto, satisfativa. Já a antecipação da tutela,
embora também seja de cognição sumária e urgente, tem um cunho
satisfativo. São, pois, “técnicas processuais distintas embora possuam
uma mesma função” (DIDIER JR., 2005). Ou seja, fazem parte de
7
Argumentações já refutadas neste estudo.
8
Neste ponto, faz-se mister esclarecer que, em que pese não ser o melhor critério para a resolução
de algumas celeumas em torno da autonomia dos “processos”, o critério de desenrolar de fases
deve ser utilizado subsidiariamente, como reforço da multifuncionalidade.
28 Maria Soledade Soares Cruzes

um mesmo gênero, que possui como única função jurisdicional: a da


cognição sumária urgente; podendo o juiz exercê-la em caráter satisfativo
(antecipação) ou conservativo (cautelar).9

A viabilidade do sincretismo no processo civil brasileiro

Silva (1979, v. 2, p. 1603, grifo nosso) sintetiza os diversos


significados atribuídos ao termo “sincretismo”:

Sincretismo, s.m. (gr. sugkretismos). 1. Filos. Sistema que combinava


os princípios de diversos sistemas. 2. Amálgama de concepções
heterogêneas; ecletismo. 3. Gram. Fenômeno de uma forma
linguística ou de uma desinência acumular várias funções.

Transpondo-se essas idéias para o Direito Processual Civil10,


pode-se concluir que o seu sincretismo consiste em unificar os diferentes
sistemas processuais aos quais foi conferida autonomia, formando um
sistema processual único, no qual as funções (cognição sumária urgente,
conhecimento e execução) se entrelaçam harmonicamente.
Assim, após uma análise em torno de cada espécie de
“processo”, concluindo-se pela alonomia dos mesmos (em face
das recentes reformas); uma vez esclarecidas as noções de sistema
processual único, de multifuncionalidade; e por fim, de Sincretismo
do Processo Civil, há de se considerar que é, sim, viável o Sincretismo
do Processo Civil Brasileiro.
Neste sentido se manifesta Câmara (2003b, p. xxi, grifo nosso),
que ao aplaudir a Reforma advinda de Lei 10.444/2002, afirma:

[...] aquela foi responsável por uma verdadeira revolução


processual, na medida que diminui muito a desarrazoada
necessidade que anteriormente tínhamos de multiplicar
processos para solucionar uma única causa. Agora, com a
possibilidade de reunir em um só processo cognição e execução,
9
Dinamarco (2004, p. 59, grifo do autor) lembra que esta “é a postura do Código de Processo Civil
italiano, que, na moderníssima versão decorrente das sucessivas alterações por que passou nos anos
noventa, encerra a seção destinada aos procedimentos cautelares (arts. 669-bis ss.) com uma norma geral
destinada às medidas de urgência atípicas, as quais poderão ser, segundo opinião generalizada em
doutrina, conservativas ou antecipatórias”.
10
Como o fez o professor Dinamarco (2002) em sua clássica obra “Execução Civil”.
O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ... 29

bem como por ser possível obter, em um só processo, tutela


cautelar e tutela satisfativa, o direito processual civil brasileiro dá
mais um passo adiante em busca de sua plena efetividade.

Vale a pena conferir, igualmente a síntese de Abelha Rodrigues,


Cheim Jorge e Didier Jr (2003, p. 86-87, grifo nosso):

O processo de conhecimento, que com a Reforma de 1994 já


havia recebido grandes doses de efetivação e asseguração (a
própria antecipação da tutela, que possui funções executiva e de
segurança), com essa nova mudança atingiu a quase-plenitude
do sincretismo das funções jurisdicionais: na própria relação
jurídica processual com função cognitiva, podem ser alcançadas
a tutela cautelar e a tutela executiva. Observando-se o quadro
de mudanças legislativas, notadamente no que diz respeito ao
incremento da tutela diferenciada das obrigações de dar coisa
distinta de dinheiro, fazer e não fazer pode-se tranquilamente
identificar uma tendência inexorável de nossa legislação: a
unificação dos “processos”. Com o claro objetivo de acabar com
a vetusta exigência de que, para cada função jurisdicional, uma
relação jurídica processual própria, transforma-se a relação jurídica
processual de conhecimento, que passa a ter a característica da
“multifuncionalidade”. Aplausos.

Mais audacioso, ainda, se mostra o pensamento de Ramos (2006,


p. 111-112, grifos do autor):

Em miúdos: penso que não é mais legítimo pensar em


“processo” de conhecimento, de execução ou cautelar, dado
o prejuízo que isso causou à própria funcionalidade do direito
processual; processo é atividade de poder representada na relação
processual – rectius, num único “processo” – seja realizada ora
atividade cognitiva, ou atividade executiva, ou atividade cautelar,
o que variará de acordo com o momento procedimental e com a
tutela jurisdicional pretendida e adequada ao caso concreto.

Em suma, como se pode observar, o Sincretismo do Processo


Civil Brasileiro já é reconhecido pela doutrina brasileira como
perfeitamente viável e é, sem sombra de dúvidas, o melhor caminho para
30 Maria Soledade Soares Cruzes

os jurisdicionados e para o Estado. Inviável é se prender a distorções


históricas, formalismos desnecessários e infrutíferas repetições.

Considerações finais

Reconhecendo a absoluta alonomia entre os “processos” e tendo


em mãos um critério organizacional eficiente (a multifuncionalidade)
pode-se romper com o dogma clássico da repartição, para ceder espaço
à idéia de um sistema processual único, no qual, o Estado-juiz exercerá
as funções que entender necessárias para a efetiva resolução do caso sub
judice, de acordo com um juízo de oportunidade e eficiência.
Assim, conferindo-se ao juiz a liberdade de miscigenar conhecimento,
execução e cognição sumária urgente, constrói-se a idéia do Sincretismo do
Processo Civil Brasileiro, sob a égide da esperança de que esta construção
não haverá de se reduzir a um utópico projeto arquitetônico. Com efeito,
sonha-se com o dia em que as necessidades da vida hão de superar o
artificialismo dos dogmas processuais. Viável, a idéia é sim!

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Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
A possibilidade de a pessoa casada constituir união estável

Claudia de Oliveira Fonseca 1

Resumo: A família brasileira sofreu grandes transformações após o


reconhecimento da união estável como entidade familiar pela Constituição de
1988, que facilitou a sua conversão em casamento. Apesar da grande divergência
entre doutrina e jurisprudência sobre o tema, o código civil contribuiu para
mitigar as dúvidas daí advindas, ao disciplinar a união estável e sua conversão
em casamento.

Palavras-chave: Casamento. Família. União Estável.

The possibility of the married person to constitute steady union

Abstract: The brazilian family suffered big transformations after the


Constitution Brazilian about recognition stable union while home circle, making
easy its conversion in marriage. Despite numberless divergences in doctrine
and jurisprudence about it, the civil code contributed to mitigate this doubts,
treating about stable union when don’t is possible marriage.

Keywords: Marriage. Family. Stable Union.

1
Pós-graduada em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC–MG).
Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: claudiaof@uesb.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 33-42 2009
34 Claudia de Oliveira Fonseca

Introdução

A Constituição Federal (CF) de 1988 contemplou expressamente


em seu artigo 226 a união estável como forma de constituição da família,
ao lado do casamento e da família monoparental (aquela constituída
pela convivência de qualquer ascendente com qualquer descendente).
Com o código civil de 2002, a matéria foi consolidada, e em seus artigos
1.723 a 1.727 foram trazidas algumas normas reguladoras da entidade
familiar, o que ocasionou divergências na doutrina, com consequentes
reflexos na jurisprudência pátria, como se verá a seguir.
O presente artigo trata da possibilidade de a pessoa casada viver
em união estável com outrem, possibilidade contemplada na legislação
vigente.

Evolução das relações familiares

A sociedade sofre transformações instantâneas e o Direito, como


instrumento de controle social, deve (deveria) acompanhar essa evolução
social. Mas o Direito não tem a mesma velocidade de transformação
experimentada pela sociedade em seus usos e costumes. Afirma Gobbo
(2000) que “dos vários ramos do direito, sem dúvida, o Direito de
Família é dos ramos mais dinâmicos, porque seu objeto de estudo – a
família – tem por sujeito o ser humano, dinâmico por natureza”. Desse
modo, a legislação precisa acompanhar, ainda que de forma mais lenta,
as mudanças ocorridas nesse campo.
Isso ocorre, afirma Hironaka (1999), porque a família é uma
entidade histórica, interligada com os rumos e desvios da história,
ela mesma mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a
arquitetura da própria história através dos tempos.
A fisionomia da família mudou, e isso não significa o fim da
clássica forma de família nuclear, mas que já não pode servir como
único paradigma para a sociedade do futuro pelo surgimento de outras
e variadas estruturas familiares, afirma Grisard Filho (2003).
A possibilidade de a pessoa casada constituir união estável 35

O código civil de 1916 somente admitia como entidade familiar


aquela instituída pelo casamento, livre de impedimentos e cumpridas as
formalidades legais. Ou seja, o matrimônio era o único laço legítimo e
legal de constituir família e apenas quem era ligado por tal vínculo tinha
proteção do Estado, diz Gobbo (2000). Tal concepção, reafirma a autora,
era fruto da influência sociorreligiosa, por meio da qual se via o casamento
com claro interesse de continuidade da família, em que os envolvidos
tinham seu papel bem definido: o homem era o provedor, responsável
pelo sustento da família, e a mulher, mera reprodutora, restrita ao ambiente
doméstico, à administração da casa e à criação dos filhos.
De 1916 até 1988, pouca ou nenhuma alteração houve nesse
contexto. Mas, com o advento da Constituição e o consequente processo
de constitucionalização2 do direito de família, aqueles antigos institutos
regulamentados pelo código civil de 1916 ganharam nova roupagem.
O direito de família, sem dúvida, foi objeto de grande transformação,
pois a constitucionalização das relações familiares promoveu, segundo Dias
e Pereira (2002), uma “nova ordem de valores, privilegiando a dignidade
da pessoa humana, realizando verdadeira revolução no direito de família”
e possibilitando, assim, o reconhecimento, como entidade familiar, de
relações não instituídas pelo casamento.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, tratou
do reconhecimento estatal à união estável entre homem e mulher,
considerada como entidade familiar. Além disso, reconheceu também
como entidade familiar a família monoparental.3
Desde que o texto constitucional retirou a união estável do
alcance da sociedade de fato, para dar-lhe o status de entidade familiar,
seguramente ocorreu grande evolução no direito de família. Dessa
forma, conforme Trevisan (2004), a família passa a ser um fato natural
– e por ser o casamento uma convenção social já não se pode distinguir
a família pela existência do matrimônio, solenidade que deixou de ser
seu único traço diferencial.
2
Constitucionalização é a expressão usada pelos doutrinadores na aplicação de preceitos da Cons-
tituição Federal de 1988 nas relações familiares.
3
Art. 226, § 4º da CF: “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes”.
36 Claudia de Oliveira Fonseca

União estável – requisitos para sua constituição

A união estável é a convivência não adulterina nem incestuosa,


duradoura, pública e contínua, entre um homem e uma mulher, sem
vínculo matrimonial, como se casados fossem, sob o mesmo teto ou não,
constituindo, desse modo, família de fato, diz Azevedo (2000). Para que
a união assim se caracterize, não pode haver impedimentos à realização
do casamento, tais como os previstos no artigo 1.521 do código civil –
não se aplica, porém, a incidência do inciso VI4 desse artigo no caso de
a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
É facilmente perceptível que a família moderna não necessita
do contrato solene denominado “casamento” para sua constituição
e existência, diz Almeida (1998). Nisto reside, segundo entendimento
do doutrinador, a natureza sociojurídica da união estável: fato gerador
alternativo e natural da família. Hoje reconhecida como entidade
familiar5, a união estável, que no passado possuiu a denominação de
“concubinato”, do latim cum cubare, sempre possuiu sentido pejorativo,
associado à devassidão. Não obstante, sua existência factual nunca foi
negada, ao revés, mesmo em Roma já foi premiada com conotações
jurídicas, conquanto tímidas dado que conceituada como “casamento
inferior”, conforme Almeida (1998).
Nesse sentido, quando legislação e doutrina conceituam a união
estável como aquela entre pessoas de sexo diferente, que, sem haverem
celebrado casamento, vivem como se casadas fossem, de forma contínua
e duradoura, reforça-se a tese de que, nesse tipo de união, o que importa,
para sua caracterização, é a intenção dos conviventes de, efetivamente,
constituírem uma família, diz Melo (2005). É por isso que alguns
doutrinadores entendem que a união estável é um fato social. Mas se
a união estável é fato social, seria necessário regulamentar tal situação,
4
Art. 1.521 do código civil – Não podem casar: I – os ascendentes com os descendentes, seja o
parentesco natural ou civil; II – os afins em linha reta; III – o adotante com quem foi cônjuge
do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e
demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V – o adotado com o filho do adotante; VI – as
pessoas casadas; VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de
homicídio contra o seu consorte.
5
Art. 226, § 3º, da CF: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
A possibilidade de a pessoa casada constituir união estável 37

uma vez que, na maioria das hipóteses, os protagonistas dessa relação


fizeram a opção de fugir das normas legais que regram o casamento?
Mas, e se assim não o for, será que a ausência de normas jurídicas não
seria o caminho para injustiças no caso concreto? Foi exatamente por
isso que o legislador pátrio resolveu normatizar essa relação, elevando-a à
categoria de entidade familiar. Essa intervenção do Estado visa assegurar
a concretude do Princípio da Igualdade Substancial de forma a evitar
um desequilíbrio das partes na relação, como afirma Maria Berenice
Dias6:

A exaustiva regulamentação da união estável a faz objeto de um


dirigismo estatal não querido pelos conviventes. Tratando-se
de relações de caráter privado, cabe questionar a legitimidade
de sua publicização. Assim, passou o Estado a regular não só
os vínculos que buscam o respaldo legal para se constituírem,
mas também os relacionamentos que escolhem seus próprios
caminhos e que não desejam qualquer interferência.

O código civil, em seu artigo 1.723, reza: “É reconhecida como
entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada
na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família”. O dispositivo legal exige: diferença
de sexos7, convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo
de constituir família. Então vejamos: convivência pressupõe vida em
comum, não significa, portanto, dever de coabitação no mesmo domicílio.
Não! É possível a caracterização de união estável à distancia; ainda que
os companheiros residam em locais diversos é possível caracterizar a
estabilidade da união (como admitido pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) na súmula 3828 para caracterização do concubinato).
6
A estatização das relações afetivas e a imposição de direitos e deveres. In: PEREIRA, Rodrigo
da Cunha (Coord.). Família e cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: IBDFAM,
Del Rey, 2002. p. 307.
7
Apesar de a lei fazer referência à divergência de sexos para caracterização da união estável, não
podemos subtrair do conhecimento do leitor o movimento doutrinário a favor da aplicação dos
princípios da igualdade e da analogia para reconhecimento legal da união homoafetiva no mesmo
patamar da união estável.
8
Súmula 382 do STF: A vida em comum, sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à
caracterização do concubinato.
38 Claudia de Oliveira Fonseca

A palavra duradoura significa estável, duração por tempo razoável,


tempo suficiente para caracterizar o intuitu familiae. O dispositivo não
exige prazo mínimo de convivência, ficando abandonado de vez o
critério temporal (cinco anos) exigido na lei 8.971/94, como bem afirma
Pereira (2003, p. 121): “importa agora a existência de certa continuidade
e um entrosamento subjetivo para distingui-la de uma união passageira,
descomprometida”.
Além desses requisitos, a união estável exige o elemento
intencional, o objetivo de constituir família.
A convivência precisa ainda ter publicidade, isto é, que não ocorra
às escondidas, de forma que a comunidade reconheça os companheiros
como se casados fossem. Logo, não é possível união adulterina ser
caracterizada como união estável. Somente é possível falar em união
estável se não houver impedimento para essa nova relação.

União estável de pessoa casada

Em regra, quem é impedido para o casamento também é


impedido para constituir união estável. Mas o código civil traz duas
ressalvas no artigo 1.723, § 1º: “A união estável não se constituirá se
ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência
do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato9 ou
judicialmente”10.
A razão de tais exceções consiste no fato de o código civil visar
a proteção da realidade fática e não de uma mera certidão de casamento,
que já não corresponde à realidade.
A Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º, determina o
reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, e o dever de que a lei facilite sua conversão em
casamento. Parte da doutrina, inclusive Tartuce (2005), defende que o
9
A separação de fato é a ruptura da vida em comum, em caráter contínuo e prolongado, que pode,
em certas circunstâncias, dissolver a sociedade conjugal.
10
A separação judicial é o processo fundado numa das hipóteses dos artigos 1.572 a 1.574 do código
civil, por meio do qual se dissolve a sociedade conjugal, ao fazer cessar os deveres de coabitação
e fidelidade recíproca e o regime de bens, mas não se extingue o vínculo matrimonial, pois este só
desaparece com a morte, o divórcio, a nulidade ou a anulação do casamento.
A possibilidade de a pessoa casada constituir união estável 39

artigo 1.723, § 1º do código civil, ao estabelecer a possibilidade de pessoa


separada de fato manter união estável com outrem, entra em choque
com esse preceito constitucional. Segundo aquele autor, valendo-se de
uma interpretação sistemática do texto constitucional então transcrito,
devem ser aplicadas aos companheiros as mesmas regras protetivas do
casamento, o que não seria possível quando se tratasse de união “estável”
constituída por pessoa cujo vínculo do matrimônio ainda não tivesse
sido desfeito.
É sabido que a pessoa separada de fato não pode contrair novo
casamento, e também a pessoa separada judicialmente, isso porque a
separação de fato não extingue o vínculo matrimonial. Como à união estável
devem ser aplicadas as mesmas regras do casamento, afirmam os defensores
dessa corrente doutrinária que a pessoa separada de fato mantém com
outrem um concubinato impuro adulterino, e chegam à conclusão de que
não se pode conceber, portanto, pela ótica do texto constitucional, que um
homem separado de fato constitua união estável.
Outra parte da doutrina afirma estar claro que a lei civil admite a
possibilidade de uma pessoa casada constituir união estável desde que
esteja separada judicialmente ou separada de fato do seu cônjuge.
De acordo com o artigo 1.727 do código civil: “As relações não
eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem
concubinato”.
Conforme a previsão dos artigos 1.723 e 1.727 do código
civil, se não houver impedimento para o casamento, a união notória,
contínua e duradoura é dita estável; ao contrário, havendo impedimento
matrimonial, ainda que seja notória, contínua e duradoura, a união
permanente ou não eventual é denominada concubinato, ressalvadas as
exceções previstas na segunda parte do § 1º do artigo 1.723 do código
civil (BAPTISTA, 2005).
Do confronto entre esses artigos, podemos afirmar que a união
estável consiste em união pública, contínua e duradoura entre pessoas
de sexo diferente que não tenham impedimento para o matrimônio, ao
passo que o concubinato consiste em união de pessoas impedidas de
40 Claudia de Oliveira Fonseca

casar; mas a segunda parte do artigo 1.723 da legislação civil afirma ser
possível uma pessoa casada constituir união estável, desde que esteja
separada judicialmente ou de fato do seu cônjuge. São, portanto, duas
hipóteses contempladas pela legislação em que, apesar de estar presente
um impedimento matrimonial, não se encontra impedimento para a
constituição da união estável.
Fica, portanto, evidente que para uma pessoa casada habilitar-se
para novo casamento e contrair novo matrimônio terá que primeiro
divorciar-se, ou invalidar o casamento anterior. Mas para que
estabeleça uma união estável, não precisará agir da mesma forma; basta
transcorrer o prazo de dois anos da separação de fato do casal – em
analogia ao prazo previsto no texto constitucional para a cessação do
vínculo matrimonial pelo divórcio – que a nova união será considerada
estável. Contudo, vale ressaltar, o código civil não estabeleceu tempo
de separação de fato entre os cônjuges a partir de quando cessaria o
impedimento para a constituição da união estável. Esse entendimento
emana da doutrina.
É inegável que houve grande avanço da legislação civil nesse
assunto, mas não se pode esquecer que o legislador criou grande
dificuldade para o julgador quando lhe for apresentado o caso concreto.
Imaginemos, por exemplo, a situação de coexistência de regime de bens
do casamento e da união estável, enquanto não dissolvida a sociedade
conjugal. Adverte Baptista (2005) que ficará extremamente difícil
identificar o momento da separação de fato do casal e o começo da nova
relação, a união estável. Nesse caso, será o julgador que, analisando a
situação fática, verificará se o período de convivência é suficiente para
que a união seja considerada estável e estabelecerá as consequências
patrimoniais daí advindas para os protagonistas dessa história da vida
real, de forma que não gere injustiça e locupletamento ilícito a desfavor
do direito de qualquer dos envolvidos no conflito.
A possibilidade de a pessoa casada constituir união estável 41

Considerações finais

Verificamos que o ordenamento jurídico quis proteger a realidade


fática e não a situação meramente formal ao possibilitar a caracterização
da união estável por pessoa casada, desde que esteja separada de fato
ou judicialmente. Parece-nos que houve acerto legislativo nesse aspecto,
ao preferir contemplar a realidade fática em detrimento da realidade
documentada, que se distanciou da situação concreta, pois outra não
é a função do Direito senão estabelecer regramento para o convívio
social, logo não poderia o legislador fechar os olhos para a realidade,
como se ela não existisse.
Mas, apesar do regramento legislativo, sem dúvida o julgador
irá se deparar com situação concreta de difícil solução, principalmente
quando se tratar de confusão de regimes de bens do casamento e da
união estável. Deverá o julgador estar atento às situações fáticas para
que não proporcione o enriquecimento sem causa de uma das partes
em detrimento da outra.

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42 Claudia de Oliveira Fonseca

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Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Criminalística: origens, evolução e descaminhos

Rodrigo Grazinoli Garrido 1


Alexandre Giovanelli 2

Resumo: Neste artigo discutiram-se as origens e a evolução das técnicas voltadas


para a elucidação de crimes no mundo e especialmente no Brasil. Partiu-se de
evidências pré-científicas até se alcançar os primeiros trabalhos sistematizados
que estruturaram o conhecimento Criminalístico. Foi demonstrado que
a Criminalística deixou precocemente a academia e direcionou-se para as
instituições policiais. No Brasil, isto ficou bem caracterizado a partir dos anos
de repressão do governo militar, o que contribuiu para o atraso atual das
instituições criminalísticas.

Palavras-chave: Ciência Forense. Medicina Legal. Polícia Técnica. História


da Polícia.

Criminalistic: origins, evolution, and deviations

Abstract: In this article, the origins and development of technology related to


crime investigations in the world and specially in Brazil were discussed. This
work started in pre-scientific clues, until it reached the systematization of the
main disciplines composing the Criminalistic knowledge. It was shown that
1
Doutor em Ciências pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atualmente, atua
como Perito Criminal do IPPGF-PCERJ, onde colabora com o projeto de pesquisa LOCALIZAR.
E-mail: grazinoli.garrido@gmail.com
2
Doutorado em Biologia Parasitária pela Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é Perito Criminal
do Instituto de Criminalística Carlos Éboli do Rio de Janeiro. E-mail: agiovanelli@gmail.com
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 43-60 2009
44 Rodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli

Criminalistic early left academy to compose police department. In Brazil, this


fact was better characterized after military dictatory period, what enhanced
criminalistic institutions present delay.

Keywords: Forensic Science. Legal Medicine. Technical Police. Police


History.

Introdução

Apesar dos avanços tecnológicos que acompanham a Criminalística


ou Ciência Forense atualmente, a utilização de técnicas voltadas para
a elucidação de crimes remonta a épocas pré-científicas (BAZAGLIA;
BORTOLINI, 2004; BARBOSA; BREITSCHAFT; 2006). Entretanto,
foi a partir do século XVI que se promoveu uma sistematização de
dados de maneira a formar um corpo de conhecimento estruturado
(CODEÇO, 1991; DOREA; 1995).
Para alguns, a Criminalística seria filha da Medicina Legal
(CODEÇO, 1991). No entanto, para outros as origens dessas ciências se
confundem (DOREA, 1995). Na realidade, as diferentes disciplinas que
atualmente compõem a Ciência Forense tiveram origem, na maioria das
vezes, independente e, em alguns casos, até incidental. A Criminalística
como conhecemos teria seu início quando Hans Gross, no final do século
XIX, propôs que os métodos da Ciência moderna fossem utilizados
para solucionar casos criminais (RABELLO, 1996).
Em 1908, foi criado o “Instituto de Polícia Científica” na
Universidade de Lausanne na França (ABC, 2006). Todavia, fora da
Europa, as instituições voltadas às atividades criminalísticas foram tardias
(GIALAMAS, 2000). Apesar de originada na Academia (ABC, 2006), a
Criminalística foi aos poucos sendo tutelada pelo estado e incorporada
às forças policiais. A criação de laboratórios policiais nos EUA, ocorreu
entre 1920 e 1930 e na década de 1950, a solicitação do trabalho pericial
científico já se tornara rotina aceita pelas autoridades judiciais e policiais
(MONAGHAN, 1964).
Criminalística: origens, evolução e descaminhos 45

Semelhante ao restante do mundo, no Brasil, a origem da


Criminalística confunde-se com a da Medicina Legal, deixando, ainda
no início, a Universidade e se tornando atividade policial (GOMES,
1944; FERREIRA, 1962). No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo,
instituições criminalísticas independentes surgiram já no final da primeira
metade do séc. XX, já vinculadas ao aparato policial (SOUZA; MINAYO;
ASSIS, 2003).
Nesse trabalho, a partir do levantamento e análise de documentos
técnicos especializados e textos com forte viés corporativo, realizou-se
uma caminhada pela história da Criminalística, procurando demonstrar
suas origens e seu desvio dos Centros de Pesquisa e Universidades em
direção das instituições policiais. Pretendeu-se também, oferecer pistas
que demonstrassem que esse redirecionamento, em grande parte, foi
responsável pelas perdas na evolução do conhecimento criminalístico,
principalmente em regiões periféricas.

O que é a criminalística?

O termo Criminalística foi lançado por Hans Gross para


designar o “Sistema de métodos científicos utilizados pela polícia e
pelas investigações policiais” (CODEÇO, 1991). Em uma definição do
1° Congresso Nacional de Polícia Técnica, ocorrido em São Paulo no
ano de 1947, a Criminalística seria a “disciplina que tem como objetivo
o reconhecimento e a interpretação dos indícios materiais extrínsecas,
relativos ao crime ou à identidade do criminoso”. Podia-se ainda definir
a Criminalística não como uma ciência, mas como a aplicação do
conhecimento de diversas Ciências e Artes (DOREA; STUMVOLL;
QUINTELA, 2006). De forma geral, esta utiliza métodos desenvolvidos
e inerentes às diversas áreas para auxiliar e informar as atividades policiais
e judiciárias de investigação criminal (RABELLO, 1996).
Em uma análise atual, a Criminalística é uma ciência aplicada que
utiliza conceitos de outras ciências firmadas nos princípios da física, da
química e da biologia, no bojo de métodos e leis próprias embasadas
46 Rodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli

nas normas específicas constantes na legislação, principalmente a


processual penal (FRANÇA, 2001; INMAN; RUDIN, 2002). Não
devemos confundir o campo da Criminalística com o da Medicina Legal.
Embora ambas se responsabilizem pelos exames de corpo de delito e,
assim, apresentem interseção em vários momentos, a Medicina Legal tem
como objetivo os exames de vestígios intrínsecos (na pessoa), relativos
ao crime (DOREA; STUMVOLL; QUINTELA, 2006).
Durante sua evolução, várias foram as denominações
doutrinariamente impróprias dadas à Criminalística (O’HARA, 1964;
PORTO, 1969). Essa Ciência foi chamada de Criminologia Científica;
Ciência Policial; Investigação Criminal Científica; Policiologia, as
quais se aplicam também à administração policial e aos métodos de
elucidação geral. O termo Criminalística é, na verdade, oriundo da escola
alemã, sendo utilizado por toda Europa, já naquela época os termos
“Kriminalistik e Criminalistique”. O próprio termo Ciência Forense não
é sinônimo de Criminalística em toda parte do mundo. Para Gialamas
(2000), Ciência Forense deve ser definida como a aplicação das ciências
à matéria ou problemas legais cíveis, penais ou mesmo administrativos.
Dessa forma, a Criminalística seria apenas uma das matérias da Ciência
Forense.

As origens da criminalística

Apesar dos avanços tecnológicos que acompanham a Ciência


Forense na atualidade, a utilização de técnicas específicas voltadas para
a elucidação de crimes e indiciamento de criminosos remonta a épocas
pré-científicas. Um exemplo do uso da habilidade e imaginação individual
relacionado à resolução de crimes pode ser vislumbrado em Daniel: no
século VI a.C., Daniel com grande perícia foi capaz de provar ao rei da
Babilônia, Ciro, o Persa, que as oferendas prestadas ao ídolo Bel eram,
na verdade, consumidas pelos sacerdotes e seus familiares. Para tanto,
Daniel fez que espalhassem cinzas por todo o piso do templo, onde
eram colocadas diariamente oferendas. No dia posterior, verificaram
Criminalística: origens, evolução e descaminhos 47

que, apesar da porta continuar lacrada, pegadas compatíveis com a dos


sacerdotes eram observadas no chão e que as oferendas haviam sido
consumidas (BAZAGLIA; BORTOLINI, 2004).
Já no século III a.C. há a clássica história do “Princípio de
Arquimedes”. Conta Vitrúvio, que o rei Hierão de Siracusa mandou
fazer uma coroa de ouro. Entretanto quando a coroa foi entregue, o rei
suspeitou que o ouro fora trocado por prata. Para solucionar tal dúvida,
o rei pediu que Arquimedes investigasse o fato. Arquimedes pegou uma
vasilha com água e mergulhando pedaços de ouro e prata, do mesmo
peso da coroa, verificou que o ouro não fazia a água subir tanto quanto
a prata. Por fim, inseriu a coroa que por sua vez elevou o nível da água
até a altura intermediária, constatando então que a coroa havia sido
feita com uma mistura de ouro e prata. Assim, desvendou-se a fraude e
desmascarou-se o artesão (BARBOSA; BREITSCHAFT, 2006).
A fase pré-científica da Criminalística também pode ser observada
em informes da antiga Roma descritos por Tácito: Plantius Silvanus,
sob suspeita de ter jogado sua mulher, Aprônia, de uma janela foi
levado à presença de César. Este, por sua vez, foi examinar o quarto do
suposto local do evento e encontrou sinais certos de violência (DOREA;
STUMVOLL; QUINTELA, 2006). O relato deixa claro que, desde a
antiguidade foram desenvolvidas técnicas e exames com o intuito de
solucionar crimes.
Na verdade, a necessidade de utilizar conhecimentos técnicos
na elucidação de crimes já era observada desde o séc. XVIII a.C., em
artigos do Código de Hammurabi (BOUZON, 2003). No entanto,
a polícia de investigação se originou em Roma com a lei Valéria (82
a.C.) que instituía dois questores (quoestores parricidii) para presidirem os
trabalhos criminais (CODEÇO, 1991). Porém, nada técnico-científico
sistematizado, os orientava (PORTO, 1969), persistindo assim por quase
mil e quinhentos anos.
Foi somente no século XVI que se observou uma sistematização
de dados de maneira a formar um corpo de conhecimento estruturado.
Isso ocorreu inicialmente com os trabalhos de Ambroise Paré sobre
48 Rodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli

ferimento por arma de fogo em 1560, os quais foram seguidos por estudos
de Paolo Zachias em 1651, este último, sendo considerado o Pai da
Medicina Legal (CODEÇO, 1991; DOREA; STUMVOLL; QUINTELA,
2006). Na realidade, as diferentes disciplinas que atualmente compõem
a Ciência Forense tiveram origem, na maioria das vezes, independente e,
em alguns casos, até incidental como podemos vislumbrar nos exemplos
da Papiloscopia e da Balística forense que seguem:
Em 1563, João de Barros, publicava em Portugal suas observações
sobre a obtenção de impressões palmares e plantares nos contratos na
China. Entretanto, as primeiras referências sobre as papilas epidérmicas
foram descritas no século XVII por Malpighi, na Itália, e por Nehemidr
Crew, na Inglaterra. As impressões papilares e datilares também foram
alvos do estudo de Purkinje, na Alemanha (CODEÇO, 1991; DOREA;
STUMVOLL; QUINTELA, 2006). A real sistematização de conhecimentos
no campo da identificação humana surgiu com Bertillon e seu método
antropométrico que dominou o século XIX (CODEÇO, 1991).
Deve ficar claro que no início da Revolução Científica, cabia
à Medicina Legal toda pesquisa, busca e interpretação de elementos
relacionados à materialidade do fato penal e não só o exame do corpo
humano (CAVALCANTI, 1995). Posteriormente, com o advento dos
inúmeros ramos da ciência, a Criminalística foi ganhando terreno, criando
seus próprios métodos e maneiras de correlacionar esses conhecimentos
em prol da investigação criminal (GARRIDO, 2002).
De acordo com Codeço (1991), a Criminalística é filha da
Medicina Legal. No entanto, para Dorea (1995), não seria possível
distinguir a precedência da Medicina Legal, uma vez que as origens
se confundem. Isto se deveria à indeterminação temporal do desejo
humano de conhecer a verdade dos fatos quando seu semelhante é vítima
de uma morte violenta, por exemplo. Apesar de alguns insistirem que
a Criminalística faz parte da Medicina Legal, segundo Porto (1969) a
própria Medicina Legal faz parte da Criminalística que seria um sistema
no qual se reúnem diversos conhecimentos oriundos de várias ciências
e algumas artes.
Criminalística: origens, evolução e descaminhos 49

Um dos primeiros registros da origem de um ramo da Medicina


Legal preocupado com o exame dos Locais de Crimes, por exemplo,
data de 1248, quando surgiu na China o livro intitulado Hsi Yuan Lu
– “Registro Oficial da Causa de Morte” (DOREA, 1995). Segundo
Fávero (1975), o começo da era científica da Medicina Legal teve início
em 1575, na França, com Ambrósio Paré. Embora Paré tenha reunido
vários trechos desta disciplina, segundo Lima, não representavam um
corpo doutrinário, metódico e sistemático desta ciência. Em 1601
apareceram as “Questões Médico-Legais” de Paulo Zacchia, a quem
esse mesmo autor considera o fundador desta ciência. No século
XVIII a Medicina Legal se constituiu como disciplina científica,
definitivamente.
Em resumo, foi a partir 1844 quando uma bula do Papa Inocêncio
VIII recomendou a intervenção médica nas pesquisas criminais, que os
trabalhos nesta área tomaram verdadeiro fôlego. A origem do uso das
impressões papilares para a identificação de criminosos, no entanto,
surgiu em 1877, quando William Herschel funcionário administrativo
britânico na Índia, sugeriu um método de identificação de pessoas
para o Inspetor Geral da Prisão de Bengala. Seus estudos de mais de
20 anos não foram levados em consideração na época, pois seriam
resultados de delírio de Herschel, o qual apresentava saúde debilitada
(CAVALCANTI, 1995).
De forma paralela e independente, o médico escocês Henry
Faulds, trabalhando em Tóquio, observou marcas de dedos em
cerâmica japonesa pré-histórica, o que o levou a propor um possível
sistema de classificação baseado nas impressões digitais. Este trabalho
foi enviado a Charles Darwin para apreciação. No entanto, devido ao
estado precário de saúde, o pai da teoria da evolução passou o material
para seu primo Francis Galton, um antropologista britânico. Alguns
anos depois, Francis Galton após examinar e sistematizar os trabalhos
de Fauld e de Herschel publicava o livro Fingerprints, estabelecendo os
princípios de individualidade e permanência das impressões digitais.
Os resultados permitiram o desenvolvimento de um sistema de
50 Rodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli

classificação que deu origem ao Sistema Galton-Henry. Este sistema


foi introduzido na Índia em 1897, e na Inglaterra e Estado Unidos em
1901 (CAVALCANTI, 1995).
Na Argentina, Juan Vucetich elaborou seu próprio sistema de
classificação de desenhos papilares, com base no trabalho dos ingleses,
sendo prontamente utilizado pela Polícia Argentina, a partir de 1891,
com o nome “icnofalangometria” (CAVALCANTI, 1995). O trabalho
de Vucetich possibilitou à justiça de Necochea, província de La Plata,
condenar Teresa Rojas pelo homicídio brutal de seus dois filhos ao
identificar as impressões de seus dedos repletos de sangue na arma
(RABELLO, 1996).
Já a Balística Forense, de acordo com Dorea, Stumvoll e Quintela
(2006), teve como iniciativa estudos de Boucher do ano de 1753, na
França. Em 1835, na Inglaterra, Henry Goddard notou um defeito num
projétil retirado do cadáver de uma vítima. Na casa de um dos suspeitos
ele encontrou um molde para projéteis que produzia defeito semelhante
a padrões nele moldados. Fazendo com que o assassino fosse condenado,
Goddard tornou-se o precursor da Balística Forense.
Apenas na década de 1910, que Calvin Goddard publicou seu
trabalho sobre comparação de armas de fogo (GIALAMAS, 2000). No
entanto, foi Alexandre Lacassangne (1844-1921) que primeiramente
percebeu a importância do estriamento deixado nos projetis após
disparos. Este Perito vinculou os estriamentos com o cano raiado de uma
arma de fogo (CARVALHO, 2006). Apesar das iniciativas, para Carvalho
(2006), somente após a criação do microscópio de comparação, na
década de 20 do século XX, que a Balística Forense ganhou notoriedade
e passou a ser aceita irrestritamente nos tribunais.
Ainda segundo Carvalho (2006), a Criminalística, como a
conhecemos, teria seu começo no final do século. XIX, quando Hans
Gross, Professor e Magistrado, ao perceber que os métodos utilizados
pela polícia, baseados na tortura e castigos corporais, não mais se
mostravam eficazes. Assim, propôs que os métodos da Ciência moderna
fossem utilizados para solucionar crimes. Com base no estudo de diversas
Criminalística: origens, evolução e descaminhos 51

ciências produziu a obra Handbuch fur Untersuchungsrichter als System der


Kriminalistik, ou simplesmente System der Kriminalistik, que pode ser
traduzido como Manual para Juízes de Instrução. A literatura deixa dúvidas
quanto a data da primeira edição deste trabalho: 1870, 1883 ou após 1890
(RABELLO, 1996; GIALAMAS, 2000; CARVALHO, 2006).
Em continuação, Edmond Locard, médico e advogado, aluno de
Lacassagne e de Bertllon, passou a estudar os indícios deixados pelos
criminosos nos locais de crime. Em 1910, Locard criava o Laboratório
de Polícia Técnica de Lion (CARVALHO, 2006).
Apesar de contraditório, a origem da Criminalística pode ser
vislumbrada até mesmo na ficção dos romances policiais (DOREA,
1995). Antes do juiz Hans Gross publicar seu trabalho, Edgar Alan
Poe publicara Os Crimes da Rua Morgue, A Carta Roubada e O Mistério de
Marie Roget, nos quais apresentava, pela primeira vez, a figura do detetive
Técnico-Científico. No entanto, foi após Conan Doyle publicar em 1887
Um Estudo em Vermelho com Sherlock Holmes que a história policial
ganha caráter sistemático e científico. No livro de 1883 do autor Mark
Twain (1983) Life on the Mississipi um assassinato era identificado pelo
uso das impressões digitais.
No que diz respeito às instituições criminalísticas, em 1908, foi
criado o “Instituto de Polícia Científica” na Universidade de Lausanne
na França. Esta instituição teve origem na anexação do laboratório do
Dr. Archibald Rudolf Reiss, um dos mais eminentes Peritos Criminais
da história, pela Universidade. O Dr. Reiss publicou várias obras
criminológicas, entre elas destaca-se O Manual de Polícia Científica, o que
muito vem contribuindo à ascensão da Criminalística (ABC, 2006).
Fora da Europa, em especial da França, as instituições voltadas
às atividades criminalísticas são tardias. Apesar da constatação de que
à luz da ciência moderna, a prova material adquire significado novo, a
criação de laboratórios policiais nos EUA, só ocorreu entre 1920 e 1930
(MONAGHAN, 1964; GIALAMAS, 2000). Essa ciência alcançou a
academia no fim da década de 1930, e o primeiro curso de Criminologia
surgiu apenas no final da década de 1940 na Universidade da Califórnia
em Berkeley (GIALAMAS, 2000).
52 Rodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli

Assim, já na década de 1950, a solicitação do trabalho pericial


científico se tornara rotina aceita pelas autoridades judiciais e policiais.
Até mesmo o local de crime, havia deixado de ser lugar para inquirir
testemunhas, para se tornar um laboratório externo na busca de
provas (MONAGHAN, 1964). A íntima associação entre o Perito de
laboratório e o homem de serviço externo, mostrou-se de inestimável
importância durante as operações militares da II Guerra Mundial
(WALLANDER, 1964).
No entanto, segundo Wallander (1964), apesar de vários órgãos
policiais terem crescido significativamente, desde o início do séc. XX, o
laboratório policial foi o último desses setores a despontar. Assim, por sua
criação recente e rápido desenvolvimento, até os anos 50, o laboratório
policial ainda não havia assumido forma bem definida, apresentando
capacidade científica bastante heterogenia entre cidades e estados.
De acordo com O’Hara (1964), com exceção de poucas cidades
grandes e capitais de estados, a investigação criminal nos EUA, nos
anos 50, não se mostrava adequada às mais simples necessidades. Isto
se deveria principalmente a incapacidade dos serviços policiais em atrair
pessoas competentes e à carência de literatura sistematizada, a qual era
fortemente influenciada pela literatura médico-legal relacionada com
crimes contra a vida. Assim, as técnicas utilizadas nos exames da prova
material não mostravam novidades e o número de laboratórios policial
não apresentavam um crescimento significativo.

A ciência forense no Brasil: origem, evolução e descaminhos

No Brasil, a origem da Criminalística também se confunde


com a Medicina Legal. Essa última teve forte influência da escola
francesa (GOMES, 1944). Segundo Fávero (1975), no período colonial
praticamente não foram produzidos trabalhos científicos de Medicina
Legal. Este autor situa a primeira publicação nacional de Medicina Legal
em 1814, do autor Gonçalves Gomide, médico e senador do Império:
“Impugnação analítica ao exame feito pelos clínicos Antônio Pedro de
Sousa e Manuel Quintão da Silva”.
Criminalística: origens, evolução e descaminhos 53

A partir de 1832 foram criadas as Faculdades de Medicina que


exigiram teses como pré-requisito à obtenção do grau de doutor. Com
isso avultaram-se os trabalhos em medicina no Brasil e em 1839 aparecem
as primeiras teses de Medicina Legal. Ainda segundo Fávero (1975),
de 1839 a 1877 não há nenhum trabalho realmente original, a exceção
ficou por conta da Toxicologia, na qual foram produzidos trabalhos
inovadores, principalmente por Francisco Ferreira de Abreu, O Barão
de Teresópolis.
A partir de 1877 inicia-se uma nova fase da Medicina Legal
brasileira, com a entrada de Agostinho José de Sousa Lima para
a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Dentre suas várias
contribuições, está a criação do ensino prático de Medicina Legal,
desenvolvendo a parte de laboratório; inauguração do primeiro curso
prático de tanatologia forense no necrotério da Polícia da Capital
Federal, em 1881, além de vasta produção em revistas científicas da
época (FÁVERO, 1975).
Posteriormente, com Raimundo Nina Rodrigues, inaugura-se
uma época de grande evolução científica e a nacionalização da Medicina
Legal. Nina Rodrigues considerava que os problemas médico-legais e de
criminologia brasileira diferiam dos europeus, uma vez que as condições
físicas, psíquicas e sociais de nosso país eram totalmente diferentes.
Diversos discípulos originaram-se da escola baiana de Nina Rodrigues,
destacando-se Afrânio Peixoto, Oscar Freire, Leonídio Ribeiro e
Flamíneo Fávero (GOMES, 1987).
Durante este período a Medicina Legal das academias estava
estreitamente associada ao serviço médico legal do Estado realizado
pelos Peritos oficiais. Assim, Oscar Freire consegue viabilizar um acordo
entre a Faculdade de Medicina e o Governo do Estado da Bahia, em
1913. Em 1914, Freire funda a Polícia Científica em Salvador ao trazer
da Suíça para palestras na cidade o Perito Criminal Reiss (GALVÃO,
1996). Em seguida, vai para São Paulo onde inaugura a pesquisa Médico-
Legal no estado, contribuindo para o início do Instituto de Medicina Legal
da Faculdade de Medicina (atual Instituto Oscar Freire), a partir de 1922.
54 Rodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli

Posteriormente, este instituto foi dirigido por Flaminio Fávero por 32 anos.
Entretanto, nesta época já funcionava o serviço Médico Legal oficial de
São Paulo, o qual havia sido oficializado em 1886 (FÁVERO, 1975).
No Rio de Janeiro, a Medicina Legal oficial foi transferida da
autoridade judiciária para a Polícia, em 1856. Para isso, criou-se uma
assessoria médica junto à Secretaria de Polícia da Corte. A assessoria era
composta por dois médicos efetivos, ligados à Polícia, e dois consultantes,
professores universitários de Medicina Legal, responsáveis principalmente
pelos exames toxicológicos (ALDÉ, 2003). Segundo Aldé, em 1900, a
assessoria médica foi transformada em Gabinete Médico-Legal e dois
anos depois, Afrânio Peixoto, renomado pesquisador acadêmico da
época, apresentou um plano de reformulação do Gabinete Médico-Legal
da Polícia para implantar as mais avançadas práticas de Medicina Legal
utilizadas na Alemanha. Posteriormente, o Gabinete é transformado em
Serviço Médico-Legal através de decreto de 1907.
Todavia, segundo Ribeiro (1967), as relações entre a Medicina
Legal acadêmica e a oficial logo desandaram, surgindo uma grande
resistência dos Peritos oficiais em dividir o espaço do IML com as
aulas públicas da Faculdade de Medicina. Alguns diretores chegaram
inclusive a proibir as aulas da faculdade no IML do Rio de Janeiro,
levando à cisão entre o conhecimento produzido nas faculdades e a
atuação dos profissionais oficiais. Em 1949, foi inaugurado o novo
“Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto”. Esse prédio abrigaria na
década de 50 as melhores tecnologias em Medicina Legal do mundo.
E seu prestígio ainda estaria relacionado ao intenso intercâmbio com a
academia (ALDÉ, 2003).
Como exposto, no início do séc. XX, as funções do Perito Legista
e Perito Criminal ainda se confundiam. Por exemplo, Gomes (1944),
dá instruções sobre o exame de local para legistas, inclusive de coleta
de vestígios (manchas, objetos, pegadas e impressões digitais), além de
fotografias e custódia de evidências. Ferreira (1962) menciona como
pesquisadores pioneiros da datiloscopia os seguintes nomes: Felix
Pacheco, Afrânio peixoto, Elísio de Carvalho, Manoel Viotti e Leonídio
Ribeiro, todos legistas.
Criminalística: origens, evolução e descaminhos 55

Em relação à perícia de armas de fogo, este mesmo autor apregoa


que o legista deveria possuir conhecimentos indispensáveis sobre as
armas de fogo e sua munição, pois seria esse profissional que orientaria e
dirigiria a perícia para fornecer à justiça os informes necessários. Apesar
de reconhecer a colaboração de um Perito especialista em armas de fogo
(FERREIRA, 1962).
Não se pode negar que os primeiros estudos de vestígios de
disparos de armas de fogo foram feitos no Brasil por Peritos Legistas.
Oscar Freire, Moisés Marx e Gastão Fleury da Silveira, sob orientação
de Flamínio Fávero, reviu-os em tese que publicou e defendeu em 1926
na Cadeira de Medicina Legal da Faculdade de Medicina de São Paulo
(FERREIRA, 1962).
Diversos reagentes para identificação de manchas de sangue
foram desenvolvidos por Amado Ferreira, médico formado na Faculdade
de Medicina de São Paulo. Já o sistema Vocetich, de identificação
papiloscópica, foi implantado no Brasil a partir de 1902. Este sistema já se
encontrava em uso no Gabinete de Identificação fundado em 1903 no Rio
de Janeiro, Capital Federal (CODEÇO, 1991; DOREA, 1995). Grandes
nomes como Félix Pacheco, Carlos Éboli, Evaristo de Veiga, Hélio Gomes
e Leonídio Ribeiro são destacados iniciadores da Criminalística, apesar da
formação médica da maioria (CODEÇO, 1991).
No estado fluminense, apenas entre os anos de 1943 e 1944 foi
criada a Diretoria Geral de Investigações, que englobava o Instituto de
Identificação Félix Pacheco, o Instituto Médico Legal e o Gabinete de
Pesquisas Científicas, o qual deu origem ao Instituto de Criminalística
(SOUZA; MINAYO; ASSIS, 2003). A Criminalística e a Medicina
Legal tiveram sua época de ouro no Rio de Janeiro durante as décadas
de 40 a 60. No entanto, segundo Aldé (2003), a partir do golpe militar
de 64, houve uma crescente deterioração das condições de trabalho
e de desvalorização salarial. Aliado a isto, soma-se a prioridade do
Governo em investir mais em aparatos de repressão do que em
inteligência investigativa e científica. Isso fez com que a Criminalística
e a Medicina Legal durante os anos que se seguiram após 1964 fossem
56 Rodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli

sempre relegadas a segundo plano no que concerne aos investimentos


da Segurança Pública, chegando à década de 1990 em condição de
penúria.
Ainda no Estado do Rio de Janeiro, de acordo com Deslandes,
Minayo e Malaquias (2003), os servidores da Polícia Técnica são os
mais insatisfeitos no que diz respeito às condições materiais, técnicas
e ambientais de trabalho na Polícia Civil. Os profissionais sofrem com
baixos salários, falta de material para realizar exames que vai desde
equipamentos de proteção individual até o papel para imprimirem os
laudos. Este fato leva às chamadas “vaquinhas” para se realizar consertos
de equipamentos e viatura, como também aquisição de suprimentos
básicos. Além disso, especialmente os Peritos Criminais do interior do
Estado são forçados a trabalhar sozinhos em razão da falta de servidores
e, além da atividade Criminalística, esses profissionais conduzem viaturas,
fotografam e digitam seus laudos (GARRIDO, 2005).
Torna-se notória a carência de materiais e equipamentos; o atraso
tecnológico e teórico e a desvalorização profissional são tão grandes
que se poderia dizer que os institutos pararam no tempo há cerca de
40 anos (MISSE et al., 2005). Certamente, nesse período as atividades
periciais foram quase totalmente desvinculadas da produção de saber
das universidades, e tuteladas pelas instituições policiais.
O atual cenário da Criminalística em vários Estados do Brasil
apresenta como perspectiva o movimento de Peritos e de vários
órgãos da sociedade civil em direção à autonomia administrativa,
orçamentária e técnica-científica dos órgãos periciais (MISSE et al.,
2005; ABC, 2006). Assim, a Criminalística brasileira aguarda por
profundas alterações em suas estruturas para alcançar a excelência
científica essencial para a justiça.

Conclusões

Não se pode datar com exatidão a origem da Criminalística,


sabe-se, no entanto, que sua origem foi fragmentada, proveniente
Criminalística: origens, evolução e descaminhos 57

de disciplinas independentes. Grande parte dos conhecimentos de


Criminalística derivou da Medicina Legal e, posteriormente, constituíram
corpo de conhecimento próprio.
No Brasil, a Ciência Forense surgiu de investigações individuais
realizadas no seio das universidades, por Médicos Legistas, na sua
maioria. À medida que a Criminalística se tornou atividade de polícia,
distanciou-se cada vez mais da academia, sofrendo grande decadência.
Isso se acentuou sobremaneira após o golpe de 1964, onde a existência
de uma perícia autônoma não era vista com bons olhos.
Os descaminhos históricos da Criminalística foram responsáveis
pelas condições inadequadas e tecnologicamente atrasadas ainda
encontradas na maioria dos Institutos de Criminalística brasileiros. Além
da questão estrutural, tal descaminho se reflete na atual desvalorização
do profissional da Criminalística. A saída para o atual quadro parece estar
relacionada ao processo de autonomia administrativa, orçamentária e
técnica-científica dos órgãos periciais.

Agradecimentos

Os autores são gratos à Profa. Dra. Fabíola de S. R. G. Garrido
pela leitura atenta dos manuscritos e à Profa. Dra. Raquel de Souza pela
discussão proveitosa.

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Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro
e pequenas empresas: um estudo com empresários de
Vitória da Conquista, Bahia

Marcelle Bittencourt Xavier 1


Francisco dos Santos Carvalho 2
José Carlson Gusmão da Silva 3
Adriano Alves de Rezende 4
Marco Antônio Araújo Longuinhos 5

Resumo: Este artigo trata das causas gerenciais e ambientais da mortalidade


dos micro e pequenos empreendimentos nos segmentos do comércio, indústria
e serviços, buscando conhecer o perfil dos empresários no intuito de identificar
possíveis causas do fechamento de empresas em Vitória da Conquista, Bahia.
Foi realizado um estudo de natureza exploratório-descritivo, com abordagem
quali-quantitativo. Diante dos resultados identificou-se que as principais causas
do fechamento das empresas são decorrentes de deficiências no processo
gerencial e de problemas externos à organização.
Palavras-chave: Gestores. Mercado. Micro e pequena empresa. Mortalidade.

1
Especialista em Gestão Empresarial e Marketing pela Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC).
Professora da Status – Núcleo de Desenvolvimento e Capacitação Profissional. E-mail: bittencourt.
marcelle@gmail.com
2
Doutorando em Planejamento Territorial e Gestão Ambiental pela Universidade de Barcelona.
Professor da UESB e da FTC. E-mail: carvalho@uesb.br
3
Mestre em Agronomia pela UESB. Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica
(CEFET) e da UESB. E-mail: carlsongusmao@hotmail.com
4
Especialista em Gestão de Negócios e Empreendimentos pela Universidade Federal de Juiz de
Fora. Professor da UESB e da FTC. E-mail. adriano.rezende01@gmail.com
5
Doutorando em Planejamento Territorial e Gestão Ambiental pela Universidade de Barcelona.
Professor da UESB. E-mail: mlonguinhos@gmail.com
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 61-78 2009
62 Marcelle Bittencourt Xavier et al.

Managerial and environmental causes of micro and small companies


mortality: a study with entrepreneurs of Vitória da Conquista, Bahia

Abstract: This paper studied the management and environmental causes of


mortality of micro and small companies in commerce, industry and services
sectors by knowing the executive profiles in order to find out possible causes
of the companies closing in Vitória da Conquista, Bahia. An exploratory
descriptive study with qualitative and quantitative questions was realized. The
results showed that the main causes that lead to the companies closing are
caused by deficiencies in the management process and by external problems
of the organization.

Keywords: Managers. Market. Micro and small enterprises. Mortality.

Introdução

A idéia inicial de se abrir uma empresa até a sua viabilização em


um empreendimento consolidado, exige tempo e conhecimento. Muitos
empresários se preocupam em obter retornos imediatos, sem a prévia
preparação para iniciar e gerir com efetividade os negócios.
Para uma escolha correta do negócio o empresário precisa
considerar uma ampla gama de fatores. O processo de abertura de
um empreendimento requer identificação de oportunidade, fixação de
objetivos e metas, mensuração de riscos e custo, além de uma análise do
potencial do mercado e dos recursos humanos previstos para trabalhar
no empreendimento. Abrir um negócio não é algo fácil, pois envolve, às
vezes, altos riscos. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (Sebrae) (2004b, p. 15) compara uma pessoa que decide abrir
um micro ou pequeno negócio como um herói, o qual “vai entrar numa
‘guerra’ em que 31% dos combatentes ‘morrem’ com menos de um ano
e em cinco anos são eliminados 60%”.
Tais estatísticas mostram que a maioria dos micro e pequenos
empreendimentos desaparece após cinco anos de atuação. Um número
expressivo de empresários vem lutando contra um inimigo comum, a
falência. Sobrepujar os riscos impostos pelo sistema vigente e visualizar
os males que afligem um empreendimento talvez seja o grande desafio
para os micro e pequenos empresários.
Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo ... 63

É comum no Brasil uma cultura empresarial estruturada nas


conveniências. Não é pequeno o número de pessoas que decide fundar
uma organização pelo fato de ter algum dinheiro disponível e uma idéia
que na sua convicção é a melhor.
Diante deste cenário, o presente estudo pautou em identificar
as causas da mortalidade de micro e pequenas empresas em Vitória
da Conquista, Bahia, com base na análise de fatores gerenciais e
ambientais.
O fenômeno da mortalidade de empresas vem sendo motivo de
análise por meio de diferentes dimensões e perspectivas teóricas. Na
literatura encontram-se correntes teóricas que fazem uso de conceitos
de ciclo de vida das organizações e análise dos sintomas de patologias
organizacionais na tentativa de melhor compreensão do referido
fenômeno. Adizes (2001) e Marques (1994) indicam o uso de metáforas
biológicas por se tratar ainda de um fenômeno pouco estudado. Várias
críticas são levantadas sobre essas perspectivas teóricas, principalmente
aos modelos determinísticos que consideram apenas aspectos objetivos
e tangíveis das organizações. Meyer apud Sá (1995) considera que esses
modelos são restritos por não reconhecer que as organizações são
construções sociais e produtos simbólicos, que sofrem influências não
objetivas e não tangíveis no processo de sobrevivência.
Com base nos estudos de Lussier e Pfeifer (2001) Riquelme e
Watson (2002), Dutra (2003), Greatti (2003) Viapiana (2001), Najberg
et al. (2000) e Watson (2003), este artigo apresenta os resultados da
análise de fatores gerenciais e ambientais que podem contribuir para um
melhor entendimento das causas mais significativas para a mortalidade de
empresas. Optou-se por divulgar em trabalhos futuros a correlação dos
fatores gerenciais e ambientais com o fator empreendedor (a - Decisão
voluntária: venda da empresa, mudança de cidade, problemas pessoais,
mudança de ramo, opção por um emprego; b - Decisão Involuntária:
características de personalidade e experiência).
Este artigo possui seis seções. Além desta seção inicial, a 2ª seção
trata da revisão bibliográfica, dividida em duas subseções alusivas ao
64 Marcelle Bittencourt Xavier et al.

ciclo de vida organizacional e as possíveis causas da mortalidade de


empresas. A 3ª seção apresenta a metodologia utilizada no trabalho,
descrevendo o tipo de pesquisa desenvolvida, a coleta e o tratamento
de dados, além dos procedimentos de interpretação. Nas seções 4ª e 5ª
são descritos o lócus e os resultados da pesquisa, respectivamente. Na
6ª seção são apresentadas as considerações finais e apontados trabalhos
futuros que podem enriquecer o debate acadêmico sobre a problemática
da mortalidade de Micro e Pequenas Empresas (MPE´s).

Mortalidade organizacional: fim do ciclo de vida

O ciclo de vida das organizações passa pelo crescimento e


consolidação. A mortalidade é o fim do ciclo de vida. Cobra e Zwarg
(1986) entendem que para sobreviverem, as organizações devem passar
pelas fases de crescimento, consolidação, diversificação e ação social.
A fase de crescimento é caracterizada pela conquista de mercados,
ações de diferenciação, especialização e inovação. A fase de consolidação
é apresentada pelas ações que assegurem sobrevivência e estabilidade,
mediante estratégias de ação no mercado, visando melhor posicionar e
atingir solidez organizacional. (SILVA, 1999)
A existência de um índice crescente de MPE´s que fecham as
suas portas pouco tempo depois da abertura é um fator preocupante.
A mortalidade destas organizações gera uma série de consequências,
afetando os trabalhadores, a renda da região, como também o próprio
indivíduo ou grupo de pessoas que fundou e/ou está envolvido no
negócio. Segundo declara Bedê (2004, p. 15) “um dos maiores problemas
das empresas é a questão da sua sobrevivência”.
Bulgacov (1999, p. 56) descreve alguns meios de evitar o insucesso
do novo negócio: “Conhecer seu negócio profundamente, preparar um
plano de negócios, administrar adequadamente recursos financeiros [...],
aprender a administrar pessoas [...]”.
A tabela 1 mostra o índice cada vez mais crescente da mortalidade
de empresas, segundo dados pesquisados pelo Sebrae do Estado de São
Paulo (BEDÊ, 2004).
Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo ... 65

Tabela 1 - Taxa de mortalidade de empresas em São Paulo (1999-2003)


Atividade 1 ano 2 ano 3 ano 4 ano 5 ano
Encerramento 29% 42% 47% 44% 44%
Empresas em
71% 58% 54% 56% 56%
atividade
Fonte: Bedê (2004, p. 12).

Nota-se que as organizações no primeiro ano de implantação


apresentam um índice de fechamento ainda relativamente moderado,
de 29%, todavia a partir do segundo ano este valor tende a aumentar,
alcançando 42%, pois a capacidade de sobrevivência diminui. É o
que afirmam Fagundes e Gargur (2005, p. 28): “[...] a expectativa de
fechamento de uma empresa no primeiro ano de vida é menor que no
segundo ano, quando a geração de recursos pela empresa e a dificuldade
de acesso a crédito tornam-se fundamentais para que ela consiga a
própria sobrevivência”. Os autores ainda complementam que “[...] os
dois primeiros anos são críticos e, assim, as empresas que conseguem
atravessar esse período adquirem muito mais experiência em seu ramo
de negócio e, também, já tiveram seus produtos testados pelo mercado,
existindo menos incertezas sobre sua viabilidade econômica”.
Sendo assim, verifica-se que os dois primeiros anos são
decisivos para uma empresa, já que a mesma terá que se adaptar ao
mercado e ter capital suficiente para cobrir seus gastos, considerando
que as vendas são relativamente baixas no primeiro momento, pois a
empresa ainda está divulgando os produtos e serviços. (FAGUNDES;
GARGUR, 2005).

Causas para mortalidade de empresas

É uma tarefa difícil identificar quais são realmente as causas da


mortalidade de empresas. Uma empresa pode encerrar suas atividades em
função de problemas relacionados aos aspectos gerenciais, econômicos
conjunturais, logística operacional, políticas públicas e aspectos legais.
As causas podem ser internas ou externas à organização
(ZACHARAKIS; MEYER; DE CASTRO, 1999). Analisando o assunto,
66 Marcelle Bittencourt Xavier et al.

Machado e Espinha (2005), tomando como base pesquisas realizadas


nos Estados Unidos, dizem que a metade dos fatores externos estão
ligados à política de governo. Para estes autores “[...] estes fatores têm
sido vistos como uma função chave no sucesso ou fracasso de MPE’s”.
Todavia, complementam dizendo que em termos gerais, “[...] a maioria
das ruínas é atribuída a falhas gerenciais internas”.
No aspecto gerencial alguns problemas são citados: a carência de
experiência gerencial, problemas com capacitação dos colaboradores,
falta de treinamento, visão restrita do negócio, recrutamento inadequado
dos colaboradores e falta de profissionalização do negócio.
Para Silva (1999), é preciso “assegurar adequada assistência,
objetivada para as necessidades realísticas de MPE’s. Afirma ainda que
é preciso “apoiar organizações e instituições educacionais deve ser a
meta para livrar as empresas dessa situação de fracasso”.
Verifica-se que o planejamento é uma função significativa da
Administração e o período anterior à abertura de uma empresa constitui-
se como o momento em que as necessidades são maiores em termos
de obtenção de conhecimento sobre o ramo de negócio em que se
pretende atuar.
O Plano de Negócio vem como um primoroso instrumento
de planejamento, o qual deve ser escrito e, a cada passo elaborado,
permitir uma noção prévia do funcionamento do negócio do ponto
de vista financeiro, dos clientes, fornecedores, concorrentes e da
organização necessária ao bom funcionamento do empreendimento
(RODRIGUES, 2001).
Se ocorrer problemas, estes deverão ser eliminados o quanto
antes. Rodrigues (2001, p. 61) destaca algumas ações que podem ser
estabelecidas para a resolução de problemas nos negócios, afirmando
que pode ser realizada “[...] uma radiografia da situação da empresa,
considerando dados do mercado e os critérios de gestão utilizados [...]”.
O autor ainda complementa que é preciso adotar “[...] o planejamento
em rotina, mantendo um rígido controle sobre a gestão. Se for preciso,
considerar a troca de sócios ou a entrada de novos parceiros”.
Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo ... 67

Longenecker et al. (1997 apud RIBAS, 2003, p. 284) afirmam que


“[...] tanto as micro quanto as pequenas empresas exigem um processo
gerencial para dirigir e coordenar as atividades de trabalho”. Se esse
processo for de qualidade, contribuirá para a lucratividade e permanência
das empresas no mercado, qualquer que seja o tamanho do negócio.
Adizes (2001, p. 3) afirma que “o trabalho da gerência não é criar uma
situação em que não haja problemas, mas sim levar a organização à
plenitude [...]”.

Procedimentos metodológicos

A pesquisa utilizada foi descritiva e exploratória, realizada através


das seguintes etapas: a) levantamento teórico quanto à descrição das
empresas de pequeno e micro portes no Brasil, bem como do município
de Vitória Conquista; b) coleta de dados através de questionários;
c) processamento dos dados; d) análise dos resultados obtidos. A
pesquisa descritiva tem por objetivo “[...] descrever as características
de determinada população ou fenômeno, ou o estabelecimento entre
variáveis. Envolvem o uso de técnicas padronizadas de coleta de dados:
questionário e observação sistemática [...]” (UFSC, 2006, p. 19).
Do ponto de vista dos procedimentos técnicos foi utilizada a
pesquisa bibliográfica através da consulta de livros, artigos publicados
e materiais disponíveis na Internet.
Quanto à abordagem de pesquisas optou-se pela quali-quantitativa.
Foram coletadas as informações através da aplicação de questionários
com questões abertas, fechadas e de múltiplas escolhas, revelando através
de números as opiniões dos micro e pequenos empresários, traduzidos
em percentagens para melhor análise dos dados.
O universo da pesquisa foi composto por 1.328 empresas ativas,
sendo 1.303 de micro porte e 25 de pequeno porte. A amostra foi do
tipo não-probabilístico, por conveniência – comumente utilizada na área
de ciências sociais – sendo composta por 63 empresas, nos segmentos
do comércio, dos serviços e da indústria.
68 Marcelle Bittencourt Xavier et al.

Vale ressaltar que os dados cadastrais das empresas (razão social,


endereço, data de constituição, principais atividades e situação) foram
cedidos pela Junta Comercial do Estado da Bahia (Juceb), sendo que o
critério de classificação do porte de empresa foi baseado no faturamento,
através do enquadramento realizado pela própria organização ou por
seu contador. (JUCEB, 2006)
A aplicação dos questionários com os gestores das empresas
foi realizada no período de setembro a dezembro de 2006. Após o
levantamento, os dados foram tabulados em planilhas elaboradas no
Microsoft Excel 2003, seguido da sua avaliação.

Locus da pesquisa sobre mortalidade de MPE´s

A cidade de Vitória da Conquista, localizada no Sudoeste da


Bahia, tem uma base territorial de 3.204 km2, abrangendo uma população
estimada de 285.927 habitantes, em 2005. (IBGE, 2006). O município
também atua como um pólo de desenvolvimento sócio-econômico
da região, tendo em vista a capacidade de agregar pessoas de cidades
circunvizinhas nas áreas de saúde, emprego e educação. Cabe à população
empreender em busca do desenvolvimento sócio-econômico, pois
como descreve Dolabela (2006, p. 10) “[...], o empreendedorismo que
nos interessa é aquele capaz de gerar e distribuir renda, conhecimento,
poder e riqueza”.
A população flutuante de Vitória da Conquista é composta em
sua maioria de habitantes das cidades circunvizinhas, que possuem
nesta cidade sua base de compra, além de serem atendidas na prestação
de serviços das mais diversas áreas, tais como saúde, educação, entre
tantas outras.
Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo ... 69

Micro e pequena empresa em Vitória da Conquista

Tabela 2 – Quantidade de micro e pequenas empresas constituídas no


município de Vitória da Conquista – BA, nos segmentos de indústria,
comércio e serviços, no período de 24/07/1950 até 14/09/2006.
Empresa
de pequeno
Classificação Microempresas porte Total

Ativas 9.104 201 9.305


Extintas 1.634 08 1.642
Falidas 10 - 10
Canceladas 07 01 08
Canceladas art. 60 lei 8934/94 2.912 - 2.912
Convertida soc. Civil/simples 01 - 01
Transferida para outra UF 02 - 02
Total Geral 13.670 210 13.880
Percentual de Mortalidade 32,94%
Fonte: Juceb, 2006.

Conforme exposto na Tabela 2, o município de Vitória da


Conquista – BA constituiu 13.880 empreendimentos de pequeno e micro
porte, nos ramos de comércio, serviços e indústria, no período de 24
de julho de 1950 até 14 de setembro de 2006. Houve uma mortalidade
de 32,94% neste período. (JUCEB, 2006).

Resultados da pesquisa
Perfil dos pesquisados

A aplicação dos questionários aos gestores MPE´s de Vitória


da Conquista – BA, dos segmentos de comércio, indústria e serviços,
permitiu uma análise de alguns itens que são relevantes para identificação
das causas de mortalidade de empresas.
Foi percebido que há um equilíbrio entre o sexo dos gestores
destas empresas analisadas (50%). Os índices permitem visualizar que
cada vez mais as mulheres vêm conquistando seu espaço no mercado
de trabalho, tornando-se empreendedoras, muitas delas motivadas pela
necessidade de complementar a renda familiar, encarando as relações
trabalho/família (GOMES, 2006).
70 Marcelle Bittencourt Xavier et al.

Dos empresários, 37% estão distribuídos na faixa etária de 25 a


34 anos e 34% possuem entre 35 a 44, 9% entre 18 a 24, 16% entre 45
a 54 e 4% entre 55 a 64 anos.
Parte significativa (46%) dos entrevistados concluiu o 2º grau,
23% estão estudando o curso superior, 11% dos pesquisados possuem
2ª grau incompleto, 6% têm ou ainda cursam 1º grau e apenas 2% não
possuem educação formal. No geral, os empresários são relativamente
instruídos, mas ainda carecem de conhecimentos para gerir seus negócios.
A implantação de três faculdades privadas e cursos de educação a distância,
como também a expansão da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,
pode ter contribuído fortemente para redução da taxa de mortalidade de
empresas no município, notadamente em anos mais recentes.
Quase metade dos gestores pesquisados (48%), exerce a função
gerencial há 2 anos, 30% entre 3 a 5, 9% entre 6 a 8, 9% entre 12 a 15
e 2%, acima de 15 anos. Antes da abertura do negócio 35% dos atuais
empresários eram funcionários de empresa privada e 32% autônomos.
Apenas 11% eram empregadores em outra organização, e 11% donas
de casa, além de 7% que eram estudantes, 2% funcionário público e 2%
estavam desempregados, nenhum era aposentado.

Segmento de atuação e quantitativo do quadro funcional

Foi identificado que 64% das empresas são do segmento de comércio,


enquanto que 23% são da área de serviços e apenas 13% da indústria.
A maioria, (93%) das empresas analisadas tem seu quadro funcional
constituído de 2 a 9 pessoas, com somente 7% de firma individual.

Principais dificuldades encontradas para funcionamento do


negócio

A tabela 3 mostra as principais dificuldades encontradas pelos


empresários durante o funcionamento do negócio. Foram considerados
apenas para fins de análise os valores das indicações dos gestores para o grau
Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo ... 71

de alta dificuldade enfrentada. Assim, quanto aos problemas relacionados à


categoria aspectos gerenciais, os seguintes percentuais foram observados:
20% dos pesquisados avaliaram-se com alto grau de dificuldade, e a razão
acentuada da mortalidade foi atribuída à problemas financeiros (20%), 16%
para ausência de conhecimentos gerenciais, 13% para escolha do ponto
comercial e 21% capital de giro insuficiente. De acordo com pesquisas
do Sebrae (2004a), a maioria dos empresários alega problemas com
gerenciamento do negócio e de gestão financeira. Outros elementos da
tabela 3 analisados nesta pesquisa confirmam em parte tais pesquisas.
Na categoria aspectos econômicos conjunturais, os percentuais
foram: 11% para recessão econômica, 9% para poucos clientes e 11%
para maus pagadores. Sendo identificado que, 14% e 13% para problemas
relativos à mão-de-obra pouco qualificada e instalações inadequadas,
respectivamente.
Para a categoria logística operacional, os valores encontrados
foram: 79% para tributos elevados, 38% para problemas com fiscalização
e 45% para falta de créditos junto aos bancos. No aspecto logístico
operacional a maioria dos empresários respondeu que é crucial para
o sucesso organizacional a escolha de um bom administrador (71%).
Assim sendo, a necessidade de ter um profissional à frente de um
empreendimento se mostrou favorável, na percepção dos gestores.
O que mais chamou a atenção no resultado da pesquisa foi o
percentual de dificuldade (alta) para a categoria políticas públicas e aspectos
legais. Identificou-se: 79% para tributos elevados, 38% problemas com a
fiscalização e 45% para falta de crédito junto aos bancos. Tais resultados
comprovam pesquisas realizadas nos EUA que afirmam que metade dos
problemas externos estão ligados à política de governo (MOREIRA, 1997).
Para os empresários de Vitória da Conquista, as maiores dificuldades são
oriundas de fatores externos e não gerenciais.
Zacharakis, Meyer e De Castro (1999) realizaram um estudo
comparativo com empreendedores e com investidores. Ambos
apontaram os fatores internos como às principais causas do fracasso.
Os dados obtidos no presente trabalho não confirmaram o consenso
geral de que a maioria das ruínas é atribuída a falhas gerenciais internas
(MOREIRA, 1997; ZACHARAKIS; MEYER; DECASTRO, 1999).
72 Marcelle Bittencourt Xavier et al.

Tabela 3 – Principais dificuldades encontradas no período de


funcionamento do negócio
Dificuldade
Baixa Média Alta Não
Categoria Descrição respon-
% de pessoas que deram %
afirmaram
Problemas financeiros 20 54 20 06
Ausência de conhecimentos
36 38 16 10
Aspectos gerenciais
Gerenciais Ponto impróprio 43 39 13 05
Capital de giro insuficiente 25 48 21 06
Recessão econômica
Aspectos 43 36 11 10
(últimos anos)
Econômicos
Poucos clientes 39 43 09 09
Conjunturais
Maus pagadores 41 38 11 10
Mão-de-obra pouco
Logística 43 34 14 09
qualificada
Operacional
Instalações inadequadas 46 32 13 09
Tributos elevados 11 04 79 06
Políticas Problemas com a
25 27 38 10
Públicas e fiscalização
Aspectos Falta de crédito junto
Legais 23 23 45 09
aos Bancos
Outra razão: ___________ 100
Fonte: Adaptado do Sebrae (2004a).

Itens verificados antes de abrir a empresa

Como apresentado na tabela 3, a grande maioria dos pesquisados


observou aspectos legais, localização e instalações da empresa, volume
de capital de giro necessário, linhas de crédito disponíveis, volume
de vendas necessário para obter lucro, estrutura de custos, clientela,
fornecedores e concorrência.
Todavia, somente 32% disseram ter elaborado um plano de negócios,
41% analisaram investimentos necessários para os cinco primeiros anos,
48% produtos/serviços oferecidos pela concorrência, 50% mão-de-obra a
Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo ... 73

empregar e 34% meios de divulgação dos seus produtos/serviços (Tabela


4). Para Hisrich e Peters (2004), problemas relacionados à falta ou falhas no
planejamento financeiro podem levar ao fechamento de muitas empresas.
O percentual de apenas 41% dos pesquisados que disseram ter verificado
os investimentos necessários para os cinco primeiros anos revela outra
causa significativa para mortalidade das empresas.

Tabela 4 – Itens verificados antes de abrir a empresa


Antes de abrir a empresa verificou-se... % pessoas que afirmaram
SIM NÃO
A elaboração de um plano de negócios? 32 68
Investimento necessário para os cinco primeiros anos? 41 59
Aspectos legais? 87 13
Sua localização e instalações? 96 4
Qual o volume de capital de giro necessário? 82 18
Linhas de crédito disponíveis? 73 27
O volume de vendas necessário para obter lucro? 91 9
Estrutura de custos? 84 16
Clientela? 88 12
Quem seriam os fornecedores? 77 23
Número de concorrentes? 71 29
Produtos/serviços oferecidos pela concorrência? 48 52
Mão-de-obra a empregar? 50 50
Meio de divulgação dos seus produtos/serviços? 34 66

A tabela 4 mostra que apenas 48% dos pesquisados afirmaram


ter feito estudo dos produtos/serviços dos concorrentes. A análise de
mercado é muito significativa para o sucesso dos negócios. As questões
relacionadas ao ambiente – tais como problemas com fornecedores,
com taxas de juros e comportamento dos competidores – podem
impactar negativamente no ciclo de vida das organizações (RIQUELME;
WATSON, 2002; DUTRA, 2003; VIAPIANA, 2001).
Outra possível causa para a mortalidade de empresas em Vitória
da Conquista é pertinente ao baixo índice na análise da mão-de-obra
a empregar. Pesquisadores da gestão de competências são unânimes
em afirmar que é preciso saber recrutar, selecionar e capacitar os
colaboradores da empresa. Erros no processo de recrutamento de
pessoal podem levar à problemas sérios na empresa (FLEURY, A. C. C.;
74 Marcelle Bittencourt Xavier et al.

FLEURY, M. T., 2000). Verificou-se, conforme Tabela 4, que somente


50% dos gestores fizeram estudo prévio do perfil dos funcionários que
seriam necessários às atividades da empresa.
O fato de apenas 34% dos gestores terem feito análise prévia dos
meios para divulgar os seus produtos/serviços, também representa uma
causa relevante para o problema da mortalidade dos empreendimentos
(Tabela 4). Uma pesquisa realizada pelo Sebrae em 1994 mostrou que
65% a 90% das pequenas empresas ativas estudadas, apresentavam
deficiências na área de marketing, treinamento e informática (SEBRAE,
2004a). Foi identificado que das empresas pesquisadas em Vitória da
Conquista, 87% possuíam recursos computacionais, e destas, 59%
possuíam acesso à Internet. Embora a maioria dos empresários tenha
disponível o computador, este ainda não é percebido como instrumento
estratégico, pois 62% das empresas não utilizam banco de dados.
Merece destaque na tabela 4 que somente 32% dos pesquisados
elaboraram plano de negócio. Isto pode ser uma das principais causas
para mortalidade de empresas em Vitória da Conquista. Bulgacov (1999,
p. 56) acredita que conhecer seu negócio profundamente e preparar um
plano de negócios contribui para reduzir a mortalidade de empresas.
Outros dados complementares constantes dos questionários
aplicados aos gestores mostraram que, no que se refere a aspectos
gerenciais: 84% dos pesquisados afirmaram ser determinante para o
sucesso de um empreendimento ter uma boa estratégia de vendas e 77%
ter um bom conhecimento do mercado de atuação, o que representa uma
certa maturidade profissional no que tange à Administração em geral.
Na pesquisa também foi constatado que nos aspectos
relacionados ao marketing, 71% dos pesquisados afirmaram que a
empresa não possui um planejamento estratégico. Além disso, 86%
dos entrevistados acreditam que seus produtos estão adequados às
necessidades e aos desejos do cliente, mas 52% não realizaram pesquisas
junto ao consumidor para conhecer o grau de satisfação do mesmo.
Também 86% disseram que os produtos têm atendido a demanda do
cliente, porém somente 45% comercializam os produtos por um preço
Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo ... 75

adequado ao praticado pela concorrência. E ainda 64% dos empresários


não desenvolvem bom processo de comunicação de seus produtos
e serviços, carecendo de propaganda em internet, jornais/revistas,
anúncios, eventos, folhetos, filmes, palestras educativas ou através de
outros meios. Tais resultados refletem o desconhecimento por parte
dos entrevistados, das principais práticas da boa gestão de empresas,
o que em parte pode estar contribuindo para alta taxa de mortalidade
encontrada no município.

Conclusão

A problemática da mortalidade de empresas não é uma análise


de fácil compreensão. Requer pesquisas continuadas, interdisciplinares,
utilizando as mais diversas metodologias científicas. Fatores sócio-
culturais exercem forte influência sobre o modo de pensar e agir
dos empresários. Portanto, não sendo possível adotar soluções para
o problema da mortalidade de empresas sem uma prévia análise do
contexto no qual estão inseridas. Tal entendimento reforça a necessidade
da realização de mais pesquisas sobre o tema tratado neste artigo.
A presente pesquisa identificou que os aspectos gerenciais e
ambientais impactam fortemente no problema do fechamento de
micro e pequenas empresas no município de Vitória da Conquista,
Bahia. As principais causas identificadas estão relacionadas com
a ausência de planejamento antes de iniciar as atividades (baixa
utilização do plano de negócio e do planejamento empresarial,
deficiências na análise do ambiente), como também dificuldades em
operacionalizar as atividades gerenciais (problemas no recrutamento
de pessoal, deficiências na qualificação e formação dos gestores,
pouco uso das ferramentas do marketing, pouco conhecimento
do negócio e das funções gerenciais), além da ausência de políticas
públicas e a altíssima carga tributária. Porém, acredita-se que estas
dificuldades podem ser minoradas por meio da maior capacitação dos
seus dirigentes e da implementação de políticas públicas requeridas
pelos micro e pequenos empresários da região.
76 Marcelle Bittencourt Xavier et al.

Recomenda-se para continuidade desta pesquisa a realização


dos seguintes trabalhos futuros: a) Analisar o problema da gestão
familiar e o impacto na sobrevivência dos negócios; b) Correlacionar os
resultados apresentados neste artigo com os fatores vinculados à ação
empreendedora praticada pelos empresários locais.

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Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro
nos anos de 1990

Wilson da Silva Santos1

Resumo: A reforma do Estado na década de 1990 tentou imprimir um modelo


moderno de gestão que objetivava superar uma máquina estatal burocrática e
patrimonial. O resultado foi a racionalização regida por fundamentos fiscais.
Essa difusão modernizante obedeceu a uma funcionalidade que distanciou do
Estado o seu caráter social e político, bem como enfraqueceu a democracia e
o espaço público, deixando o Estado sem vínculo orgânico com a sociedade
civil e sem projeto para o desenvolvimento econômico-social.

Palavras-chave: Democracia. Estado. Gestão. Política. Reforma.

A look over reform of the state brazilian in the years of 1990

Abstract: The reform of the State in the decade of 1990 tried to print a modern
model of management that objectified to surpass a bureaucratic and patrimonial
state machine. The result was the rationalization conducted for fiscal beddings.
This modernizante diffusion obeyed a functionality that moved away from the
State its social character and politician, as well as weakened the democracy and
the public space, leaving the State without organic bond with the civil society
and without project for the economic-social development.

Keywords: Democracy. State. Management. Politics. Reform.


1
Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor das disciplinas
Seminário Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos Sócio-Antropológicos, da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), Campus XX. E-mail: wisanvc@yahoo.com.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 79-96 2009
80 Wilson da Silva Santos

O Brasil, nos anos 90 do século XX, sofreu uma série de reformas


institucionais sob forte influência da concepção do “pensamento
único”, que prescrevia o enxugamento do Estado e a defesa do mercado
enquanto determinante e regulador da dinâmica econômica, social e
política. A reforma do Estado possuía um conteúdo em que os termos
gestão gerencial, privatização e mercado acabaram engendrando, de
certa forma, o imaginário da sociedade. A justificativa que norteou
a necessidade de tal reforma foi abrir o mercado nacional para a
economia internacional e provocar, assim, maior competitividade. Por
isso, a urgência da superação de um Estado hiperatrofiado, ineficaz
e parasitário. Para tanto, faz-se necessário ajustar o Estado com uma
reforma que combine três aspectos fundamentais: fiscal, financeiro
e patrimonial. Com a dimensão política exaurida e reduzida à ação
perniciosa e mefistofélica, a democracia substantiva escamoteia-se diante
dessa sedimentação de reforma.
A idéia de modernizar a administração pública está balizada
com a premente necessidade de uma gestão cujos procedimentos
e métodos estejam em consonância com a gerência do mercado. A
reforma administrativa baseia-se nos paradigmas do mercado, pois
estes serviriam para estabelecer uma certa racionalidade e controle
de comportamentos e atividades do staff administrativo. De acordo
com Nogueira (2005, p. 39), “o mercado, afinal, seria o espaço de
convergência da iniciativa e dos projetos individuais, por um lado, e do
equilíbrio social, por outro, graças à indução virtuosa da concorrência
e da racionalidade utilitarista”.
Com o processo de globalização da economia, concebido
como inevitável, a idéia reformista do Estado configurou-se como
ajustamento pragmático, porém orientada política e ideologicamente
por documentos do próprio governo federal e entidades internacionais,
como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e
o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
(BIRD). Nesse sentido, a adequação à nova realidade, capitaneada
pela globalização, procurou (re)estruturar o aparelho do Estado para
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990 81

diminuir seus encargos e obrigações. Não somente isso, o Estado


se viu combalido e impotente diante da dinâmica da economia de
mercado capitalista, que confrontava com limites colocados ao seu
desenvolvimento, como a própria noção de Estado, território e nação.
Cada vez mais, a economia se desterritorializa para se tornar uma
força muito mais competitiva e ágil – o Estado passa então a ser visto
como inoperante. É necessária uma forma de intervenção que não seja
esteada no paradigma estatizante e, em sincronia com isso, a exigência
da consolidação de uma estrutura organizacional que assimila uma
gestão cuja tônica seja a eficiência e a eficácia, em contraposição às
organizações burocráticas que oneram demasiadamente o Estado e
tornam o serviço público improdutivo.
O Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE), apresentado em
1995 pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado
(MARE) e pelo Conselho de Reforma do Estado, que funcionava
como entidade de caráter consultivo do MARE, tinha como meta
reestruturar a administração governamental para ter um desempenho
que visasse a equacionar questões como ajuste fiscal, maior arrecadação
tributária e melhoria nos serviços públicos. A reforma ora apresentada
não era um documento alheio de influências externas, ao contrário,
as demandas, que a reforma indicou, foram para atender também as
agências reguladoras internacionais. A reestruturação restringiu-se a
solucionar percalços do aparelho governamental que, para o MARE,
eram entendidos como problemas do espaço público, isto é, as suas
atribuições ressaltavam a modernização da esfera administrativa,
atingindo uma organização que deslocasse as atividades e serviços
para o denominado setor público não-estatal.
A reforma, no entanto, se depara com uma organização do Estado
que se distancia jurídica e institucionalmente do conceito de Estado de
Direito Liberal. O Estado brasileiro se valeu da perpetuação de atuações
e artifícios peculiares que formaram uma ordem política e social cujo
sustentáculo era a estrutura do próprio Estado. Ao analisar esse Estado,
Faoro (1989, p. 736) identifica que
82 Wilson da Silva Santos

[...] a realidade histórica brasileira demonstrou a persistência


secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente,
inviolavelmente, à repetição, em fase progressiva, da experiência
capitalista. Adotou o capitalismo como técnica, as máquinas, as
empresas, sem aceitar-lhe alma ansiosa por transmigrar.

Faoro enfatiza que o Estado direcionou o sistema capitalista


no Brasil segundo as expressões e determinações do patrimonialismo.
A estrutura das esferas administrativas, resultante dessa estrutura
patrimonial, produz

[...] uma autonomia da esfera política, que se manifesta com


objetivos próprios, organizando a nação a partir de uma
unidade centralizadora, desenvolve mecanismos de controle e
regulamentação específicos. O estamento burocrático comanda
o ramo civil e militar da administração e, dessa base, com
aparelhamento próprio, invade e dirige a esfera econômica,
política e financeira (p. 738).

Dessa maneira, baseado no próprio Estado, “o estamento


burocrático” seria uma espécie de ordenamento e ingerência de
concessão de privilégios e ascensão política para aqueles que se
aproximam de interesses próprios. Isso demonstra o quanto
na formação do Estado brasileiro não se legitimou o paradigma
do Estado de Direito Liberal. Numa perspectiva histórica, “o
predomínio dos interesses estatais, capazes de conduzir e deformar
a sociedade – realidade desconhecida na evolução anglo-americana
– condiciona o funcionamento das constituições, em regra escritos
semânticos ou nominais sem correspondências com o mundo que
os rege” (p. 739).
A combinação da prevalência política de ordem patrimonial
burguesa, como amarra do surgimento da democracia liberal, com as
forças externas representadas pelo capitalismo mundial demonstra o que
Florestan Fernandes (1976) interpreta como desenvolvimento desigual
interno em relação à dominação capitalista externa. Para o autor, o processo
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990 83

de globalização econômico, que seguiu unilateralmente as diretrizes de


agências internacionais, se configurou, no Brasil, principiado de acordos
e tensões com os estratos administrativos do Estado brasileiro. Essa
articulação permitiu que o desenvolvimento interno de uma parte bastante
limitada do capital estivesse em simetria com as acelerações das mudanças
do capitalismo global e que a orientação de domínio e desigualdade interna,
externada por meio de espoliações e mandos políticos do poder do Estado,
persistisse. As classes burguesas, que foram as grandes beneficiárias
dessa política de desenvolvimento econômico dependente, continuaram
com essa lógica autoritária, fazendo que as desigualdades sociais fossem
tendencialmente difundidas na maioria da sociedade.
Durante um determinado e longo período histórico, o Estado
brasileiro, garantindo-se por uma ordem autoritária, política e jurídica,
manteve o controle da vida social, econômica e política da sociedade civil.
Esse exercício do poder, com a interferência do Estado, foi conduzido
por meio da alta hierarquia da administração pública, constituída
autocraticamente, e inviabilizou um modelo de gestão pública que
efetivasse constitucionalmente o controle democrático nas áreas sociais,
econômicas e políticas. Mesmo na década de 1980, o processo de
transição democrática, inspirado pelo Estado clássico de direito liberal,
apresentou o predomínio da estrutura política do patrimonialismo. Pode-
se dizer que a racionalidade do tipo patrimonial foi a herança política
e cultural que o Estado brasileiro solidificou até hoje, destroçando, em
termos, a possibilidade de diálogo e prática democrática com as forças
sociais dentro da relação Estado e sociedade civil.
Daquele modo, a reforma do Estado brasileiro não conseguiu
(des)construir as bases do Estado patrimonial, e, por conseguinte, não
capacitou o Estado de maneira tal que correspondesse realmente aos
princípios normatizadores e democráticos da gestão pública e dos direitos
sociais, civis e políticos. Contraditoriamente, a reforma esteve embasada
nas formulações teóricas do Consenso de Washington, que tinham como
pilar a relação constitutiva entre Estado e sociedade regulamentada
pelos crivos da realidade política e econômica internacional e respaldada
84 Wilson da Silva Santos

pelo livre mercado, pelo Estado de direito mínimo e pela concepção


de governo liberal.
As orientações da reforma do Estado brasileiro foram
conduzidas pelos agentes governamentais e realizadas sobretudo
por técnicos burocratas do primeiro posto do governo. Logo, a
confrontação que a reforma administrativa tentou ensaiar – numa visão
“racional legal” – com as relações políticas patrimonialistas deu-se
também por normas induzidas de forma endógena, pois se centrou
dentro da estrutura do Estado, cujas relações internas sobejam a lógica
racional patrimonial.
A admissão da concepção do Estado, do PDRE, foi proposta
com medidas de mudança de seu entendimento. Primeiro, o Estado
é configurado como um conjunto de órgãos governamentais. Essa
implementação conceptual põe em xeque a noção de soberania do
Estado, isso porque a soberania do poder legislativo se abrevia como
espaço canalizado para a funcionabilidade dos desígnios do aparato
governamental. Segundo, o plano de reforma pretende a substituição
do conceito de público e estatal. A concepção de público era própria
à instância estatal, marcada pelo controle até mesmo sobre o campo
privado. Com o plano diretor, o significado de res publica sofre alteração
semântica e operacional na relação entre público e estatal, porque o público
é considerado como agente organizacional da burocracia – um Estado
substancialmente fiscal –, como um sistema legal e exclusivo de ordenar
sobre as tributações e os impostos. Terceiro, está presente, no documento,
o chamado público não-estatal, que isenta o Estado de responsabilizar-se
pela educação, por exemplo, quando atribui ao mercado o controle e o
oferecimento da educação sob a “regulação” do Estado gerencial.
À vista disso, o projeto de reforma conceitua o público de forma
dúbia ao caracterizá-lo não mais como um espaço de poder institucionalizado,
identificado com o Estado, ou sob o domínio deste, e sim como um campo
onde sucedem todos os acontecimentos e ações, tanto no âmbito social
quanto no âmbito civil. Apenas a concepção de aparelho Estatal é que se
depara em sua definição mais precisa, entendendo-se
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990 85

[...] por aparelho do Estado a administração pública em sentido


amplo, ou seja, a estrutura organizacional do Estado em seus
três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). O aparelho
é constituído pelo governo, isto é, pela cúpula dirigente dos
três poderes, por um corpo de funcionários e pela força militar
(BRASIL, 1995, p. 3).

Quanto à definição do Estado, o documento anuncia que o

Estado é a organização burocrática que possui o poder de legislar


e tributar sobre a população de um determinado território.
O Estado é portanto a única estrutura organizacional que
possui o “poder extroverso”, ou seja, o poder de constituir
unilateralmente obrigações para terceiros, como extravasamento
dos seus próprios limites (BRASIL, 1995, p. 3).

Esses dois conceitos, o do aparelho do Estado e o do Estado,


colocam os três poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário
– na condição de pertencimento à administração pública, e apresentam
“um corpo de funcionários” sem uma definição precisa do que este venha
a ser. O que parece estar nas intenções do PDRE é a acepção do Estado
como organização técnico-burocrática que seria a instância máxima e
única da violência legal, de legislar e de tributar a sociedade.
Nas diretrizes listadas concernentes à questão financeira leva-se
em consideração a autonomia do Estado para

1) um ajustamento fiscal duradouro; 2) reformas econômicas


acompanhadas de uma política industrial e tecnológica que
garantam a concorrência interna e criem as condições para o
enfrentamento da competição internacional; 3) a reforma da
previdência social; 4) a inovação dos instrumentos de política
social, proporcionando maior abrangência e promovendo
melhor qualidade para os serviços sociais; e 5) a reforma do
aparelho do Estado, tendo em vista sua “governança”, ou seja,
sua capacidade de implementar de forma eficiente políticas
públicas (BRASIL, 1995, p. 2).
86 Wilson da Silva Santos

Essa implementação fiscal e financeira vai influenciar diretamente


os elementos reais da política social. A administração pública gerencialista,
norteada pela política fiscal e financeira, será o instrumento inovador
que emplacará as políticas sociais através de resultados e objetivos bem
definidos. A autonomia da gestão fornecerá os requisitos técnicos de
controle dos recursos materiais e humanos para o alcance dos resultados
esperados e inscritos nos objetivos. Para esse controle, a abrangência da
administração pública, encerrada no documento, vigoriza a participação
dos setores privados e das organizações não-governamentais. O que se
espera é que na redefinição do Estado não haja contrapartida direta,
como está bem discorrido neste trecho do documento: “enquanto
a receita das empresas depende dos pagamentos que os clientes
fazem livremente na compra de seus produtos e serviços, a receita do
Estado deriva de impostos, ou seja, de contribuições obrigatórias, sem
contrapartida direta” (BRASIL, 1995, p. 7).
Os recursos arrecadados pelo Estado estão sob o jugo da
esfera fiscal, ou da receita fiscal, ou seja, o poder legal que o Estado
tem de cobrar impostos e encargos da população sem a devida
contrapartida é a relação que este, o Estado, mantém com a sociedade
civil para o atendimento e saneamento das carências sociais. Dessa
forma, o Estado fiscal adquire, nos seus termos, a potencialidade
de solucionar os problemas sociais. Essa lógica de que os impasses
sociais são deslindados como questão fiscal depara-se, enfim, com
uma proposta que, além das contribuições obrigatórias da sociedade
sem contrapartida direta, é também mecanismo que o Estado fiscal
promove para adjunção de parcerias com o setor empresarial e ONGs,
no fito de gerir, com sua capacidade racionalizadora, os recursos
escassos na resolução dos problemas sociais. Fundamentalmente, as
políticas públicas, engendradas a partir dessa ótica, seriam feitas de
forma flexível, ao considerar o atendimento possível de exigência e
obedecer implacavelmente à contenção fiscal.
Para tanto, seria determinante desenvolver estratégias que levassem
em conta o controle de resultados dentro da relação custo/benefício.
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990 87

A eficiência dos gastos equivaleria a um orçamento que satisfizesse um


índice mínimo dos interesses sociais. Essa noção de gestão, arranjada
como neutra, técnica, flexível e racional, canalizaria uma administração
que abrandaria as tensões socais e aplacaria qualquer embate político e
ideológico visto como nocivo ao “bom funcionamento do organismo
social” e, concomitantemente, abriria espaços para a participação da
sociedade civil nos liames do terceiro setor e ONGs, para apetecer
melhores resultados nos indicadores sociais e para o agenciamento e
captação de recursos financeiros.
Assim, as demandas sociais, no projeto de reforma do Estado,
estão na alçada pública, no entanto permanecendo no considerado
público não-estatal, uma esfera que controlaria institucionalmente as
necessidades dos vários setores sociais, sem a intercessão direta do
Estado. Para o PDRE (BRASIL, 1995, p. 14), o público não-estatal
é “constituído pelas organizações sem fins lucrativos, que não são
propriedades de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas
diretamente para o atendimento do interesse público”.
A reforma do Estado avançou ao maximizar a abertura do
mercado e ao redimensionar a terceirização do setor social, consistindo
numa conversão do público numa arena de competição entre
organizações não-estatais (terceiro setor) à procura de parcerias com
as classes empresariais ou até mesmo com o setor governamental para
a prestação de serviços públicos.
Pouco se fez para que a reforma se tornasse um projeto que
permitisse uma gestão democrática e garantisse os direitos de participação
política, civil e social no controle e nas tomadas de decisão da coisa pública.
Contrariamente, o que se nota é a pavimentação do patrimonialismo
nas relações políticas e, sobretudo, sociais, na qual se adotam facetas
inovadoras e sutis, que acharam e acentuaram a sua potencialidade,
sem impedimentos constitucionais de um Estado de direito clássico.
O Estado fiscal atribui-se praticamente o gerenciamento dos recursos
fiscais para garantir a funcionabilidade da máquina estatal e os resultados
do atendimento das demandas sociais, afeiçoados pelo patrimonialismo.
88 Wilson da Silva Santos

O público não-estatal, tentando munir-se de procedimentos ético-


políticos, provê esse espaço institucional aparentemente neutro e técnico,
ao privilegiar agentes do gerencialismo de resultado de cunho patrimonial
– por meio do estabelecimento de convênios e parcerias com o Estado,
pautado numa ação não transparente e democrática – e ainda ao excluir
progressivamente a atuação do Estado no campo social. Nesse prisma, a
educação é compreendida como serviço que deve estar no setor público
não-estatal, em busca de parcerias privadas, processadas pela gestão
de resultados e desempenho, e, da mesma forma, como estratégia de
obtenção de recursos financeiros.
O reformismo posto dessa maneira não se traduziu em uma
participação política substantiva, mas se reduziu a procedimentos
representativos, com a predominância da forma eleitoral sobre um
sólido sistema político que criasse o aumento e a consubstanciação
de valores democráticos e a vinculação social enraizada na
participação em instituições política e socialmente fortalecidas.
O encadeamento reformador foi conduzido por mecanismos
que forçaram uma estratificação de Estado (sociedade política) e
sociedade civil, pois as relações patrimonialistas e fisiológicas e
as organizações políticas e burocráticas de poder permaneceram
intangíveis. A reforma, portanto, permaneceu estremada dentro
da concepção gerencialista de administração, desvencilhada de
princípios ético-políticos.
O discurso reformista estava resoluto em sua proposta de programa
de modernização da administração para dissipar a inércia burocrática do
setor público. O mercado era o termo que respaldava essa convicção e
oferecia elementos para a conformação de um sistema organizacional de
gestão pública capaz de produzir maior fluidez operacional.
Retorquindo a essa idéia, Nogueira chama a atenção para o fato
de que a reforma do Estado não visou ao fim da burocracia. Destarte,
“nenhuma reforma do aparelho de Estado feita sob o capitalismo tem
como se objetivar contra a burocracia, em nome da superação de algum
‘defeito estrutural’ que esse modelo conteria” (NOGUEIRA, 2005 p.
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990 89

42 e 43). O autor mostra ainda que a reforma não poderia se dar pelo
modo segundo o qual o mercado seria o referencial para a organização
do aparelho estatal. Dessa forma, “nos anos 90, não havia e nem há hoje
qualquer motivo justificável para que a reforma do aparelho de Estado
seja ‘orientada pelo mercado’ em vez de se concentrar na recuperação
e na atualização das capacidades burocráticas” (p. 43).
Se os critérios da reforma, além de serem administrativos, fossem
ético-políticos, inevitavelmente as suas proposições estariam em torno da
democratização das organizações públicas. Nogueira salienta o cuidado
que se deve ter ao analisar os elementos fundantes de sustentação do
processo de democratização da administração pública. Para esse autor,
a relação entre democracia e burocracia tem

[...] mais atrito, ruído e tensão que sintonia e integração. A democracia


privilegia a autonomia e a liberdade, ao passo que a burocracia não
vive sem ordem e obediência. A deliberação democrática procede de
baixo para cima e estrutura-se de modo potencialmente ampliado,
ao passo que a burocracia decide de maneira hierárquica e tende
a restringir fortemente o número dos que participam do processo
decisório, em boa medida separando os tomadores de decisão, os
implementadores e os beneficiários de suas operações (p. 43).

Ainda assim, democracia e burocracia não são dois sistemas


dicotômicos, no sentido de que a democracia, ao anteferir autonomia
e liberdade, não mantém relação e aproximação com os elementos
operacionais da burocracia, por esta possuir ações heterônomas.
A burocracia como capacidade de organização funcional consiste
em um mecanismo que pode contribuir na admissão de subsídios
imprescindíveis para a democracia. É nesse enfoque que essa junção,
democracia e burocracia, pode não somente proporcionar

[...] maior transparência, legitimidade e responsabilidade,


mas também para que suas decisões possam refletir as reais
necessidades e as expectativas do cidadão comum. No caso,
não se trataria apenas de garantir a rotinização de formas
permanentes de participação, mas de possibilitar a circulação
90 Wilson da Silva Santos

de valores, procedimentos e critérios democráticos no interior


da organização burocrática para forçá-la a decidir de modo
ampliado (p. 43).

Entretanto, a reforma não levou essa orientação a cabo.


Acabou provocando uma desestruturação do corpo administrativo e,
por fim, do serviço público, ao tornar as relações hierárquicas mais
enrijecidas e fisiológicas e as tomadas de decisão e as normatizações
mais difíceis e morosas. As medidas racionalizadoras gerencialistas da
reforma legitimaram e firmaram toda uma sustentação patrimonialista
e corporativista da administração burocrática, deixando o Estado num
terreno movediço e, ao mesmo tempo, formando uma natureza matizada
entre os dois elementos contrapostos: administração gerencialista e
administração burocrática. Com isso, a reforma não permitiu nem a
implementação da retórica gerencial, composta, sobretudo, do controle
do mercado, e nem atacar os males da burocracia, cuja existência se
baseava no patrimonialismo.
Como foi anunciado, os eventos decisivos à reforma foram
marcados como condição vital para adequação do Estado à globalização
capitalista. Tais eventos circunscreveram-se à estabilização da economia,
ao ajuste fiscal, ao controle da inflação, ao aprimoramento do controle
administrativo e, principalmente, à (re)conceituação do Estado, que
implicou a noção de seu território e a sua soberania ante a hegemonia e
a predominância do mercado como diretriz sócio-econômico-cultural.
No entanto, essa adequação ocorreu como conformação passiva
do Estado ao projeto de reforma, com o intento de superação dos
desafios apresentados pela conjuntura econômica mundial. O que
se verifica com essa reforma é a cimentação ideológica do teor da
reforma, cuja tese fundamental admoestava o Estado como impeditivo
da competitividade e da liberdade de concorrência, devido ao forte
controle que este impusera na dinâmica da vida social e econômica. Em
decorrência disso, percebe-se o distanciamento do Estado da sociedade
civil através de estratagemas que vão desde o incremento cada vez mais
perceptível do voluntarismo, do comunitarismo e da filantropia até o
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990 91

empreendedorismo de interesses particulares. Esses interesses instauram


a dinâmica da meritocracia na organização social de tal maneira que se
convertem numa arena de recompensa ou promoção fundamentada
no mérito pessoal, cuja mobilidade se torna uma rede desdobrada de
segmentações díspares e fragmentadas e, progressivamente, alijada
da proteção do Estado. Este estaria de prontidão pouco menos com
medidas que pudessem aliviar a situação amiúde de miserabilidade das
classes excluídas, medidas pouco incisivas, em virtude de seu caráter
compensatório, fisiológico e patrimonialista.
A reforma absolutamente transcorreu por duas vias, que, no seu
âmago, não se coadunavam, em razão de suas contradições intrínsecas.
Se, por um lado, o reformismo buscava fazer do Estado um aparelho
com as orientações descentralizadoras – visando a uma maior autonomia
das instâncias públicas, para estimular um espaço competitivo e eficaz
para o próprio benefício dos consumidores –, com a flexibilização nas
tomadas de decisão e nos procedimentos e com as desregulamentações
financeiras, por outro lado, a reforma precisaria adotar regimentos para
a criação de agências reguladoras que conduzissem e normatizassem
toda forma de controle tarifária e contratos firmados. Teria, também,
que impulsionar menos custo nos gastos públicos e mais controle nos
resultados e, por fim, determinar o seu tamanho restrito de laboração
no âmbito social e o acirramento das privatizações. Com base nessa
modificação, o Estado foi impulsionado por uma administração
centralista com decisões eminentemente técnico-buracráticas sob a lógica
do gerencialismo do mercado para a configuração e o desempenho do
serviço público no qual se obstruiu toda forma de indução de valores
democráticos e de controle da “coisa pública” pela sociedade civil.
Essa racionalidade técnica, tomada pela reforma, acenou para uma
concepção imagética coletiva em que o Estado deveria desempenhar sua
função com mecanismos de gestão cuja performance se tornasse hábil e a
sua estrutura reduzida ao máximo. Outrossim, a busca de maior consenso
em que a presença dos conflitos políticos partidários e do sistema político
na intromissão no funcionamento do Estado fosse relevante para o mau
92 Wilson da Silva Santos

desempenho deste ganhou força na sociedade civil. O que permanece


contundente no imaginário da sociedade é que a política apresenta
práticas não virtuosas, manifestadas em ações de corrupção, peculato,
improbidade administrativa e lentidão em resoluções de problemas
sociais e econômicos. Dessa forma, o reformismo saneou no Estado
um discurso de racionalização administrativa, com alheamento da práxis
política e da vivência democrática como ponto modular na construção
e na solidificação da identidade civilizatória.
A dissociação, que a reforma realizou, entre a organização
gerencial racionalizada e o aspecto ético-político do Estado tentou
extenuar a importância do valor do Estado ético, enquanto mediador da
dinâmica político-social e provedor dos serviços públicos. Além disso, o
Estado ético traz consigo a função educativa e direciona-se na edificação
da “sociedade regulada” na dimensão social. Expressão proveniente de
Hegel, trabalhada e aprofundada por Gramsci (2000, p. 23), o Estado
ético procura “criar novos e mais elevados tipos de civilização”. Mesmo
estando ligado ao Estado entendido como sociedade política (poder
governamental, jurídico-coercitivo), o Estado ético diferencia-se dele.
Esse Estado ético aproxima-se organicamente da sociedade civil,
entendida como espaço da construção de hegemonia tanto política
quanto cultural de uma dada classe sobre as demais classes sociais. Nas
correlações de força pela conquista hegemônica, cimenta o conteúdo
ético-político do Estado. Assim, a gestão do aparelho administrativo-
governamental e a questão ético-política mantêm o seu caráter de
diferenciação de atuação, mas encontram-se identificados dialeticamente.
É o buscar a real identidade na aparente diferença e contradição e
procurar a substancial diversidade sob a aparente identidade. Refere-se
ao conceito gramsciano de Estado: “sociedade civil + sociedade política,
hegemonia revestida de coerção” (p. 244).
Em verdade, o tecnicismo foi o pêndulo que influiu no conteúdo
da reforma como composição hegemônica que procurou decidir a
dimensão ético-política, dimensão esta desprovida de princípio valorativo
da esfera da administração pública como espaço coletivo em que a “ética
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990 93

do coletivo” deveria ser o esteio do fazer política e do governar para a


“criação de novos e mais elevados tipos de civilização”.
O reformismo, como foi afirmado, esteve a cada momento
alinhado mais em se acomodar a uma gestão fiscalista e pragmática que
reformar o Estado no qual

[...] a eficiência da vontade política, empenhada em suscitar forças


novas e originais e não só em fazer cálculos com as tradicionais,
mostra toda a sua potencialidade não só na arte de fundar um
Estado a partir de uma ação interna, mas também de dominar
as relações internacionais (GRAMSCI, 2000, p. 242).

De acordo com Gramsci, a reforma constitui-se uma espécie


de “revolução passiva”, em que a preocupação estava em promover o
ajuste fiscal do Estado e assentar a desregulamentação das atividades
econômicas como premissas para salvaguardar o mercado, e não, como
deveria, em se comprometer com as questões prementes e estruturais
da organização social, como a proposição de uma cultura democrática
que pudesse ser marcadamente substantiva e emancipatória, no espaço
político, social ou econômico.
O cenário da década de 1990 foi entremeado com a continuação e
a consolidação do processo democrático. Nesse período, o reformismo
trouxe para si a redefinição de alguns conceitos pilares da democracia
radical e substantiva, como os de descentralização, democracia
participativa e sociedade civil. Essa modificação semântica foi necessária
para atender ao objetivo de sustentar uma lógica que possibilitasse a
abertura do Estado para a sociedade, porém com o discurso que sempre
estava em pauta: Estado mínimo numa democracia em que a iniciativa
individual é fundamental. Além disso, as demandas que ocorriam
principalmente sobre o governo federal traziam a necessidade de os
estados e os municípios co-responsabilizarem-se e compartilharem com
os compromissos advindos do conjunto de reivindicações da sociedade,
a fim de tentar solucionar, com esse comprometimento, a situação fiscal
que o Estado vinha passando e adequar-se às exigências da globalização
94 Wilson da Silva Santos

do mercado. A tese era, então, fazer do Estado uma esfera em que todos
pudessem interferir e cooperar para o seu controle e funcionalidade. Essa
“socialização” do Estado traduziu-se numa conversão da participação
em procedimentos cooperativos das tomadas de decisão. A reforma
apontava para a complexidade do processo de deliberação e, com isso,
o imperativo do aprimoramento das instituições organizacionais para
aprofundar e ampliar o controle dos processos, das demandas e dos
resultados.
Contudo, a participação democrática, imprimida no discurso
da reforma, deveria ser dobrada aos ditames do neoliberalismo e às
práticas mercantilistas. As medidas de abertura, no processo decisional,
enquadravam-se na linearidade do mercado. O que se pretendia com
essa disposição era expandir mais ainda a idéia de competição e de
concorrência; a gestão se comporia das próprias estruturas de cooperação
e socialização das responsabilidades estatais junto com a sociedade. A
democracia, nesses moldes, evitaria movimentos conflitivos e a abertura
do Estado se aferia com seus preceitos de despolitização.
A defesa da reforma era movida pelo argumento de neutralidade,
uma vez que a eminência do reformismo se fazia em suas modalidades
técnico-administrativas, portanto sem poder haver nenhuma influência
das vicissitudes políticas. E mais, o bom governo se valia pela boa gestão
da economia. O bem comum da res publica deveria prevalecer para que
o êxito do “governar bem” fosse norteado e arranjado pela abertura de
participação societal. Esse empreendimento interpretou e reformulou
algumas categorias conceituais, que custaram caro para a construção
do ethos político e social em sua radicalidade. O próprio conceito de
democracia foi desvirtuado para justificar uma reforma que tentou
difundir a imagem negativa do Estado e se firmar como mecanismo
de compressão do Estado, em vez de dinamizá-lo e incorporar uma
abertura democrática marcada pelo seu valor ético-político coletivo e
pelo crescimento e coesão do controle social do Estado por parte da
sociedade civil.
Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990 95

Considerações finais

Esse caminho percorrido pela reforma levou a um retrocesso que


não somente atingiu a noção que se tem de sociedade civil, mas acabou
repercutindo em sua estrutura, ao incorporar nela a “normatização” e a
automatização do aparato gerencial. O distanciamento entre sociedade
civil e Estado (sociedade política) provocou uma espécie de contraposição
entre o discurso de gestão das políticas compensatórias e o embate na
esfera do político-estatal. A cooptação de alguns movimentos sociais pelo
Estado gerencial legitimou, de certa maneira, a gestão de políticas de forma
mais técnica e pragmática que a tentativa de estabelecer uma ofensiva de
valorização e mobilização da ação política com perspectiva coletiva de luta
e oposição para estender-se à emancipação e à autonomia real.
A formação e o entendimento do conceito de sociedade civil nos
diversos planos da reforma estiveram num invólucro de dubiedades que
contribuiu para a prevalência de sociedade civil como lugar de reprodução
e valoração autônoma das iniciativas comunitárias para captação de
recursos e do tracejamento “gerencialista” de compromisso social. A
autonomia preconizada tendeu para a posição da defesa da liberdade
dos interesses comunitaristas ou de grupos empreendedores como
forma de sustentar e aferir o não-compromisso e dever do Estado com
os recursos e as políticas públicas. Essa inflexão trouxe o esvaziamento
de uma visão de organização política que edificasse uma autonomia
que tivesse como pontos basilares a emancipação e a enunciação de
uma contra-hegemonia que delineassem as definições e as afirmações
de Estado e sociedade civil fortes, e não uma sociedade conferida por
posição de subordinação, ou anexo de sustentação de recurso e de ação
técnico-cooperativa em nome de um Estado gerencial.

Referências

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Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Desafios ao desenvolvimento econômico de
Juazeiro do Norte/CE: uma discussão
alicerçada na qualidade de vida dos residentes

Wellton Cardoso Pereira 1,


José Raimundo Cordeiro Neto 2
Clério Ferreira de Sousa 3
Eliane Pinheiro de Sousa 4
Marcos Antônio de Brito 5

Resumo: Este trabalho objetiva identificar desafios ao desenvolvimento


econômico da cidade de Juazeiro do Norte/CE, com base em indicadores
de qualidade de vida dos residentes. Para isso, realizou-se aplicação direta de
questionário a uma amostra aleatória de famílias. Embora a população tenha
apresentado um nível médio de qualidade de vida, este se encontra muito
próximo ao nível considerado baixo, o que revela a necessidade de intervenções,
prioritariamente nos indicadores de segurança, inclusão social e emprego, os
quais mostraram os piores resultados.

Palavras-chave: Qualidade de vida. Desenvolvimento econômico. Juazeiro


do Norte.
1
Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Professor da
Secretaria Municipal de Educação de Altaneira, CE. E-mail: wiltonnasa@hotmail.com
2
Bacharel em Ciências Econômicas pela URCA. Assessor de Planejamento da Pró-Reitoria de
Planejamento e Avaliação/URCA. E-mail: netocorde@bol.com.br
3
Bacharel em Ciências Econômicas pela URCA. Professor Substituto do Curso de Ciências Eco-
nômicas da mesma universidade. E-mail: clerioferreira@hotmail.com
4
Doutoranda em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professora do
Departamento de Economia da URCA. E-mail: pinheiroeliane@hotmail.com
5
Mestre em Economia Rural pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor adjunto do
Departamento de Economia da URCA e Diretor Administrativo Financeiro da URCA. E-mail:
marcosbrito@urca.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 97-111 2009
98 Wellton Cardoso Pereira et al.

Challenges to economic development of the city of Juazeiro do


Norte/CE: a discussion based on the quality of life of its residents

Abstract: The objective of this paper is to identify challenges to the economic


development of the city of Juazeiro do Norte/CE, based on indicators of
quality of life of its residents. For that purpose, there was a direct application
of a questionnaire with random sample of families. Although the population has
shown an average level of quality of life, it is too close to the level considered
low, indicating, thus, that the priority interventions should give us indicators of
safety, social inclusion and employment, which showed the worst results.

Keywords: Quality of life. Economic development. Juazeiro do Norte.

Introdução

A busca da qualidade de vida sempre esteve presente na sociedade


humana, caracterizada pelas circunstâncias de cada época e evidenciada
pelo nomadismo do homem primitivo, à procura dos ambientes menos
hostis a sua sobrevivência; por meio dos aglomerados urbanos das cidades-
estados, sob a proteção dos imperadores, na Idade Antiga; através do
ruralismo, no qual o indivíduo subjugava-se ao senhor feudal e tinha então
como contrapartida a proteção de seu exército e o usufruto de suas terras,
na Idade Média; pelo metalismo, da época mercantilista, que atribuía uma
relação direta entre bem-estar e a posse de metais preciosos; pela urbanização
causada pela Revolução Industrial, em que as cidades industrializadas
passaram a oferecer mais emprego e renda e, consequentemente, maiores
oportunidades para a satisfação das necessidades dos indivíduos; e, enfim,
pelo consumismo da sociedade contemporânea.
De acordo com Margarete, Keinert e Karruz (2002), a temática da
qualidade de vida vem ganhando espaço na discussão sobre os objetivos
a serem alcançados ou mantidos pelas políticas públicas. No entanto,
como enfatizam os autores, apesar do reconhecimento da importância
da qualidade de vida no planejamento do desenvolvimento econômico,
social e urbano, existe uma dificuldade inerente a sua conceituação.
Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada... 99

De fato, “talvez nenhum conceito seja mais antigo, antes mesmo


de ser definido, do que qualidade de vida e talvez nenhum seja mais
moderno do que a busca da qualidade de vida, sendo que mais moderna
ainda seja sua crítica e definição” (BUARQUE, 1993, p. 157).
Visto que a idéia de qualidade de vida sempre esteve muito ligada
à temática do desenvolvimento, as discussões acerca desta última foram
acompanhadas pela evolução daquela, o que corrobora a opinião de que
“não se pode isolar [...] qualidade de vida de desenvolvimento, porque
são dois conceitos que contemplam o bem-estar da sociedade em geral”
(BRITO, 2004, p. 504).
Enquanto foi identificado à industrialização, até meados da década
de 1950, entendia-se o desenvolvimento como “níveis de produção e
consumo material medidos por indicadores como PNB e renda per capita.
Outras variáveis importantes como a equidade social e a distribuição
dos frutos do crescimento econômico, não são contempladas por esse
modelo” (MAYORGA et al., 1999, p. 37). Logo, o conceito de nível de
vida era associado ao nível de consumo, numa conotação quantitativa
e monetária.
A partir dos anos 1960, presenciou-se a ampliação do modelo
convencional de desenvolvimento, e, na década de 1970, o conceito de
bem-estar econômico “passou a adquirir um significado mais amplo
em direção ao bem-estar geral e social” (MARGARETE; KEINERT;
KARRUZ, 2002, p. 41).
Nos anos 1980, ganhou notoriedade a expressão desenvolvimento
sustentável, que sugeria o desenvolvimento integral da sociedade, ou seja,
idealizava um processo que envolvesse os aspectos ambientais, culturais,
sociais, políticos e econômicos. Segundo Mayorga et al. (1999, p. 44), tal
noção se baseia na idéia de que “as pessoas, sobretudo as mais pobres,
devem ser sujeitos e não objetos do ‘desenvolvimento’. O meio ambiente
e o desenvolvimento devem ser vistos como meios e não como fins,
onde a qualidade de vida passa a ser uma prioridade”.
Na década de 1990, o novo conceito de desenvolvimento humano
foi atrelado a uma nova metodologia para sua quantificação. Trata-se do
100 Wellton Cardoso Pereira et al.

Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), elaborado pela Organização


das Nações Unidas (ONU) e que utiliza três indicadores para medir a
qualidade de vida, a saber: a expectativa de vida, a taxa de analfabetismo
e o nível de renda, como reflexos da saúde, do conhecimento e do acesso
a bens materiais, respectivamente.
Não obstante ter evoluído, o conceito de qualidade de vida ainda
apresenta diversas interpretações. Todaro (1991 apud BRITO, 2004, p.
504) considera que “qualidade de vida simboliza uma série de anseios
(distribuição mais equitativa da renda, nutrição, saúde, produção e
emprego) que, quando alcançados fazem a pessoa satisfeita”. Noutra
concepção, “a qualidade de vida de um indivíduo ou sociedade é a
quantidade e qualidade dos meios a que se pode assentir para satisfazer
suas necessidades, o modo como os obtêm e o papel que lhes atribuem”
(BRAVO; VERA, 1993 apud MARGARETE; KEINERT; KARRUZ,
2002, p. 121).
Segundo Nahas e Martins (1995 apud BRITO, 2004, p. 506):

[...] apesar de não haver uma conceituação clara e universal


de qualidade de vida, em sentido pragmático ela pode ser
entendida como a satisfação de um espectro de necessidades
básicas que assegurem um certo nível de vida da população.
Destarte, a qualidade vida é algo incomensurável, por ser
essencialmente qualitativa e subjetiva. Para torná-la mais
tangível, clara e objetiva são estabelecidos critérios objetivos
e métodos quantitativos.

Vale ressaltar ainda que “a qualidade de vida não pode ser estudada
apenas no seu caráter normativo. Também deve-se levar em conta as
percepções individuais, que sofrem influência da cultura e educação dos
indivíduos” (SILVA, 1996 apud MARGARETE; KEINERT; KARRUZ,
2002, p. 42). Essa perspectiva exige a formatação de indicadores de
qualidade de vida, que pode vir a ser

[...] um instrumento do planejamento, servindo como um


parâmetro do grau de cobertura das necessidades dos indivíduos
Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada... 101

ou grupos sociais, permitindo a detecção de desigualdades


socioespaciais, derivadas dos diferentes graus de satisfação
das necessidades, proporcionando bases para a elaboração
de estratégias para melhorar o bem-estar (MORA, 1996 apud
MARGARETE; KEINERT; KARRUZ, 2002, p. 40).

Nesse sentido, este artigo tem como objetivo identificar desafios ao


desenvolvimento econômico da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará, com
base em indicadores de qualidade de vida dos residentes da zona urbana.
A próxima seção expõe a metodologia utilizada para o cálculo do Índice
de Qualidade de Vida de Juazeiro do Norte (IQVJN), contextualizando o
método analítico e a área pesquisada. Seguida a essa, outra seção apresenta
e discute os resultados obtidos com a aplicação dos métodos utilizados.

Metodologia

Área de Estudo

A cidade de Juazeiro do Norte foi criada em 1911 e está localizada


na microrregião do Cariri, sul do Ceará, a 396 km da capital do estado,
Fortaleza, em linha reta. Possui uma área de 249 km², com climas tropical
quente semi-árido e tropical quente semi-árido brando. Apresentou em
2004 uma população de 231.920 habitantes – 95,33% residentes na zona
urbana –, com densidade demográfica de 905 hab/km² (IBGE, 2005).
Segundo o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará, o
Ipece, (CEARÁ, 2005), o IDH municipal em 2002 era 0,697, portanto
de médio desenvolvimento humano.

Método analítico

“A seleção dos indicadores é uma etapa importante do estudo.


Os indicadores podem ser considerados medidas discretas dos níveis de
satisfação das necessidades e permite fazer a descrição, avaliação e análise
dos fenômenos” (MARGARETE; KEINERT; KARRUZ, 2002, p. 42).
Assim, em conformidade com esta opinião, de que “a qualidade de vida
102 Wellton Cardoso Pereira et al.

está relacionada a fatores psicossociais de cada indivíduo, decorrentes


da satisfação ou insatisfação de suas necessidades”, estudou-se a
qualidade de vida das famílias urbanas juazeirenses, no que diz respeito
a: a) saúde (baseando-se nos principais serviços de saúde e na infra-
estrutura hospitalar); b) educação (verificando-se a disponibilidade de
escolas e profissionais da área, o nível de educação existente e a infra-
estrutura escolar); c) emprego e renda (fundamentando-se na condição
de emprego, no nível de renda e no acesso às políticas de geração de
emprego e renda); d) habitação (destacando-se o tamanho da residência,
sua infra-estrutura e a condição de propriedade); e) energia elétrica e
telecomunicações (considerando-se a disponibilidade de energia elétrica
e de serviços de telecomunicações e a qualidade da transmissão de sinais
de televisão e rádio); f) acesso a bens de primeira necessidade e bens
duráveis (tomando-se como referências a disponibilidade de bens para
suprir as necessidades e a qualidade dos bens consumidos); g) água e
saneamento básico (levando-se em conta a qualidade da água disponível,
o tipo de tratamento da água para o consumo humano e o destino
dado aos dejetos humanos); h) limpeza pública e aspectos urbanísticos
(enfatizando-se o destino dado aos resíduos sólidos domiciliares, a
frequência na coleta destes e os aspectos paisagísticos da cidade); i)
transporte e pavimentação (considerando-se o estado de conservação
das vias urbanas e o acesso ao município, a disponibilidade de transporte
coletivo e seu estado de conservação); j) esporte e lazer (observando-se
o bem-estar físico, as opções de lazer e o tipo de diversão preferida);
l) segurança (considerando-se os itens: nível de ocorrência de delitos
e acesso a programas de combate à violência) e m) inclusão social
(destacando-se exclusão social, acesso a programas de inclusão social e
participação em entidades associativas).
No intuito de cumprir com os objetivos propostos, utilizaram-se a
análise tabular e descritiva das variáveis socioeconômicas e a mensuração
do Índice de Qualidade de Vida, que pode ser determinado com a
agregação dos indicadores descritos e expresso matematicamente pela
“equação (1)”, a seguir:
Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada... 103

(1)

A contribuição de cada indicador do Índice de Qualidade de


Vida dos residentes no perímetro urbano do município de Juazeiro do
Norte (IQVJN) pode ser representada algebricamente pela “equação
(2)”, como se segue:

(2)

Onde:
IQVJN = Índice de Qualidade de Vida do Perímetro Urbano de Juazeiro
do Norte;
eij = escore do i-ésimo indicador, obtido pelo j-ésimo residente;
pij = peso do i-ésimo indicador, definido pelo j-ésimo residente;
i = 1, 2, 3, ... , m;
j = 1, 2, 3, ..., n;
Pij = peso máximo do i-ésimo indicador;
Eij = escore máximo do i-ésimo indicador;
Ii = contribuição do indicador i no Índice de Qualidade de Vida;
n = número de residentes;
m = número de indicadores.
O Índice de Qualidade de Vida das famílias residentes na cidade de
Juazeiro do Norte (IQVJN) varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1,
melhor o nível de qualidade de vida que o residente apresenta. Portanto,
o valor 1 representa o nível ótimo de qualidade de vida. Dentro desses
limites, optou-se por estabelecer os seguintes critérios:
a) Baixa qualidade de vida.......................................0 < IQVJN ≤ 0,33;
b) Média qualidade de vida .......................... ..........0,33 < IQVJN ≤ 0,66;
c) Alta qualidade de vida ........................................0,66 < IQVJN ≤ 1.
104 Wellton Cardoso Pereira et al.

Através da observação da participação de cada indicador no


índice calculado, fizeram-se considerações a respeito dos aspectos
socioeconômicos que exigem prioridade nas intervenções com vistas a
melhorar a qualidade de vida na área pesquisada.

Tamanho da amostra

O presente trabalho utilizou dados primários, coletados nas


famílias que moram no perímetro urbano de Juazeiro do Norte, no
período de março a junho de 2005.
Para determinar o tamanho da amostra para populações infinitas,
empregou-se a “equação (3)”, recomendada por Fonseca e Martins
(1996) e exposta a seguir:

(3)

Onde:
n = tamanho da amostra;
Z = abscissa da normal padrão;
p = estimativa da proporção da característica pesquisada no universo;
q = 1 – p;
d = erro amostral.

Considerando uma população infinita, um erro de estimação de


9% (d = 0,09), abscissa da normal padrão Z = 1,96, ao nível de confiança
de 95% e p = q = 0,5 (na hipótese de se admitir o maior tamanho da
amostra, porquanto não se conhecem as proporções estudadas), obteve-
se um tamanho da amostra (n) igual a 119.
Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada... 105

Resultados e Discussões

Perfil sociocultural e econômico dos residentes no perímetro urbano do município de


Juazeiro do Norte, Ceará
Faixa Etária

A Tabela 1 mostra a predominância de residentes da área de estudo


na faixa etária de 20 a 40 anos (46,22%) e a menor frequência de menores
de 20 anos. Destarte, observa-se que a maior parcela dos habitantes do
perímetro urbano de Juazeiro do Norte está compreendida no intervalo
da população economicamente ativa ou com potencial produtivo.

Tabela 1 – Frequências absoluta, relativa e acumulada conforme a


faixa etária dos residentes no perímetro urbano do município de
Juazeiro do Norte – CE, 2005
Faixa Etária Nº de residentes % Fac (%)
< 20 04 3,36 3,36
20 30 27 22,69 26,05
30 40 28 23,53 49,58
40 50 22 18,49 68,07
50 60 19 15,97 84,04
60 70 10 8,40 92,44
> 70 09 7,56 100,00
Total 119 100,00 -
Fonte: Dados da Pesquisa. Fac - Frequência acumulada.

Esses dados demonstram que o indicador emprego e renda


possui grande relevância na qualidade de vida da população estudada e,
consequentemente, poderá constituir uma variável crítica no processo
de desenvolvimento econômico do município em questão.

Grau de instrução

Os dados contidos na Tabela 2 revelam que um percentual


significativo de residentes (45,38%) frequentou o ensino fundamental,
mas não o concluiu. Essa alta taxa de evasão escolar pode ser um reflexo
da necessidade de ingresso precoce do indivíduo no mercado de trabalho,
106 Wellton Cardoso Pereira et al.

para complementar a renda familiar. E que apenas 4,20% concluíram o


ensino superior, apesar de existirem instituições de ensino superior no
município. Tal fato será explicado a posteriori pelo baixo nível de renda
dos residentes pesquisados.

Tabela 2 - Frequências absoluta e relativa conforme o grau de


instrução dos residentes no perímetro urbano do município de
Juazeiro do Norte – CE, 2005
Grau de Instrução Nº de Residentes %
Analfabeto 17 14,29
Semi-analfabeto 02 1,68
Ensino fundamental incompleto 54 45,38
Ensino fundamental completo 09 7,56
Ensino médio incompleto 04 3,36
Ensino médio completo 26 21,85
Ensino superior incompleto 02 1,68
Ensino superior completo 05 4,20
Total 119 100,00
Fonte: Dados da Pesquisa

Confrontando os dados da Tabela 1 com os da Tabela 2,


constata-se que, embora a proporção de 46,22% da população local
seja economicamente ativa, 60% dos citadinos possuem no máximo o
ensino fundamental incompleto, o que compromete a inserção destes
em postos de trabalho de setores econômicos dinâmicos, que tendem
a exigir mão-de-obra com alta qualificação técnica, a fim de atender aos
novos métodos de produção flexível.
Sem reduzir a educação a sua função instrumental de preparação
para o mercado de trabalho, dado que também se trata de um direito humano,
entende-se que as políticas educacionais possuem grande relevo na superação
da situação vivida em Juazeiro do Norte, em termos de vulnerabilidade de
mão-de-obra diante das exigências do setor produtivo.
Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada... 107

Tamanho da família

A Tabela 3 demonstra que o tamanho predominante da família


juazeirense é de três ou quatro membros, ou seja, 38,66% dos grupos
familiares, e que 85,72% das famílias possuem no máximo seis pessoas.

Tabela 3 – Frequências absoluta, relativa e acumulada conforme o


tamanho da família no perímetro urbano do município de Juazeiro do
Norte – CE, 2005
Tamanho da família Nº de Famílias % Fac (%)
12 21 17,65 17,65
34 46 38,66 56,31
56 35 29,41 85,72
78 12 10,08 95,80
910 03 2,52 98,32
1112 02 1,68 100,00
Total 119 100,00 -
Fonte: Dados da pesquisa. Fac: Frequência acumulada.

A predominância de famílias que possuem três ou quatro


membros pode dar a impressão de que as políticas de incentivo
ao planejamento familiar estejam surtindo um efeito considerável
sobre o perfil da família de Juazeiro do Norte. Todavia, quando se
observa que 43,69% das unidades familiares estudadas possuem
cinco ou mais pessoas, verifica-se a possibilidade de que as práticas
de planejamento familiar não sejam tão frequentes entre a população
em questão.
Esse quadro indica o agrupamento de muitas necessidades
individuais em alguns grupos familiares. É preciso incrementar os
incentivos ao planejamento das famílias, e facilitar a sua execução, a fim
de impedir o aprofundamento e a reprodução de contextos como esse.
Ademais, estratégias de ampliação das oportunidades de ingresso no
mercado de trabalho e de geração de renda, combinadas com políticas
de qualificação técnica de mão-de-obra, podem contribuir para elevar
as condições das famílias, sobretudo as mais numerosas, para atender
às necessidades dos seus integrantes.
108 Wellton Cardoso Pereira et al.

Faixa de renda

Os dados disponíveis na Tabela 4 evidenciam a concentração de


renda nas famílias pesquisadas, das quais 78,99% ganham até três salários
mínimos e 4,20% têm rendimento superior a dez salários mínimos.

Tabela 4 – Frequências absoluta, relativa e acumulada conforme a renda


familiar no perímetro urbano do município de Juazeiro do Norte - CE, 2005
Faixa de renda (SM)* N° de famílias % Fac (%)
01 42 35,29 35,29
1 3 52 43,70 78,99
3 5 17 14,29 93,28
5 10 03 2,52 95,80
10 50 05 4,20 100,00
Total 119 100,00 -
Fonte: Dados da Pesquisa. Fac: Frequência acumulada.
* Salário mínimo.

Observa-se que a maioria das famílias das camadas urbanas de


Juazeiro do Norte sofre restrições severas no orçamento disponível para
satisfazer suas necessidades, que dificultam o acesso a bens e serviços
diversos e influenciam negativamente a satisfação no consumo. Essa
limitação orçamentária também afeta a demanda por produtos locais,
dado que o mercado consumidor possui uma reduzida dimensão, o que
restringe as possibilidades de crescimento econômico.

Qualidade de Vida

Os resultados relacionados à qualidade de vida das famílias


residentes em Juazeiro do Norte, apresentados na Tabela 5, a seguir,
permitem que se tenha uma idéia mais ampla das condições de
vida naquela cidade, assim como se conheça o grau de satisfação da
população, correspondente a cada indicador.
Abaixo se encontram agrupados os indicadores do nível de
qualidade de vida, conforme a Tabela 5:
• Baixa qualidade de vida: segurança (0,0762); inclusão social (0,1116);
emprego e renda (0,1820); esporte e lazer (0,1963); educação (0,2165);
saúde (0,2178); transporte e pavimentação (0,3034);
Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada... 109

• Média qualidade de vida: acesso a bens de primeira necessidade


e bens duráveis (0,3339); habitação (0,5064); energia elétrica e
telecomunicações (0,5459); água e saneamento básico (0,5607);
• Alta qualidade de vida: limpeza pública e aspectos urbanísticos (0,8184).

Cabe observar que alguns indicadores de serviços públicos


essenciais (segurança, educação e saúde) atestam a insatisfação da
população e evidenciam a necessidade de melhorias governamentais
na qualidade e cobertura desses serviços. Merecem atenção também
os baixos índices de participação dos residentes de Juazeiro do Norte
em organizações associativas, refletidos no indicador inclusão social, o
que demonstra que a cidade carece de estímulos à auto-organização da
sociedade civil, a qual facilitaria ações coletivas coordenadas. Além disso, os
baixos índices relacionados a esporte e lazer e a transporte e pavimentação
estão associados estreitamente com as deficiências relacionadas a emprego
e renda, já que são serviços cujo acesso é determinado pelo poder aquisitivo
do indivíduo, com exceção da pavimentação urbana.

Tabela 5 – Participação dos indicadores na composição do Índice de


Qualidade de Vida dos residentes no perímetro urbano do município
de Juazeiro do Norte – CE – IQVJN, 2005
Indicadores IQVJ Participação %
Acesso a bens* 0,3339 0,0278 8,20
Água e saneamento básico 0,5607 0,0467 13,77
Educação 0,2165 0,0180 5,31
Emprego e renda 0,1820 0,0152 4,48
Energia elétrica e telecomunicações 0,5459 0,0455 13,42
Habitação 0,5064 0,0422 12,44
Inclusão social 0,1116 0,0093 2,74
Esporte e lazer 0,1963 0,0164 4,84
Limpeza pública e aspectos urbanísticos 0,8184 0,0682 20,11
Saúde 0,2178 0,0182 5,37
Segurança 0,0762 0,0063 1,86
Transporte e pavimentação 0,3034 0,0253 7,46
Total 0,3391** 0,3391 100
Fonte: Dados da pesquisa.
* Bens de primeira necessidade e bens duráveis.
** Representa a média aritmética dos IQVs por indicadores.
110 Wellton Cardoso Pereira et al.

Verifica-se que os indicadores segurança, inclusão social e


emprego e renda apresentaram os piores resultados, respectivamente:
0,0762; 0,1116 e 0,1820. Por outro lado, os indicadores que obtiveram
os melhores resultados foram limpeza pública e aspectos urbanísticos,
água e saneamento básico e energia elétrica e telecomunicações,
respectivamente: 0,8184; 0,5607 e 0,5459.
Agregando todos indicadores, tem-se o IQVJN no valor de
0,3391, o qual representa um nível médio de qualidade de vida, embora
esse índice se encontre muito próximo do limite do intervalo do nível
considerado baixo.

Considerações finais

Os resultados obtidos na pesquisa tornam possível concluir que grande


parte da população urbana de Juazeiro do Norte é formada por pessoas na
faixa etária de 20 a 40 anos e que é significativa a parcela de residentes com
o ensino fundamental incompleto, dado que contrasta com o fato de que
há instituições de ensino superior, inclusive públicas, no município. Um
percentual de 43,69% das famílias possui cinco ou mais pessoas e 78,99%
delas têm rendimento de até três salários mínimos, enquanto uma ínfima
parte tem renda superior a cinco salários mínimos, o que evidencia uma
forte concentração de renda, que compromete o desenvolvimento social e
desafia a sociedade a buscar uma melhor distribuição da riqueza.
No geral, a população de Juazeiro do Norte tem média qualidade
de vida, apesar de o IQVJN estar bem próximo do nível de baixa
qualidade de vida e indicar, portanto, um quadro de fragilidade da
situação social e econômica da maioria das famílias na área estudada.
Pelo que se observou dos indicadores específicos, o avanço da
qualidade de vida das famílias urbanas juazeirenses depende, por um
lado, da ampliação da oferta e da melhoria de alguns serviços públicos
e, por outro, da possibilidade de aquelas famílias com baixo nível de
renda virem a elevar sua participação na renda local.
Dessa forma, os maiores desafios à obtenção de um processo
de desenvolvimento econômico que imprima melhor nível de qualidade
Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada... 111

de vida em Juazeiro do Norte consistem em elevar a satisfação dos


residentes, sobretudo quanto aos elementos: segurança; inclusão social;
emprego e renda; esporte e lazer; educação; saúde; e transporte e
pavimentação. Deve-se, ainda, buscar ampliar aqueles indicadores que
apresentaram nível médio ou alto de qualidade de vida.
Cumprindo tais desafios, o município poderá, de fato, adentrar
num processo de desenvolvimento econômico no qual seja garantida
aos seus cidadãos a satisfação de suas necessidades pelo acesso a bens e
serviços diversos, que permitam assegurar uma qualidade de vida capaz
de conferir a dignidade a que todos os seres humanos têm direito.

Referências

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Cooperativa Agropecuária de Brejo Santo – Ceará. Revista Econômica
do Nordeste - REN, Fortaleza, n. 4, v. 35, p. 500-527, out./dez. 2004.

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municípios com maiores índices de degradação ambiental do semi-
árido cearense no Brasil. Políticas Agrícolas, Fortaleza, n. 1, v. 4, p.
5-39, 1999.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e
o contexto econômico camponês dessa atividade no
Nordeste brasileiro

José Raimundo Cordeiro Neto 1

Resumo: Este artigo trata do processo de mudança tecnológica orientada para


a ovinocaprinocultura nordestina, considerando o caráter predominantemente
camponês dessa atividade produtiva na Região Nordeste. Utiliza-se pesquisa
bibliográfica para abordar as necessidades específicas desse tipo de produção
na incorporação de novos procedimentos produtivos e na conciliação da nova
base tecnológica com a organização socioeconômica particular do campesinato.
Relacionam-se as inovações geradas para a pecuária ovina e caprina com as
dinâmicas inerentes às unidades camponesas e aos processos que envolvem
novas tecnologias.

Palavras-chave: Inovações tecnológicas. Ovinocaprinocultura. Campesinato.


Nordeste.

The technological innovations generated for sheep and the goat


farming and the economic peasant context of this activity in the
brasilian northeast

Abstract: This article deals with the technological change process aimed at the
sheep and goat farming industry in the northeast, considering the predominantly
peasant character of this productive activity in the northeastern region. Bibliographic
1
Economista graduado pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Assessor de Planejamento
da Pró-Reitoria de Planejamento e Avaliação da URCA. E-mail: netocorde@bol.com.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 113-130 2009
114 José Raimundo Cordeiro Neto

research is used to approach specific needs for this activity in the incorporation of
new productive proceedings and the strategies to conciliate the new technological
base with the particular socioeconomic organization of peasantry. Innovations
generated for sheep and goat farming are related to the dynamics inherent to
peasant units and the processes that involve new technologies.

Keywords: Technological innovation. Sheep and goat farming. Peasantry.


Northeast.

Introdução

O Nordeste brasileiro assume relevo no campo das estratégias
nacionais de desenvolvimento rural, em decorrência da elevada
participação que detém essa região na pobreza rural do país. Conforme
estudo de Rocha (2003), a proporção de pobres rurais nordestinos em
relação ao total de pobres rurais brasileiros era de 68,17% em 1999.
As demandas sociais acentuadas por essa situação têm promovido
considerável surgimento de inovações técnicas para algumas atividades
agropecuárias nordestinas tradicionais, como é o caso da ovinocaprinocultura2.
Segmentos produtivos como esse são caracterizados pela presença
predominante da pequena produção familiar, quanto à quantidade de
unidades produtivas. Esse é um aspecto condizente com o fato de que a
região nordestina concentra o maior número de estabelecimentos agrícolas
familiares do Brasil (INCRA, 2000). Semelhantemente, 68,8% dos caprinos
e 65,9% dos ovinos são criados, no Nordeste, em propriedades com área
inferior a 100 ha (CORREIA et al., 2001).
Ao gerar tecnologias que possam ser internalizadas pelas unidades
produtoras de ovinos e caprinos no Nordeste, as instituições de pesquisa
agropecuária indicam seguir a idéia de que a elevação da produtividade daí
esperada possibilitará elevar o padrão de vida no meio rural, contribuindo
para superar a condição predominante de pobreza nesse espaço.

2
Pressupõe-se que o Nordeste possui vantagens competitivas em setores como esse. Na ovi-
nocaprinocultura, sabe-se que, atualmente, 93,7% dos caprinos e 48,1% dos ovinos do rebanho
brasileiro são criados no Nordeste (CORREIA, et al., 2001). Nesse contexto, têm grande im-
portância as características da região Semi-Árida, que se apresentam apropriadas às necessidades
desses animais, especialmente no que diz respeito às temperaturas e à vegetação (a caatinga) que
lhes serve de alimento.
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ... 115

Neste artigo, entendendo-se que a criação nordestina de pequenos


ruminantes é típica de pequenas unidades camponesas, investigam-se
as necessidades específicas que esse tipo de produção pode enfrentar
para empreender a mudança tecnológica orientada para a atividade.
Também são abordadas as condições para que se mantenha o caráter
camponês da unidade que venha a se modificar tecnologicamente, de
modo a conciliar a nova base tecnológica e a organização socioeconômica
própria do campesinato.
Para tanto, o estudo apoiou-se no levantamento das tecnologias
geradas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa
– para a ovinocaprinocultura e em parte da literatura disponível sobre
tecnologia e mudança tecnológica, além das referências sobre a pequena
produção camponesa.
Nas seções a seguir, inicia-se por estabelecer um referencial
teórico sobre tecnologia e campesinato. Em seguida, apresentam-se
os procedimentos tecnológicos desenvolvidos pela Embrapa Caprinos
para a pecuária em questão, relacionando-os ao contexto camponês que
envolve o segmento. Por fim, são pontuadas as considerações finais a
respeito do assunto estudado.

Tecnologia e campesinato

Tecnologia

Diversos pesquisadores da área de Economia concordam que


a variável tecnológica só passou a ser reconhecida como elemento
central das economias capitalistas com as contribuições de Joseph A.
Schumpeter, nas primeiras décadas do século XX. De fato, a abordagem
schumpeteriana lançou as bases dos estudos a respeito da tecnologia
ao distinguir entre os ajustes contínuos de antigas combinações de materiais de
produção, decorrentes de pressões de demanda, e as novas combinações
(SCHUMPETER, 1997).
116 José Raimundo Cordeiro Neto

De acordo com Schumpeter (1997, p. 75), novas combinações


“seriam capazes de romper o fluxo circular, originando o fenômeno
do desenvolvimento” e estariam relacionadas à entrada de um novo bem
no mercado, à introdução de um novo método de produção, à abertura de
um novo mercado, à conquista de uma nova fonte de matéria-prima e/ou ao
estabelecimento de uma nova organização de qualquer setor.
Como qualquer uma dessas inovações faria iniciar um fluxo
diferenciado, com um deslocamento do estado de equilíbrio previamente
existente, o agente econômico empreendedor da nova combinação
enfrentaria como principal dificuldade a necessidade de operar em uma
situação inusitada em relação as suas experiências anteriores. Ele estaria
desprovido dos novos dados, que passariam a marcar as circunstâncias,
ao mesmo tempo em que necessitaria planejar conscientemente sua
conduta em todos os particulares. O agente inovador, denominado por
Schumpeter (1997) de empresário, possuiria, contudo, diversas razões para
empreender a nova combinação (a distinção social, o desejo de conquistar
um reino privado, a alegria de criar, o exercício da engenhosidade, etc.).
Além disso, sendo uma condição para a realização da nova combinação, o
seu trabalho poderia ser concebido como um meio de produção singular,
o que lhe proporcionaria uma remuneração específica: o lucro empresarial,
que existirá enquanto a nova combinação não se difundir3.
De acordo com Dalcomuni (2000, p. 201), a partir desse marco
teórico, a tecnologia passa a ser conceituada como conhecimento, “o qual pode
estar materializado em máquinas, equipamentos, instalações, mas também
constituindo-se em conhecimento abstrato, seja explícito [...] ou tácito”.
As relações entre esses conceitos teóricos e a atividade agropecuária
adquirem sentido quando se observam as idéias de Schultz (2005, p. 147):
“a base econômica do crescimento lento associado com a agricultura
tradicional é explicada pela dependência de um determinado conjunto de
fatores de produção, cuja rentabilidade já está esgotada”. Sendo assim,
esse autor acredita que o progresso técnico no setor primário apenas
3
Com a difusão, os novos métodos serão incorporados ao fluxo circular normal, abolindo-se o direi-
to da liderança do empreendedor a ele imputado: “então o novo processo de produção se repetirá.
E para isso a atividade empresarial não é mais necessária” (SCHUMPETER, 1997, p. 145).
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ... 117

pode ocorrer por incorporação de novos fatores de produção às práticas


produtivas, o que envolve, além de insumos materiais, as habilitações e
as aptidões de um povo, passíveis de ampliação pelo investimento em
capital humano4.
Para Schultz (2005), a dinamização dos segmentos produtivos
rurais dependeria da geração de insumos com uma taxa de retorno
capaz de justificar o investimento adicional do seu emprego. Para tanto,
necessitar-se-ia de instituições de pesquisa, já que, embora os fatores
materiais da inovação pudessem ser importados, eles necessitariam ser
adequados aos contextos particulares; além do mais, o capital humano exigiria
investimentos próprios.
A efetivação desse processo, contudo, mostra-se problemática em
muitos casos, em especial nas economias subdesenvolvidas, não apenas
pelas dificuldades de modernização do setor primário, mas também, e
sobretudo, em razão dos efeitos da introdução da nova base tecnológica.
A heterogeneidade do grupo de agentes econômicos encontrada nas
zonas rurais e as desiguais condições socioeconômicas em que esses
agentes atuam comprometem a realização de uma mudança técnica que
envolva todos os segmentos existentes e, simultaneamente, beneficie
o conjunto da população rural. Pesam, nesse contexto, os problemas
relativos à concentração fundiária, além das assimetrias do acesso ao
crédito entre as unidades produtivas, das diferenças regionais e do
contexto particular das atividades produtivas para as quais se propõe
mudança tecnológica. Ainda têm destaque entre os grupos sociais a
serem atingidos a lógica de organização socioeconômica de cada um,
as condições objetivas em que operam para produzir, a natureza das
dificuldades enfrentadas e das suas necessidades. Isso significa admitir
que uma determinada tecnologia possa mostrar-se apropriada a um
grupo e inapropriada a outro (ARAÚJO, 1988).

4
Os impactos desse tipo de investimento podem ser visualizados pelos conceitos de efeito traba-
lhador (direto) e efeito alocativo (indireto), relacionados aos retornos da educação na produção
agropecuária. “O aumento da educação permite ao trabalhador produzir mais com os recursos em
mãos – esse é o efeito trabalhador. Mas o aumento da educação pode aumentar, também, a habilidade
do trabalhador em adquirir e decodificar informações sobre características produtivas e custos de
outros insumos, o que constitui o chamado efeito alocativo” (FIORI; ARAÚJO, 2002, p. 646).
118 José Raimundo Cordeiro Neto

Campesinato

O campesinato é entendido aqui como um grupo que possui


substância e identidade sociais próprias5. Embora a produção camponesa
seja frequentemente denominada pequena produção, não é a dimensão
territorial do estabelecimento produtivo que irá defini-la, mas as
características inerentes à organização do seu processo produtivo e à
sua forma de inserção na sociedade mais ampla. Em primeiro lugar,
como ressalta Araújo (1988, p. 26), a propriedade campesina produz,
prioritariamente, alimentos, e

[...] a denominada unidade de exploração ou unidade de trabalho


é também uma unidade de consumo. Esta dupla dimensão se
põe em realidade devido à produção ser praticada pelo grupo
doméstico. Este fato vai dar à unidade de trabalho um caráter
familiar.

Conforme esse autor, a administração desse tipo de produção


tem sempre como base de cálculo o consumo socialmente necessário ao grupo
doméstico, por um lado, e os recursos disponíveis para fazer frente a essa
necessidade, por outro.
Pelo fato de essa produção se relacionar estreitamente com
o ambiente natural, torna importante destacar o conceito de ecótipo
camponês, “um sistema de transferência de energias do meio ambiente
para o homem” (WOLF, 1976, p. 36). O autor distingue dois tipos
de ecótipos: o paleotécnico, no qual o trabalho humano e o animal
são predominantes na produção de alimentos e na criação de mais
homens e animais, as máquinas empregadas são simples e as técnicas
de cultivo, tradicionais; e o neotécnico, influenciado pela industrialização
e caracterizado pela confiança crescente no uso dos combustíveis
elaborados e de aperfeiçoamentos científicos.
5
As conceituações de campesinato são muitas, conquanto os primeiros estudos a respeito desse
grupo remontem ao século XVIII. Até as últimas décadas, o tema foi objeto de estudo de diver-
sas vertentes em diferentes ciências: economia, antropologia, agroecologia, entre outras, o que
proporcionou um acúmulo de conhecimento sobre o assunto em que vários fatores se somam
nos esforços de compreendê-lo. Para uma revisão dos principais conceitos de campesinato, ver
Sevilla Gusmán; Mollina (2005).
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ... 119

É também importante considerar a concepção de racionalidade


econômica incompleta. Para Abramovay (1992, p. 115), “nada mais distante
da definição do modo de vida camponês que uma racionalidade
fundamentalmente econômica”. Isso se deve ao fato de que, na verdade,
o ambiente social das comunidades camponesas promove um conjunto
de normas próprias e vínculos personalizados, critérios organizadores da
vida, que, juntamente com alguma racionalidade econômica, determinam
o uso dos fatores produtivos e o consumo.
Nesse sentido é que se acrescentam à definição de campesinato
diversos elementos, como os conceitos de integração parcial aos mercados e
do caráter incompleto desses mercados (ELLIS apud ABRAMOVAY, 1992). De
acordo com essas idéias, a integração social do camponês nas relações
mercantis não é uma condição fundamental à sua reprodução social,
dadas a sua flexibilidade para entrar e sair dos mercados e a garantia de
que a autoprodução assegura parte da subsistência; e, na comercialização
dos seus produtos, os camponeses não se apóiam, essencialmente, em
transações impessoais, mas, pelo contrário, as condições locais com vínculos
personalizados são as bases das suas trocas comerciais, e permitem influência
individual de certos agentes econômicos sobre a formação de preços.
No que concerne à função da tecnologia no contexto da pequena
produção camponesa, esta é explicada por Araújo (1988) com base
no conceito de grau de auto-exploração do grupo doméstico no processo
de trabalho, o qual destina-se a garantir a quantidade de produtos
necessários ao consumo familiar da unidade produtiva. Para o autor,

[...] é de supor que acréscimos na produtividade física


da propriedade ou mesmo na produtividade do trabalho
contribuiriam para reduzir a penosidade do trabalho em termos
globais para a família e, consequentemente, satisfazer a demanda
familiar com menos esforço (p. 27).

O incremento da produtividade é também uma estratégia básica na


solução de um tradicional dilema camponês: “contrabalançar as exigências
do mundo exterior, em relação às necessidades que ele encontra no
120 José Raimundo Cordeiro Neto

atendimento às necessidades dos seus familiares” (WOLF, 1976, p. 31).


Nessa concepção, em resposta ao problema colocado, o camponês pode,
por meio da incorporação de inovações técnicas, obter um maior nível de
produção, que lhe permita o crescimento de sua produção de gêneros para
o auto-consumo, bem como dispor de um maior valor em produtos que possam
ser comercializados, para gerar uma renda destinada à compra daqueles bens
que a unidade doméstica não produz e necessita adquirir nos mercados.

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e as


inovações na ovinocaprinocultura

A Embrapa

Sendo uma instituição vinculada ao Ministério da Agricultura,


Pecuária e Abastecimento, fundada em 1973, a Embrapa atua
efetivamente por meio de quarenta e uma Unidades Descentralizadas,
distribuídas entre diversas regiões brasileiras. O caráter dessa organização
pode ser entendido pela observação da missão que adota: “viabilizar
soluções para o desenvolvimento sustentável do espaço rural, com
foco no agronegócio, por meio da geração, adaptação e transferência
de conhecimentos e tecnologias, em benefício dos diversos segmentos
da sociedade brasileira” (EMBRAPA, 2007a).
A missão institucional adotada pela Embrapa Caprinos, uma das
Unidades Descentralizadas, não se diferencia muito, obviamente, da
apresentada, apenas acrescenta o “foco no agronegócio da caprinocultura
e da ovinocultura” e enfatiza, em consonância com o IV Plano Diretor
da Embrapa, “a inclusão social, a segurança alimentar, as expectativas
de mercado e a qualidade do meio ambiente” (EMBRAPA, 2007b).
Transcorridas mais de três décadas desde a sua criação, a Embrapa
apresenta-se atualmente como instituição que atua não só nos segmentos
ocupados prioritariamente pela grande produção, como é o caso da
soja e do gado bovino. Conforme seu discurso oficial, alguns de seus
programas específicos se voltam para a organização de tecnologias e
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ... 121

sistemas de produção que logram “aumentar a eficiência da agricultura


familiar e incorporar pequenos produtores no agronegócio, garantindo
melhoria na sua renda e bem-estar” (EMBRAPA, 2007a).

As tecnologias disponibilizadas pela Embrapa Caprinos

No quadro 1, a seguir, são listados os principais procedimentos


tecnológicos concebidos pela Embrapa Caprinos. Em geral, os
sistemas de exploração modernos derivados das técnicas a serem
listadas dizem respeito “à sanidade, alimentação, práticas de manejo
animal e de instalações, além daquelas de maior refino, destinadas
à melhoria do padrão genético dos plantéis, como a inseminação
artificial e a transferência de embriões” (NOGUEIRA FILHO;
KASPRZYKOWSKI, 2006, p. 20).
TECNOLOGIA DEFINIÇÃO
Conjunto de técnicas que buscam promover uma
Manipulação da
maior disponibilidade de forragem* na pastagem
Vegetação Nativa
nativa da Região Nordeste.
Processo que visa solucionar problemas referentes
Sistema de Produção de
à alimentação, nutrição, sanidade, reprodução,
Caprinos e Ovinos para
melhoramento, instalações, raça e manejo dos
processamento de Carne
animais. Também orienta no sentido de priorizar a
e Pele
administração gerencial da atividade.
Sistema que envolve o manejo diário das fêmeas,
em suas diversas categorias, a fim de racionalizar o
Sistema de Produção de
consumo de insumos, promover a produção do leite
Cabras de Leite
em conformidade com critérios de higiene e estabelecer
uma regularidade produtiva ao longo do ano.
Consiste no acabamento de cordeiros e cabritos para
Terminação de Cordeiros o abate, em pastagem cultivada, com idade precoce,
e Cabritos em Pastagem com tamanho de carcaça considerado satisfatório
Cultivada e com elevada qualidade da carne, no tocante a
sabor, cheiro, maciez e teor de gordura.
Confinamento de um g r upo de cordeiros
Terminação de Cordeiros homogêneos em peso, idade e raça, para, ao final
Confinados de 70 dias, apresentar-se com peso e conformação
programados para o abate.
Continua
*Alimento animal originado de forrageiras, que são constituídas “de vegetação, natural ou plantada,
que cobre uma área e é utilizada para alimentação de animais, seja ela formada por espécies de
gramíneas, leguminosas ou plantas produtoras de grãos” (ORMOND, 2004, p. 132).
122 José Raimundo Cordeiro Neto

Consta de uma área isolada, cultivada com


Formação e Uso do Banco espécies forrageiras ricas em proteínas, de boa
de Proteínas palatabilidade, de crescimento rápido e com alto
poder de rebrota.
Uso de métodos e práticas de controle e de
organização do rebanho, nos quais se consideram,
por exemplo: separação por sexo, estabelecimento de
Manejo Reprodutivo de
época de acasalamento, observância de peso e idade
Caprinos e Ovinos
ao primeiro cruzamento ou cobertura, intervalo
entre partos, relação macho/fêmea, uso do rufião**
e desmame.
Série de etapas que envolve a colheita, o
Tecnologia de Sêmen de
processamento, a avaliação e a armazenagem
Caprinos e Ovinos
do sêmen.
Indução e Sincronização Consiste em se promover, em meio às fêmeas adultas de
do Estro e Inseminação um rebanho caprino ou ovino, o desencadeamento
Artificial simultâneo do estro, ou cio.
Colheita, criopreser vação e transferência de
Biotecnologia de
embriões com vistas ao melhoramento genético e
Embriões
dimensionamento rápido dos rebanhos de elite.
Soluções Tecnológicas Série de práticas e processos tecnológicos destinados
para o Contr ole das à prevenção, à identificação e ao controle das
Principais Doenças de doenças mais importantes que acometem os caprinos
Caprinos e Ovinos e ovinos.
São técnicas de transformação/industrialização
Processamento Agro-
da carne, na perspectiva de agregar-lhe valor de
industrial de Carne de
mercado, que dão mais opções de consumo e
Caprinos e Ovinos
reduzem os desperdícios.
Processo de separação em pedaços (peças) de
Cortes Padronizados de
carcaças de caprinos e ovinos, em que se guarda uma
Carcaças de Caprinos e
estreita proporção entre o peso e a relação carne/
Ovinos
osso de cada peça.
Consiste nos cuidados a serem dispensados
Produção Higiênica do durante as seguintes etapas de obtenção do leite:
Leite de Cabra ordenha, acondicionamento, transporte e entrega para
o processamento.
Derivados do Leite de Transformação do leite de cabra em queijos, doces,
Cabra patês, entre outros produtos.
Trata de como se deve proceder desde a
Cuidados e Tratamento retirada, limpeza, salga e armazenagem até a
da Pele de Caprinos e comercialização da pele, para evitar que ela venha
Ovinos a adquirir defeitos irreversíveis e a consequente
classificação de refugo.

Quadro 1 – Tecnologias para a ovinocaprinocultura


Fonte: Construção própria com base em informações disponíveis em Embrapa (2007c).
** “Macho estéril utilizado para descobrir as fêmeas que estão no cio para serem cobertas pelo
reprodutor” (ORMOND, 2004, p. 245).
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ... 123

O quadro 1 demonstra que há um desenvolvimento significativo


de “novas combinações” para a pecuária de caprinos e de ovinos. Diante
disso, pode-se falar em mudança tecnológica nessa atividade naqueles casos
em que práticas como essas são incorporadas pelos produtores.
Considere-se que, de fato, o que a mudança tecnológica representa
é o surgimento e a utilização de novos fatores produtivos em um dado processo
de produção. Associando a essa idéia as técnicas e procedimentos
descritos, entende-se que expressões como processos de manejo da caatinga,
administração da propriedade, pastagens cultivadas, confinamento, formação e uso
de banco de proteína, práticas de controle e organização do rebanho, organização do
manejo reprodutivo, produção de animais superiores, práticas e técnicas que evitam,
controlam e combatem doenças, processamento e transformação de carnes, peles e
leite designam fatores de produção elaborados, sejam eles materiais ou
relativos a habilitações humanas6.
Esse contexto marca a entrada de novos processos produtivos na
ovinocaprinocultura. Dessa forma, a manipulação da vegetação nativa
envolverá novas práticas de utilização de plantas diversas e novos métodos
de interferência nos seus ciclos de vida. Semelhantemente, o manejo
alimentar, sanitário e reprodutivo dos animais incorpora elementos
externos aos procedimentos tradicionais, como a atenção à composição
nutricional de rações, a adoção de vermífugos e medicamentos em geral e
o controle sobre as funções reprodutivas dos caprinos e ovinos. Também
os animais deixam de ser tratados como um conjunto homogêneo e a
atividade passa a exigir ações diferenciadas para cada tipo, a depender da
espécie, da idade, do sexo, do peso, da função no rebanho, do estado de
saúde, da raça, do produto a fornecer, entre outros critérios7. Acrescente-se
que passa a se praticar o estabelecimento de metas a serem atingidas em
determinado período em função das exigências de mercado quanto ao
peso dos animais e qualidade das carnes. Ademais, todas essas novidades
tendem a exigir uma nova forma de acompanhamento administrativo da
atividade, relativamente à maior especificidade da função gerencial.
6
Essas práticas guardam grande distância do padrão tradicional, extensivo e rudimentar das criações
caprina e ovina do Nordeste (SOUZA NETO, 1986).
7
Assim, o acompanhamento alimentar e sanitário torna-se segmentado, por exemplo, entre caprinos
e ovinos, entre animais filhotes, jovens e adultos, entre machos e fêmeas, entre fêmeas solteiras, na
prenhez e em lactação, entre animais destinados ao corte, à produção de leite e à reprodução.
124 José Raimundo Cordeiro Neto

É oportuno salientar que a maior parte das inovações não se limita


ao aperfeiçoamento de procedimentos tradicionalmente praticados na
ovinocaprinocultura. Isto é, não se trata meramente de incrementos ao padrão
tecnológico. As técnicas em questão introduzem mudanças que vão além de
pequenas adições ao modelo tradicional de criação de caprinos e ovinos,
sobretudo aquelas tecnologias de maior interferência nos organismos8.
A noção schumpeteriana de mudança descontínua e de perturbação do
equilíbrio aplica-se a esse contexto de modificação da ovinocaprinocultura,
porquanto há invenções que adentram nos processos de produção. É
oportuno destacar que isso envolve a introdução no mercado de novos bens
derivados da atividade, sejam raças, doses de sêmem, embriões ou ainda
apresuntados, linguiças, salames e hambúrgueres à base de carnes ovinas
e caprinas. Na terminologia de Schumpeter, também se abrem mercados
pela conquista de segmentos do consumo até então latentes e descoberta
de fontes de matérias-primas, como compostos para ração, das novas espécies
vegetais9, e substâncias químicas para o tratamento de doenças.
A difusão das novidades tem, inclusive, a capacidade para
reorganização do setor produtivo da ovinocultura nordestina, de modo
que o padrão tradicional da produção camponesa possa ser convertido
no que Schumpeter chamou de nova organização10.

Aspectos importantes da relação entre as novas tecnologias na


ovinocaprinocultura nordestina e o contexto camponês dessa
atividade

Pressupondo uma situação na qual os componentes técnicos


inovadores listados no quadro 1 passem a participar do processo
produtivo de unidades camponesas, podem-se tecer algumas
considerações concernentes à relação entre a mudança tecnológica em
questão e a dinâmica camponesa.
8
A biotecnologia aparenta ser o segmento da mudança tecnológica com maior capacidade transfor-
madora sobre a ovinocaprinocultura, na medida em que inicia a intervenção humana no processo
produtivo antes mesmo do nascimento de caprinos e ovinos, por meio das práticas de colheita,
processamento, avaliação e armazenagem de sêmen desses animais e da inseminação artificial.
9
Uma dessas novas espécies é a leucena, leguminosa rica em proteínas.
10
Nesse sentido, a pesquisa realizada por Cordeiro Neto (2007) parece indicar o início de um pro-
cesso desse tipo na microrregião do Cariri cearense, quando observa a concentração das inovações
tecnológicas em propriedades ovinocaprinocultoras de organização empresarial, evidenciando a
marginalização da produção camponesa na atividade tecnologicamente modificada.
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ... 125

Em princípio, pode-se afirmar que a nova tecnologia na


ovinocaprinocultura pode surtir efeitos diretos sobre o manejo dos
recursos naturais nos ecótipos camponeses11. Quando incorporados por
unidades de produção camponesas, os processos inovadores representam
em alguma medida uma aproximação ou aprofundamento de sistemas
caracterizados por ecótipos neotécnicos, nos quais a atividade produtiva do
campesinato passa a confiar crescentemente na capacidade de métodos
não tradicionais.
Isso significa que ao adotar esses procedimentos – o que não implica,
necessariamente, a adoção da totalidade deles – o pequeno produtor
começa a lidar com meios distintos dos tradicionalmente utilizados na sua
experiência. Esse caráter de novidade é o responsável pela importância que
as formas de aprendizado assumem nesse ambiente. Pelo fato de a origem
dos métodos ocorrer externamente à prática do agente em questão, ele
necessita do acesso às informações sobre o seu uso. Mais que isso, ele carece
de um determinado cabedal de conhecimentos que o permita assimilar
tais informações. O grau de escolaridade do pecuarista pode ser, então,
determinante da sua decisão em fazer uso das tecnologias disponíveis e da
produtividade alcançada na incorporação dos fatores gerados.
É igualmente importante observar que o adepto dessas tecnologias
passa a se sujeitar, em diferentes graus, a incertezas antes inexistentes, já
que não conhece tão bem a eficiência técnica dos artigos usados quanto
daqueles repetidamente empregados anteriormente. Semelhantemente,
diante da inserção em novos mercados, o pequeno produtor terá de lidar com
um ambiente mercantil até certo ponto estranho, por fazer que seus
negócios se tornem, num primeiro momento, incertos.
Essa mudança tecnológica pode elevar a inserção do inovador ao
mercado, por isso se torna essencial considerar esse aspecto no caso do
camponês. Como discutido, a integração parcial a mercados incompletos é uma
característica camponesa. Porém, essa parcialidade só é permitida porque,
entre outros fatores, o campesinato não faz uso de meios de produção
11
Não se trata, de forma alguma, de tecnologia capaz de tornar a atividade independente dos fatores
de ordem natural, já que diz respeito mais a formas diferentes de acompanhamento humano dos
organismos animais e vegetais, que a métodos de substituição desses organismos por elementos
artificiais – permuta esta que, logicamente, não possui muitas possibilidades.
126 José Raimundo Cordeiro Neto

adquiridos exclusivamente no mercado, mas trabalha com meios obtidos


também por maneiras diversas, como a herança e o compartilhamento
com vizinhos, ou ainda a concessão. Se os instrumentos tiverem de ser
comprados exigindo-se desembolsos financeiros, o camponês precisará
assegurar o retorno do investimento, mediante a venda de produtos
proporcionados pelo emprego desses instrumentos.
Se o impacto levar o ovinocaprinocultor a comercializar nos
padrões convencionais dos mercados capitalistas e a perder assim
a estabilidade das negociações rotineiras, garantida pelos vínculos
personalizados que mantinha no âmbito local, ficará sujeito a flutuações
típicas dos novos circuitos comerciais, em que seus produtos podem ser
ora favorecidos, ora desvalorizados, de acordo com a conjuntura de cada
instante. Será essencial, nesse novo ambiente, estar atento às informações
de demanda, de concorrência, de mercados de insumos, entre outras. A
constante busca de elementos que possam diferenciar produtos será uma
necessidade se existirem outros produtores capazes de fazê-lo e então
ameaçar a presença do camponês nos canais de comercialização12.
A permanência em canais mercantis que assegurem uma taxa
adequada de rentabilidade do novo aparato tecnológico empregado pelo
produtor será tão mais crucial quanto maiores tiverem sido os investimentos
realizados nas inovações empreendidas, o que incorpora o seu custo na
busca de habilidades que teve de adquirir, bem como as desvantagens e as
dificuldades em que incorreria na busca por outras capacitações.
Observe-se também que as inovações tecnológicas podem levar
a pecuária de caprinos e ovinos a disputar meios de produção antes
destinados a outras atividades camponesas das propriedades familiares,
marcadas como são pela diversidade produtiva. Essa perspectiva exige
que se pense na possibilidade de transformação do pequeno produtor em
um ovinocaprinocultor especializado, que deverá retirar da atividade toda
a renda da qual necessitará. Especializando-se, a tendência à integração
total aos mercados se aprofunda, já que o auto-abastecimento, antes
possibilitado pela presença de culturas que proviam parte do consumo
interno da unidade familiar, deixa de existir. O sucesso comercial passa
12
O aprender a aprender (learning to learn) poderá ser a estratégia mais eficiente para garantir o bom
desempenho comercial, uma vez que os dados poderão mudar constantemente.
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ... 127

a ser a única forma de constituir a renda, eliminando a flexibilidade nas


opções de consumir ou comercializar, típicas da alternatividade camponesa.
Não restaria espaço para a parcialidade mercantil.
Além disso, note-se que algumas técnicas apresentadas no quadro
1 apontam para o caminho da agroindustrialização13. Certamente, trata-se
de procedimentos que apresentam elevada exigência de ferramentas
e equipamentos externos à unidade de produção e cuja valorização,
mediante obtenção de um nível adequado de rentabilidade, é ainda mais
dependente da comercialização dos produtos.
A capacidade de aquisição dos meios de produção externos
será em grande parte determinada pelo nível de acumulação alcançado
anteriormente pela pequena produção e pelo grau de dificuldade encontrado
na obtenção de crédito. O segundo fator tenderá a sobrepujar o primeiro
na maioria dos casos, em razão dos baixos volumes monetários
mobilizados pelas famílias camponesas em períodos anteriores.
Desse modo, a vinculação de pequenos produtores ao sistema de
crédito pode ser uma condição para a mudança tecnológica na
ovinocaprinocultura.
Por todos esses aspectos, o gerenciamento da produção tecnologicamente
modificada passará a divergir da forma camponesa tradicionalmente
executada, pois as bases da administração produtiva e do consumo
mudam decisivamente. Itens que antes não eram essenciais para a
reprodução das condições de vida das unidades familiares podem tornar-
se elementos centrais para esse fim14.

Considerações finais

Pelas considerações feitas até aqui, aparece mais a possibilidade


de que as inovações tratadas não sejam adotadas por produtores
camponeses, em virtude das exigências que decorrem do conjunto de
fatores produtivos a serem utilizados. Tais exigências podem levar a
13
Como a transformação e processamento de carnes caprinas e ovinas, a fabricação de derivados
de leite e o beneficiamento da pele dos animais.
14
As situações de mercado, a atenção ao surgimento de raças melhoradas, a busca de aperfeiço-
amento dos produtos comercializados são exemplos de processos que possivelmente passam a
constituir a gerência da produção.
128 José Raimundo Cordeiro Neto

pecuária com a nova base tecnológica a mostrar-se inviável para a unidade


camponesa, dada a inabilidade inicial do pequeno produtor para lidar
com ela ou a falta de condições da unidade para a aquisição e execução
dos novos métodos de criação.
Da mesma forma, não será difícil que o novo padrão tecnológico,
quando adotado pelo campesinato, apresente grande probabilidade de
produzir efeitos que impeçam a reprodução das unidades camponesas
com a sua lógica de funcionamento interno. Isso se deve à provável
tendência à integração total aos mercados, que elimina o caráter local da
comercialização e suprime boa parte dos laços de interconhecimento comunitários.
Deve-se também à tendência à especialização, que destrói a marca da
diversidade produtiva e reforça as relações comerciais como centrais na
determinação da sobrevivência familiar.
É importante, contudo, não descartar a possibilidade de que
a mudança tecnológica seja realizada em unidades camponesas.
Estas podem estar associadas a organizações que proporcionem a
superação dos principais entraves à aquisição e ao uso dos novos
fatores. Ações relacionadas à capacitação tecnológica, à busca de informações
sobre conjuntura de mercados, ao auxílio creditício e à constante inovação
dos produtos podem ser empreendidas por tais entidades ou por
instituições de apoio e solucionar problemas que raramente seriam
contornados individualmente. Também é possível que camponeses
com uma acumulação prévia de recursos possam favoravelmente
adotar os processos produtivos discutidos.
Uma vez adotadas as novas tecnologias, pode haver situações
nas quais as características camponesas sejam mantidas entre os
ovinocaprinocultores. Esse seria o caso em que fossem feitos arranjos
que possibilitassem manter a importância dos mercados locais na
comercialização dos produtos, o que não exclui a participação em
mercados mais vastos. Semelhantemente, a diversidade produtiva
pode ser permitida de forma a combinar a ovinocaprinocultura de
nova base tecnológica com as culturas anteriormente desenvolvidas e,
consequentemente, a assegurar que parte das necessidades da família
As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ... 129

camponesa seja atendida mediante a sua própria produção. Assim, a


inserção nos mercados se manteria parcial e o espaço para os laços
comunitários seria preservado.
Essa incorporação da mudança tecnológica pelas propriedades
típicas do campesinato apresentaria a vantagem de aumentar a
produtividade dos fatores alocados na ovinocaprinocultura e fortalecer
o padrão camponês da atividade. Assim, as unidades camponesas teriam
a redução das taxas de mortalidade dos animais, o aumento das taxas de
natalidade, um melhor controle das doenças que acometem os rebanhos,
a utilização de raças adequadas ao produto final, a redução da idade de
desmame e de abate, entre outros benefícios que garantiriam melhores
condições de acesso aos mercados e, consequentemente, contribuiriam
na elevação dos rendimentos familiares.

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Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Metodologia do Ensino Superior:
subsídios para o ensino de Ciências Contábeis

Márcia Mineiro de Oliveira 1

Resumo: O artigo apresenta a ótica dos docentes de Contabilidade sobre a


disciplina Metodologia do Ensino Superior (MES) presente em cursos de
especialização. Busca-se caracterizar tal disciplina, levantando características
dos profissionais de Contabilidade que lecionam. Discute-se ainda sobre
didática, planejamento e avaliação educacional, relação ensino-aprendizagem e
dificuldades do ensino superior. Metodologicamente, decorre de uma pesquisa
teórico-empírica, delineada como exploratória, apoiada em survey e subsidiada
pela pesquisa bibliográfica e eletrônica. Interdisciplinar, este trabalho alia
conhecimentos da Ciência Contábil e da Pedagogia.

Palavras-chave: Pedagogia. Ciências Contábeis. Metodologia do Ensino


Superior.

College Teaching Methodology: subsidies to teach Accounting Science

Abstract: The article presents the Accounting Professors’ point of view about
the discipline College Teaching Methodology (MTC) offered in specialization
courses. It tries to characterize the discipline MTC, by surveying the
characteristics of the Accounting professionals who teach. It’s also mentioned
1
Mestre em Contabilidade (Gestão Pública) pela Fundação Visconde de Cairu. Professora da Uni-
versidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: periciacontroladoria@yahoo.com.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 131-149 2009
132 Márcia Mineiro de Oliveira

didactic, planning and educational evaluation, the relation teaching-learning


and college teaching difficulties. Methodologically, it comes from a theoretic-
empirical research, faced as exploratory, supported by survey, bibliographic
and electronic research. Interdisciplinary, this paper puts together Accounting
Science and Pedagogy knowledge.

Keywords: Pedagogy. Accounting. College Teaching Methodology.

Introdução

Os cursos superiores de Ciências Contábeis objetivam a formação


de profissionais liberais, os chamados bacharéis. Não se percebe durante
o curso superior a preparação para lecionar. Muitos contadores desejam
dedicar-se ao ensino e ficam à procura de complementar sua formação
recorrendo à disciplina Metodologia do Ensino Superior (MES) cursada
na maior parte das vezes em cursos de especialização.
No município de Vitória da Conquista há dois cursos superiores
de Ciências Contábeis em entidades diferentes e o quadro docente é
formado em sua maioria por especialistas e mestres.
A pesquisa partiu de observações assistemáticas prévias,
estas suscitaram duas considerações preliminares: (1) Os melhores
profissionais liberais de Contabilidade nem sempre são os melhores
professores, em termos de didática na visão dos discentes; (2) Mesmo
os profissionais liberais de Contabilidade que cursam a disciplina
Metodologia do Ensino Superior em algum curso de especialização,
não se consideram preparados para lecionar por não superarem suas
limitações didáticas.
Esclarece-se que este artigo é fruto de monografia de título
análogo que possuiu como elementos basilares:
• Questão Problema: na visão dos docentes de Contabilidade a
disciplina Metodologia do Ensino Superior oferecida em cursos de
especialização (lato sensu e/ou stricto sensu), prepara verdadeiramente
o profissional para lecionar em cursos superiores?
Metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis 133

• Hipótese de Pesquisa: na visão dos docentes de Contabilidade


a disciplina Metodologia do Ensino Superior oferecida em
cursos de especialização (lato sensu e/ou stricto sensu) não
prepara verdadeiramente o profissional para lecionar em cursos
superiores.
• Objetivo Geral: apresentar a ótica dos docentes de Contabilidade
sobre a disciplina Metodologia do Ensino Superior oferecida em
cursos de especialização (lato sensu e/ou stricto sensu).
Objetivos Específicos:
– Caracterizar a disciplina Metodologia do Ensino Superior;
– Levantar as características dos profissionais de Contabilidade
que lecionam em Vitória da Conquista;
– Diagnosticar as possíveis dificuldades dos profissionais de
Contabilidade ao lecionar.
Entende-se que ao procurar, mesmo que indiretamente, a melhoria
da prática docente no curso de Ciências Contábeis, este trabalho garantirá
sua importância, visto que se propôs a investigar a disciplina Metodologia
do Ensino Superior sob a ótica dos professores de Contabilidade que a
cursaram em nível de especialização. Tal melhoria embasaria um salto
na qualidade do ensino Contábil e na formação dos futuros Contadores,
profissionais essenciais à sociedade atual.
A importância teórico-prática do trabalho se reflete na busca
do alicerce pedagógico sobre o planejamento, a avaliação, o ensino-
aprendizagem e o papel do professor de nível superior aplicada à
realidade encontrada nos cursos de Vitória da Conquista.
Na área contábil, poucos são os livros e periódicos que lidam
diretamente com a questão da metodologia do ensino. Esta comunicação
de pesquisa, então, contribui para ampliar o leque de conhecimentos
sobre a área, trazendo maior informação à classe contábil que pouco
conhece sobre pedagogia, bem como proporciona aos pedagogos as
especificidades dos cursos de bacharelado, em especial o curso de Ciência
Contábil em nível docente superior.
134 Márcia Mineiro de Oliveira

Subsídios teóricos

Uma ampla e rebuscada revisão teórica não contempla a


objetividade desta comunicação científica, todavia sabe-se a necessidade
de explicitar, ainda que de forma sucinta, quais os princípios que
norteiam a pesquisa. Assim, parte-se para breve exposição teórica sobre
alguns pontos relevantes mostrados no trabalho monográfico do qual
este artigo é oriundo.

A disciplina Metodologia do Ensino Superior (MES)

Concorda-se com Nérici (1967, p. 13) quando este diz que a


educação superior tem por finalidade formar os responsáveis maiores
pelo planejamento, organização e execução de todas as atividades
sociais. Ao passo que se aduz que o responsável pelo planejamento da
relação ensino-aprendizagem, seja qual for a área do conhecimento, é
o professor, assim entende-se que é imprescindível que este conheça as
especificidades do “ensinar”.
Tais aspectos específicos são tratados pela disciplina “Metodologia
do Ensino Superior”, presente em cursos de especialização de nível lato
e/ou stricto sensu. Durante o curso de bacharelado em Ciências Contábeis
no Brasil é raro encontrar uma matéria que aborde a questão do ensino
da Contabilidade. Isto acontece pela feição do curso: Trata-se de um
bacharelado e não uma licenciatura. Decorre então que os egressos são
formados visando o preparo de sua habilitação como profissional liberal
e não como professor.
Todavia, de acordo com a vigente Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira (LDB), para lecionar no nível superior são exigidos
do profissional cursos de pós-graduação – preferencialmente stricto
sensu – na área do conhecimento em que se vai atuar.
“Metodologia do Ensino Superior” é a designação mais comum
que recebe a disciplina, a qual aborda a prática da docência em nível
superior, sob aspectos didáticos, metodológicos, planejamento e
avaliação da aprendizagem, atrelando teoria à prática.
Metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis 135

É patente que o ensino deve partir de uma série de objetivos


para então destacar conteúdos. Não é simples selecionar e organizar
os conteúdos de uma disciplina, especialmente por dois motivos: (1)
Há sempre muitas questões a serem estudadas em pouco tempo; (2) A
escolha implica em uma postura crítica e política sobre a forma de ser
e fazer educação, necessitando, pois, de critérios claros para a escolha
dos conteúdos.
São frequentemente selecionados pelos professores de MES os
seguintes conteúdos:
Abordagens pedagógicas do ensino;
Relação ensino x aprendizagem;
Planejamento educacional; e
Avaliação.

A relação ensino-aprendizagem

O ensino é abordado por vários autores na tentativa de


conceituação e entendimento do termo. É perceptível que o ensino
na qualidade de processo social, decorrente da interação de várias
pessoas e fatores, não pode ser controlado como uma experiência de
laboratório.
Para Gagné (apud MOREIRA, 1985, p. 14) o ensino é “uma
atividade de planejamento e execução de eventos externos, ou condições
externas à aprendizagem com finalidade de influenciar os processos
internos para atingir [...] capacidades a serem aprendidas”.
Na visão piagetiana, o ensinar provoca o desequilíbrio na
mente do aprendiz, fazendo com que ele procure o reequilíbrio e ao
reestruturar-se cognitivamente acaba por aprender.
A aprendizagem, por sua vez, é um processo pessoal e gradativo,
não hereditário, que depende do envolvimento de cada um, de seu
esforço e de sua capacidade. Ela é um processo acumulativo, em que
cada nova obtenção se junta ao repertório já conseguido.
136 Márcia Mineiro de Oliveira

Nas palavras de Gil (1997, p. 58), a aprendizagem ocorre “quando


uma pessoa manifesta aumento da capacidade para determinados
desempenhos em decorrência de experiências que passou”.
O mesmo autor (p. 58) aduz ainda que no que tange à educação,
o conceito de aprendizagem se torna mais específico referindo-se à
“aquisição de conhecimentos ou ao desenvolvimento de habilidades
e atitudes em decorrência de experiências educativas, tais como aulas,
leituras, pesquisas, etc.”.
Na prática, o aprender e o ensinar são verbos que comumente
aparecem juntos, mas não quer dizer que eles sejam sinônimos ou
mesmo que devam ser conjugados juntos. A relação existente entre
eles pressupõe ‘complementaridade’, mas não implica dizer que se um
acontece o outro fatalmente também ocorre.
É comum que aconteça aprendizagem sem o ensino e também
ensino sem aprendizagem, em outras palavras: não é porque você ensinou
que necessariamente seu aluno aprendeu. O ensinar modernamente é
entendido como “orientar a atividade do aluno num sentido valioso
para a vida” (GONÇALVES, 1985, p. 67) e o “aprendizado é mais
poderosamente reforçado quando um professor estimula os estudantes
a se preocupar com sua matéria e a se dedicar muito para dominá-la”
(LOWMAN, 2004, p. 22, grifo nosso). Tais estímulos estão ligados com
a motivação para o aprendizado e para o ensino.
Entende-se então, que ensinar e aprender são ações
complementárias e o olhar do professor a cada uma delas deve ser
diferenciado, abrangente e não dicotomizado.

Planejamento

As metas na relação ensino-aprendizagem demandam mais ou


menos tempo para ser atingidas. Seja qual for a duração da meta, exige-
se para sua consecução uma série de ações. Detalhá-las articuladamente
é o papel dos planejamentos educacionais, para que a prática educativa
seja reflexiva, intencional e libertadora.
Metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis 137

Vasquez (apud VASCONCELLOS, 2000, p. 79) confirma esta


idéia ao dizer que “vários atos desarticulados ou justapostos casualmente
não permitem que se fale de atividade (de planejamento); é preciso que
os atos singulares se articulem ou estruturem, como elementos de um
todo, ou de um processo total que culmina na modificação de uma
realidade”.
Numa perspectiva micro, sem maiores aprofundamentos sobre
os tipos de planejamento de ensino, cabe destacar a diferença que há
entre planejamento e plano, visto que aquele é o processo contínuo,
reflexivo de escolher caminhos, agir em prol deles e acompanhar a
ação; já este é algo pontual, na realidade é um produto da reflexão e do
processo maior, que se caracteriza como um registro passageiro. “O
planejamento, enquanto processo, é permanente. O plano, enquanto
produto é provisório” (VASCONCELLOS, 2000, p. 80).
Na visão Contábil de orçamentos, o planejar pode ser entendido
como: estabelecer missão, objetivo, estudar, selecionar os caminhos
alternativos, implantar estrutura e implementar os planos e idéias
escolhidas. Esta ótica não se distancia da visão pedagógica, visto que o
planejar pedagógico também estabelece objetivos, seleciona conteúdos
e caminhos (métodos) alternativos para atingir os objetivos da melhor
maneira possível (eficiência), implementa os planos na aula.
O orçamento empresarial é um plano que em muito se assemelha
aos planos pedagógicos. Em suma, aquele dispõe da melhor forma,
ou seja, dos recursos disponíveis para atingir os objetivos traçados, e
isso é o que se pretende com os mais variados planos pedagógicos. De
forma sintética, alguns dos planos principais que norteiam a prática dos
docentes no ensino superior são:
• Plano de Escola/ Projeto Político-Pedagógico – É o plano pedagógico e
administrativo da instituição, no qual se explicita a concepção pedagógica
do corpo docente, as bases teórico-metodológicas da organização
didática, a contextualização social, econômica, política e cultural da
instituição, a caracterização dos sujeitos envolvidos, os objetivos
educacionais gerais, a estrutura curricular, diretrizes metodológicas
138 Márcia Mineiro de Oliveira

gerais, o sistema de avaliação do plano, a estrutura organizacional e


administrativa;
• Plano de disciplina – Este plano delineia o ensino de forma macro,
expondo em linhas gerais os objetivos de determinada disciplina ao
longo de um tempo pré-determinado, em geral, no ensino superior,
um semestre;
• Plano de unidade – Um plano que traz a identificação da unidade
e seu detalhamento em termos de carga horária, objetivos (gerais e
específicos), conteúdo, procedimentos e estratégias metodológicas,
recursos necessários, a forma de avaliação e as referências que embasam
e garantem um aprofundamento de conhecimentos;
• Plano de aula – Tal plano se restringe a “prever o desenvolvimento
a ser dado à matéria e às atividades docentes e discentes que lhe
correspondem, dentro do âmbito particularizado de cada aula”
(MATTOS, 1971, p. 163).
Com a linguagem contábil os planos e sua integração poderiam
ser assim comparados:

Figura 1 – Comparação entre planejamentos.


Fonte: Elaboração própria.
Metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis 139

Avaliação

O conhecimento Contábil, especificamente os estudos de


Controladoria, contribui com o conceito de controle, este costumeiramente
vem atrelado ao conceito de planejamento e se relacionam pelo caráter de
interdependência concomitante que mantém.
Para Nakagawa (1993) o controle consiste em 4 pontos básicos:

• Conhecer a realidade;
• Compará-la com o que “deveria ser”;
• Tomar conhecimento rápido das divergências e suas origens; e
• Tomar atitudes para sua correção

A pedagogia, por sua vez, refletida nos estudos de Melchior (1999),


também contempla esses pontos básicos, sob a denominação de avaliação,
uma vez que parte-se de conhecer o aluno, a matéria, a instituição (todo o
contexto educacional) para planejar e de forma paralela, a avaliação para
ser completa também leva em consideração esses aspectos.
Como o ponto de partida educacional é o objetivo (assim como o
empresarial), é preciso comparar se este foi atingido ou não, e isso norteia
o restante das ações do professor (o “tomador de decisões” no processo
educacional); em se atingindo o objetivo deve-se manter o curso dos
trabalhos, e em caso contrário, devem ser tomadas atitudes corretivas de
ajustar o processo para o atendimento das metas propostas, retomando
o que foi ensinado (mas não aprendido) de forma diferenciada, visto que
os métodos antes aplicados não foram eficientes, tão pouco eficazes.
Há ainda a questão temporal, é preciso ajustar o processo de
ensino antes que seja tarde, assim como o controle empresarial, precisa
ser concomitante, evitando prejuízo empresarial irreversível.
Professores preocupados com uma prática avaliativa que garanta
a aprendizagem buscam respostas para cinco questões que determinam
a concepção sobre avaliação. São elas: O que é avaliar? Por que avaliar?
A quem avaliar? O que avaliar? Quando avaliar?
140 Márcia Mineiro de Oliveira

Na busca por respostas que cada vez mais promovam uma


prática avaliativa integral, intencional e inclusiva, propõe-se esboçar
sua caracterização.
Há uma concentração de esforços e preocupações na área de
avaliação como se isso fosse o elemento essencial do ensino. O paradigma
da nota está instalado e enraizado com a prova de efetivo aprendizado,
não há a difusão da idéia de que não é preciso provar nada para ninguém,
mas sim que é preciso mediar um acompanhamento da aprendizagem,
controlando-a e monitorando-a na busca pela consecução de objetivos.

Didática

A Didática é um dos ramos da Pedagogia, e se configura como a


disciplina que estuda os objetivos, os conteúdos, os meios e as condições
do processo de ensino visando a Educação. Ela lida diretamente com
a operacionalização da ação educativa na sala de aula e em seus outros
ambientes e atividades, portanto, não está dissociada das outras matérias
que lhe servem de base.
Cabe a ressalva que a Didática não estabelece uma “melhor
técnica de ensino”, pois a cada caso há uma técnica mais exequível e
aconselhável, portanto é necessária a compreensão da situação real sobre
a qual o professor vai atuar.
Concluindo sobre Didática entende-se que esta não se limita a
estabelecer as técnicas específicas de orientação e direção da aprendizagem
(planejamento, motivação, orientação, fixação, verificação, etc.), mas
também os critérios e as normas práticas que regulam a ação docente de
forma racional; em suma, é muito mais abrangente que a metodologia.

Dificuldades do Ensino Superior

O valor do professor é alardeado e pouco reconhecido na função


que exerce. Dele é exigida a qualidade em seu trabalho e, para tanto, o
docente deve ser consciente de seu trabalho e de suas atividades.
Metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis 141

No entender de Gonçalves (1985, p. 27), a formação profissional


do professor perpassa eminentemente pela pedagogia, pois é através dela
que o docente pode “orientar a aprendizagem do aluno, desenvolver
sua personalidade integralmente [...] ao meio social.” Aduz ainda que
a qualidade do ensino é responsável direta pelo grau de civilização de
um povo e que o professor é o sujeito “vitalizador do ensino, de quem
depende a eficiência do mesmo.”
As dificuldades na educação são muitas e costumam ser exógenas
(aquelas externas que dependem do sistema) e endógenas (aquelas
mais próximas da realidade do professor cuja intervenção pode alterar
e superar). No nível superior de ensino não é diferente, por exemplo,
no tocante à experiência no ensino superior de Ciências Contábeis
apontam-se, entre outras dificuldades:

• o aspecto temporal, visto que os cursos de Contábeis são


noturnos na sua maioria e os alunos trabalham em tempo integral, ou
seja, a dedicação, o compromisso com os estudos e a aprendizagem por
parte destes costuma ser comprometida. É desnecessário comentar que
o aluno trabalhador tem menos disposição para estudar, em muitos casos
ele tem compromisso e responsabilidade, mas é vencido pelo cansaço
que arrebata a tentativa exausta em aprender, focalizando sua atenção
e energias para a evolução da aula. Tal realidade é imposta também
ao professor que tendo trabalho extra-docente não pode preparar sua
aula devidamente por falta de tempo, e à noite já não tem mais energias
para ministrar uma aula de qualidade; o mesmo sucede ao professor em
tempo integral que é obrigado a possuir muitas turmas para garantir sua
dignidade econômica;
• muitos docentes desconhecem a intencionalidade da avaliação
e sua relação prioritária com o aprendizado e a mudança da realidade.
Por terem vivenciado durante toda a vida a práxis avaliativa repressiva,
tradicional, preocupada com a nota, a sua tendência é repeti-la com
seus discentes. No máximo, alguns conhecimentos pedagógicos poucos
sólidos adotam práticas pseudo-superadoras, alterando nomenclaturas,
142 Márcia Mineiro de Oliveira

instrumentos avaliativos, que não mudam a postura e nem a concepção


educativa;
• número de alunos por sala: com a mercantilização da
educação, sobretudo nas faculdades particulares, o número de
alunos por sala tende a aumentar para garantir a lucratividade dos
investidores, sem a preocupação com a pessoalidade e a interação
necessária para a aprendizagem, que acaba por ser comprometida por
conversas, indisciplinas e uma pseudo-aprendizagem, é a lógica do
“você finge que ensina e eu finjo que aprendo”, o que não é difícil
de acontecer despercebidamente pelo professor em meio a turmas
numerosas;
• desmotivação: em meio a facilidades eletrônicas e a uma carga
excessiva de trabalho, poucas atitudes e atividades despertam o interesse
dos discentes;
• resistência a mudanças: muitos discentes e docentes acostumados
e acomodados com práticas de ensino-aprendizagem passivas e alienantes
não aceitam mudanças renovadoras e impõem muitos empecilhos para
a mudança das atitudes em sala de aula;
• Desconhecimento didático-pedagógico: muitos professores
pensam que somente conhecer bem a matéria técnica lhe garante
a aprendizagem dos alunos, creem que ensinam muito bem, não se
colocam no lugar do discente e rejeitam cursos na área pedagógica,
por acreditarem que estes não influem numa boa relação de ensino-
aprendizagem, que tudo é culpa do aluno que não estuda. É muito
fácil culpar outros por algo que possui parcelas igualitárias de
responsabilidade. “É necessário ser ousado para ser educador”
(MELCHIOR, 1999, p. 140);
• Horários mal construídos;
• Falta de interdisciplinaridade;
• Falta de recursos;
• Projeto político-pedagógico que não reflete a postura do grupo;
além de
• Falta de incentivo à pesquisa.
Metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis 143

Metodologia

Tratou-se de uma pesquisa teórico-empírica, pois a mesma oscilou


entre os escritos e conhecimentos já produzidos sobre a temática e
estabeleceu uma vinculação com a realidade e o diálogo entre a Ciência
Contábil e a Pedagogia.
A natureza do trabalho é qualitativa, já que as áreas de
conhecimento macro e as necessidades da pesquisa exigem um
tratamento social, entretanto, para a análise dos dados, não se deixou
de lado a análise quantitativa apoiada em estatística simples, descritiva
e inferencial.
Pela busca de conhecer mais sobre as prévias observações, o
trabalho ora apresentado delineia-se como exploratório, apoiado em
levantamento que se caracteriza pela “interrogação direta das pessoas
cujo comportamento se deseja conhecer” (GIL, 2002, p. 50). E é
subsidiado ainda pela pesquisa bibliográfica e eletrônica, ou seja, pelo
conhecimento já produzido por outros pesquisadores e estudiosos no
sentido de estabelecer um vínculo entre a teoria e a prática, esteja este
conhecimento em livros e periódicos científicos ou à disposição na
internet.
Os instrumentos de coleta usados para conferir execução à
pesquisa foram o questionário e observação assistemática.
Este trabalho foi desenvolvido nos períodos compreendidos entre
o mês de setembro de 2005 a janeiro de 2006. Com as informações
gerais adquiridas, foram formuladas análises e conclusões. Os dados
foram coletados por meio de um questionário, a população constituiu-
se dos docentes do Curso de Ciências Contábeis que são bacharéis
em Contabilidade e lecionam na Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia (UESB) e/ou na Instituição de Ensino Superior particular
da cidade que mantém o curso. Os dados foram apresentados através
de tratamento estatístico simples com o auxílio de tabelas, gráficos
e quadros. Os mesmos foram também textualmente apresentados,
analisados e comentados.
144 Márcia Mineiro de Oliveira

Foram entregues 19 questionários, dos quais, foram respondidos


e retornados 16, tendo esta pesquisa uma representatividade de 84%
dos questionários.

Análise de dados

De início algumas das perguntas do questionário tinham como


intenção conhecer o perfil dos professores de Ciências Contábeis de
Vitória da Conquista. Depreendeu-se que 100% são contadores e
lecionam no Ensino Superior, destes, 94% possuem especialização
lato sensu.
Sete possuem especialização em controladoria, destes, 2 com
mais de uma especialização (Finanças, Perícia Contábil e Língua
Inglesa); 4 possuem especialização em auditoria, havendo ainda um
professor(a) com especialização em Contabilidade, outro em Gestão e
Direito Tributário e outro em Orçamento Público. Dois professores, não
fizeram especialização lato sensu, partindo diretamente para o mestrado,
todavia eles também fizeram a disciplina MES. Somente um professor
afirmou não ter cursado a disciplina MES por não ter concluído curso
de especialização stricto sensu ainda.
Percebe-se uma busca por qualificação na área contábil e pouco
diálogo com outras áreas do conhecimento, visto que poucos foram os
profissionais que buscaram especializações fora do âmbito contábil. Tais
profissionais se dizem pessoas “não resistentes a mudanças” e inovações,
todavia é muito difícil intercambiar disciplinas no curso de Contábeis,
conforme observação assistemática.
Dos pesquisados, 94% relataram conhecerem suas próprias
limitações, estas foram descritas como problema de tempo, problemas
didático-pedagógicos e problemas visuais e de uso dos recursos
audiovisuais.
Para 56% dos pesquisados, a docência não é sua atividade
exclusiva, isso reflete, no mínimo duas coisas: (1) a docência no âmbito
contábil é uma atividade secundária, e (2) para sobreviver como docente
Metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis 145

é preciso extrapolar a carga horária de trabalho, pois a profissão não é


valorizada nem social e nem economicamente.
Dos questionados, 2 não cursaram a disciplina MES, apesar de
terem feito especialização. Tal fato se deve pela distinção que costuma ser
dada entre as especializações com finalidades profissionais e aquelas com
finalidades acadêmicas. Nesse caso, os professores fizeram especialização
que oferecia a disciplina MES à parte, e por na época não pensarem em
lecionar, não a cursaram, de acordo com conversa informal. Como já foi
mencionado, há também o caso de um professor que não concluiu sua
especialização lato sensu e por isso ainda não cursou a disciplina MES.
Ou seja, dos 94% de professores que possuem especialização, 81% deles
cursaram a disciplina MES.
Tal disciplina, na opinião de 50% dos questionados foi muito
genérica, não aprofundando questões didático-pedagógico e muito
menos “ensinando” a lidar com a realidade da sala de aula de Contábeis,
como afirmou um dos professores em conversa informal. Em somente
31% dos casos a disciplina MES teve o enfoque que deveria, aplicando-
se realmente para o ensino da Contabilidade.
Muito da satisfação e da profundidade dos assuntos abordados
na disciplina MES depende bastante de sua carga horária. Percebeu-se
uma disparidade e uma dispersão muito grande entre a duração horária
desta disciplina nos vários cursos de especialização. Para se ter idéia, 25%
dos professores responderam que a disciplina teve 60 horas de duração,
em contrapartida, há 24% que cursaram MES com 30 horas, a metade
da carga horária do outro percentual mais relevante. É importante uma
padronização quanto a esse dado, pois aí podem residir alguns dos
despreparos apontados na pesquisa, visto que 68% dos questionados
responderam que o tempo para a disciplina foi insuficiente dada sua
importância, sendo somente 2 os professores que concordaram sobre
o tempo destinado ter sido suficiente.
Aliás, sobre importância, 81% dos professores reiteraram a
essencialidade da disciplina como basilar para quem pensa em se tornar
docente em Ciências Contábeis, 13% alegou que MES é uma disciplina
146 Márcia Mineiro de Oliveira

importante, ou seja, o somatório dos docentes que creem na importância


da MES perfez-se um total de 94% dos docentes.
Questionou-se sobre quais os conteúdos foram abordados,
independentemente da forma de apresentação. Em tal quesito foi
dada a liberdade de marcar mais de um item. As quatro respostas
mais assinaladas foram: recursos didáticos (13 marcações), Avaliação e
Planejamento de Ensino e Didática (ambas com 11 marcações).
Dos pesquisados, 81% reportaram melhoras significativas na
sua prática docente após terem cursado a disciplina MES, prova que
ela é mesmo meio de mudança e melhoria na qualidade do ensino e na
formação de profissionais que dependem do ensino para construírem
seus conhecimentos.
Os dois maiores problemas apontados pelos docentes são: a falta
de recursos didáticos na instituição, que garantem suporte para aulas mais
dinâmicas e motivadoras, bem como uma sobrecarga de trabalho.
Percebeu-se pela análise e conversas informais com os docentes
que o plano de disciplina é o único tipo de planejamento elaborado pela
maior parte dos professores (63% deles de acordo com o questionário), já
13% dos questionados alegaram fazer um plano de aula antes de cada aula
e segui-lo. Há que se destacar a sinceridade de um professor que afirmou
preparar um plano de disciplina por semestre e não cumpri-lo.
Ao responderem sobre a hipótese de um profissional de
contabilidade lecionar a disciplina MES nos cursos de especialização,
qual seria a opinião dos docentes, isso favoreceria aos intuitos da
disciplina ou não contribuiria? E sobre isso 63% (10) dos questionados
responderam que creem importante que a disciplina MES seja ministrada
por profissional de Contabilidade em cursos de especialização lato senso
em público voltado para a área contábil.

Considerações finais

Verifica-se a atuação de profissionais liberais – contadores –


lecionando em cursos de Ciências Contábeis, muitos deles desejam
Metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis 147

dedicar-se ao ensino e ficam à procura de subsídios pedagógicos mais


especificamente através da disciplina Metodologia do Ensino Superior
(MES) cursada na maior parte das vezes em cursos de especialização
lato sensu (e até mesmo stricto sensu).
Cabe a ressalva que a disciplina MES não é a solução de todos
os problemas educacionais em nível superior, visto que: (1) mesmo
cursando a disciplina alguns professores ainda se sentem despreparados
pedagógico-didáticamente para exercerem a docência visto que são
bacharéis e não licenciados e/ou porque a disciplina foi muito curta
para sentirem-se preparados; (2) e muitos são os problemas exógenos
que os docentes precisam lidar continuamente para garantirem aulas e
ensino de qualidade.
Propõe-se que a carga horária da disciplina seja ampliada e
padronizada e que, seja ministrada por profissional contábil com
formação pedagógica. Como reflete a pesquisa, visto que 63% (10)
dos questionados responderam que creem importante que a disciplina
MES seja ministrada por profissional de Contabilidade em cursos de
especialização lato sensu ao público da área contábil e justificaram
dizendo que eles dispõem de conhecimento sobre as matérias contábeis
e pedagógicas estando cientes das dificuldades de assimilação do
conteúdo.
Para esta pesquisa partiu-se da hipótese de que na visão dos
docentes de Contabilidade a disciplina Metodologia do Ensino
Superior oferecida em cursos de especialização lato sensu não prepara
verdadeiramente o profissional para lecionar em cursos superiores. Tal
hipótese foi corroborada pela pesquisa, visto que tal disciplina cursada, na
opinião de 50% dos questionados foi muito genérica, não aprofundando
questões didático-pedagógico e muito menos “ensinando” a lidar com a
realidade da sala de aula de Contábeis como afirmou um dos professores
em conversa informal.
Percebeu-se que 100% são contadores e destes, 94% possuem
especialização, estas em sua maioria são relacionadas à área contábil. Os
profissionais pesquisados afirmam não serem resistentes a mudanças e
148 Márcia Mineiro de Oliveira

inovações, embora seja muito difícil intercambiar disciplinas no colegiado


de Contábeis, conforme observação assistemática da pesquisadora. Eles
dizem conhecerem suas próprias limitações (94% deles). E 56% não
possuem a docência como atividade única, as cargas horárias de trabalho
são muito grandes. As dificuldades dos profissionais de Contabilidade
foram apontadas pelos docentes como: despreparo didático-pedagógico,
mesmo ao cursar MES, falta de recursos didáticos na instituição, que
garantem suporte para aulas mais dinâmicas e motivadoras, e sobrecarga
de trabalho.
A importância deste trabalho se apóia em procurar, mesmo
que indiretamente, a melhoria da prática docente no curso de Ciências
Contábeis, uma vez que se propõe a investigar a disciplina Metodologia
do Ensino Superior sob a ótica dos professores de Contabilidade que a
cursaram em nível de especialização. Tal melhoria embasaria um salto
na qualidade do ensino Contábil e na formação dos futuros Contadores,
profissionais essenciais à sociedade atual.

Referências

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Atlas, 2002.

______. Metodologia do ensino superior. 3. ed. São Paulo: Atlas,


1997.

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atualizada e refundida. 16. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1985. v.
1.

LOWMAN, J. Dominando as técnicas de ensino. São Paulo: Atlas,


2004.

MATTOS, L. A. de. Sumário de didática geral. 10. ed. Rio de Janeiro:


Aurora, 1971.

MELCHIOR, M. C. Avaliação pedagógica: função e necessidade. 2.


ed. Mercado Aberto: Porto Alegre, 1999.
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MOREIRA, M. A. Ensino na universidade: sugestões para o professor.


Porto Alegre, 1985.

NAKAGAWA, M. Introdução à controladoria. São Paulo: Atlas,


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Fundo de Cultura, 1967.

VASCONCELLOS, C. dos S. Planejamento: projeto de ensino-


aprendizagem e projeto político-pedagógico. 8. ed. São Paulo: Libertad,
2000. v. 1.

______. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança. Por uma


práxis transformadora. 4. ed. São Paulo: Libertad, 1998. v. 6.

______. Avaliação: superação da lógica classificatória e excludente.


Do é proibido reprovar ao é preciso garantir a aprendizagem. 4. ed. São
Paulo: Libertad, 1998. v. 5.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica

Flaviano Oliveira Fonseca 1

Resumo: Este artigo apresenta a ética da responsabilidade. Hans Jonas é o


filósofo mais importante na crítica ao modelo tecnocêntrico de civilização ao
propor os imperativos do cuidado e da precaução; seu viés teórico imbrica
filosofia, ética, bioética e medicina. Nesse sentido, o olhar ecológico e o resgate
ético de Jonas são lapidares na construção do novo paradigma engendrado pela
ética da responsabilidade.

Palavras-chave: Ética. Tecnologia. Responsabilidade.

Hans Jonas: ethics for the technological civilization

Abstract: The present article rescues the notion of the responsibility. Jonas’
meaning of balance while organic system, this allows an approach among
Philosophy, Medicine (techne ietriké), Ethics and Bioethics. Hans Jonas believes
that technological developments are in fact so hostile to our deepest needs,
indeed to our future, that we must completely rethink our etchics and etchical
responsibilities.

Keywords: Ethics. Technological. Responsibility.

1
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor da
UFS. E-mail: fflaviano@hotmail.com
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 151-168 2009
152 Flaviano Oliveira Fonseca

Preâmbulo

Este artigo se define fundamentalmente como uma provocação


para os reais e profundos desafios pelos quais passa a “civilização
tecnológica”. Hoje, não apenas a filosofia, mas os diversos ramos do
saber têm se deparado com uma realidade marcada por profundas
e rápidas transformações e com um brutal poder de interferência
da tecnociência na vida das pessoas, das comunidades humanas
e extra-humanas. Cada ramo das “ciências” ao perceber tal
fenômeno tem procurado identificar as causas, interpretar os fatos
e, consequentemente, apresentar possibilidades de enfrentamento
ou mesmo de convivência com as mais díspares das situações.
Certamente, todos buscam e querem encontrar um caminho capaz
de responder às demandas e ou mesmo pactuar com o real estado
em que as coisas se encontram. Essa, porém não é a opção de Hans
Jonas (19792) e que veremos mais adiante. Ainda falando em âmbito
panorâmico podemos dizer que no campo das psicologias é muito
comum falar dos sintomas de uma cultura narcísica (LASCH, 1984)
e do espetáculo (DEBORD, 1997), de uma “subjetividade rasa”, de
uma sociedade depressiva que prefere curar as doenças do espírito
utilizando uma terapia medicamentosa. No âmbito da sociologia fala-
se de um mal-estar na pós-modernidade (BAUMAN, 1998), de um
mal-estar na atualidade (BIRMAN, 1999); no campo ético-filosófico
veremos que a associação dos avanços da ciência e da tecnologia
encontram-se eivados de um niilismo crasso, de um progressivismo
por vezes cego, ou mesmo um vazio ético sem paralelos na história
(JONAS, 1979)3. Dessa maneira, a civilização tecnológica está pronta
para desencadear processos cujas consequências não são possíveis
de conhecimento prévio e, por isso mesmo, poderão comprometer
2
JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung. Primeira edição alemã, 1979. JONAS, Hans. The
Imperative of the Responsibility: in search of an ethics for the technological age. Translated
by Hans Jonas with the collaboration of David Herr. Chicago: University of Chicago Press, 1984.
Edição inglesa. Edição utilizada: HANS, Jonas. O princípio responsabilidade: ensaio de uma
ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de
Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006.
3
Neste texto utilizaremos basicamente a edição traduzida para o português.
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica 153

a vida humana e extra-humana em curto, médio e longo prazo. Hans


Jonas empreende em O Princípio Responsabilidade de 1979, um forte apelo
pela renovação da ética.

Éticas tradicionais e centradas no sujeito: principais características

Na senda de Hans Jonas4 passaremos a expor os elementos


mais importantes presentes nas concepções das chamadas “éticas
tradicionais”, e que gravitam em torno dos seguintes elementos: todo o
domínio das relações com o mundo extra-humano, toda a dimensão da
techne (habilidade), com exceção da medicina, era considerado eticamente
neutro. O lócus específico da ética estava diretamente ligado à polis. Assim,
o tear do homem estava estritamente dirigido para essa finalidade. Outro
elemento importante diz respeito ao caráter antropocêntrico da ética
tradicional. A significação ética estava stricto sensu relacionada diretamente
ao homem com o homem. Visto dessa forma, a relação com as coisas
e com os seres naturais em geral, é no fundo, mediata entre pessoas.
Aprofundando um pouco mais a reflexão sobre as características das
éticas tradicionais temos o agir humano se preocupando com as relações
imediatas, jamais requerendo um planejamento para médio ou longo
prazo. Os efeitos remotos ou consequências distantes da ação não eram
levados em conta, e sim considerados obras do acaso. Pois, o universo
moral consiste nos contemporâneos e o seu horizonte futuro limita-se
à extensão previsível do tempo de suas vidas. Toda moralidade situava-
se dentro dessa esfera de ação (JONAS, 2006, p. 36). Ainda na mesma
perspectiva, Jonas ao analisar a moral kantiana e citando o prefácio da
metafísica dos Costumes afirma que em matéria de moral a razão humana
pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo
entre as mentes mais simples, e que não é necessária uma ciência ou
filosofia para se saber o que deve ser feito, para ser honesto e bom, e
mesmo sábio e virtuoso. Dessa forma, para saber o que fazer e para que
uma determinada vontade seja moral não há necessidade de nenhuma
perspicácia de longo alcance e que, mesmo acometido por inexperiência
4
Idem, ibidem.
154 Flaviano Oliveira Fonseca

na compreensão do percurso do mundo, ainda assim é possível agir em


conformidade com a lei moral. Portanto, a ética tradicional se define
fundamentalmente por ser uma ética da simultaneidade e da imediatez (p.
36). Concluindo o viés interpretativo, referindo-se ao autor da moral dos
costumes, Jonas arremata declarando que “nenhum outro teórico da ética
foi tão longe na diminuição do lado cognitivo do agir moral” (p. 37).

Ética da responsabilidade: uma nova ética!

Jonas diz claramente que as novas capacidades de ação exigem


uma nova ética, e isso está explicitamente anunciado em sua obra mais
importante O Princípio Responsabilidade, de 1979 (JONAS, 2006). Na
senda da renovação da ética podemos afirmar que a humanidade vive
um tempo absolutamente novo, ímpar, sem parâmetros anteriores. A
técnica moderna se especializou tanto e assumiu dimensões jamais
imaginadas com uma exequibilidade fascinante e arrebatadora, com
uma eficácia pragmática de alta grandeza, tudo isso com novos objetos
e consequências que os regulativos das éticas tradicionais se tornaram
obsoletos, ineficazes. Isso porque em termos éticos nada mais é
suficiente, sejam os preceitos dos deuses, os interditos religiosos de toda
ordem ou mesmo a advertência aos indivíduos para que respeitem as leis,
pois nada mais é passível de se contrapor às contundentes e potentes
ações humanas. Nem sequer a ética de amor, “amor ao próximo” com
suas prerrogativas de justiça, misericórdia, honradez, e outras, tudo
isso se têm mostrado inefetivos para operar nesse novo contexto. É
verdade que no âmbito das tecnologias as sociedades mais pretéritas
não experimentaram uma engenhosidade de tal proporção, e talvez
até possamos dizer que há certo débito em relação às implementações
tecnológicas em tais sociedades. Dessa maneira, importa notar que os
“expedientes” da tecnociência impuseram ao homem contemporâneo
uma nova forma de agir, tanto frente aos seus semelhantes, quanto ao
próprio mundo extra-humano. O Princípio Responsabilidade de Jonas deixa
muito evidente esse tipo de abordagem. Nas pesquisas de Neves (1999),
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica 155

e remetendo a um texto de Jonas datado também de 1979, encontra-


se a afirmação que já em Toward a Philosophy of Technology (Para uma
Filosofia da Tecnologia) o “nosso filósofo” desenvolveu e sistematizou essa
problemática5. Assim, a tecnologia do passado é vista como da “posse”
(possession) e do “estado” (state), isso em virtude dela ser exercida
tradicionalmente pela posse de instrumentos em vista de um estado de
equilíbrio entre meios, necessidades e objetivos. Tudo era tido como
“um conjunto de empreendimentos e capacidades”. Todavia a tecnologia
contemporânea, objeto das análises de Jonas, é caracterizada como uma
“empresa” (enterprise) e um “processo” (process), não aparecendo mais
o elemento de satisfação de necessidades de forma isolada, ele acontece
como um agregado numa relação circular entre meios e fins, em que
cada ciclo de sucesso é “passport” para um novo desenvolvimento
futuro, pois a realidade se apresenta como um “impulso dinâmico”
(dymanic thrust).6
Hans Jonas analisa que a era tecnológica moderna avança de
forma exponencial e sua “auto-procriação cumulativa” se reverte em
“auto-proliferação”; trata também que a capacidade do homem esgotar
os recursos em vista de favorecer a um maior consumo de progresso
tecnológico é qualquer coisa de avassalador, tudo isso em vista de um
auto-justificado consumo de bens7. Na visão de Jonas esse processo
autojustificador se imbrica numa rede que também se auto-alimenta
de forma sincronizada. É de se notar que, com esse procedimento
“auto” a técnica começa a ganhar vida própria. Parece que se invertem
os papéis, ou seja, o homem “cede” o seu lugar de sujeito para os
“expedientes” tecnológicos que operam sob a forma de um processo
5
JONAS, Hans. Toward a Philosophy of Technology. The Hastings Center Report, n. 1, p.
34-43, 1979. Apud NEVES, Maria do Céu Patrão. Éticas tradicionais e ética do futuro: contri-
butos e insuficiências do pensamento de Hans Jonas. In: ______. Da natureza e do sagrado.
Homenagem a Francisco Vieira Jordão. Edição da Fundação Eng. Antonio de Almeida, Porto,
1999. p. 589-623.
6
Idem, ibidem, p. 591.
7
Toward a Philosophy of Technology (apud NEVES, 1999, p. 592). Aqui pode-se conferir
que “Jonas apresenta o exemplo do ‘modesto motor a vapor para bombear água para fora das
chaminés das minas’ e facilita a extração de carvão de James Watt, para mostrar como cada uma das
suas funções foi exigindo quantidades crescentes de carvão e de ferro, tendo-se tornado num dos
maiores consumidores do seu próprio produto. Jonas refere-se a esse processo como ‘síndrome’
de auto-proliferação”.
156 Flaviano Oliveira Fonseca

integrado e integrador, ele ganha vida própria e passa à posição de


comando, a um processo de modo autônomo, ditando normas e maneiras
de como o homem deve proceder. Jonas (2006, p. 43) denuncia então
que, o Homo faber se colocou acima do homo sapiens, visto que, “o triunfo do
homo faber sobre o seu objeto externo significou, ao mesmo tempo, o
seu triunfo na constituição interna de homo sapiens,8 da qual outrora ele
costumava ser uma parte servil”. Jonas faz uma advertência diretamente
ao âmbito da “filosofia da tecnologia” e diz que entrou em jogo agora a
problemática dos fins da humanidade. Essa denúncia é grave e isso será a
substância fundamental de todo o seu tear ético-filosófico. Sendo assim,
a intervenção tecnológica acopla ao seu conteúdo a mais fundamental
dimensão da vida humana, ou seja, a sua finalidade. Naturalmente que
aqui se manifesta e se materializa cabalmente o ideal baconiano, para o
qual o único obstáculo é a exequibilidade, e “tudo o que é possível deve ser
realizado, isso desconhecendo todos e quaisquer limites que não sejam o da
exequidade” (NEVES, 1999, p. 593). Daí Jonas conclui que a divisão entre
saber teórico e prático desapareceu, o que deu origem a uma nova forma
de saber – preditiva – que incide sobre as implicações futuras das ações
presentes”9. Ainda na mesma perspectiva, Jonas insiste que atendendo à
dimensão escatológica da tecnologia, o saber preditivo é indispensável e
obrigatório para uma ação responsável – definindo, desta sorte, o novo
desempenho do conhecimento no domínio moral (suprimindo a separação
radical kantiana entre moral e conhecimento)10.
Importa tomar consciência que não há mais uma separação entre
o que é natural e o que é extranatural, há uma simbiose, uma imbricação
tal que os seus fins e destinos estão entrelaçados visceralmente. A
fronteira entre o que é fruto da natureza e o que é produto do homem
diluiu-se sobremaneira e o artificial tomou conta da totalidade do real.
Desse modo, a “transformação da essência do agir humano” é apontada
por Jonas como uma alteração qualitativa que a tecnologia moderna
operou sobre todas as formas de vida. Assim, a ação especificamente
8
“[...] mesmo desconsiderando suas obras objetivas, a tecnologia assume um significado ético por
causa do lugar central que ela agora ocupar subjetivamente nos fins da vida humana”.
9
Toward a Philosophy of Technology (apud NEVES, 1999, p. 594).
10
Idem, ibidem.
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica 157

humana não se limita mais às relações interpessoais, nem tampouco se


restringe ao aqui e agora, antes ao contrário, o agir humano ampliou
sobremaneira o seu raio de influência; o seu poder de interferência
transpõe o tempo e o espaço, decididamente estamos todos, a saber, a
nossa geração e as gerações futuras sob as influências das decisões que
hoje tomarmos e consequentemente sujeito aos efeitos dos acertos ou
“eventuais” descalabros daí decorrentes. Jonas (2006, p. 66) assinala que
“capacidades de ação de um novo tipo exigem novas regras de ética,
e talvez mesmo uma ética de novo tipo”, dessa forma a técnica exige
uma filosofia ética capaz de dar suporte aos seus empreendimentos.
Isso significa dizer que o agir técnico que já havia abandonado o seu
aspecto de thecne (sentido aristotélico de exercício da criatividade para
produzir objetos – poiesis) assume o status de empresa tecnológica;
a consequência imediata aponta para um agir humano destituído de
toda e qualquer neutralidade. Inegavelmente que o “nosso filósofo”
situa a tecnologia como “vocação” da humanidade (JONAS, 2006,
p. 43). Todavia, a reflexão sobre a questão da técnica ao que se pode
compreender não pode mais ser empreendida como mera descrição
dos fatos produzidos, muito menos vista de forma isolada, antes ao
contrário, sobre todos os empreendimentos oriundos da tecnologia, deve
ser imputada uma responsabilidade moral correspondente, ou seja, em
tudo que haja a interferência da tecnociência há que se “contabilizar”
um ônus moral capaz de corresponder à ação de quem o faz.
A questão dos impactos da tecnologia que afetam o mundo
e as pessoas foi introduzida por Heidegger (2002); foi ele quem deu
visibilidade ao tema, então qual a singularidade de Jonas? Importa afirmar
que o novum de Jonas está no fato de que “a ação técnica ganha significação
ética” (NEVES, 1999, p. 595). Dito de outra forma, Heidegger não
elabora uma reflexão sobre a ética propriamente dita, talvez ele trace as
condições de possibilidades, sua reflexão vai muito mais em direção a
uma ontologia fundamental sobre o esquecimento do ser, isso sim é o seu
proprium. O autor de O Princípio Responsabilidade, ao contrário, se debruça
sobre uma pragmática, ele elabora propriamente uma teoria ética, e que
158 Flaviano Oliveira Fonseca

veremos mais adiante os seus fundamentos. A propósito do pensamento


de Heidegger pode-se classificar como profundamente pessimista quanto
ao papel da técnica enquanto força capaz de impulsionar e imprimir
maior velocidade às inventividades humanas. Seguramente ele tinha o
pressentimento da força destruidora presente na técnica e, naturalmente,
associada ao poder, isso implicaria numa conjugação extremamente
perigosa. Destituir a tecnociência de sua neutralidade e suspeitar do poder
por ela controlado e manipulado, eis o aspecto privilegiado por Jonas para
empreender o seu tear ético-filosófico, seu esforço teórico convergirá
nessa direção. É bom deixar claro que o aspecto perigoso do poder da
tecnociência para Jonas e, portanto sua preocupação precípua não é a
associação entre poder e técnica, isso é próprio de Heidegger (NEVES,
1999, p. 596). Para Jonas, o risco maior está no fato de que a tecnologia
ganhe status próprio, vida própria. Jonas prevê que a própria técnica irá
assumir as alavancas do processo. O “nosso filósofo”, portanto, insiste
na natureza e objeto específicos da ação técnica moderna. Ele projeta na
elaboração de uma “filosofia da tecnologia”, a estruturação de uma ética
do futuro e a justificação da necessidade de uma nova orientação política”
(p. 597). Outro questionamento que vem à tona pode ser expresso da
seguinte forma: Com o vislumbrar da possibilidade e ao mesmo tempo
do apelo por uma nova organização política, não seria o marxismo uma
teoria de grande valor e com força capaz de integrar e “humanizar” 11 os
desafiantes problemas da tecnociência? Jonas não vê o marxismo como
uma saída para os grandes problemas que a humanidade enfrentará com
o advento dos “novos poderes”, ao contrário, ele irá se contrapor à teoria
progressivista proposta por Karl Marx. Enquanto o desenvolvimento
técnico-científico advindo da modernidade atingiu patamares gigantescos,
de forma que o princípio de Francis Bacon “saber é poder” tornou-se a
regra geral impulsionadora e justificadora de uma infinidade de ações, e
mais preocupante ainda é que encontrou um verdadeiro acoplamento na
teoria social de Marx. Para se evidenciar melhor basta ter presente que
a centralidade do autor de O Capital está no trabalho, e naturalmente, o
11
Humanizar na acepção de conceber o existir em suas potencialidades e fragilidades; vida que
carece da racionalidade instrumental para se organizar, mas que também perece sem a precaução
e a prudência para usar uma terminologia jonasiana.
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica 159

conceito de trabalho em Marx é equivalente à práxis12. Partindo desse


ponto de vista efetivamente o autor de O Capital é progressivista, pois
ele crê no trabalho como atividade criadora e transformadora, isso é
inegável, aliás, essa é a espinha dorsal de toda a sua teoria social. Nesse
particular Jonas irá criticar e se contrapor a essa política utópica, Jonas é
muito mais pragmático, ele quer se confrontar com os grandes problemas
que afligem as sociedades13, e deixa em segundo plano a sistematização
de uma ação política.
Resgatando a perspectiva analítica do presente trabalho,
observa-se que os novos cursos da ação resultaram por denunciar a
inefetividade dos antigos balizamentos éticos oriundos das chamadas
éticas tradicionais ou centrados, e aqui se pode citar desde os interditos
religiosos e míticos, ou ícones a exemplo de Hipócrates, Aristóteles e
Kant também os pragmáticos consequencialistas, a exemplo de Mill
e Bentham. Dessa maneira, se por um lado as éticas tradicionais não
respondem mais, isto é, não alcançam mais as problematizações do
contexto contemporâneo, tampouco as utopias modernas. É natural
que, nos deparamos diante de um “vazio ético”14.

Fundamentos da ética da responsabilidade

Para que a ética da responsabilidade adquira status próprio, ou


seja, para que ela garanta validade universal, a exigência precípua é que
passe por uma fundamentação de cunho filosófico. Para tanto, os seus
enunciados teóricos (exigência de racionalidade) são necessários, porém
insuficientes porque existem também exigências de ordem prática a
satisfazer. Jonas dirá que a primeira questão diz respeito “à doutrina
dos princípios da moral; e a segunda, à doutrina de sua aplicação”.15
Ele elege a responsabilidade como princípio fundamental para dirigir
12
Nota-se que em Marx também existe o trabalho (arbeit) alienado, porém neste artigo não nos
deteremos nessa categoria.
13
Neste contexto pode se elencada todas as questões que fizeram parte e sua atuação ética, a saber:
manipulação genética, prolongamento da vida, controle de comportamento, as crises ambientais,
e outros.
14
Para aprofundar a questão ver: Jonas (2006, p. 65).
15
Idem, p. 69.
160 Flaviano Oliveira Fonseca

a ação e fundamentar uma ética para a era tecnológica. Para efetivar


esta empreitada Jonas vai se defrontar com muitas teorias e que, em
vez de obstacular o caminho, antes ao contrário, elas farão com que
as aparentes dificuldades se revertam em oportunidades a mais para
expor o seu tratado. Seguindo esse raciocínio, O Princípio Esperança de
Ernest Bloch16 é um desses desafios a ser superado, o que para o autor
da “nova ética” não passa de um exercício para apontar os equívocos
desse princípio. Pensar a ética da responsabilidade e decidir agir de
acordo com a compreensão que dela se procura ter caracterizam uma
oposição ao utopismo de Bloch (NEVES, 1999, p. 602), fato que
permite abrir espaço necessário para a construção de uma das colunas
de sustentação da ética do futuro. Assim, Jonas contrapõe O Princípio
Esperança ao Medo, fruto da precaução, da prudência; nisto consiste
a superação e enfrentamento que Jonas empreende na sua teoria da
responsabilidade. Iniciaremos propriamente a fundamentação da “nova
ética” não pelo caráter comum da responsabilidade, mas exatamente
pondo em relevo as características singulares que tal noção assume
no pensamento jonasiano. Expondo o aspecto decisivo da natureza
e do desempenho da responsabilidade presentes no tear filosófico
da “nova ética”, Jonas expõe-na primeiramente, como “sentimento”,
oriunda daquilo que ele mesmo intitula “heurística do temor”, e como
tal ela acontece como aconselhamento do agir17. Todavia, parecem-nos
oportuna as seguintes indagações: como investigar adequadamente
a categoria temor (ou medo)? Temor de quê ou de quem? Quais os
pressupostos para entender esse temor contrapondo-se à esperança?
Até que ponto o medo jonasiano não induziria a pensar que estamos a
embasar a “nova ética” a partir de uma atitude medrosa, certo terrorismo
de mentes “depressivas” e pessimistas em relação ao progresso tão útil e
até necessário para o desenvolvimento da humanidade? Será que se trata
de uma ética com a função específica para disseminar medo e estabelecer
limites, através de uma fuga mundi? É possível entender racionalmente a
16
Ernest Bloch em sua obra O Princípio Esperança retoma e desenvolve a utopia marxista.
17
“We know much sooner what we do not want than what we want” (Cf. JONAS, 1984, p. 27).
(Sabemos primeiro o que não queremos do que o que queremos.). Aqui se trata claramente de uma
referência ao daimon socrático, neste caso, o mau prognóstico é mais imediato que o bom.
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica 161

categoria do medo? Como essas indagações são inevitáveis, cremos que


suas respostas assumem um caráter de obrigatoriedade – é o que faremos
a seguir. Respondendo objetivamente sobre a origem do medo, é sensato
deixar claro que o medo nos advém sim da utopia do progresso, pois na
contemporaneidade ele se nos apresenta com um caráter ilimitado, com
uma força brutal e estruturado a partir de uma “metodologia própria”, e
que nas palavras do próprio Jonas (2006, p. 235) se trata da “ameaça de
catástrofe decorrente do êxito excessivo”. Isso se contrapõe à própria
natureza humana e extra-humana que já apresenta sinais de limites. Para
verificar isso basta recordar as grandes questões de ordem prática que
se tornaram matéria frequentes nas reflexões e conferências de Jonas
(2006, p. 235-237), a saber: a questão que se nos apresenta diz respeito
à alimentação, suscitado pelo aumento demográfico e que exige uma
maior exploração dos solos, recursos mais intensos e adubos artificiais,
provocando a contaminação química dos mananciais, por outras causas
a salinização do solo, erosão, as chuvas ácidas e outros; o das matérias-
primas que, ao nível em que são exploradas, não são inesgotáveis. E
que, sendo amplamente utilizadas na produção de energia, implica em
outros tipos de problema, a saber: o da energia, no seu uso crescente,
quer no que se refere às fontes renováveis, quer às que não são,
acentuando-se aspectos negativos como a poluição, o “efeito estufa”,
com a elevação da temperatura geral do planeta, o degelo das calotas
polares, a subida do nível dos oceanos e outros; e o problema térmico
que se coloca mesmo quando, no caso da energia nuclear, permanece
afastado o “efeito estufa”, mas toda energia produzida se decompõe
em calor e o calor dissipa-se fato que implica no sobreaquecimento do
ambiente18. São alguns dos efeitos de um poder autônomo, “enquanto
sua promessa transformou-se em ameaça e sua perspectiva de salvação,
em apocalipse” (JONAS, 2006, p. 237). É da natureza do pensamento de
Jonas deixar evidente que ele não está falando de um medo paralisador
do agir, egoísta, que só receia por si, um “medo patológico” tratado
por Hobbes (p. 72)19, mas ao contrário, o que está em jogo é um medo
18
Neves (1999, p. 597), amplia essa análise com outros elementos.
19
Neste particular Hobbes está falando de uma mal que nos atinge, enquanto em Jonas o mal é
apenas uma ameaça.
162 Flaviano Oliveira Fonseca

que implica numa desresponsabilização do sujeito. Quanto ao termo


“heurística”, esse evoca a “noção” de descoberta, de poder, cabe ser
traduzido também como a atitude de pôr boas questões suscitadas
pelo receio, pela possibilidade de vulnerabilizar algo ou alguém. Com
base nessa hermenêutica é que Jonas toma-o como suporte para a
sua teoria. Eis a razão porque o que aparentemente parecia fraqueza
agora se constitui numa forma de empoderamento (empowerment),
força para agir, coragem para assumir receios, mas também “estímulo
para a investigação ou procura de conhecimento, senão dos efeitos,
pelo menos das possibilidades dos efeitos” (NEVES, 1999, p. 603).
Importa dizer que o medo não se instala automaticamente, a exemplo
de uma reação abrupta, algo parecido com uma atitude instintiva de
defesa, o medo Jonasiano é anterior ao desejo e atua “bem cedo” como
“motivação psicológica, subjetiva da filosofia moral; [...] a heurística
do medo, ultrapassa a racionalidade científica, positiva, a favor do que
se confirmará como uma racionalidade metafísica” (NEVES, 1999, p.
605). A responsabilidade deve ser entendida como medo primeiro, como
uma ação que se antecipa ao agir e que podemos compreendê-la como
prudência em vista de possíveis consequências desconhecidas da ação
humana. Além de entendermos como “sentimento” podemos considerá-
lo também como uma forma de conhecimento, ou seja, um “saber de
possibilidades”. É possível também ganhar a denotação de cuidado e
para pôr em relevo essa dimensão trazemos presente a fábula-mito do
cuidado presente originalmente em Ser e Tempo de Heidegger20.
A referida fábula-mito de origem latina, porém, remonta o espírito
da mitologia grega, e quer transmitir algo sobre a essência do ser humano,
20
“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada.
Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito,
apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.
Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado Júpiter o proibiu. Exigiu
que fosse imposto o seu nome.Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra.
Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita do barro, material do corpo da
Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que
funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe
o espírito; receberá, pois de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra,
deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.
Mas você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto
viver. “E uma vez que entre vocês há uma acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta
criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica 163

que implica necessariamente numa atitude de compartilhamento dos


saberes, de humildade e imbricação de deveres. Estamos diante de uma
complexidade de situações que importa não ter a pretensão de tomar
para si todas as instâncias do poder de decisão, antes ao contrário, a
atitude de humildade talvez seja a melhor companhia quando a realidade
inspira incertezas, dúvidas e conhecimentos que ainda não se encontram
disponíveis ou mesmo ao nosso alcance. Importa compreender a fábula
como uma instância que nos chama a atenção para a complexidade da
vida, e que urge não reduzi-la a uma única dimensão rácio-instrumental,
antes ao contrário, o saber na vida e mesmo o saber para a vida implica
numa atitude de cuidado, responsabilidade, de prudência em vista do
alter de que é “moldado”, do Rosto (expressão presente em Levinas)
que se nos apresenta na radicalidade de sua diferença.
O pensamento ético de Jonas chama a atenção dos mais
importantes teóricos, considerando, por exemplo, Jean Greisch (1994),
ele assevera que a responsabilidade ganha um status maior do que de uma
simples virtude, ela se torna A virtude por excelência, ou seja, ela atinge o
patamar de “sabedoria prática” e que pode ser traduzida por prudência, e
que longe de estabelecer limites, a prudência se caracteriza pelo fato de ela
se comportar como uma atitude antecipatória. Já no entender de Bernard
Seve (apud NEVES, 1999, p. 605), o medo para Jonas se nos apresenta
como o motivo racional, preditivo21 da responsabilidade, e torna-se seu
móbil sensível, à maneira do “respeito” invocado em Kant. Contudo,
ainda poderíamos indagar: ora, se o medo é um sentimento subjetivo,
como então escapar de um iminente subjetivismo? Para responder a
essa investida Jonas procura ampliar a questão, no intuito de atingir
esse fim: “ele recua para o plano maximamente amplo da existência,
da vida perspectivada em termos metafísicos [...] a reivindicação da
responsabilidade, portanto começa com a existência e esta, por sua vez,
está ligada ao direito à existência. Existência reclama existir pelo simples
fato de existir”. Aqui o direito não se encontra fundado na reciprocidade.
Daí que se afirma a responsabilidade parental como modelo. Quando ele
21
De acordo com o Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, preditivo é equivalente a prognosticar,
antecipar acontecimentos futuros.
164 Flaviano Oliveira Fonseca

diz que “o arquétipo de toda responsabilidade é o recém-nascido, isso


acontece porque a sua total vulnerabilidade reclama cuidados, e se torna
mais forte ainda porque o estado da criança está fora dos parâmetros
de reciprocidade (JONAS, 2006, p. 219). O modelo do fato em questão
se insere no contexto de uma relação de gratuidade, tipifica, portanto,
a materialização mais profunda do sentimento de proteção e acolhida
daquele pequenino ser, no caso em questão, a criança. Sem tais cuidados
ela incorrerá no risco de morte, de desaparecer, sendo condenada à
condição de não-ser, porém não é isso que a responsabilidade reclama, é
justo o contrário, ou seja, ela reclama e quer a elevação do recém-nascido
à condição de ser. Por essa ótica, a responsabilidade pela criança ganha
força como modelo para a demonstração da ética de Jonas. Todavia, a
atitude assimétrica como fundante da relação não é originariamente de
Jonas, ela faz parte mais propriamente da estrutura do pensamento de
Lévinas (apud PELIZZOLI, 2002, p. 94-95), uma vez que, a alteridade
é fortemente tematizada em Totalidade e Infinito22. Para Pelizzoli (2002),
“o olhar – expressão do Rosto implica como que uma ‘conversão’ da
visão, da consciência ativa e do processo intencional-objetivante [...] a
epifania do Rosto – súplica e apelo vindas de uma nudez e estranheza”,
nessas expressões ficam patentes que o outro se encarna na ausência
do mesmo, o que caracteriza a emergência de Outrem. O tema da
alteridade assimétrica, posto em pauta primeiramente por Lévinas é
retomado, ampliado e elevado à categoria de mote basilar para a ética
da responsabilidade por Hans Jonas. Então, qual seria o proprium de
Jonas? Inegavelmente a originalidade de Jonas aparece no fato de
ampliar sobremaneira o conceito de alteridade, pois ele deixa o âmbito
estritamente intersubjetivo dirigido aos humanos e amplia para as outras
dimensões da existência, ou seja, para a vida extra-humana. Assim, é
22
Quando ele afirma imperativamente que o ser é exterioridade, visto dessa forma “o próprio
exercício de seu ser consiste na exterioridade, e nenhum pensamento poderia obedecer melhor ao
ser senão ao deixar-se dominar por esta exterioridade... A verdadeira essência do homem apresenta-se
em seu Rosto no qual ele é infinitamente outro [...]”. Partindo dessa afirmação Pelizzoli comenta:
“[...] antes estamos às voltas com o sentido maior da subjetividade que aflora na “relação ao outro”
[...] que o desejo de infinito”. E continua, em face desse contexto é bom ter presente que “o outro
comporta uma alteridade inviolável que se exprime em parâmetros de linguagem, temporalidade e
espacialidade totalmente adversas, também a interdiscursividade que ratifica a própria assimetria dos
termos, e que a mantém porque o Outro tem efetividade e vida própria” (Cf. LEVINAS, 1961).
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica 165

que o ainda não existente (JONAS, 2006, p. 89) ganha direito de existir,
pois enquanto totalmente outro, e mais ainda, enquanto materialmente
“ausente”, mas ao mesmo tempo ele se torna presente sob o ícone da
alteridade que reclama o seu direito de “via-a-ser23”, de existir. Aqui
se insere o “primeiro princípio de uma ‘ética para o futuro’, no qual
se pode notar uma metafísica a dar suporte, e não sobrecarregando o
próprio princípio como doutrina do fazer (à qual pertencem todos os
deveres para com as gerações futuras), mas radicando sua base numa
instância ôntica, como doutrina do Ser, da qual faz parte a idéia de
homem” (JONAS, 2006, p. 95). Com essa grade de entendimento, a
ética da responsabilidade de Jonas fundada na assimetria das relações,
encontra no recém-nascido o paradigma ôntico de um “Dever-Ser”. O
recém-nascido, portanto se nos impõe como um “apelo do Ser” que
nos comove os sentimentos e nos arrebata em direção a um dever, ele
é quem nos impulsiona para que assumamos a afirmação do ser, em
vez de condená-lo à condição de “não-ser”. A criança aqui é tomada
como expressão de uma fragilidade sem par e que urge tomar os
cuidados fundamentais como condição necessária para que se afirme
como ser-existente; a sua indefensável condição se me impõe um
dever, que forçosamente se converte em um irrecusável fazer. A ética
da responsabilidade, portanto, reveste-se da prerrogativa de caminhar
em direção ao “Dever-fazer”, e elegeu como imperativo fundamental
o dever de tomar para si responsabilidade pelo que ainda estar por vir
expresso na fórmula: “Age de tal forma que as consequências de tua ação
não interrompam a possibilidade de a vida continuar se manifestando
em todas as suas expressões como hoje nós a percebemos”.

Considerações finais

O modelo de fundamentação de Jonas primeiramente se


deteve na alteridade assimétrica objetivando superar a pura e simples
reciprocidade; em segundo lugar, a investida em busca de fundamentos
23
Aqui se pode perfeitamente invocar o vir-a-ser de Heráclito; no campo jurídico o direito dos
nascituros.
166 Flaviano Oliveira Fonseca

para a responsabilidade de Jonas ancorou o seu pensar ético no direito


próprio do ainda não existente, como uma entidade que reclama pela
possibilidade de existir. Assim, com o objetivo de encontrar uma profícua
fundamentação Jonas enceta como recurso o exemplo da natureza, traz
à baila o gesto da procriação, gesto esse inteiramente desinteressado e
oblativo24. Essa ação, enquanto exercício para a ética do futuro tende
sempre a imbricar na relação parental o paradigma da responsabilidade.
Quanto a Kant, no seu imperativo, ele recorreu a uma dedução de um
princípio que se dirige ao comportamento do indivíduo privado, Jonas
ao contrário, a responsabilidade está cravada em nós, e “essa é a única
classe de comportamento inteiramente altruísta fornecida pela natureza”
(JONAS, 2006, p. 89). Em todo caso, o existir não está vinculado a um
direito de existir propriamente, mas a um dever-existir, que inclui o dever
da reprodução, pois a “obrigação incondicional” da existência futura da
humanidade decorre da idéia de homem e que implica em sua encarnação
no mundo, condição sine qua non para a existência de uma “ética para o
futuro”. Assim, o primeiro princípio da ética da responsabilidade não se
encontra nela mesma, como doutrina do fazer, mas na metafísica como
doutrina do Ser, a qual engendra a idéia de homem. Portanto, “a primeira
regra é a que aos descendentes futuros da espécie humana não sejam
permitido nenhum modo de ser que contrarie a razão que faz com que
a existência de uma humanidade como tal seja erigida” (JONAS, 2006,
p. 94). Aqui Jonas resolve o problema prático de sua ética: estabelece o
imperativo da existência, imperativo ontológico.

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Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização


brasileira, 1999.
24
Oblativo é algo feito no ardor da gratuidade. P. ex. a mãe que cuida de um filho excepcional que
é incapaz de lhe oferecer o menor gesto de reciprocidade, todavia, ela continua a cuidá-lo.
Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica 167

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168 Flaviano Oliveira Fonseca

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por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes,
2007.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos
trâmites enunciativos da comunicação

Henrique Oliveira de Araújo 1

Resumo: O presente trabalho trata do cerne da “ação comunicativa” humana: o


processo de diálogo. Partindo do entendimento de que a comunicação nasce de
uma relação dialética entre diferentes alteridades e contextos, o trabalho pretende
traçar um caminho que ajude a melhor compreender o papel das subjetividades
e dos seus trâmites de enunciação na construção da comunicação humana.

Palavras-chave: Eu. Tu. Alteridade. Dialética. Comunicação.

The creation of the self by the other: the paper of the subjectivities in
the enunciative paths of the communication.

Abstract: The present work discusses the central point of the human
“communicative action”: the dialogue process. Taking into consideration the
understanding that the communication is born of a dialectic relationship between
different alterities and contexts, the work intends to establish a way that helps
to understand the paper of the subjectivities and its enunciation procedures in
the construction of the human communication.

Keywords: Self. Other. Alterity. Dialectic. Communication.


1
Graduado em Comunicação Social pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
E-mail: henrique_daraujo@yahoo.com.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 169-186 2009
170 Henrique Oliveira de Araújo

Introdução

Somos o “outro” por essência. Em todos os momentos,
procuramos nos afirmar na imagem de uma alteridade. Ao olharmos para
uma parede ou para o pôr do sol, mesmo sozinhos estamos colocando
nossas subjetividades para duelar com o “outro”, que se encarna em
todo o contexto que nos cerca. O mundo que não nos é traz em si esta
figura da alteridade. O “eu”, pois, dialoga, a cada instante, com o “tu”.
Muito mais do que uma teoria comunicacional ou psicanalítica, essa
afirmação já é a própria explicação da nossa essência humana. Nascemos
para sermos seres da comunicação. Em nenhuma circunstância deixamos
de comunicar. Nunca perderemos essa essência. E isso se dá justamente
porque em nenhum tempo da existência humana os sujeitos deixaram
de buscar a si mesmos. Olhando percebemos sentidos. E, encadeando
esses sentidos, conversamos com os universos significativos presentes no
mundo, e esses universos de significação nos dizem a todo instante que
a objetividade do mundo nada mais é do que uma busca eminentemente
subjetiva. Uma busca por perfeição, uma busca por deuses estranhos.
Mas quem são esses deuses da nossa busca? Justamente na pergunta
é que se esconde a resposta: no enigma do “outro” é que buscamos
nossas divindades do entendimento. As imagens dos outros sujeitos,
das outras coisas, das outras sombras, guardam a essência do poder que
nos faz chegar à compreensão da materialidade do nosso próprio corpo
e da nossa própria vontade. Para que busquemos o palpável, temos
que dominar o diálogo com a alteridade. E a alteridade é um espectro
indefinido que se encarna em todas as coisas, sob diversos momentos
e angulações. O transeunte na rua, com suas roupas extravagantes,
é uma alteridade que conosco dialoga. A palmeira que se arvora na
janela e que nos impressiona com aquele verde inconfundível também
o é. Assim, pode-se dizer que o cerne de toda a nossa existência é um
embate constante com todos estes “outros” que em nós se amontoam
para formar o entendimento. Com essas alteridades dialogamos para
construir a nossa consciência.
A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação 171

O “eu” se constrói pelo “tu”. E o mundo que existe e que tanto


queremos tocar com a razão nunca fugiu de um processo comunicativo.
É isto que o leitor vai encontrar neste texto: uma busca por um melhor
entendimento acerca da colocação do sujeito no processo comunicativo,
que é base para que os indivíduos construam a percepção que têm de si
mesmos e dos contextos com os quais dialogam constantemente. Uma
investida para discutir a formação da nossa consciência do “real”.

O sujeito e a enunciação

O homem dialoga com seus mundos. Vive imerso em realidades


dotadas de contextos perceptivos mutantes que lhe cobram diversos e
constantes movimentos reflexivos, contemplativos e de ação. Percebe-
se isso quando se comparam os diversos âmbitos socioculturais pelos
quais a humanidade transitou antes de culminar no nosso vertiginoso
conglomerado de sensações imagéticas. Como nos demonstra Stephens
(1993, p. 117), ao analisar a transição da cultura de “notícias orais”
para outra de “notícias escritas”, o homem elaborou suas próprias
formas momentâneas de enxergar seus universos. Ao passar, num
determinado momento histórico, de uma cultura oral para uma cultura
letrada, os sujeitos mudaram e reconfiguraram completamente o que
anteriormente chamamos de “contextos perceptivos”. Sendo assim,
ele escreve:

A escrita, por causa das suas implicações para o desenvolvimento


do pensamento humano, merece compartilhar a autoria de
nossa civilização. Por causa da capacidade de anotar, registrar, a
mente é libertada do fardo de ter que memorizar a sabedoria do
passado. As fórmulas perdem um pouco de seu domínio sobre
a linguagem e o pensamento.

Ora, ao demarcar essa “transição” perceptiva evidenciada na


passagem da cultura oral para a cultura de palavras escritas, o exemplo
dado por Stephens nos mostra que há diferentes contextos perceptivos
172 Henrique Oliveira de Araújo

que, entrecortados por diversas e constantes alterações, se reformulam


historicamente. Em outras palavras, o homem não dialoga somente com
um contexto ao longo de sua história, mas, sim, com vários.
Logo não existem “contextos perceptivos fixos” e, ao longo da
sua história, o homem modificou constantemente suas “maneiras de
perceber”. Como afirmamos, os contextos perceptivos humanos são,
por essência, mutantes. Para assim afirmarmos, entendemos também que
ainda não se comprovou um estado no qual o homem esteja desligado
completamente de sua realidade e dentro de uma espécie de contexto
“não-perceptivo”. Mesmo nos sonhos (e isto a tradição psicanalítica
e a nossa experiência inconsciente podem nos comprovar), existem
padrões dialéticos compositores de uma estrutura de entendimento.
Para os padrões humanos, mesmo em um “estado vegetativo” (EV), não
se pode asseverar uma ausência perceptiva. Por exemplo, a Federação
Internacional das Associações dos Médicos Católicos (FEDERAÇÃO...,
2007) afirma que o EV consiste em um:

[...] estado de não reacção, actualmente definido como uma


condição caracterizada pelo estado de vigilância, alternância de
ciclos sono/vigia, ausência aparente da consciência de si e do
ambiente circunstante, falta de respostas comportamentais aos
estímulos ambientais, conservação das funções autónomas e de
outras funções cerebrais.

Essa explicação, declaradamente calcada em bases científicas ainda


inseguras, de uma “ausência aparente da consciência”, então divulgada pela
Federação, dá margem para que se entenda que, realmente, não se chegou
a uma certeza quanto a um estado de não-consciência do homem. E essa
incerteza pode ser comprovada se confrontarmos mais opiniões acerca do
comportamento humano no EV. Em um grande meio de comunicação
brasileiro, por exemplo, foi divulgado um estudo do Conselho de Pesquisa
Médica do Reino Unido, em setembro de 2006, segundo o qual “uma
mulher de 23 anos que entrou em estado vegetativo depois de um acidente
de carro parece ser capaz, de alguma forma, de entender o que está
A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação 173

acontecendo ao seu redor e de seguir ‘mentalmente’ um pedido em forma


verbal” (FOLHAONLINE, 2006). As contradições das afirmações das
instituições médicas citadas evidenciam, justamente, uma não-precisão
de uma “nulidade” perceptiva e comunicativa das pessoas.
Desse modo, se existe, entre importantes centros de pesquisa, uma
controvérsia tão forte sobre a existência e permanência de um estado
de “não-consciência” nos homens, não podemos admitir aqui, de uma
maneira que seria completamente arbitrária, um comprovado estado de
“vazio perceptivo” nas conformações basilares do entendimento dos
seres humanos. Ou melhor, devido a essa incerteza, não permitiremos
neste trabalho um contexto incluso em algum período “não-perceptivo”
da vida humana.
Por entendermos que os sujeitos não estão imersos em uma
condição de “vazio perceptivo”, o homem e seus universos participam
de uma espécie de “conversa universal”, na qual seus deuses afirmam a
existência por meio de representações lúcidas (ou não) e perfeitamente
encadeadas. A humanidade, em sua consciência, discute suas formas
e conteúdos essenciais, busca seus caminhos de gênese. O homem
e seu ideal de perfeição e infinitude são as formas mais puras de
inconformismo e de mobilidade crescente: fluente bater de pernas contra
o afogamento no profundo rio de suas elucubrações; contínua busca
por entendimento, por formulações intersubjetivas ainda mais extensas.
Afinal, como nos diria Foucault (1999, p. XVI),

[...] os códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que


regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas,
suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas – fixam,
logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as
quais terá que lidar e nas quais há de se encontrar.

E é nessa conformação que os seres humanos criam seu
entrelaçamento simbólico com as coisas (ou, mesmo, com o espectro
delas) e criam, de maneira não menos intensa, suas idéias dessas próprias
coisas. No seio desse movimento, os homens passaram a entender seu
174 Henrique Oliveira de Araújo

corpo e seus “moldes subjetivos” como algo banhado nesse cosmos


de buscas por idéias. E, nas diversas semelhanças interpretativas do
entendimento, quase numa contradição, talharam as paralelas de um
infinito nas quais se acelera o potencial de interpretação e enunciação.
Numa interpretação com grande veia saussureana, percebe-se mais
claramente que, como um texto vivo2 e ambulante, o homem se faz.
E, na sua linguagem, elabora a condição imagético-sonora, que se
reflete nos seus mais nítidos espelhos. Empenhando-se em possuir a
si mesmo, pintando sua própria imagem, ou, mesmo, em visitas a um
imaginário consciente ou não, o sujeito se recria constantemente como
texto e assume a variedade de uma fala. Percorrendo o curso do próprio
entendimento, o homem desatou os nós de qualquer certeza, fez-se
menos palpável e, ambiguamente, mais literal; transformou-se num
complexo livro aberto, em um anseio crescente por comunicação e em
uma reconstrução frenética do seu “outro”.
Nesse “outro” está sua noção de existência. No entendimento do
que está no final da enunciação, o sujeito (enquanto tal) “realmente” se
faz. É pelo “outro” que o sujeito se constrói, e é na linguagem que ele
se estrutura enquanto “holograma inteligível”. A partir dessa percepção,
um discurso inquietante sobre o que existe e sobre o que vai existir se
elabora: o estar na comunicação ganha sentido e apresenta o que se
adaptou a chamar-se de realidade. Tem-se, pois, uma elucubração quase
infindável que flutua entre a verdade e a falsidade e que se aglomera
junto a um infinito de contingências, de entraves e de omissões na
qual, com surpreendente habilidade, tudo se reordena constantemente
e, obviamente, a subjetividade se faz presente. Criaram-se, também, o
contexto e a evolução intencional de formas discursivas que tentavam
esconder a si mesmas; revelou-se uma nova forma de fluxo.
2
Segundo Gianfranco Bettetini (1993, p. 66), “o texto, num nível mais imediato, é definível como
um conjunto de enunciados que se atualizam em relações recíprocas e que dão origem a uma
estrutura finalizada da construção de um sentido. O texto é portanto um corpo semiótico orgâ-
nico e coerente e a sua estrutura semântica (aquela que comumente vem definida como estrutura
textual e que considera os aspectos de conteúdo do texto) revela as inscrições e as hierarquias das
codificações sobre as quais funda-se a construção superficial do próprio texto”. No entanto, é
preciso que nos atentemos para o fato de que o homem, como “texto vivo”, pode-se pautar em
trâmites dotados de muito menos rigidez e formular seus mundos subjetivos como textos muito
mais fluidos ou livres.
A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação 175

A comunicação, no seio das edificações imprecisas da


humanidade, rompeu e, ao mesmo tempo, voltou-se a uma grande
narrativa deformadora, cunhando, sob a luz de um tempo intocável
e imensurável, a grande liberdade que recolocava agentes em uma
guerra por tentativas simbólicas. Comunicar passou a ser requisito para
uma “auto-imagem”, e para uma afirmação ainda mais complexa dos
trâmites do “eu”. Os sujeitos tinham que se mostrar e estar presentes no
entendimento do “outro”, tinham que procurar um destino ou mesmo
uma razão para estarem representados no mundo.
Esse é o motivo para a criação das formas relacionais que nascem
da comunicação. O agir comunicativo, como nos sugeria Habermas
(1999), cunhou nossa própria noção de interação. E essa interação
representou o mundo como uma sombra imprecisa que nascia da luz
emanada das palavras e dos outros signos. Começamos, pois, a imaginar
uma realidade comum, aceitável e contada por enunciações rebeldes que
não cansavam de se arvorar para si, metamorfoseando-se em constantes
certezas ilusórias e dando base para as relações dialógicas entre os
homens, suas formas conscientes, inconscientes e, principalmente,
com uma necessária alteridade: evolução que viria a ser base para que
se pensasse o mundo enquanto um movimento de subjetivação e o que
existe de real como uma invenção do sujeito.
O entendimento humano nasce, pois, de um diálogo, de um
processo comunicativo que, constantemente, refunda o sujeito e seus
contextos. E cria, por causa desse processo, a necessidade que temos
de falar, escrever, gesticular, por exemplo. Nossa comunicação é o
próprio sedimento da nossa auto-afirmação, da nossa história. Criamos
interlocutores que vão, em nossas primeiras intenções, atestar as
representações de realidade que nos são comuns. Necessitamos desses
interlocutores e da sua “escuta”, que é, justamente, o local de uma
grande revelação; uma revelação que, como brilhantemente nos disse
o doutor Lacan (1998, p. 257), “é a fala presente, que atesta a realidade
atual e que funda essa verdade em nome dessa realidade”. Na próxima
seção, para um melhor entendimento dessas questões, trabalharemos
176 Henrique Oliveira de Araújo

um pouco mais detidamente sobre a idéia de “sujeito” que, até aqui,


estamos propondo para o nosso trabalho.

A noção de sujeito na comunicação

No século XVII, no terceiro livro do Ensaio Acerca do Entendimento


Humano, John Locke (1973) dava-nos uma pista sobre a forma como
se estrutura a percepção dos homens. Em um texto de aguçado senso
observador, o filósofo inglês dizia:

[...] Deus, tendo designado o homem como criatura sociável,


não o fez apenas com inclinação e necessidade para estabelecer
camaradagem com os da sua própria espécie, mas o forneceu
também com a linguagem, que passou a ser o instrumento mais
notável e laço comum da sociedade. O homem, portanto, teve
por natureza seus órgãos de tal modo talhados que está ocupado
para formar sons articulados, que denominamos palavras. Isto,
porém, não foi suficiente para produzir linguagem [...].

[...] Além de sons articulados, portanto, foi mais tarde necessário


que o homem pudesse ter a habilidade para usar esses sons como
sinais de concepções internas, e fazê-los significar as marcas
das idéias internas de sua própria mente, pelas quais elas serão
conhecidas pelos outros, e os pensamentos das mentes dos
homens serão mutuamente transmitidos (p. 227).

O homem sociável, portanto, como indicou Locke, teve,


concretizada nessa capacidade linguística, a principal “ferramenta”3,
que é inata, do seu processo de construção cultural e do seu próprio
entendimento subjetivo do mundo. Através da habilidade de trabalhar
racionalmente com a linguagem e de formular conteúdos discursivos, o
sujeito passa a ter condições para exteriorizar ou, mesmo, materializar
3
Para alguns linguistas conhecidos como “inatistas”, entender a linguagem como um mero instru-
mento humano é uma visão no mínimo questionável. Defendendo essa opinião, Benveniste (1988,
p. 285) nos diz: “Falar em instrumento é pôr em oposição o homem e a natureza. A picareta, a
flecha, a roda não estão na natureza. São fabricações. A linguagem está na natureza do homem,
que não a fabricou. [...] Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos
nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber
a existência do outro. É o homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com
outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem”.
A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação 177

seus pensamentos ou “concepções internas”. Nessas concepções, ele


começa a se fundar enquanto ser complexo e participante da edificação
do mundo e enquanto agente da representação do “real”. Poderíamos
ainda dizer que esse é o momento em que, como humanos, demos os
primeiros passos rumo a um marcante e paradoxal rompimento com
várias das muitas barreiras à capacidade perceptiva que tão firmemente
nos engajamos em desenvolver. Passamos a iniciar o que viríamos a
conceber como palpável ou cognoscivelmente existente. E nessa mesma
constituição (de uma maneira nada lacônica – como é característica na
humanidade), iniciamos nossa penetrante intervenção nas falas: criando
nuances, veredas, infinitos e ilusões.
Nessa observação, percebemos que o sujeito realiza seus
movimentos de emancipação quando se “liberta”4 (em algum momento
obscuro da gênese discursiva) de sua simples inserção irracional no
planeta. Com a linguagem, ele formula conteúdos capazes de reformar o
próprio contexto imaginário que o cerca. Passa a ter, pelo encadeamento
e expressão de suas idéias, forças para modificar toda uma percepção
que, notavelmente, lhe serve como guia do seu “estar-no-mundo”. Ao
captar e reconstruir, em seus discursos, os “materiais” mundanos, o
homem passa a interferir no seu próprio destino, passa a formular os
conteúdos que articulariam a “prevalência intelectual” da humanidade
sobre os outros grupos de animais. É, pois, na linguagem, nos discursos
e na comunicação que as subjetividades definitivamente se formam e
se firmam enquanto tais.
Avançando um pouco, analisemos um trecho de Benveniste
(1988, p. 289):
4
É importante que percebamos: essa “liberdade” se calca em bases bem relativas. Na própria
tradição dos estudos semiológicos, ao se perceber a grande penetração dos fatores culturais,
sociais e históricos na conformação e “uso” da fala (e, consequentemente, da língua), admite-se
que existe, por exemplo, um momento de desigualdade e/ou de prevalência de minorias privile-
giadas (os chamados “grupos de decisão”) sobre maiorias, que sofrem uma espécie de imposição.
Isso coloca, dentro da dinâmica da fala, os importantíssimos (e não esquecidos aqui) fatores
sociológicos e antropológicos como determinantes da ação de fala dos diferentes sujeitos. Como
exemplo, observemos um trecho de Barthes (2003, p. 34): “Pode-se dizer, mais amplamente, que
as elaborações do grupo de decisão, isto é, as logotécnicas, são, elas próprias, apenas os termos
de uma função sempre mais geral, ou seja, o imaginário coletivo da época: a inovação individual é
assim transcendida por uma determinação sociológica (de grupos restritos) e estas determinações
sociológicas, por sua vez, remetem a um sentido final, de natureza antropológica”.
178 Henrique Oliveira de Araújo

A linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo


fato de conter sempre as formas linguísticas apropriadas à sua
expressão; e o discurso provoca a emergência da subjetividade,
pelo fato de consistir de instâncias discretas. A linguagem de
algum modo propõe formas ‘vazias’ das quais cada locutor em
exercício de discurso se apropria e as quais refere à sua ‘pessoa’,
definindo-se ao mesmo tempo a si mesmo como eu e a um
parceiro como tu. A instância de discurso é assim constitutiva de
todas as coordenadas que definem o sujeito e das quais apenas
designamos sumariamente as mais aparentes.

Além de, como já indicamos, fornecer grande parte das


“coordenadas” definidoras do sujeito, a prática discursiva coloca uma
questão que se faz de suma importância para nós: a relação dialógica
entre subjetividades.
Ora, se nos esforçarmos um pouco em nossas análises,
perceberemos que é exatamente o diálogo que preenche a essência do
processo comunicativo. Seguindo novamente uma visão habermaseana,
podemos afirmar que é impossível que um ato comunicativo se
desenvolva sem que exista um contexto que englobe pelo menos dois
atores. A comunicação se dá, justamente, pelas vias de uma relação
dialógica. Isso pressupõe que os usuários da linguagem, ou seja,
aqueles que a colocam em movimento, estejam envoltos em um uma
realidade ou, mesmo, numa representação comum de realidade, capaz
de tornar seus conteúdos enunciativos compreensíveis aos diferentes
“sujeitos usuários”. Obviamente, esses sujeitos teriam que estar
devidamente inseridos num universo de códigos linguísticos comuns
que estabelecesse uma necessária (e evidente) compreensão recíproca
(HABERMAS, 1999).
É justamente aí que se encontra o momento característico do
processo de comunicação e a questão central para que entendamos
como o sujeito é formado em toda essa conjunção. Afinal, nessa
relação de diálogo, fica claro que a enunciação subjetiva de
conteúdos depende eminentemente da figura do que, anteriormente,
denominamos o “outro”.
A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação 179

É para esse “outro” que o sujeito se forma na linguagem. É


prevendo a existência dessa “alteridade comunicativa” que ele formula
seus conteúdos e inicia o que Goffman (2007, p. 25) chamaria de
“representação” ou busca pela crença de uma platéia atenta à sua
reestruturação da realidade. O homem dialoga com seus “outros” e
com as diferentes alteridades que ele encontra na sua rede de vivências
sociais. Ao se socializar, o individuo começa, numa relação pautada
pela linguagem, a lidar com diferentes presenças, que se consolidam
como partes compositoras da realidade que ele considera aceita ou
dada. Nessa realidade, o indivíduo passa a estabelecer “aproximações
subjetivas” que serão de suma importância para a conformação do seu
“eu”. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que, ao nascer, os seres
humanos estão destinados a lidar com conformações que foram criadas
e legitimadas antes do seu nascimento. Nesse movimento, ele defronta-
se, invariavelmente, com outros indivíduos que já compunham o
organismo social que ele veio, também, a habitar. É nesse encontro
de alteridades que se movimenta a linguagem e se estabelece, como
processo fundamental, a comunicação. É justamente nesse tecido
social regado a diversidades que surge o que Goffman (2007) já
denunciava: a representação de papéis pelo “eu” na “dramatização”
da vida cotidiana.
No texto Carta a Meu Pai, Kafka (1976) coloca de maneira
brilhante essa encenação que se encontra nas “entranhas dialéticas” da
sociedade. Ao descrever sua peculiar relação com seu pai e a opressão
que advinha desse relacionamento, o escritor nos transporta para uma
imagem que nos mostra claramente que, dentro das instituições sociais
(no caso desse escrito de Kafka, a família), existe um estabelecido
relacionamento dialético, que é, realmente, um seio de representações
e de confrontos de subjetividades. Isso se cristaliza em uma série de
práticas ou, mesmo, “convenções-guia” das condutas tidas como
normais ou aceitas. Sobre isso, vejamos um trecho em que Kafka
(1976, p. 77) descreve sua percepção acerca da configuração do “papel”
desempenhado por seu pai:
180 Henrique Oliveira de Araújo

Acreditavas que devia ser, mais ou menos, assim: durante toda


a tua vida trabalhaste duramente, sacrificando tudo pelos teus
filhos e especialmente por mim; como consequência disso, vivi
de modo dissipado, tive inteira liberdade para aprender o que
desejasse, não tive razão para me preocupar pelo sustento; isto
é, nenhuma inquietação; não pedias gratidão em troca, conheces
o agradecimento dos filhos, mas, ao menos uma aproximação,
sinal de simpatia.

Ao representar seu “papel” de provedor, o patriarca da


família Kafka interioriza, como diria Berger e Luckmann (1985), um
comportamento historicamente tido como certo para aquela situação. A
estrutura familiar com a qual o jovem Franz e seu pai tinham que conviver
(mesmo que problematicamente) era, pois, o terreno sobre o qual se
desvelavam as condições para que se instaurasse aquele determinado
conhecimento de mundo, que confirmava uma forma dialética de
construção das subjetividades.
Como o âmbito familiar, todas as outras formas contextuais da
sociedade participam ativamente da afirmação subjetiva do “eu” e da
visão diversificada que temos do “outro”. É justamente neste encontro
com nossos semelhantes que formamos nossos comportamentos e,
com o evidente auxílio da linguagem, construímos nossas formas de
agir e ver o mundo. No entanto, só podemos entender a construção
dessas relações perceptivas se admitirmos que todo esse processo, como
indicamos anteriormente, se dá dialeticamente e sob as demandas de um
processo de compreensão das diversas situações em que se desenvolvem
as formas de agir dos homens. Só então entenderemos porque Goffman
(2007) afirma que os indivíduos e/ou atores se aglomeram em torno de
uma grande “fachada”: de uma construção que se dá como uma peça
teatral em que o forte é o convencimento de um “público”.
Ora, ao admitir essa “dramatização” da realidade sugerida por
Goffman, estamos, ao mesmo tempo, aceitando que os processos sobre
os quais são sustentadas as realidades sociais se calcam em um outro
processo que é comunicativo por essência, e no qual se pressupõe a
criação de uma mensagem que seja destinada a uma “platéia de outros”
A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação 181

receptores e decodificadores de mensagens específicas. Eis que se


apresenta novamente o diálogo como criador da própria noção do papel
do sujeito no ato de comunicação.
Afinal, como nos revela a anterior passagem que transcrevemos
da obra de Benveniste, a proposta de uma atividade realmente
discursiva pressupõe a presença de parceiros. Quando ele fala de
um eu e de um tu como agentes de uma ação comunicativa, está
atestando o caráter eminentemente dialógico sobre o qual o sujeito
e a comunicação se fundam. Uma vez habilitada pela linguagem, a
palavra, enquanto manifestação de um código formal posto a serviço
de uma situação discursiva qualquer, se renova constantemente para
dar movimento a um formato linguístico que contém a própria
imagem do homem: um homem que se afirma na linguagem,
enquanto ser único e enquanto um locutor participante da frenética
edificação simbólica do mundo.
Se avançarmos numa interpretação lacaniana5, teremos ainda mais
nítida a idéia de “outro” que aqui estamos tentando colocar. Notaremos,
em uma forte abstração, que, até se não existir uma presença corporal
de outro ser humano à frente da pessoa que fala, o sujeito estabelece
uma relação (para compor seu discurso) com um ouvinte criado dentro
de si mesmo. Nessa visão psicanalítica, a essência da conformação
linguística da subjetividade está no que ele chamou de confronto de
“significantes”6, ou seja, na articulação do desejo7 como uma forma
sistemática de significação e de criação de um “imaginário contextual”
e de comunicação. Esta quase subversão impetrada por Lacan dentro
do campo dos estudos linguísticos, justamente ao inverter a tradicional
noção de signo estabelecida por Saussure, trouxe um terceiro elemento
dialógico para a constituição do sujeito: o homem falando para si
mesmo e descobrindo, também numa alteridade, a conformação do
5
Sugiro que ancoremos nossas interpretações das teorias de Lacan ainda mais em textos de
outros interpretadores e comentadores do estudioso francês, como Bento, Ziliotto, Cukiert e
Prates (2004).
6
Chama-se de signo “o total resultante da associação de um significante [=imagem acústica] e de
um significado [=conceito] [...]” (BENVENISTE, 1988, p. 53).
7
“Numa palavra, em parte alguma evidencia-se que o desejo do homem encontra seu sentido no
desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu
primeiro objeto é ser reconhecido pelo outro” (LACAN, 1998, p. 268).
182 Henrique Oliveira de Araújo

seu inconsciente enquanto linguagem. Para Lacan, mesmo não estando


numa situação formal e corporal de fala (com um eu e um tu em carne e
osso), os “seres falantes” são capazes de movimentar a linguagem. E é
nesse imaginário ato de fala dos sujeitos com seus “outros” mentais que
se desvendará, pelas curvas que as entrelinhas da palavra escondem, a
real constituição da afirmação subjetiva e do entendimento dos homens.
Por isso, para entender a complexidade da conformação da idéia de
sujeito, devemos, em primeiro lugar, entender que sua constituição se
faz na comunicação. E que, fora desse processo de interação, a própria
concepção de realidade desaparece, se esgota. É no discurso que brota
a subjetividade pulsante dos homens e é nele que nos reconhecemos.
E na fala é que temos casa, pois

[...] ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é


o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual
do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui
a emergência da verdade no real (LACAN, 1998, p. 259).

Os homens, então, fundam sua pequenez e sua grandeza


representativa no seio dos atos comunicativos: comunicando, criam
história, refazem caminhos, edificam e despedaçam quimeras.

Conclusão

O papel do “outro” na comunicação é, pois, crucial. Podemos


afirmar isso se entendermos que o próprio ato enunciativo se constrói
sobre bases dialéticas. Bases que, como já indicamos, pressupõem
um contato entre subjetividades que constroem constantemente o
entendimento e que são de cabal importância para que o homem coloque
em atividade a linguagem sobre a qual está calcado. Afinal, nenhum ser
humano se insere no ato comunicativo sem pressupor a presença de um
“destinatário” à sua mensagem, como afirma Benveniste (2006, p. 84):

[...] imediatamente, desde que se declara locutor e assume a


língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o
A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação 183

grau de presença que ele atribua a este outro. Toda enunciação


é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um
alocutário.

Ora, se o homem pressupõe na sua comunicação uma necessária


alocução, não podemos concluir outra coisa a não ser o fato de que ele
se funda enquanto ser dialógico na medida em que se coloca em frente
da presença marcante do “outro”. Nessa alteridade é que ele estabelece
a condição de fala, temporalidade e colocação significativa da sua vida
social. Assim, por meio de uma inserção discursiva no mundo, o homem
funda seu tempo: um tempo constantemente renovado, que cria as
sensações de continuidade e presença que irão, constantemente, tocar
seus formatos subjetivos.
Fundamos-nos, assim, no “outro”. A própria percepção do nosso
corpo se dá, inevitavelmente, porque partimos da visão primeira do
formato daquela alteridade que nos guia. Quando bebês, ao nos olharmos
em um espelho, por exemplo, temos nossa primeira noção de alteridade.
Criamos, quando crianças, no que Lacan (1998, p. 100) chamou de estádio
do espelho, uma “função da imago” que nos revela como seres inseridos
numa realidade crivada de diálogos. Percebemos a ilusão da nossa imagem
como uma espécie de semelhança idealmente perfeita com outros seres que
compõem a nossa espécie. Nessa busca por similitudes, e com o aparato da
linguagem, fundamos nossos discursos; saímos à procura incessante por
aquela mesma imagem que o espelho nos forneceu, procuramos o início
de uma interação que se dirá social. Partimos, portanto, para os terrenos
de uma interação que nos colocará em frente dos fantasmas daqueles que
nos são iguais. Esses “fantasmas”, por sua vez, serão explicitados numa
edificação discursiva e no aparato do enunciado.
Entre os indivíduos será estabelecida, pois, uma colaboração para a
construção simbólica da realidade e assim inaugurada, “pela identificação
com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial [...], a
dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas”
(LACAN, 1998, p. 101). Constroem-se, então, os fundamentos do “eu
social”: os indivíduos passam a ter as condições para estabelecer as
184 Henrique Oliveira de Araújo

interações que se constituirão no cerne para sedimentação dos seus


aparatos discursivos. Esses aparatos existirão, por sua vez, em todo o
percurso comunicativo da vida humana, desde as formas comunicativas
mais primitivas dos homens sociais até as elaboradas e complexas
relações inauguradas por instrumentos fluidos como a Internet. Na
relação com o “outro”, o homem poderá entender os trâmites que
legitimam as matérias do seu mundo e dos seus objetos formadores;
elaborará o mundo imagético e de imersão ativa percebido por Bergson
(1999) em Matéria e Memória e dará a mobilidade às edificações essenciais
que formam seus anseios por comunicação e enunciações.

Esta característica coloca necessariamente o que se pode


denominar o quadro figurativo da enunciação. Como forma
de discurso, a enunciação coloca duas “figuras” igualmente
necessárias, uma origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura
do diálogo (BENVENISTE, 2006, p. 87).

Entendemos, portanto, que a comunicação humana se funda


no momento em que se consolida a qualidade interativa dos indivíduos
com o “outro”. Ao se estruturar no diálogo, o homem inicia seu próprio
nascimento enquanto movimentador da linguagem. Por isso, dizemos que
o papel do “outro”, nos processos comunicativos, está ligado à própria vida
e ao crescimento do entendimento do homem. Afinal, sem a percepção
dessa alteridade, não se dá início à conformação do sujeito enunciador
e, ao mesmo tempo, não se pode criar o “real”. Dito de outra maneira, a
comunicação não existe sem a presença da figura de um alocutário.

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PRATES, Ana Laura. Que destino dar à mensagem recebida?


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215-223, jun. 2004.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
número 6
jUL./DEZ. 2006
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de
controle no cotidiano de uma unidade prisional

Odilza Lines de Almeida1

Resumo: Estudos sobre a justiça penal de países do hemisfério norte-ocidental


apontam para transformações importantes do significado do cárcere nas três
últimas décadas. De uma instituição desprestigiada e destinada a abolição, a
prisão vem sendo assumida como um locus das políticas e estratégias punitivas
que caracterizam a modernidade tardia naqueles países. Entendendo que a
reabilitação e o “welfarismo” penal nunca foram a tônica dominante do sistema
prisional brasileiro, como podemos caracterizar as nossas prisões? O presente
trabalho discute o cotidiano do cárcere a partir das ações e significados dos
atores sociais que transitam no espaço de uma grande unidade prisional do
Estado da Bahia. Resultados iniciais permitem afirmar que a prisão está mais
adaptada aos jogos de poder entre estes atores do que a qualquer estratégia
geral no sentido seja da reabilitação seja da punição.

Palavras-chave: Prisão. Sistema de controle. Punição.

Power Games: an analysis of the assumptions of the control systems


in the daily routine of a penitentiary

Abstract: Studies on the judicial system in North-western hemisphere countries


point to important changes in the meaning of incarceration in the last three
decades. Formerly considered a discredited institution doomed to extinction,
prisons have now become the locus of punitive policies and strategies which
1
Doutoranda pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Professora da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: olalmeida@terra.com.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 189-212 2009
190 Odilza Lines de Almeida

characterize the delayed modernity in those countries. Understanding that


penal rehabilitation and welfarism have never been the at the core of Brazilian
penitentiaries, how can we characterize our prisons? This work examines the
daily routine of incarceration by analyzing the actions and roles of the social
actors in transit in a large penal unit in the State of Bahia. Initial results lead us
to state that imprisonment is more suited to power games among those actors
than to any overall strategies concerning rehabilitation or punishment.

Key words: Prison. Control system. Punishment.

1 Introdução

Estudos sobre a justiça penal de países do hemisfério norte-


ocidental apontam para transformações importantes do significado
do cárcere nas três últimas décadas. De uma instituição desprestigiada
e destinada a abolição, a prisão vem sendo assumida como um locus
das políticas e estratégias punitivas que caracterizam a modernidade
tardia naqueles países. É mister salientar que essas estratégias punitivas
tentaram acompanhar as mudanças observadas na natureza dos delitos
e nos índices de criminalidade sendo, portanto, caracterizadas por um
esforço para reverter situações já estabelecidas, não havendo noticias
sobre estudos prospectivos ou com sinceras intenções de prevenção.
Garland (2005) faz uma análise histórica dessa mudança e conclui
que os processos de modernização que pareciam tão consolidados nesse
âmbito – racionalização e civilização – parecem reverter-se. As políticas do
sistema de controle social migram do ideal de reabilitação do welfarismo penal
que tomou o lugar dos castigos retributivos, para a reaparição da política
oficial de sentimentos punitivos e gestos expressivos. Diferentemente das
criminologias do Estado de bem-estar, estas novas criminologias veem o
delito como algo próprio da interação social normal e explicável através
de padrões motivacionais, o que tem gerado novos estilos de gestão e
práticas de trabalho e uma sensação permanente de crise.
Poucos são os estudos nacionais sobre o contexto prisional
mas, em sua maioria, atestam a ambiguidade existente nos discursos
e nas práticas carcerárias. Se, por um lado, podemos identificar a falta
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 191

de pretensões reabilitadoras no discurso do staff e na implantação de


regimes que objetivam tão somente a segregação, por outro, encontramos
programas típicos do espírito do welfarismo que tentam resgatar o
sentenciado da criminalidade proporcionando-lhe experiências diversas
das vivenciadas até então.
Por detrás das cortinas das possíveis políticas de controle social
existentes, encontramos a prisão, como representante supremo, naturalis,
do sistema punitivo e, ao mesmo tempo, receptora e agente ativo dessas
virtuais políticas. A dinâmica encontrada na prisão atesta que esse
instrumento de controle não é passivo no processo de estabelecimento
de ações e programas para o setor.
Para discutir o jogo de forças que atravessam as relações entre os
diversos atores que transitam pela prisão, apresentamos, neste trabalho,
um estudo de caso de uma prisão localizada no Estado da Bahia. Nele,
defendemos que, no contexto estudado, a prisão está mais adaptada aos
jogos de poder entre estes atores do que a qualquer estratégia geral no
sentido seja da ressocialização seja da punição. Tais jogos de poder, por
sua vez, se manifestam na coexistência de fenômenos aparentemente
conflitantes mas que, numa análise mais minuciosa, se complementam,
como a legitimidade das lideranças criminosas, a inadequação do
comportamento do staff, a impropriedade da estrutura física, a ausência
de serviços básicos, a disseminação da insegurança, a permissividade
em relação a bens e serviços e a concessão de regalias.

2 Dos Sistemas de Controle Social

A noção de “controle social” tem sido utilizada de muitas formas


dentro do campo das Ciências Sociais. Por esse caráter polifônico, cabe-
nos, pois, delimitar de qual lugar estamos falando ao nos referirmos a esse
conceito. Alvarez (2004), numa tentativa de recuperar a trajetória da idéia
de “controle social”, remete-nos às formulações de Durkheim acerca do
problema da ordem e da integração social como precursoras das questões que
permeiam a expressão ora discutida. Mas é na Sociologia norte-americana,
192 Odilza Lines de Almeida

continua Alvarez, especialmente em Mead e Ross, que o termo é utilizado


para especificar um campo de estudos e para se referir aos mecanismos de
cooperação e coesão voluntária daquela sociedade, excluindo, deste modo, a
análise da ordem social como regulada pelo Estado e privilegiando aspectos
microssociologicos dentro da tradição da Escola de Chicago.
Após a Segunda Guerra Mundial, a expressão toma outra
direção e recupera questões macrossociológicas, como a da relação do
Estado com os mecanismos de controle social e a coesão social passa
a ser vista como resultado de práticas de dominação organizadas pelo
Estado (ALVAREZ, 2004). Essa orientação que o autor chama de
“negativa” marca os estudos revisionistas das práticas penais dos anos
60 promovidos por autores como Edward Palmer Thompson e Michel
Foucault. A partir dos anos 80 essa abordagem sofre novas críticas.
Cohen (1989 apud ALVAREZ, 2004) critica a idéia de submissão
completa daqueles que estão sob os mecanismos de controle, presente
nos estudos revisionistas que também privilegiam as práticas formais e
o papel do Estado, em detrimento das práticas informais. Os estudos
atuais buscam modelos multidimensionais para compreender a expressão
“controle social”. Nesse caminho, delimitamos nossa abordagem acerca
do termo ao caracterizá-lo através da concepção de Cohen citada por
Alvarez (2004). Segundo o autor a noção deve ser capaz de:

- indicar a que práticas sociais específicas corresponde;


- recuperar as diferentes respostas dos agentes submetidos aos
mecanismos de controle;
- mostrar que essas práticas podem ser produtivas e não apenas
repressivas, já que podem produzir comportamentos em indivíduos
e grupos sociais e não somente restringir e controlar as ações;
- evitar a dicotomia Estado/sociedade e pensar as práticas de
controle social constituindo-se na relação entre as diversas
dimensões institucionais da modernidade;
- não cair numa visão por demais finalista da racionalidade dos
mecanismos de controle social.

Estabelecida a idéia de controle social da qual nos aproximamos,


é de bom alvitre operacionalizarmo-la. Aqui, subimos nos ombros
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 193

de Garland (2005) para compreendermos o controle social como


composto por uma rede governamental de produção de ordem social
que inclui o sistema legal e, acrescentamos, o sistema punitivo que,
juntos, formam o sistema de controle do delito; o mercado de trabalho;
e as instituições do Estado de Bem-Estar Social. O sistema punitivo,
representado pelas instituições de controle do delito, modifica sua
configuração na medida em que as mudanças na estrutura dos campos
sociais e das instituições contíguas são estabelecidas. As instituições
formais do controle de delito tendem, assim, a ser reativas e adaptativas;
funcionam buscando complementar os controles sociais da vida
cotidiana. A re-configuração do campo do controle do delito envolve
muito mais que uma simples mudança na resposta da sociedade frente
ao delito. Também implica novas práticas de controle das condutas e
de fazer justiça, concepções revisadas da ordem e do controle social e
das maneiras de se manter a coesão social e manejar as relações entre
os grupos sociais (GARLAND, 2005).
Na prática, o controle do delito é considerado um tipo específico
de  controle social – identificação e respostas a condutas consideradas 
desviantes – que é típico das sociedades modernas, onde conflitos e 
ações indesejáveis ou danosas, que eram resolvidas de variadas formas, 
passaram para a órbita do sistema de justiça criminal, sendo  tipificadas
como delitos. Nestas sociedades, o controle do delito se  apropriou e
colonizou o controle social, levando a que ambas  expressões sejam
consideradas sinônimas.

2.1 A análise genealógica do sistema de controle do delito segundo David Garland

Para melhor compreender as práticas emergentes contemporâneas,


Garland (2005) faz uma análise genealógica das mudanças ocorridas nas
políticas do controle do delito nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, a
qual aqui resumidamente apresentamos. Podemos dizer que a trajetória
percorrida pelo sistema de controle do delito pode ser inicialmente
localizada no inicio da Europa Moderna quando os soberanos prometiam
194 Odilza Lines de Almeida

paz e justiça aos seus súditos. Nesse momento, se atribuía à vontade


soberana e a imposição de Sua lei era sinônima de controle do delito. No
decorrer dos séculos XVIII e XIX, a atividade policial, o ajuizamento
e o castigo dos delinquentes foram cada vez mais monopolizados pelo
Estado. As disputas privadas e os danos infligidos aos indivíduos se
reconstruíram como assuntos públicos a serem tratados por tribunais
penais. As leis e os castigos saíram das mãos de autoridades seculares e
espirituais para se concentrar nas novas instituições, profissionalizando
o poder de polícia e regulamentando os castigos.
Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, as novas agências
da justiça penal estatal trabalhavam em paralelo aos mecanismos de
vigilância e controle do delito da sociedade civil. Com o tempo, as forças
policiais privadas se debilitaram e as queixas eram orientadas cada vez
mais ao Estado e menos frequentemente os cidadãos organizavam
respostas privadas. O aparato estatal moderno começa então a ser
configurado e legitimado vez que culminou com a diminuição das taxas
de criminalidade e violência até a metade do século XX, embora não se
possa atribuir esses índices apenas às novas instituições penais, mas a
outras forças e instâncias sociais, segundo Garland (2005).
Com raízes em 1890 e ápice nas décadas de 1950 e 1960 vimos
desenvolver o welfarismo penal na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.
Sua filosofia básica consistia na crença de que as medidas penais deviam
ser intervenções destinadas à reabilitação envolvendo práticas como
individualização do tratamento, avaliação e classificação feitos por
especialistas, investigação criminológica, condenações indeterminadas,
dentre outras. Seus princípios tendiam à reprovação do uso do
encarceramento, considerado como contraproducente do ponto de vista
da correção individual, preferindo os regimes especializados de custódia.
O ideal de reabilitação era, assim, o principio organizador do complexo
penal-welfare que passou a atribuir um lugar central aos especialistas, tanto
na execução do sistema quanto na elaboração de políticas públicas, o
que possibilitou o desenvolvimento de uma disciplina criminológica
nas Universidades.
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 195

Os princípios do welfarismo penal baseavam-se em dois axiomas


derivados da cultura política progressista do período: 1. considerava
como algo evidente que a reforma social, junto com a afluência econômica,
eventualmente reduziria a frequência do delito. O segundo axioma, também
produto desse momento histórico especifico, era que o Estado é responsável
pela assistência aos delinquentes tanto como de seu castigo e controle. O sujeito
culpado tanto era um “delinquente” como um “cliente”. Mas se o delito
era um problema social, as medidas individualizadas e correcionalistas
fatalmente fracassariam, diziam os críticos.
Em meados da década de 1970, o welfarismo penal começou a
sofrer ataques contra suas premissas e práticas que resultaram na re-
configuração do campo do controle do delito. Um documento publicado
pelo Grupo de Trabalho do Comitê de Serviços de Amigos Americanos,
em 1971, considerava inconsistente, discriminatório, paternalista e
hipócrita, dentre outros adjetivos negativos, a penologia progressista.
Criticava, ainda, os pressupostos deterministas e positivistas que
consideravam as violações à lei como sintomáticas de patologia individual.
Assim, no inicio da década de 1970, novas teorias apresentavam o delito
como forma de ação racional e portadora de sentido, sendo produto
das relações de poder e não de patologia individual.
O desempoderamento da teoria correcionalista minou a
credibilidade das instituições e proporcionou uma desmoralização do
sistema de justiça penal alimentada pela sensação de fracasso devido às
taxas de delito em crescimento nos anos setenta e oitenta. Observa-se
também, nesse período, um aumento da população de risco e mudanças
sociais, políticas, econômicas e culturais. Esse contexto fez surgir novas
formas de criminologia e uma nova agenda de controle do delito que
desvalorizava a reabilitação e o correcionalismo.
Nesse novo contexto, as políticas penais do Estado de Bem-Estar
Social se apresentavam como custosas e os contribuintes já não podiam/
queriam pagá-las e as viam como indulgentes e contraproducentes. O
delito passou a funcionar como justificativa para o desenvolvimento
de um Estado disciplinador que o vê como um problema de falta de
196 Odilza Lines de Almeida

autocontrole social, próprio de personalidades anti-sociais ou de escolhas


racionais, e que deve ser punido. A imagem do delinquente deixa de ser
aquela do ofensor necessitado e passa a ser mais ameaçadora. A simpatia
é direcionada para a vítima e para o público temeroso. A filosofia da
“não intervenção radical”, e até do abolicionismo, que simbolizava o
ideal progressista dos anos sessenta é agora alterada para a “tolerância
zero” e focada nas “classes perigosas”, leia-se nos pobres que passam
a ser considerados não merecedores.
Destarte, diferentemente das criminologias do Estado de bem-
estar, estas novas criminologias veem o delito como algo próprio da
interação social normal e explicável através de padrões motivacionais,
o que tem gerado novos estilos de gestão e práticas de trabalho e
uma sensação permanente de crise. Porém, nota-se ambivalência
na adoção das estratégias do sistema de controle por parte das
autoridades governamentais. A depender das circunstâncias, do tipo
de delito ou de delinquente podem atuar reativando o velho mito do
Estado soberano, gerando o surgimento de modalidades expressivas
de enfrentamento, manifestando o sentimento público e toda a força
da autoridade estatal.
Duas estratégias no atual sistema de controle são identificadas
por Garland (2005, p. 237-239) “associações preventivas” – fazendo
referência ao esforço de compartilhar a responsabilidade do controle
do delito e de construir uma infra-estrutura de prevenção do delito
cada vez mais fora do Estado – e “segregação punitiva”, estratégia que
faz referência a nova confiança nas medidas, sobretudo nas políticas
de encarceramento em massa e de tolerância mínima, desenhadas para
castigar e excluir. A estratégia de segregação punitiva é caracterizada
1. por sua severidade, configurada como uma ação expressiva mais
lógica que instrumental e que envolve longos períodos de privação de
liberdade em cárceres sem comodidade, além de uma existência vigiada
e estigmatizada para os egressos; 2. por ser popular e politizada, isto
é, as políticas são formuladas por comitês de ações políticas e 3. para
dar um lugar privilegiado às vitimas, invocando o sofrimento atual
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 197

ou futuro dessas vitimas para justificar qualquer tipo de medida de


repressão penal.
Ao analisar as instituições de controle do delito no Brasil,
especialmente o sistema prisional, percebemos que nenhuma das
abordagens se constituiu a tônica dominante.

2.2 A noção de poder em Foucault

Para falar do sistema punitivo é condição sine qua non nos


referirmos a Foucault e a sua noção de poder que embasa grande parte
dos estudos sobre castigo ou prisão.
Focault (1999), diferentemente das teorias que até então focavam
o poder em termos centrais, de constituição, soberania ou econômicos
e de aparelho do Estado, chama a atenção para o que chama de “malha
fina” da rede do poder. Considera que a análise da engrenagem do poder
das instituições é fundamental para se compreender a sua concretude.
Os mecanismos de poder referidos por Foucault são aqueles capilares,
que se inserem no cotidiano em suas ações e discursos (GARLAND,
1999). E para seu estudo, o autor adverte que algumas precauções
metodológicas devem ser observadas a fim de que o pesquisador não
caia na noção de dominação-sujeição ao se analisar o poder. Uma delas
foi particularmente útil para o trabalho desenvolvido nessa investigação
(FOUCAULT, 1999, p. 102):

Terceira precaução metodológica: não tomar o poder como um


fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo
sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe
sobre as outras; mas ter bem presente que o poder − desde que
não seja considerado de muito longe − não é algo que se possa
dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente
e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder
deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali,
nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma
riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas
198 Odilza Lines de Almeida

suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre


em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca
são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros
de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos
indivíduos, passa por eles. Não se trata de conceber o indivíduo
como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria
múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria,
submetendo os indivíduos ou estraçalhando−os. Efetivamente,
aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos
sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos
primeiros efeitos de poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro
do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um
efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser
um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através
do indivíduo que ele constituiu.

Foucault (1999, p. 119) evidencia outros aspectos do poder. Um


deles diz respeito ao custo do poder quando diz que o “poder não
se exerce sem que se custe alguma coisa” e que pode ser observado
cotidianamente nas relações estabelecidas entre staff e população
carcerária. Outro aspecto é a desconstrução da idéia de verticalidade de
poder que implicaria em dominação daqueles que estão na base. Foucault
(1999, p. 122) aponta que o “ápice e os elementos inferiores da hierarquia
estão em uma relação de apoio e de condicionamento recíprocos; eles
se sustentam” e estas táticas ou tecnologias de poder são “inventadas,
organizadas a partir de condições locais e de urgências particulares”.
Esses aspectos explicam, inicialmente, a dificuldade de se
estabelecer políticas ou programas específicos para a área penitenciária.
Segundo Foucault, sempre existem formas de escapar às malhas da rede
e as resistências imperam; os internos não são tabulas rasas ou pessoas
a serem reformados para que possam voltar à produção.
Garland (1999), ao dialogar com Foucault, considera que, embora
se exagere a sua originalidade e singularidade pois vários de seus temas já
tinham sido desenvolvidos por Nietzsche e Weber, há que se reconhecer
o foco nos aspectos internos do funcionamento das instituições e a
concentração nas tecnologias reais de poder e evita qualquer sugestão de
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 199

uma totalidade coerente, analisável por modelos estruturais. Os limites


da teoria estariam no enfoque perspectivo, ao observar os fenômenos
penais desde o ponto de vista poder-conhecimento-corpo, ignorando
qualquer outro ângulo de interpretação ou ponto de vista e excluindo
outras teorias. Considera que isso contrapõe ao que ele pretendia com
seu trabalho pois desaprovava uma teoria geral do castigo.
Mas, certo é que, na prisão, é visível como as malhas do cotidiano,
seus discursos e suas estratégias asseguram seu funcionamento e
permanência. Seguimos as recomendações de Foucault e baseados
nos pressupostos do sistema de controle apontados por Garland,
apresentamos os discursos e as práticas cotidianas para que possamos
compreender, de dentro, as malhas que sustentam essa instituição cuja
abolição, morte ou reformulação foram sempre vaticinadas mas nunca
efetivamente cumpridas.

4 Dos caminhos metodológicos

O trabalho ora apresentado está em andamento em uma


Penitenciária de Grande Porte no Estado da Bahia. Como tal, é
considerada de segurança máxima e destina-se ao recolhimento de
condenados à pena de reclusão em regime fechado. Sua capacidade total,
teoricamente, é de 1402 internos e sua população atual2 é de 1458 pessoas.
Essa Unidade é composta de cinco pavilhões e acolhe sentenciados da
Capital e de cidades do interior do Estado não atendidas por unidades
prisionais regionais. Em cada pavilhão existe o que os internos chamam
de Linha de Frente e que, até recentemente, o staff chamava de Comissão.
Cada Comissão tem um líder, atualmente denominado, interlocutor. Os
internos, por sua vez, o chamam de patrão.
A metodologia empregada é a etnográfica através de observação
participante. Técnicas como diários de campo, entrevistas, pesquisa
documental e registro de narrativas são também utilizadas com o intuito
2
Dados atualizados em 14/09/2008. A capacidade é teórica, pois um dos pavilhões encontra-se
em processo de desativação por sua estrutura ter sido condenada recentemente. Sua capacidade
real ainda não foi atualizada no site da Secretaria de Justiça.
200 Odilza Lines de Almeida

de compor um mosaico que possa, minimamente, dar uma idéia de como


se entremeia os fios dos quais são tecidos a teia que envolve as relações
de poder no cotidiano prisional.
O clima de uma Unidade Prisional é sempre de incerteza e
instabilidade e, certamente, esse aspecto dificulta em muito o trabalho
de pesquisa e compreensão do fenômeno a ser estudado. As relações
estabelecidas através de jogos de poder e força, de ambos os lados, do
“lugar do ladrão” (como os autores de delitos privados de liberdade
se auto-referenciam) – galerias e pátio – e do lugar dos funcionários
e policiais – “do lado de cá” – podem ser quase que tocadas, de tão
concretas o que dificulta o estabelecimento de relações de confiança.
Nesse tempo do trabalho, houve mudanças na gestão da Unidade
e remoção de parte do staff que contribuía para facilitar acessos, indicar
participantes ou apresentar dados úteis para a pesquisa. Várias incursões
policiais resultantes de operações para desarticular quadrilhas dentro da
Unidade também criaram um clima de insegurança e temor pois a lei do
silencio e os demais controles tornam-se mais rígidos nessas ocasiões,
impedindo, inclusive, a saída dos internos para outros Setores da Unidade.
Além disso, o campo nem sempre está à disposição do pesquisador. Por
vezes, deparamo-nos com ausência de instalações adequadas para o
trabalho, revistas gerais, falta de Agentes para a condução de internos
e também com os próprios limites de uma observação participante
que pode nos colocar em papéis ora facilitadores ora dificultadores. E,
além do mais, o tempo em uma Unidade Prisional se revela restrito em
função dos horários pré-estabelecidos. Por mais que coloquemo-nos
à disposição em horários diferenciados, existe o tempo da rotina, dos
procedimentos, das visitas... Paciência e persistência são instrumentos
fundamentais.
O trabalho a que se refere esse artigo começou a ser desenvolvido,
de forma sistematizada, a partir de outubro de 2007, com previsão de
término para o trabalho de campo em dezembro de 2008. Os dados aqui
apresentados referem-se ao período de outubro/2007 a junho/2008.
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 201

5 Dos Jogos de Poder

Ao se adentrar numa Unidade Prisional, não se sabe ao certo, de


antemão, o que iremos encontrar. Apesar da experiência que acumulamos
na área, cada Unidade tem uma personalidade própria e apresenta modos
próprios de inter-relação, tanto entre o staff quanto entre os internos e,
especialmente, entre o staff e os internos.
A questão inicial que norteia nosso trabalho está relacionada ao
modelo de sistema de controle que pode ser identificado no contexto em
análise que, em ultima instância, irá indicar como é a dinâmica do poder,
como se apresenta e com quais personagens o poder ora se encontra.
À observação inicial, o visitante menos acostumado com as rotinas
existentes pode ficar confuso ao tentar definir como se estabelecem as
relações de poder e quais as estratégias de controle existentes. Quem,
afinal, manda ali? A tônica do trabalho aqui desenvolvido está na
ressocialização ou na punição? O interno sente-se assistido pelo Estado?
Existem programas específicos? Pode-se perguntar aquele visitante
desavisado.

5.1 As estratégias de controle

Podemos analisar as estratégias de controle do staff em relação


à população carcerária e aquelas que essa população aplica a si próprio,
isto é, como se auto-governam. Ao analisar o cotidiano desses grupos
percebemos que essas estratégias estão intimamente relacionadas e são
mutuamente interdependentes.
Dentro do Pavilhão, quem detém o poder e o controle sãos os
líderes. O staff não tem legitimidade unânime da população para intervir
e usar de estratégias de controle embora se cobre que exerça o papel que
lhe cabe. As falas de dois internos ilustram essa sutil diferença e delimita
os papeis e o poder de cada ator dentro da prisão:

Eu ainda não entendo direito esse lado do Agente intervir.


Porque, queira ou não, dentro do Sistema, tem que ter uma
202 Odilza Lines de Almeida

pessoa que comande aquela população [o líder]. Não é, dentro


do Sistema, ter a polícia pra comandar a população; que aí o
Sistema fica desgovernado. Tem que ter alguém para massa
falar, pedir algo. Aí ele vai ver se dá, vem falar com o Diretor,
se o Diretor aceitar, aí ele tem o livre arbítrio pra fazer o que
ele quiser. Mas lá dentro a Policia [os agentes] não interfere em
nada. Quem manda é o “home” [o líder]. A policia manda daqui
pra fora (interno, 38 anos).

A Segurança... eles deram muito espaço, muita facilidade... Como


um preso pode ter a chave da própria cela? [referindo-se a um
episódio de repercussão envolvendo um grande líder da Unidade]
Mesmo ele sendo linha de frente da cadeia, a Segurança é quem
dá as regra (Interno, 32 anos).

Nessas falas, percebemos que os internos delimitam o espaço e a


função de cada um dos grupos de atores existentes. Os narradores têm
consciência dos limites do papel de cada um e dos excessos cometidos,
embora possamos perceber, na segunda fala, críticas que camuflam
sentimentos de injustiça e oposicionismo em relação às regalias dos
líderes. Mas, como é instituída essa delimitação de papeis? Um Agente
Penitenciário explica esse processo de forma bem clara:

O que acontece é o seguinte: geralmente esse tipo de organização


parte do crime ou do delito que tem a maior repercussão, que
tem o maior grau de inteligência, por exemplo, assaltante de
banco ou um sequestrador. Quando chegam nas Unidades
Prisionais, eles possuem um certo respeito fora; tem influências
lá fora com alguns parceiros, com algumas pessoas do crime.
Quando chegam a Unidade Prisional, essas relações se estreitam
cada vez mais por que eles precisam, eles têm essa necessidade
de estabelecer diversos grupos dentro da Unidade Prisional para
proteção, caso seu grupo ou ele próprio venha a sofrer alguma
represália lá na frente. Geralmente esses grupos começam a se
fortalecer. Vamos dizer assim: eles levam um certo prestigio que
eles já têm no mundo do crime e trazem isso para a Unidade
prisional. [...] Aqui encontram os “fariseus”, pessoas que
cometeram delitos simples, desprovidos, a família abandona, não
tem trabalho... Ai o que acontece? E estas pessoas, os fariseus,
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 203

ficavam abandonados desrespeitados nas Unidades Prisionais.


Quando começam a servir, saem do anonimato e vão para a
frente da batalha. Começam a participar dentro das Unidades,
como a gente chama, de “soldados” e, esse grupo cada vez mais
se fortalece. A Unidade Prisional sempre tem um cabeça, mas
o cabeça precisa de seus tentáculos e esses tentáculos são os
fariseus; eles o colocam na frente e ficam por trás, como se fosse
a guerra, onde o verdadeiro general não vai para o campo de
batalha, ele só fica fazendo as articulações dele, as estratégias,
e coloca o grupo na frente. E os fariseus se submetem por uma
questão de força, por uma questão de ameaça, de sobrevivência...
Ai o que acontece? Aparece uma oportunidade o cara nunca teve
mulher dentro da Unidade Prisional, o cara nunca teve dinheiro
para comprar o que gosta de fumar, o cara nunca teve dinheiro
para comprar uma coca-cola, um refrigerante, uma merenda,
possivelmente drogas e ai o que o Cabeça faz? Arregimenta.
No lugar de afastar esse “fariseu” ele traz esse “fariseu”, que é
soldado hoje, para perto dele.

Diversos aspectos podem ser discutidos a partir da fala desse


Agente. Um deles é a configuração do poder. Como diz Foucault, o
poder funciona em cadeia e não está circunscrito a uma pessoa. Os
“soldados” são transmissores do poder exercido nas relações cotidianas
a serviço do Líder que tem a exata noção de como o poder circula e
trabalha buscando estratégias para delimitá-lo e fortalecê-lo. A saída do
anonimato e da invisibilidade proporcionada pela passagem do papel de
“fariseu” para o de “soldado”, como aponta a fala do Agente, retrata
um outro lado do aspecto do poder. Ser, de algum modo, associado
ao líder retira o interno do anonimato e o investe de um poder e
“respeito” que funcionam como ingredientes reforçadores nesse
caldo de cultura. Os soldados encontram aí elementos que lhe dão
uma identidade que mereça ser cultivada e preservada pela satisfação
egoica recém adquirida.
O poder econômico, ou a falta dele, também especifica
quais os possíveis lugares de cada um e permeia grande parte dos
processos observados na prisão. Os “fariseus” são alvos de assédio
e se tornam vulneráveis pela falta de assistência do Estado: por não
204 Odilza Lines de Almeida

terem visitas ou por terem familiares muito pobres podem passar


por muitas necessidades que vão desde a falta de materiais de higiene
pessoal até a deficiência na assistência jurídica, médica e psicossocial.
E essas necessidades são satisfeitas pelos lideres e não pelo Estado.
E o Estado tem clara consciência e está a par desses procedimentos
pois os líderes são institucionalizados e não surgem à revelia da
Administração. Por vezes, são convidados para tal mister e pactos
são feitos com o objetivo de “não se ter problemas”, isto é, os líderes
“seguram” os problemas que venham a existir em cada pavilhão
em troca de não interferência na gestão interna e na concessão de
algumas regalias. Um outro excerto de entrevista feita com um líder
de pavilhão, igualmente, nos fornece detalhes dos meios utilizados
pelas lideranças para suprir as necessidades da população carcerária,
cujo perfil é caracterizado por pessoas pobres, bem como nos indica
como os pactos são feitos:

Há quatro anos atrás o Corpo era de um jeito. Aí teve uma


mudança, que os responsáveis de lá saíram. A Segurança tirou
porque era muito violento. Aí a Segurança me convidou e
comigo foi mais cinco; aí eu aceitei porque muita coisa eu via:
muito estorquimento, muita oprimissão; então junto com meus
colegas eu procurei ver se fazia uma coisa diferente. Tinha muita
morte... Nois ta ali dentro de uma cela, vendo do outro lado uma
pessoa morrendo, aí aquela semana pra nois não presta mais.
Antigamente quando alguém chegava no Pavilhão, se procurava
saber se ele tinha inimigo, se tinha dinheiro pra comprar coisa
lá dentro, droga, esses negócios. Se fosse barão, ia pro pátio
logo; mas se não fosse, era até discriminado. E agora não. A
única coisa que nois procura saber é se quer fazer jejum, quer
fazer oração, tem que querer. Se não quiser, sai. Se quiser, entra.
Então ele tem que se adaptar a outro regime de cadeia. Lá não
tem discussão, xingamento, não pode... Dia de visita tem que
ter respeito, mais ainda. Nois viu que lá mudou totalmente dos
outros Pavilhão. [...] É uma coisa até que a Secretaria já tentou
fazer, não conseguiu e lá com a união nós conseguimos. Porque
o Estado quando vem fazer uma coisa, vem para mostrar pra
sociedade uma coisa que ele não ta fazendo. Chega ali e mostra
uma coisa mas lá dentro, geralmente, não está fazendo aquilo.
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 205

A gente queria que mostrasse e fizesse mesmo; não vim só


mostrar pra imprensa e, por isso, muitos [dos internos] não quer
contribuir pra nada. Sabendo que é por força de vontade de cada
um, aí apóia. Muitos projetos já vi isso acontecer: o trabalho
do preso, o projeto Futura, Menos Presos Mais Cidadãos... Aí
fica no papel; na prática, não acontece. [...] Lá, 42 presos teve
semi-aberto. Só dois não voltaram. A gente, nesse reunião, dá
conselho. Por exemplo: tinha um cara que saiu e um mês depois
foi morto no interior. Aí o irmão dele ia sair pra matar o cara
que matou o irmão dele. Aí nós conversamos, ele saiu, voltou;
agora já saiu de novo e está na casa da mãe dele. Ontem eu
falei com a mãe dele, aí ela disse que segunda-feira ele retorna.
Então os que nois tava orientando a se afastar, realmente ta
acontecendo. Aí, o que a Policia não ta conseguindo, a Secretaria
não ta conseguindo, o Estado, não ta conseguindo e lá dentro a
gente ta conseguindo fazer isso. Um deles de Ilhéus até botou
meu nome agradecendo numa rádio; aí um irmão desceu pra
me avisar. Isso é tipo o que a Assistente Social tinha que fazer
e não faz: acompanhando, incentivando pro interno voltar; sair
e não fazer nada errado; horário de ta em casa... [...] Vez ou
outra tem uma confusão. A que aconteceu ontem [preso que
foi espancado] já vinha há meses. Antes de acontecer nois foi
a Segurança, conversei com o Diretor... Era um rapaz que não
concordava com as mudanças no Pavilhão. [...] Na verdade ele
queria tomar o lugar aí ele tomou um bocado de cacetada lá. Não
tem como evitar 100% a violência. Mas 90%, já conseguimos.
As pessoas do interior na tem dinheiro pra viajar aí saí e bate
uma carteira pra conseguir dinheiro e vai preso de novo. Então
a gente ajuda na alimentação da família, no transporte, remédio,
conselho... Quando alguém ta precisando de ajuda, é difícil
mandar pro Psicólogo então o que nós faz; a gente coloca outro
cristão pra ajudar ele. [...] Acho que o Sistema – se não tiver a
orientação como a gente tem lá – piora as pessoas, em geral.
Porque num lugar como esse é a mesma coisa de chegar,em um
depósito e colocar aquele material velho ali e trancar. Só isso.
Comida, alimentação, tratamento tudo é precário. Por isso que
nós tentamos melhorar o ambiente (Interno, 45 anos).

Vemos que o pavilhão se auto-gerencia e supre necessidades que


não são assistidas pelo Estado. Mas, percebemos também, que para
manutenção do status quo e da configuração de poder, algumas tentativas
206 Odilza Lines de Almeida

de assistência por parte do Estado sofrem boicotes da população


carcerária (leia-se dos líderes) pois a falta dessa assistência serve como
lócus de fortalecimento da influência exercida pelas lideranças. O
papel do líder, porém, é ambivalente: por vezes, controla a situação
dentro dos pavilhões mas também são os autores da violência física
existente. Conforme diz um interno: “Os que mandam aí, qualquer
coisa é paulada... os que sofrem mais são aqueles que estão envolvidos
com drogas, dívidas, aqueles que não paga na data certa; a violência é
demais”. De fato, a tolerância às lideranças deve-se à fragilidade dos
sistemas de controle do Estado que precisa se associar com a própria
população carcerária, além dos outros atores externos, para que possa
geri-la de alguma forma.
Percebemos, ainda, na fala do líder de pavilhão que um dos pactos
principais diz respeito ao controle da violência. Se um pavilhão começa
a ficar muito violento, a administração usa um dos poucos mecanismos
de controle que tem nas mãos: a transferência do líder e sua Comissão,
vulgarmente chamado de “bonde”. A violência interfere na imagem do
Sistema e, desde que a violência esteja controlada, as demais ocorrências
podem ser administradas com maior flexibilidade. A ocorrência desses
pactos é, relativamente, recente no sistema penitenciário baiano. Ao
buscar sua gênese, um interno esclarece:

A mudança foi com a ajuda da direção porque de 2003 pra cá,


a direção da Segurança era do seu X que teve uma instrução de
um preso. E devido a idéia que o preso deu a ele, ele chamou os
preso pro acerto: “se começar a matar, começar a ter fuga, eu vou
pegar vocês e mando pra outro lugar. Faça o que vocês quiserem
lá dentro mas não façam na minha vista”. Eu mesmo, tentei fugir
e fui lá pra Jequié, depois fui pra Valença; fiquei longe da minha
família. Tudo consequência do que eu fiz (Interno, 39 anos).

E, após a Administração perceber que a transferência era a


punição mais temida pelos internos, começou a utiliza-la nas situações
limites, não controláveis pelos outros poucos meios disponíveis:
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 207

Já vi muita barbaridade na cadeia, tanto do lado do preso, como


do lado dos policiais. Às vezes por não ter acordo, por eles querer
cortar a regalia do preso e o preso querer reivindicar na força...
Preso não vai ter força... Quando acontece isso, [de reivindicar
na força] acontece de perder vida, outros ser transferido...
(Interno, 37 anos).

A questão da desigualdade da “força” e a consciência do que se


pode perder numa situação de crise no Sistema, que também aparece
nesse trecho, parece ter sido realmente o discurso utilizado para se buscar
a negociação e evitar situações de maior violência na prisão. Embora, no
momento de crise, a força do preso pareça ser determinante por conta
de repercussão, as consequências desse processo ficam submetidas a
uma força da qual eles não têm controle [transferências, violências
cotidianas e perdas de regalias] e que tomam uma proporção maior ao
longo do tempo.
Assim, os líderes se utilizam de controles internos para evitar
a violência e para que possa manter sua posição, evitando, deste
modo, os controles externos. Para tanto, editam normas e, socializam
procedimentos. As regras de convivência dentro dos pavilhões são rígidas
e a quebra das normas implica em sanções que vão da segregação em cela,
passando pelo espancamento até a execução sumária. “As normas tem
que ser seguidas sem questionamentos”, ouvimos dizer com frequência.
Um interno que retornou para o Sistema após as mudanças decorrentes
dos pactos estabelecidos, descreve esse processo:

Aí quando eu voltei, voltei encontrando um Sistema diferente: a


gente não podia fazer rebelião, já não podia fugir. E algumas regras
que foi implantada no Sistema devido algumas consequências
que os presos tinham sofrido. Então, se tem uma liderança aqui
que faz essas coisas na cadeia, ela vai transferido pra outro lugar.
Então, o que existiu foi um acerto. Não existe morte na cadeia,
não existe fuga, não existe rebelião. E a pessoa ia tirar a cadeia
dele. Então, quando eu cheguei na cadeia, o pessoal me chamou
e disse que não podia colocar arma em cadeia mais, não pode
fugir pela frente mais; passou pelo buraco você pula o muro...
208 Odilza Lines de Almeida

E aí eu tive que respeitar porque não podia quebrar as regra


do comando. Então, graças a Deus, parou de existir assalto na
cadeia; ele não permite, a liderança da cadeia; porque a realidade
é essa: se não existir uma liderança na cadeia, existe crime.
Porque antigamente era assim... A gente podia fazer qualquer
coisa na cadeia... assaltar, matar... existia varias quadrilha. Hoje
não. Hoje tem um comando que procura um modo da pessoa
viver lá dentro pra cumprir sua pena e sair. Às vezes faz isso de
maneira errada, mas é o crime. É uma convivência que o próprio
governo criou. [...] Hoje, como ta, a pessoa tem que aprender
um modo de conviver ali dentro sem tirar sangue. Porque se eu
apronto na cadeia, a diretoria, a segurança da cadeia dá bonde
pra Serrinha, pra UED, Juazeiro... Aí tem que seguir as regra,
porque se não seguir, sofre as consequência; se tentar algo vai
tomar umas porrada e passar o portão para não ter problema para
os outros. A última morte que teve foi no 4, de Jorge. Devido
ele ter matado a mulher... a frente já tinha chamado ele e falou
pra ele que não era pra fazer isso. Aí ele fez, os cara foi e matou.
Então, ele quebrou uma regra da cadeia (Interno, 38 anos)

Esse relato revela as mudanças ocorridas após os pactos e como


o interno se sente diante dessa nova realidade. Mas como, realmente,
os líderes são vistos pelos demais? Entre a massa carcerária, há os que
agradecem e veneram o papel exercido pela liderança; há os que não
concebem ser ordenados por outros presos, e ainda, aqueles que querem
tomar o lugar do líder. As lideranças têm consciência de que não há uma
submissão completa ao seu comando e encontram situações cotidianas
de conflitos e tentativas de “tomadas” do poder que se dão através da
demonstração de força física. Um dos líderes revela:

Lá no Pavilhão tem 180 pessoas que andam junto com nóis,


mas dessas 180 mesmo pode ter alguém que ta querendo tomar
o lugar. Hoje somos dois. Ontem eu botei mais seis pra ir
estudando o proceder de um “frente”, para seguir aquele regime
que a gente tem lá. Eu vou preparando assim: quando tem uma
coisa pra resolver, ao invés de eu ir, eu mando eles e fico à parte
pra ver como vão resolver. Esse rapaz que ta lá comigo, ele foi
feito assim. Aí depois foi chamado e apresentado como frente.
Mas quando tava em três, esse que saiu tava querendo tomar o
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 209

meu lugar. Já tava com um grupo de vinte e oito pessoas pra me


pegar e me tirar de lá. Aí não conseguiu. Tentou tomar à força
quando eu tava sentado almoçando. Aí um colega que tava atrás
de mim percebeu; aí antes de fazer o que ele ia fazer avisou e a
gente pegou. Ele tava com uma faca... (Interno, 45 anos).

A cobiça pela liderança reside nas regalias que lhe são permitidas
e, principalmente, na possibilidade de obter ganhos monetários na
função através da venda de diversos produtos e mercadorias que não
estão disponíveis facilmente nos pavilhões. Dentro dos pactos informais
estabelecidos, ao líder é permitido, por exemplo, ter uma lista de visitantes
própria, fora dos procedimentos normais de controle; ter direito ao
“sereno”, isto é, ficar até mais tarde no pátio; ficar em cela individual; ter
fácil acesso à Segurança e à Direção; não pegar fila da refeição; cobrar
valores por serviços feitos, dentre outros. É o líder quem determina,
inclusive, quem pode ou não comercializar no pavilhão. O líder, pode,
ainda, receber parte do que é comercializado pelos demais internos.
Notamos, também, nesse trecho, como os líderes podem ser
preparados dentro do Sistema. Normalmente são recrutados entre os que
apresentam características de assertividade, lealdade e agressividade.
Diante dessa organização e dos pactos existentes, cabe, agora,
pensar qual a percepção que o staff tem em relação ao seu papel dentro de
uma unidade prisional. Os internos se auto-gerenciam e delimitam, como
já dito, os papéis de cada grupo de atores; as políticas de controle não são
formalizadas e nem sempre estão claras e, além disso, nem sempre se
sabe ao certo com quem está o poder naquele momento. Dentro de uma
unidade prisional como essa o poder circula diuturnamente a depender
dos acontecimentos intra e extra-muros. Um servidor compartilha seu
sentimento:

Como servidor, é bastante complicado porque cada vez mais


você fica perdido ao ver grupos dentro de Unidades como um
poder paralelo. Eu me sinto, vamos dizer assim, um pouco refém
do sistema porque eu não tenho poder de política, e mesmo
assim que eu tenha eu seria uma só pessoa em relação ao grupo
210 Odilza Lines de Almeida

da organização, do tráfico, dos delinquentes, das pessoas que


estão no crime, no delito. Não que eu esteja coagido, muito pelo
contrário, [...] Mas eles acham que o agente penitenciário é o
“polícia” dentro da Unidade Prisional.

E essa associação do Agente com a Polícia – que acirra os ânimos


nos relacionamentos cotidianos – fica mais evidente quando o Estado,
nas tentativas de demonstrar poder e controle, investe, de algum modo,
contra a população carcerária. Em uma recente investida ocorrida dentro
da unidade prisional contra um dos líderes de um pavilhão, quando
foi encontrada com grande quantidade de dinheiro, drogas e armas,
percebemos o aumento da tensão existente entre os atores, assim como a
desorganização das forças e a desestabilização dos pactos existentes. Um
extrato do diário de campo demonstra como se deu esse momento:

Fico sabendo, por um e outro, que foram encontrados dinheiro


(R$ 280.000,00), droga e armas na cela do líder do pavilhão
X. Houve uma ação inopinada da Polícia Federal, através de
mandato judicial, às seis horas da manhã, exclusivamente na cela
desse líder a qual foi encontrada fechada com uma tramela por
dentro, artifício comum em algumas celas e sempre quebradas
nos “baculejos” mas sempre recolocadas pelos internos.
Vou à Segurança e vejo quando passam quatro internos para
conversarem com a Direção, o Coordenador de Segurança
e o Comandante da Guarda Militar. Percebo que passam
empoderados diante de todos que ali aguardavam o desenrolar
dos acontecimentos. Minutos depois, os internos saem da sala
e se dirigem para o interior do pavilhão. Atrás deles, vem o
Coordenador de Segurança e solicita aos Agentes presentes
que desçam para abrir as celas pois os internos garantiram que
não vai haver nada contra o staff. Ele adentra no Corpo seguido
de outros Agentes. Vendo que a situação se normaliza, retorno
para a administração e aguardo o Diretor para tomar ciência dos
procedimentos a serem adotados.

Como vimos, nas situações onde os arranjos são desfeitos, surge


a insegurança e a incerteza de como as relações estão estabelecidas bem
como sobre as retaliações que podem advir contra o staff. Notamos,
Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano... 211

assim, como essa insegurança imobiliza o staff que, vendo-se sem


suporte das políticas de Estado, não se sentem confortáveis em exercer
qualquer tipo de controle.

5 Conclusão

Como em um jogo de xadrez, numa unidade prisional as peças


se movimentam em função do movimento do outro e das jogadas
futuras. O poder se alterna e, ora a administração está em “xeque”, ora
a população carcerária encontra-se “encurralada” conforme dizem, isto
é, sem direitos a muitas regalias e submetidos a um poder coercitivo que
minam os arranjos cotidianos.
Diante desse retrato, não se visualiza uma política de controle do
delito, quer nos moldes welfaristas quer nos moldes atuais de rigidez e
punição. Os princípios do welfarismo que priorizavam a reforma social e
a responsabilidade do Estado pela assistência daqueles que rompem com
as normas socialmente estabelecidas, não são encontradas na instituição
prisão. A assistência fornecida pelo Estado é infinitamente menor do
que aquela fornecida pelos líderes que, inclusive, se utilizam dessa lacuna
para perpetuar seu poder. Do mesmo modo, as decisões relacionadas ao
Sistema Prisional não se baseiam nas opiniões dos especialistas ou em
um programa específico; baseiam-se na resposta social que será dada
com uma ou outra medida e em sua repercussão política.
Por outro lado, quando os pactos são realizados entre
Administração e população carcerária, algumas regalias e afrouxamentos
são permitidos desde que a violência esteja sob controle. Deste modo,
não encontramos também claramente as estratégias da segregação
punitiva. Embora seja possível identificar “associações preventivas”,
nesse caso, com a própria população prisional, não é razoável afirmar
que exista aqui um Sistema caracterizado por sua severidade, configurada
por ações lógicas. As ações instrumentais são mais perceptíveis e a
vigilância é mínima.
212 Odilza Lines de Almeida

Não perdemos de vista, obviamente, que existem outras Unidades


Prisionais onde podem ser observadas uma tônica maior da segregação,
como no caso das unidades de regime diferenciado. O que chama
atenção, todavia, é que essas unidades (embora não seja o foco do nosso
estudo), aos poucos, também se dobram aos jogos de poder, sendo
já possível encontrar, dentro delas, os arranjos que burlam o poder
estabelecido e abrem espaços para a negociação e os pactos.
Parece-nos, assim, que as políticas de controle, no que concerne
a área prisional, podem ser definidas como políticas de emergência que
ficam a mercê da pressão exercida pela própria população interna, pela
mídia e pela população extra-muros e se prestam a dar uma resposta
a situações especificas, de forma paliativa. O sistema de controle
prisional parece-nos, assim, revestido de imediaticidade e mediaticidade,
caracterizando-se como inseguro, instável e perdulário posto que, por
vezes, programas são defendidos, recursos destinados mas não aplicados
de forma eficiente e racional.

Referências

ALVAREZ, M. C. Controle social: notas em torno de uma noção


polêmica. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 168-
176, jan./mar. 2004.

Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

Garland, D. Castigo y sociedad moderna. Un estudio de teoría


social. Madri: Sieglo Veintuno Editores, 1999.

______. La cultura del controle. Crimen y orden social en la sociedad


contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2005.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências
da política criminal no Brasil após a Constituição de 1988

Carolina Porto Nunes1

Resumo: Demonstrada a relação entre Direito, Democracia e política criminal,


analisa-se as tendências do Direito Penal Brasileiro após a Constituição de 1988
oscilantes entre (i) o garantismo do regime democrático e (ii) o Direito Penal
do Inimigo traduzido pelo endurecimento das penas, tipificação de condutas e
interferência midiática neste processo, fenômenos influenciados pelo conceito
moderno de sociedade do risco. Investiga-se estudos dogmáticos e não
dogmáticos, comparando políticas criminais e comprovando a tendência de
adotar-se, no Brasil, uma política não democrática, rígida e inconstitucional.

Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Política criminal. Cultura do medo.


Direito Penal do Inimigo.

Societé du risque et Moderne Droit Pénal:


Tendances de la politique criminelle au Brésil aprés la Constitution de 1988

Résumé: Après avoir démontré la relation entre droit, démocratie et politique


criminelle, on analyse les tendances du droit pénal brésilien après la Constitution
Federél de 1988, celles-ci oscillant entre (i) l’assurance du régime démocratique
et (ii) le droit pénal de l’ennemi, celui traduit par le durcissement des peines,
l’augmentation des conduites criminalisées et l’interférence des médias dans
1
Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: por-
tonunes@gmail.com
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 213-235 2009
214 Carolina Porto Nunes

ce processus, un phénomène caracterisé par le concept moderne de société du


risque. On examine des études dogmaqiques et non dogmatiques, en comparant
des politiques sur la criminalité et en vérifiant la tendance à adopter, au Brésil,
une politique anti-démocratique, rigide et inconstitutionnelle.

Mots-clés: Inconstitutionnalité. Politique criminelle. Culture de la peur. Droit


pénal de l’ennemi.

Introdução

O frequente bombardeio da imprensa, em especial da mídia


televisiva, acerca de acontecimentos delitivos cometidos por pessoas de
baixa renda tem levantado questões importantes na sociedade brasileira.
Como demonstram os fatos, sempre que crimes bárbaros são cometidos
e amplamente noticiados, a população sente-se compelida a pressionar
o Poder Legislativo para um tratamento mais rígido em relação ao
criminoso (especialmente o rotulado/etiquetado), conduzindo a política
criminal nacional para o Direito Penal do Inimigo. A título de ilustração,
o amplamente noticiado crime contra a vida do impúbere João Hélio,
no Rio de Janeiro (2007), cometido por quatro indiciados por homicídio
doloso, dentre os quais um adolescente, fez com que a opinião pública
se inclinasse a favor da redução da maioridade penal, hipótese que agride
os direitos constitucionais do ser humano em desenvolvimento para
quem as políticas penais não podem ser essencialmente punitivas, mas
acima de tudo educacionais e ressocializantes.
Este fenômeno esconde a ideologia amparada no capitalismo
cujo objetivo aplicado é ampliar na sociedade mundial a idéia de
carência de segurança, a necessidade de rigidez estatal e a busca de
segurança privada. A condução das discussões e os rumos do Direito
Penal têm alertado os estudiosos do Direito e das Ciências Sociais. A
preocupação não é inédita, posto que vasta bibliografia acerca do tema
já foi construída por pesquisadores brasileiros e outros estudiosos.
Guimarães (2006), no artigo El caso Minas Gerais: de la atrofia del Estado
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 215

Social a la maximización del Estado Penal, demonstra como a cultura do


medo é responsável diretamente pela capitalização do Direito Penal,
criando uma verdadeira indústria do medo alimentada por uma mídia
comprometida, pela privatização de serviços dentro dos presídios e pelo
aumento de empresas de segurança particular. Machado (2005) apresenta
um estudo profundo sobre as origens da sociedade do risco e como este
conceito tem conduzido legislações em diversos Estados à flexibilização
dos instrumentos dogmáticos e ao sacrifício dos pressupostos clássicos
e garantias individuais como tentativa de adaptar o Direito Penal ao
controle dos novos fenômenos do risco.
Entretanto, essas medidas são caracterizadas por uma política
criminal equivocada e a construção da política criminal vigente fere
de morte os princípios constitucionais, passando por cima de direitos
fundamentais historicamente conquistados. O Regime Disciplinar
Diferenciado (RDD), por exemplo, destoa das garantias constitucionais
de que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante,
de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão a direito
(a decisão pela medida é administrativa), de que não haverá no sistema
penas cruéis e de que ao preso será assegurada a integridade física,
direitos estes insertos no texto constitucional, art. 5º. Em contrapartida,
o ainda tímido movimento garantista, fortemente presente na douta
jurisprudência do Rio Grande do Sul, procura opor-se ao sistema
operante e apresentar uma alternativa verdadeiramente democrática,
constitucional e efetiva.
Apontando-se as alterações na legislação penal após a instituição
formal de uma república democrática, pretende-se demonstrar o
retrocesso material a que se submete a Ciência Penal sempre que
os riscos se tornam mais evidentes, enrijecendo um sistema que,
constitucionalmente, deveria ser de prestação social. Para isso, buscar-
se-á explicar o que é uma sociedade de risco e suas origens históricas,
a forma como este fenômeno é explorado pela lógica capitalista e
como os Três Poderes contribuem para a consolidação desta situação
de extremo caos e agonia social. Alternativamente, demonstrar-se-á
216 Carolina Porto Nunes

também como políticas públicas aliadas ao Direito Penal Garantista


podem contribuir para a materialização do Estado de prestação social
e da função ressocializante, retributiva e preventiva do Direito Penal,
através de penas alternativas e da consolidação do Direito Penal Liberal
ultima ratio.

Direito Penal Clássico

O Direito Penal Liberal, de inspiração iluminista, adquiriu status de


Ciência no Século das Luzes (XVIII) nas lições de Montesquieu e Beccaria,
adotando-se uma tutela de direitos subjetivos contra arbitrariedades
estatais, limitando e equilibrando o uso do jus puniendi. Desde então foi
adotado um valor-princípio de suma significância, posto que dele emanam
todos os demais direitos individuais: a dignidade da pessoa humana.
Alicerçado neste princípio, este modelo de política criminal e seu sistema
jurídico caracterizam-se pela (i) fragmentariedade, (ii) subsidiariedade e
(iii) intervenção mínima. Significa dizer que o Direito Penal só tutela bens
penalmente relevantes, i. e., apenas quando se configurar uma autêntica
violação ao bem jurídico é que se recorrerá ao jus puniendi. Implica em
que sejam, o Direito Penal e a privação da liberdade, a última alternativa
para a tutela de bens e para o controle social. O bem jurídico penalmente
protegido há que ter seus contornos bem definidos, sendo certo, escrito
e estrito, funcionando como limite à ampla criminalização de condutas.
Assim, penalmente relevante será a conduta que atente contra a ordem
social e a moral pública. Neste sentido:

Unicamente a ofensa intolerável às liberdades asseguradas


pelo contrato social é a que justifica a intervenção penal na
liberdade humana (rectius: é a que pode ser considerada infração
penal propriamente dita). Por outra parte, é absolutamente
imprescindível que o poder estatal seja delimitado estritamente e
que as múltiplas formas de sua ingerência na liberdade individual
sejam delimitadas estritamente e claramente descritas na lei
penal – lex certa ou princípio da taxatividade (GOMES, 2005
apud ROCHA, 2005, p. 2).
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 217

O Direito penal clássico é direito público, uma vez que é


manifestação do monopólio estatal que visa à proteção dos direitos
subjetivos dos indivíduos. Aparece de forma indissociável ao princípio
da legalidade como principal garantia do cidadão contra possíveis
arbitrariedades do Estado. Teoricamente, tem cunho preventivo geral
negativo, inibindo coativamente comportamentos não desejados pelo
direito. Aliado aos fins preventivos gerais, os indivíduos infratores
teriam a resposta de acordo  com sua conduta, recebendo a sanção na
medida do descumprimento do pacto social. Finalmente, por tratar-se
de uma democracia e de um Estado de Direito de prestação positiva,
seu papel principal é ressocializar o infrator para que o pacto social seja
restabelecido.
Cumpre mencionar, sem pretender esgotar tão vasto tema,
os princípios constitucionais penais presentes no ordenamento
que deveriam, dentro desta proposta, motivar a direção do sistema
penal, mas que devido à falibilidade dos meios adotados e do fraco
aparato governamental indiferente a políticas públicas de redução da
criminalidade, são deixados de lado, abrindo lacunas para a adoção
de um modelo inconstitucional e equivocado. São eles: liberdade,
tolerância, taxatividade, secularização, retroatividade benéfica, proibição
de excesso, necessidade, intervenção mínima, legalidade, adequação,
ampla defesa, suficiência, responsabilidade subjetiva, limitação e
pessoalidade da pena, subsidiariedade, fragmentariedade, fundamentação
das decisões, irrelevância penal dos fatos, anterioridade, irretroatividade,
proporcionalidade, humanidade, presunção de inocência, especialidade,
contraditório, lesividade, razoabilidade, non bis in idem.
Este modelo amplamente garantista e social não consegue,
entretanto, funcionar como proposto na atualidade. A sociedade se
transformou, as culturas foram alteradas, avanços tecnológicos e
novas formas de exclusão social ganharam lugar. A partir da II Guerra
Mundial verificou-se a violação de toda essa principiologia, fazendo
surgir teóricos defensores de profundas alterações no sistema penal
vigente até então, aparecendo os Direitos penais de Primeira, Segunda
218 Carolina Porto Nunes

e Terceira Velocidades. O primeiro é exatamente este direito liberal que


trata crimes clássicos (furto, roubo, homicídio, fraude,...) assegurando
no processo penal todas as garantias supramencionadas, mas admitindo
conforme o caso a sanção mais gravosa que é a privação de liberdade. As
demais velocidades relativizam direitos, como se explicará mais adiante.

Ineficácia do modelo clássico

Após a II Grande Guerra, o advento das transformações


econômicas, políticas e sociais, aliadas à pós-industrialização e à era da
informação, conduziu o Direito Penal Liberal nos seus moldes originais a
uma desinteligência e ineficácia ante a manutenção da ordem pública e da
paz social. Completou-se a migração do sertanejo e do miserável para as
zonas urbanas, onde buscavam melhores condições de vida e sustento para
si e sua família e não encontraram qualquer política pública que lhes desse
perspectiva, sendo empurrados para as periferias, onde também encontraram
outros excluídos: os negros libertos que anos atrás receberam o mesmo
tratamento. A tecnologia e a pesquisa atribuíram um diferente valor ao
trabalho humano, sendo imprescindível uma boa capacitação profissional
para fazer parte do mercado de trabalho seletivo. A educação foi sucateada,
a saúde privatizada e a casta menos (ou nada) beneficiada viu-se forçada a
criar um código moral e uma regulamentação das relações humanas paralelos
ao sistema convencional. Por outro lado, danos ambientais de grandes
proporções, biotecnologia, crimes de internet, novos riscos e novas condutas
ampliaram o rol de crimes e de criminosos, os de “colarinho branco”. Novas
situações exigem nova regulamentação.
Ante esta situação, inevitável é a reformulação do sistema penal
de forma a adequá-lo à realidade atual, sem, contudo, perder de vista
os princípios constitucionais que o motivam. O que se tem notado na
legislação penal brasileira após a edição da Constituição Cidadã é, em
contrapartida, uma inovação que relativiza certas barreiras erigidas sob as
exigências do Direito Penal clássico. Em outras palavras, os princípios de
contenção da esfera penal têm sido tratados como barreiras impeditivas
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 219

de um direito penal adequado às necessidades preventivas e de proteção


da sociedade do risco. Figueiredo Dias (apud MACHADO, 2005) ilustra
a necessidade de flexibilização, como se pode conferir:

Não está o direito penal, por outra parte – argumenta-se –,


preparado para a tutela dos grandes riscos se teimar em ancorar
a sua legitimação substancial no modelo do “contrato social”
rousseaniano, fundamento último de princípios político-criminais
até agora tão essenciais como o da função exclusivamente
protectora de bens jurídicos, o da secularização, o da intervenção
mínima e de ultima ratio. Porque se quiser manter estes princípios,
tal significará – assinalou-o Stratenwerth em duas conferências a
vários notáveis – a confissão resignada de que ao direito penal
não pertence nenhum papel na proteção das gerações futuras:
como entre outros e, principalmente, os temas dos atentados ao
ambiente, da manipulação genética e da desregulação da atividade
produtiva se vão encarregando já de mostrar ou prenunciar. Não
uma função minimalista de tutela de bens jurídicos na acepção
moderna, constituintes do padrão crítico de uma legitimação,
mas a atribuição sem rebuços, ao direito penal, de uma função
promocional e propulsora de valores orientadores da ação humana
na vida comunitária – eis a única via que se revelaria adequada aos
desafios da sociedade do risco.

É a partir deste raciocínio que novas teorias e movimentos


como a Nova Direita Penal, a Tolerância Zero ou Direito Penal do
Inimigo, o Movimento de Lei e Ordem, o Direito Penal de Dupla
Velocidade e o Direito Penal de Três Velocidades apresentam inovações
inconstitucionais amplamente divulgadas pela mídia como sendo a única
alternativa para a reaquisição da segurança pública, tratando os novos
riscos como matéria penal, quando são matérias política, étnica e social.
Todas as correntes aqui mencionadas podem ser estudadas dentro de
um fenômeno maior denominado Moderno Direito Penal, o qual se
mostra retrógrado em relação aos princípios e direitos historicamente
conquistados, amparado este fenômeno na idéia de sociedade mundial
do risco, cuja análise está obrigatoriamente vinculada ao ideal capitalista
de gerar riqueza e concentrá-la sempre nas mãos de poucos.
220 Carolina Porto Nunes

Transformação social e (in)adequação do modelo liberal

Por certo período de tempo o modelo liberal foi útil ao controle


social e à manutenção da ordem pública. Todavia, o surgimento de
novos riscos e realidades passou a exigir uma postura estatal acerca de
temas inéditos ou nunca antes alarmados. Nas décadas de sessenta e
setenta um movimento de deslegitimação do direito penal e de crítica
à resposta punitiva do Estado ganhou espaço. A realidade pós anos 80
(redemocratização) criou uma onda de expansão do Direito Penal, em
virtude dos anseios da sociedade por mais segurança, sobretudo nos
delitos de grande monta chamados de delito dos poderosos, tais como
os econômicos, ambientais e políticos. Percebe-se a crise do direito
penal, mas concomitantemente verifica-se a sua expansão como resposta
jurídica a problemas sociais.

A população brasileira era predominantemente rural, os freios


sociais funcionavam, a religiosidade do povo reprimia excessos
e os coronéis conduziam os submissos. A violência do modelo
não vinha à tona pela insipiência dos meios de comunicação.
A incidência da criminalidade era baixa e dominada formal ou
informalmente pela polícia. Foi neste contexto que veio a lume
a legislação processual penal vigente até nossos dias. Vem daí
também a estrutura básica da Justiça, do Ministério Público, do
sistema prisional e da Polícia Judiciária, que se organizaram para
atender ao modelo então proposto. Para a época, o comboio de
segurança pública era satisfatório.
Vamos para a década de 50, quando a ousadia de JK despertou
o gigante e as mudanças começaram a acontecer. A era do rádio
chegou ao interior, as rodovias facilitaram o trânsito e a migração
para as cidades teve início. Os freios sociais começaram a afrouxar
e, com isso, a criminalidade passou a tomar nova feição e a exigir
mais das instituições. O caso Aída Cury, retratado por David
Nasser nas páginas d’O Cruzeiro, levantou o véu da droga e do
crime na alta sociedade. Apesar desses fatos novos, a forma de
atuação do aparato policial-judiciário-penal continuou a mesma.
Nas duas décadas seguintes as mudanças sociais aceleraram. No
regime militar as comunicações se desenvolveram e a televisão
implodiu as convenções que informavam a vida familiar e social.
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 221

A “juventude transviada”, a liberação sexual e a descoberta de


um novo mundo além do horizonte levaram ao aumento brutal
de conflitos individuais e coletivos, gerando crimes cada vez mais
complexos. Ainda assim, o modelo traçado para a segurança
pública continuou intocado. Ou melhor, extinguiram o Juiz de
Paz, que tinha um papel moderador importante e, em 1968,
cometeram à Polícia Militar a exclusividade do policiamento
ostensivo fardado. Apesar dessa nova atribuição, completamente
diversa de sua missão original, a PM absurdamente manteve
inalterado o modelo organizacional e, até hoje, arca(mos) com
as consequências (SETTE CÂMARA, 2002, p. 15-16).

Não obstante a afirmação de doutrinadores no sentido de que


o direito penal clássico permaneceu inalterado e inoperante frente
às novas realidades, as questões cotidianamente criadas têm, em sua
maioria, uma carência e uma preocupação muito mais política do que
criminológica. A ausência de prestação social do Estado em todos os
setores principais – educação, saúde, cultura e desporto, saneamento
básico e segurança pública – contribui para o aumento dos índices de
violência e criminalidade. Da mesma forma, o não enfrentamento sério
dos conflitos étnicos e econômicos induz ao terrorismo, havendo já a
hipótese de co-responsabilização do Estado pela não prestação positiva
na prática de determinados delitos. A complacência e o envolvimento
direto dos políticos e desembargadores com o crime organizado (como
aponta a operação Têmis que autuou ministros do Superior Tribunal de
Justiça e outros membros do Judiciário) demonstram que há interesses
políticos e econômicos na permanência do crime organizado. As leis
apresentadas para solucionar penalmente os delitos oferecem para
o hipossuficiente marginalizado e sem oportunidades a privação da
liberdade como forma de livrar a sociedade do problema, ao passo que
para o hipersuficiente causador de danos ao meio ambiente ou aos cofres
públicos se oferece uma série de privilégios como o mero pagamento
ao Estado de multas e, às vezes, prisão domiciliar.
O modo como o Direito Penal foi compreendido no aspecto
clássico (Iluminismo) não atende mais aos novos tempos dos fins do séc.
222 Carolina Porto Nunes

XX e início do XXI. Tanto que hoje se fala em direito penal de duas e


até de três velocidades, isto é, modos diferentes de justificar e aplicar o
sistema penal a pessoas de classes diferentes, fenômeno estudado pela
criminologia como a “teoria da rotulação ou etiquetagem” que seleciona
o tipo de criminoso que se inserirá no sistema penitenciário e o que não
fará parte disto.
Hassemer e Muñoz Conde (1995) identificam este fenômeno e
arriscam uma idéia abolicionista para o Direito Penal se este permanecer
nos moldes atuais:

Se o Direito penal é arbitrário, não castiga igualmente todas as


infrações delitivas, independentemente do status de seus autores,
e quase sempre recai sobre a parte mais débil e os extratos
economicamente mais desfavorecidos, provavelmente o melhor
que se pode fazer é acabar de vez por todas com este sistema
de reação social frente à criminalidade, que tanto sofrimento
acarreta sem produzir qualquer benefício.

Sociedade mundial do risco

A sociedade industrial construiu um arcabouço ideológico que


legitimou a concretização do acúmulo de conhecimento e de tecnologias
impactantes como meios para realizar um mundo mais igualitário. Esses
meios, fundamentados na ciência e na tecnologia, seriam capazes de
prover o mundo de abundância, diminuir e/ou controlar a escassez e
a fome, as calamidades naturais, as pandemias, etc. Considerava-se que
os problemas econômicos eram exclusivos das ciências econômicas, os
problemas de saúde pública eram próprios das ciências da saúde, os
problemas sociais eram específicos das ciências sociais e das iniciativas
assistencialistas para consolidar a modernidade e administrar os riscos.
O progresso se deu sem as precauções devidas e foi descoberto que
o problema de uma área afetava diretamente outra; que a engenharia
de alimentos afetava a produção em massa; que a produção industrial
diminuía empregos; que a diminuição de empregos aumentava a
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 223

criminalidade e afetava o meio ambiente; que as consequências do


progresso desordenado e sem planejamento eram graves e a situação
de risco que poderia ter sido evitada agora estava diante da sociedade
nos extremos limites.
No sentido de uma teoria social e de um diagnóstico de cultura,
o conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade
em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no
caminho da sociedade industrial (BECK, 1997 apud MACHADO, 2005).
Ainda de acordo com Machado (2005):

Para Ulrich Beck, o processo de industrialização é indissociável do


processo de produção de riscos, uma vez que uma das principais
consequências do desenvolvimento científico industrial é a
exposição dos indivíduos a riscos e a inúmeras modalidades de
contaminação nunca observados anteriormente, constituindo-se
em ameaças para as pessoas e para o meio ambiente. Portanto
os riscos acompanham a distribuição dos bens, decorrentes da
industrialização e do desenvolvimento de novas tecnologias.
Estes riscos foram gerados sem que a produção de novos
conhecimentos fosse capaz de trazer a certeza de que estes riscos
diminuiriam ou seriam passíveis de controle e monitoramento
eficazes. Esta certeza nos controles favorecidos pela ciência
e pela tecnologia teve sua base na modernidade clássica
onde os riscos eram compreendidos como fixos e restritos a
determinados contextos localizados, e mesmo que atingissem à
coletividade, estes seriam frutos do desenvolvimento de novas
tecnologias. Já na sociedade de risco, os riscos ultrapassariam os
limites temporal e territorial, e seriam produtos dos excessos da
produção industrial (CASTIEL, 2001). O diferencial se refere ao
papel da tecnologia na própria configuração do risco, deslocando
o foco da ordem para a dúvida. São os avanços tecnológicos que,
ao ampliarem o domínio do conhecimento e da visibilidade,
ampliam igualmente o domínio da incerteza.

O estudo de Machado demonstra como o pensamento de Ulrich


Beck enfatiza a produção social de riquezas/industrialismo como causa
da produção social dos riscos e alerta que a ordem jurídica estabelecida
não mais garante paz e estabilidade, mas legitima as ameaças. Riscos
224 Carolina Porto Nunes

modernos são encontrados nos campos da globalização da economia


e da cultura, do meio ambiente, das drogas, do sistema monetário, das
migração e inter-migração, do processamento de dados, da violência
juvenil. Na medida em que a sociedade do risco se consolida os riscos
sociais, políticos, econômicos e individuais escapam do controle dos
mecanismos criados pelas instituições organizadas para manter a
proteção da sociedade. Nesse contexto, a idéia de segurança torna-se o
“contraconceito” do risco, introduzindo desafios para a efetividade dos
mecanismos de controle social, dentre os quais se encontram o Direito
Penal e as instituições governamentais – órgãos executivos e tribunais
– encarregadas de aplicá-lo.
Uma sociedade amedrontada, acuada pela insegurança, pela
criminalidade e pela violência urbana torna-se terreno fértil para o
desenvolvimento de um direito penal de emergência, cuja justificação
sociológica voltada para a prevenção facilmente encontra respaldo e
legitimação. Todos se sentem vulneráveis, vítimas em potencial e a
expectativa do perigo iminente faz com que as vítimas potenciais aceitem
mais facilmente a sugestão ou a prática da punição ou do extermínio
preventivo dos supostos agressores potenciais. Assim se configura a cultura
do medo e o capitalismo busca, de algum modo, lucrar através de empresas
de seguros de vida e seguro contra roubo, empresas de segurança residencial
e terceirização do setor penitenciário, criando a indústria do medo.

Opinião pública e a mídia como instrumento ideológico


capitalista

A inserção da população nas discussões sobre segurança e


políticas públicas é um importante passo para a consolidação de um
sistema democrático. Isto porque democracia e pluralismo político não
consistem exclusivamente na livre associação partidária e no direito de
votar e ser votado. Mais que isso, implica em atuar politicamente desde
o âmbito municipal ao federal, promover e participar de debates na
comunidade, livre associar-se a idéias e ideais, formar opiniões, fiscalizar
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 225

a atuação dos agentes políticos eleitos e aos quais o Poder (que emana
do povo) foi delegado, fazer valer direitos, utilizar-se dos mecanismos
constitucionais como o mandado de segurança e a ação popular, enfim,
agir politicamente. É deste modo que o cidadão efetiva seu dever cívico
e contribui na condução dos rumos políticos do país.
Entretanto, quando a pauta dos debates e ações é a segurança
pública, esta não é compreendida pela população com a amplitude que
lhe cabe, posto que o seu julgamento já está condicionado por certos
fatores. Quando se associam violência, criminalidade e (in) segurança
pública, a impunidade é o primeiro fator apontado como causa daqueles.
É a partir deste raciocínio que se exige do Poder Público, especialmente
do Poder Legislativo, um rigor maior para com o delinquente, retomando
idéias ultrapassadas, datadas do nascedouro da Criminologia, as quais se
encontram superadas teoricamente. Isto porque a Criminologia moderna
e todas as suas ramificações teóricas entendem que o fenômeno criminoso
implica não apenas em se avaliar (culpar?) a pessoa do delinquente, mas
também a sociedade criminógena, elementos intrínsecos e extrínsecos
ao crime, fatores ambientais e sociais, bem como a reação do Estado
e o funcionamento de seu aparato (policial, judiciário e penitenciário)
como co-responsável pela delinquência.
Perceptível é a contribuição da mídia para a consolidação da
cultura e da industrialização do medo. Basta sejam observadas as
manchetes diárias e os apresentadores de telejornais induzindo o
homem médio a temer mais e mais. O caso Daniela Perez fez com
que a população pressionasse o Legislativo para o encrudecimento da
lei de crimes hediondos; o caso João Hélio tenta forçar o Legislativo a
inconstitucionalmente reduzir a maioridade penal. É de se notar que
boa parte da expansão do Direito Penal é causada pelo emocionalismo
excessivamente aumentado pelo sensacionalismo midiático e pela
opção política equivocada em fundamentar o sistema penal em bases
de tendências autoritárias, demagógicas e expansivas. Essa exacerbada
intervenção penal é, entretanto, uma ilusão repressiva alimentada por
essa mídia de massa que tenta colocar o sistema penal como instrumento
226 Carolina Porto Nunes

para afrontar problemas sociais muito mais complexos e, diante de sua


ineficácia para tal, induz a sociedade a alimentar uma indústria do medo
diretamente vinculada ao capital.
A indústria do controle do delito volta-se para a produção de
seguros patrimoniais, para a seleção e o recrutamento de agentes de
segurança privada, para a fabricação de armas e venda para civis (ante
a ineficiência do Estado, o cidadão seria responsável pela sua própria
proteção e de sua família), pelo lucro através da indústria do cárcere
(saúde, educação, alimentação, trabalho dos presos). Toda uma política
é desenvolvida em cima disso, principalmente pelo apoio da mídia.
Ante a histeria coletiva da delinquência crescente, se aceita a
mercantilização das relações sociais pela lógica capitalista, bem como
um Estado irresponsável que propicia uma abundância de leis penais
casuísticas, motivadas pela opinião dos “penalistas de plantão do Jornal
Nacional (Rede Globo)”, mas que não traz nenhum embasamento
científico que comprove que um sistema penal mais rigoroso reduz a
criminalidade ou a violência. O próprio sistema penal da forma como se
aplica já é uma violência em si. Vera Andrade citada por Queiroz (apud
PORTO, 2006, p. 67), na obra Funções do Direito Penal: Legitimação versus
Deslegitimação do Sistema Penal menciona que:

Falar de direito penal é falar, inevitavelmente, de violência, mas não


apenas da violência que é materializada pelos fatos considerados
delituosos (homicídio, latrocínio, estupro), como também é
falar da violência que é o próprio direito penal e seus modos
de atuação, pois ele é em si mesmo violência seletiva, desigual,
e de discutível utilidade, de sorte que tão grave e importante
quanto o controle da violência é a violência do controle (VERA
ANDRADE). A pena de morte, as penas privativas de liberdade,
as prisões cautelares, por exemplo, distinguem-se do homicídio
e do sequestro pelo só fato de que aqueles constrangimentos
estão autorizados pelo direito, enquanto estes últimos não, ou
seja, a pena de morte e as medidas privativas da liberdade outra
coisa não são senão autênticos homicídios e sequestros levados
a cabo pelo Estado legalmente.
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 227

O Direito Penal de Emergência ou pan-penalismo revela toda a


incoerência e insensatez de um sistema jurídico-penal que se imagina
racional e que acaba reduzindo-se a sua menor expressão, a punitivista,
quando se sabe que a luta pela contenção da violência é sinônima da luta
pela afirmação dos direitos humanos, pois a ordem pública não pode se
confundir com comoção social. Ordem pública significa exatamente a
preservação do Estado de Direito e o respeito às suas garantias.

Moderno Direito Penal

O Moderno Direito Penal aparece como uma crítica ao Direito


Penal Clássico por este não possuir pressupostos de enfrentamento à
criminalidade devido a uma supervalorização dos princípios que seriam
óbices à nova eficácia do direito penal. A proposta se baseia, justamente,
em um desvio dos conceitos originais e fundamentadores da intervenção
punitiva, adotando conceitos inovadores, mas de constitucionalidade
duvidosa, fragmentando e enfraquecendo a noção de Estado de Direito.
Ao trazer uma política criminal de expansão do Direito Penal, as teorias
funcionalistas adotadas principalmente por Jakobis (apud MACHADO,
2005, p. 135) se equivocam ao revelar como único bem jurídico penal
a reafirmação da  identidade normativa da sociedade e não os direitos
individuais.
A teoria que se desenvolve a este respeito faz a separação entre
dois sujeitos específicos: o cidadão (pessoa) e o inimigo (indivíduo).
Cometendo um fato delitivo, o cidadão comete deslize reparável e não
ameaça a comunidade ordenada, ao passo que o inimigo, este sim precisa
ser destruído, posto que suas atitudes refletem um distanciamento
duradouro do Direito. Nesses moldes, ao cidadão são devidas as garantias
processuais penais, mas para o inimigo, já desvinculado do Direito e
envolvido em atividades que revelam a negação dos princípios políticos
ou socioeconômicos básicos, tais garantias não cabem, aplicando-lhes a
coação como direito de guerra. Segundo Jakobis (2005, p. 30), “o Direito
penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito Penal do Inimigo é
228 Carolina Porto Nunes

daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só


coação física, até chegar à guerra”.
Estes “indivíduos”, por demonstrarem com suas condutas uma
recusa veemente de participação no estado de cidadania, não podem
usufruir dos seus benefícios. O Direito Penal do Inimigo nega-lhes,
então, a condição de pessoas. A identificação deste grupo de “inimigos”
se daria mediante a habitualidade, a reincidência, o profissionalismo
delitivo e a integração em organizações delitivas estruturadas.

As atividades e a ocupação profissional de tais indivíduos não


ocorrem no âmbito das relações sociais reconhecidas como
legítimas, mas naquelas que são na verdade a expressão e o
expoente da vinculação desses indivíduos a uma organização
estruturada que opera à margem do Direito, e se dedica às
atividades inequivocamente delituosas (GRACIA MARTÍN,
2007, p. 88).

O Direito Penal do Inimigo, inspirado no Movimento de Lei e


Ordem e voltado para a prevenção, estende a proteção a bens jurídicos
supra-individuais voltando-se para a prevenção geral mediante antecipação
da tutela penal a esferas anteriores ao dano, flexibilização das regras de
causalidade, normas penais em branco, delitos de perigo abstrato e tipos
penais abertos (devido a uma ingerência penal nos campos da economia, do
meio ambiente, da saúde pública, etc.), ampliação e desproporcionalidade
das penas, constante tipificação de condutas irrelevantes penalmente em
leis esparsas, responsabilização criminal das pessoas jurídicas, restrições
processuais, instituição de um Regime Disciplinar Diferenciado e de meios
coativos na fase instrutória do processo penal.
Estes são alguns dos aspectos observáveis no direito penal do
risco chocando-se com princípios e regras clássicos, fragilizando o
sistema de garantias. Referindo-se a tal fenômeno Silva Sánchez (1998, p.
66) avisa que o direito penal será um direito já crescentemente unificado,
“pero también menos garantista, en el que se flexibilizarán las reglas de
imputación y en el que se relativizarán las garantias politico-criminales,
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 229

substantivas y procesales”. Se até a década de setenta buscava-se a


tutela de bens jurídicos por intermédio de políticas públicas, agora se
recorre ao Direito Penal para exercer a função de solucionar conflitos
que, essencialmente, fogem à sua esfera (conflitos geopolíticos, étnicos,
religiosos, administrativos). Apenas entre 1988 e 2004, setenta e cinco
novas leis penais foram lançadas. Há uma crise da legalidade, observáveis,
a título exemplificativo, as seguintes leis nacionais:
LEI 7960/89 (institui a modalidade da prisão temporária) –
De forma gritante viola o princípio da não culpabilidade, além de ter
resultado de medida provisória (meio inidôneo para criação de norma
penal), padecendo de legalidade. A prisão temporária cabe quando: a)
imprescindível para as investigações do inquérito policial, b) quando
o indiciado não possuir residência fixa ou não fornecer elementos
necessários ao esclarecimento de sua identidade e c) quando houver
fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na lei penal,
que atestem a autoria ou participação do suspeito/indiciado nos crimes
de latrocínio, estupro, tráfico, crimes contra o sistema financeiro e
extorsão mediante sequestro.
LEI 8072/90 (crimes hediondos) – As ciências criminais não têm
uma definição do que seja hediondez e isto viola o princípio da taxatividade.
A equiparação entre todas as ações abrangidas no tipo penal “atentado
violento ao pudor” viola o principio da proporcionalidade (p. ex., beijo
lascivo e forçar alguém a manter relação diversa da conjunção carnal).
LEI 8930/94 (homicídio qualificado e hediondez) – Esta lei equiparou
todas as formas de homicídio qualificado ao crime hediondo. Também o fez
com o homicídio simples executado em atividade de grupo de extermínio,
ainda que cometido por um só agente. Nos crimes hediondos a lei nega ao
criminoso a anistia, a graça e a fiança. São as vedações expressas. Porém,
para malefício do réu, na prática nega-se também a liberdade provisória e
o indulto, violando o princípio da liberdade.
LEI 9034/95 (lei de combate ao crime organizado) – Proíbe a
liberdade provisória e a apelação em liberdade, estipulando o regime
inicial fechado. Permite o acesso a dados, documentos e informações
230 Carolina Porto Nunes

fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, convertendo-se a pessoa do juiz


em investigador, envolvendo-se como parte e prejudicando a parcialidade
do julgamento, segundo aqueles que são contra a construção formal
desta lei.
LEI 9426/96 – Modificou o parágrafo 3º do art. 157 do Código
Penal, aumentando para sete anos a pena mínima do roubo qualificado
pela lesão corporal grave. A pena mínima para homicídio é de seis anos,
carecendo de proporcionalidade a nova regra.
LEI 9605/96 (lei de crimes ambientais) – Por ter o texto
bastante aberto com termos indefinidos cujo preenchimento cabe
aos profissionais da área ambiental, os crimes ali descritos nessas
condições violam a legalidade e a taxatividade. Ademais, questiona-se
a necessidade da interferência penal em lesões ambientais (poderia
recair nas esferas civil, tributária e administrativa) e a falta de
proporcionalidade nas penas.
LEI 9613/98 (lavagem de dinheiro) – Ao instituir a delação
premiada, incentiva a traição, o que é eticamente reprovável num Estado
alicerçado na dignidade da pessoa humana.

Movimento Garantista: Direito Alternativo

O Direito Alternativo é o gênero do qual o Direito Penal


Garantista, defendido por Ferrajoli, é espécie. Apesar de tudo o que
foi aqui apresentado e dos rumos complicados pelos quais se conduz
o Direito Penal, é viável a manutenção de um Direito Penal mínimo,
garantista e liberal, configurado em um modelo-limite ao exercício
incontido do poder punitivo do Estado, pois seu amparo está na
própria Carta Magna. Considerando que a intervenção jurídico-penal
só se mostra útil e legítima ante a indisponibilidade de outros meios
de controle social, só deveria intervir o Leviatã em casos de ataques
violentos contra os bens de maior relevância.
A vanguarda sulista (em especial no Rio Grande do Sul, cujos
magistrados possuem uma formação inspirada nas escolas garantistas
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 231

da Espanha e da França) propõe a contenção do Direito Penal dentro


de um núcleo rígido de garantias amparadas constitucionalmente, sem
impedir o Estado de exercer seu controle sobre o intolerável, sem que
com isso sejam questionadas sua autoridade e sua legitimidade. Entende,
essa corrente doutrinária, que a necessidade política do direito penal se
justifica como mecanismo de tutela dos direitos fundamentais, sendo
estes os seus limites. Não se trata de benevolência com o crime, mas de
saber contê-lo dentro dos limites socialmente toleráveis.
O Direito Penal de Intervenção, defendido por Hassemer, explica
que delitos de pequeno potencial ofensivo devem ser tratados na esfera
administrativa, os de médio potencial ofensivo remediados com penas
alternativas e os de grave potencial ofensivo abordados com o direito penal
clássico e suas garantias, mas podendo culminar na privação da liberdade.
Em suma, o Direito Alternativo pretende que o Direito Penal
não se renda à prática de criação de leis oportunistas encomendadas
por pesquisas de opinião pública numa Política Criminal comprometida
com a satisfação imediata do anseio popular sem que se ataque as reais
motivações do crime, as quais são, muitas vezes, a conjuntura social que
merece uma reestruturação responsável.

Considerações finais

Inegável é que o modelo penal e o processual penal apresentados


ao longo desta discussão não se adéquam às necessidades emergentes
de uma sociedade do risco em que novos perigos, novos fatos e
circunstâncias se apresentam a cada dia. Um novo modelo precisa ser
criado e posto em prática para acompanhar e controlar tantas inovações,
mas o legislador só pode optar por um sistema penal em acordo com
os princípios de uma república democrática de direito. Ante um Direito
Penal antidemocrático que se oferece como única solução pra a questão
da segurança, doutrinadores garantistas como Amilton Bueno de
Carvalho (2007) apresentam um “direito alternativo” amparado pela
constitucionalidade. O autor defende a submissão plena dos Códigos
232 Carolina Porto Nunes

Penal e Processual Penal à interpretação principiológica constitucional,


observando-se os fatos típicos de maneira empírica e não meramente
finalista. A responsabilização de outras esferas jurídicas como a
administrativa e a civil para o trato de delitos menores, reduzindo o
problema da superlotação carcerária que, no fim das contas, não previne
nem ressocializa é alternativa apresentável.
É indispensável o cuidado para que o Direito Penal não deixe
a sua condição de garantidor da liberdade do homem, mas ações
governamentais e institucionais urgem ante o fenômeno da globalização.
O que se pugna é pela cobrança efetiva e constante de políticas de
reformas estruturais, tanto no plano social quanto no plano econômico,
e a implementação de outros meios de controle social. Ao contestar com
repressão e castigo problemas cuja natureza é essencialmente social, ao
não respeitar os direitos humanos básicos com o encarceramento em
massa dos excluídos pelas próprias políticas públicas está configurada
a transição do Estado social para o Estado penal.

O fulcro da questão está no modelo. A estrutura organizacional


de uma instituição é concebida para realizar uma tarefa
predeterminada. No caso policial-judiciário, a tarefa está
rigidamente explicitada nos códigos processuais. A forma dos
procedimentos, os passos a serem seguidos, enfim todo o modus
operandi foi disciplinado em 1942 para um Brasil diferente do
atual, quando o volume de trabalho permitia tantos preciosismos;
quando o tipo de conflitos e a retaguarda existente davam vazão
à demanda. Hoje o momento é outro. Ou atualizamos o modelo
que aí está e, com ele, reestruturamos as instituições para seu
novo papel, ou nos distanciaremos ainda mais da finalidade
última do Estado (SETTE CÂMARA, 2002, p. 17).

Inconteste também é o aproveitamento pelo capitalismo de toda


a situação de insegurança e medo causadas pela evolução moderna e
alarmada pela mídia comprometida bem mais com os ideais de lucro que
com o direito de informação de todo cidadão. Sobre isso, é preciso ter
em mente que direitos fundamentais não são negociáveis ou alienáveis,
Sociedade do risco e Moderno Direito Penal: tendências da política criminal no Brasil ... 233

ainda que indiretamente. Nesse sentido, Luis Gracia Martin (2007, p.


42) alerta que “não pode ser lícito nenhum ordenamento que estabeleça
regras e procedimentos de negação objetiva da dignidade do ser humano,
sob hipótese alguma”.
Aos estudiosos do Direito Penal e ao legislador penal cabe a
difícil tarefa de adequar as políticas criminais à dogmática penal. É
imprescindível que neste momento de crise, movimento natural para
o nascimento de uma nova realidade, o legislador brasileiro defina os
rumos do direito penal de acordo com a legalidade, isento de vícios e
comprometido unicamente com a ordem social e o bem-estar do cidadão
brasileiro. Para que tal objetivo se alcance, não se pode admitir como
válida a inserção de regras incompatíveis com a dignidade do ser humano,
princípio basilar e limitador do Direito Penal, sob pena de tornar-se o
sistema injusto e desvinculado do Estado de Direito, já que a justiça é
um valor superior do ordenamento jurídico no Estado de Direito.

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Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Aspectos da violência urbana

Itamar Rocha dos Santos 1

Resumo: O presente trabalho traz como foco aspectos da violência urbana


que na contemporaneidade estão imbricados no cotidiano das cidades. A
compreensão desses aspectos de forma crítica e reflexiva é colocada neste
trabalho como de importância crucial para conscientizar as autoridades políticas
sobre a necessidade de direcionarem políticas públicas que diminuam os índices
de violência no contexto urbano. Enfim, trata de uma realidade vivenciada
neste novo milênio pelas pessoas que habitam nas cidades, não importando o
tamanho destas.

Palavras-chave: Globalização. Política Neoliberal. Insegurança.

Street violence aspects

Abstract: This article concentrates in some aspects about urban violence that in
present o nove quatidian. The understanding of this subject may help us make
some critique, because it is necessary to reflect and tell politicions haw important
is to make public politics that devases the violence rortes. Finally it is a fact present
in new Millennium, the people is afraid and something must be done.

Key words: Globalizacion. Neoliberal Politics. Insecurity.


1
Especialização em Psicopedagogia pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação (IBPEX)/Facul-
dade Internacional de Curitiba (FACINTER). Professor da Rede Estadual de Educação da Bahia.
E-mail: d_itamar@ig.com.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 237-250 2009
238 Itamar Rocha dos Santos

Introdução

Nos primeiros anos do novo milênio, no contexto urbano, a


violência vem sendo foco da atenção dos moradores das grandes, médias
e pequenas cidades. Não importa o tamanho destas para que delitos,
de variados tipos, ocorram, o que deixa os moradores apreensivos em
relação às causas de tanta violência.
A mídia televisiva, diariamente, noticia casos de violência
ocorridos nas cidades. Por outro lado, ao transitarmos a pé pelas ruas
dos grandes centros urbanos, percebemos, nas conversas dos transeuntes,
que o assunto está relacionado a crimes e fatos delituosos. Há tempos
atrás, ouvíamos dessas pessoas diálogos relacionados à imigração, futebol
ou à industrialização crescente.
Nas cidades de médio porte, as pessoas assistem estarrecidas ao
crescimento do índice de violência, paralelo ao surgimento de bolsões de
pobreza, em que os integrantes podem estar “à espreita” nos locais de
risco, cognominados como tais após a padronização do espaço urbano
entre classes abastadas.
Nas cidades de pequeno porte, as pessoas começam a conviver
com casos de violência, desde a doméstica aos crimes contra os costumes
– envolvendo pessoas idosas do sexo masculino, por exemplo –, além
de outros tipos, que antes eram vistos pelos moradores destas cidades
somente por meio da mídia televisiva.
A violência urbana, para Pinheiro (2003), subverte e desvirtua
a função das cidades, drena recursos públicos, já escassos, ceifa vidas
– especialmente as dos jovens e dos mais pobres – dilacera famílias,
modificando nossas existências, dramaticamente, para pior.
Ao pesquisarmos sobre violência urbana é interessante que
tenhamos em mente a situação social, impactada pela política econômica
globalizada, a qual afeta instituições como a família, a escola e a Igreja.
Devemos, ainda, apreender e compreender a influência dessa política
econômica sobre cada uma dessas instituições.
Aspectos da violência urbana 239

Também, ao pesquisarmos sobre esse fato presente no âmbito


da sociedade contemporânea, é de grande importância abordamos a
maneira e a forma pelas quais está surgindo a polarização do espaço
urbano com a criação dos bolsões de pobreza, e como as pessoas
que estão inseridas nessas áreas elaboram suas táticas e estratégias
de sobrevivência no sistema capitalista, em que modos de vida são
padronizados, principalmente pela mídia.
Além disso, nos espaços de exclusão social, como guetos, favelas
e demais periferias, devemos compreender de forma crítica o porquê da
substituição de ferramentas de trabalho como pá, enxada, machado e foice,
por outras formas de sobrevivência, e qual a influência da mídia televisiva
na criação de um padrão de comportamento para as pessoas que ali vivem
assim como de que forma surge a economia informal nestas áreas.
Igualmente de suma importância será a abordagem da influência
da violência simbólica dos meios de comunicação em massa, os quais, ao
adentrarem no contexto das instituições como família, Igreja e escola –
principalmente nas cidades de pequeno porte – influenciam a cultura das
pessoas, mediante padrões de vida tidos como dominantes no mundo
capitalista, assim como a análise da consequência da imposição desses
padrões em tais instituições.
Para Bourdieu (2007), o espaço social e as diferenças que nele
se desenham espontaneamente tendem a funcionar simbolicamente
como estilos de vida ou como “stands”, ou seja, grupos caracterizados
por comportamentos diferentes. Além disso, na luta pela imposição da
visão legítima de mundo social – em que as ciências, muitas vezes, estão
envolvidas – os agentes responsáveis detêm um poder proporcional ao
seu capital ou ao grupo que representa.
O poder simbólico, para Bourdieu (2007, p. 188), é um poder
que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com
que um credita o outro, uma fides, uma auctoritas, que se lhe confia,
depositando nele sua confiança; é algo como a potência mágica, o
crédito, o carisma, a crença, o credo, a obediência ao divino de onde se
espera a proteção.
240 Itamar Rocha dos Santos

Neste jogo das interações da vida cotidiana, os dominados nas


relações de forças simbólicas entram na luta em estado isolado, não
restando outra escolha a não ser a da aceitação (resignada ou provocante,
submissa ou revoltada) da definição dominante de sua identidade ou da
busca da assimilação, a qual supõe um trabalho que faça desaparecer
todos os sinais destinados a lembrar o estigma (no estilo de vida, no
vestuário, na pronúncia etc.) e que tenha em vista propor, por meio de
estratégias de dissimulação e embustes, a imagem de si, o menos afastada
possível da identidade legítima.
O tema “violência urbana” surge, assim, como proposta de estudo
interdisciplinar, em um núcleo integrado por diversas áreas das ciências
sociais (Sociologia, Pedagogia, Filosofia, Antropologia, Economia,
Psicologia, Comunicação, Direito, História e demais áreas afins), com
o propósito de compreendermos, mediante pesquisas e trabalhos
científicos, os diversos aspectos da violência urbana, e direcionarmos
mudanças sócio-ideológicas que nortearão políticas públicas voltadas
para as causas e consequências da violência nesse meio.

Aspectos da violência urbana

Na conjuntura do terceiro milênio, todo morador da cidade é


abordado pela violência. Esta separa os homens, mas ao mesmo tempo
os une no medo que inspira.
As cidades, que antes eram sinônimos de civilização, hoje são
percebidas como um meio fragmentado segregado e descivilizado.
Segundo Pedrazzini (2006), as divisões territoriais e o urbanismo
da opressão, que as sociedades urbanas instauram para afrontá-los,
atualizam novas técnicas de invasões bárbaras que devem brotar do
interior da cidade.
Os baixos salários e o desemprego, que causam o empobrecimento
da classe média e o aumento do número de miseráveis (bolsões de
pobreza), têm gerado muito dos crimes contra o patrimônio, tais como
furtos, roubos e assaltos.
Aspectos da violência urbana 241

A ocupação de terrenos e conjuntos habitacionais ainda em


construção, a depreciação de equipamentos de uso coletivo, a agressão
ao meio ambiente e o alcoolismo, são alguns dos sintomas de nossa
sociedade em conflito. Esses aspectos revelam que as cidades cresceram,
expandiram-se e fizeram surgir bairros periféricos, onde as condições
precárias de vida dos moradores e a degradação do meio ambiente
mostram uma face da violência urbana.
O mercado, a industrialização, a proletarização e as fábricas pertencem
a uma sociedade desigual; a cidade industrial foi uma transposição construída,
e a cidade pós-industrial, a transposição ao vivo de uma sociedade “sem
trabalho”, o que não exclui a exploração de classes.
Para Pedrazzini (2006), as divisões urbanas não são socialmente
neutras; elas atuam em Benefício de alguns e contra a “libertação” das
massas, fato que preocupa alguns ideólogos.
Abandonados pelas instituições, os atores sociais adotam novas
estratégias de sobrevivência para se inserir nos padrões estabelecidos pela
política neoliberal. Pode-se afirmar que a desestruturação urbana, em
seus aspectos mais visíveis, como a informalidade espacial, econômica
e social, criou, ao longo do tempo, novas formas de reprodução social
ligadas, paradoxalmente, aos três pilares da socialização formal: Família,
Trabalho e Educação.
Os moradores, conforme sua compreensão intuitiva da “realidade
das coisas” acostumaram-se com seu caráter mutante (senso comum)
e sua necessária identificação com essas mudanças; sem buscar
compreender – de forma crítica – teorizar e resistir, apropriam-se delas
dentro de uma lógica do caos.
Isso acontece, segundo Pedrazzini (2006), porque os moradores
precisam, antes de tudo, viver. O estado caótico do espaço urbano não
lhes convém nem contribui para suas atividades, sejam elas formais ou
informais. Os primeiros a compreender que ninguém cuidaria de seu
infortúnio foram os mais pobres. A violência, muitas vezes, situa-se à
margem de suas atividades diárias e, outras vezes, passa a ser o meio de
sobrevivência daquelas pessoas.
242 Itamar Rocha dos Santos

A violência urbana, para Pedrazzini (2006, p. 91), deve ser analisada


como parte de um sistema socioespacial dinâmico cujos elementos
estruturantes seriam a economia liberal globalizada e a cidade como
modelo ambiental hegemônico. Diante desses dois elementos fundadores
da nossa “civilização”, entrariam outros componentes especificamente
sociais (crescimento das desigualdades), políticos (criminalidade da
pobreza), espaciais (fragmentação do território) ou ideológicos (sujeição
da democracia à segurança), os quais se combinam entre si para traçar
um projeto de sociedade selvagem e inquietante.
Para o citado autor, é importante analisar como os principais
setores da economia globalizada instauram um determinado modelo de
urbanismo, de arquitetura e de “cidades globais”, e, desde então, como
a urbanização contemporânea globalizada começou a impor práticas
sociais e espaciais que contribuíram para o crescimento da violência
urbana (PEDRAZZINI, 2006).
A cidade contemporânea é perigosa, na medida em que a
globalização a divide em fragmentos antagônicos, transformando-a em
um conflito de forças e interesses.
Desde a década de 80 do século XX, os programas de estabilização
macroeconômica e de ajuste estrutural impostos pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI) e Banco Mundial aos países em desenvolvimento
para que suas dívidas fossem renegociadas levaram centenas de milhões
de pessoas ao empobrecimento. Programas como o de Ajuste Estrutural
(PAES) contribuíram, amplamente, para desestabilizar moedas nacionais
e arruinar as economias dos países em desenvolvimento.
Os PAES, segundo Chossudovsky (1999), desempenharam
um papel chave na decomposição da economia nacional de países
endividados com o FMI e Banco Mundial, além de recompô-los em
uma nova relação com a economia global. As reformas econômicas,
para esse autor, implicaram a decomposição/recomposição das
estruturas produtivas e do consumo nacionais. Dentro desta realidade,
a compressão dos ganhos reais acarretou a diminuição dos custos da
mão-de-obra e o declínio dos níveis de consumo de massa (artigos de
Aspectos da violência urbana 243

primeira necessidade), pela grande maioria da população. Por outro


lado, houve uma ampliação do consumo do segmento de alta renda, que
envolve bens de consumo duráveis e outros bens de luxo, alcançáveis
apenas por um pequeno segmento da população.
Essa decomposição/recomposição da economia dos países
endividados e sua inserção na economia globalizada, baseada na mão-
de-obra barata, provocaram a compressão da demanda interna e dos
níveis de vida – pobreza, salários baixos e uma abundante mão-de-obra
barata – com reflexos na contínua explosão da violência urbana.
Essas causalidades, segundo Pedrazzini (2006, p. 73) – apesar
de difíceis de serem comprovadas pela natureza de sua complexidade
e superposição dos múltiplos níveis de realidade – não impedem que o
observador dos fatos sociais urbanos questione a violência urbana na
sociedade contemporânea.
Segundo Giddens (apud BOURDIEU, 2007), se compreendermos,
propriamente, como os outros vivem, podemos adquirir melhor
entendimento dos problemas em que eles estão envolvidos. Além disso,
os aspectos da vida social modelam nossa forma de sentir, pensar e agir.
A violência dos pobres dissimula a violência da Globalização
e da fragmentação estratégica imposta às cidades. Antes, porém, de
formularmos qualquer “pré-conceito” sobre os conflitos urbanos,
cabe a nós identificar os habitantes dos territórios dominados pela
violência, pois são eles os detentores incontestes das respostas sobre
esses conflitos. É preciso ir ao bairro pobre para questionar as pessoas
que vivem ali e buscar respostas fecundas para a relação da violência,
a relação com o outro, o estranhamento do seu próximo e os atos
aterrorizantes.
Como vimos, os espaços mais afetados pelas tensões da
globalização são evidentemente os bairros mais pobres das cidades,
por estarem mais expostos aos efeitos negativos da política liberal
globalizada. Os governantes são, em grande parte, responsáveis por essa
situação, pois já não oferecem mais aos moradores uma real proteção
contra os efeitos desse mal.
244 Itamar Rocha dos Santos

A nova geração de jovens dos bairros pobres das cidades constitui


um problema para as autoridades e para a polícia. Certamente, a violência
é uma resposta imediata e muitas vezes cômoda a um universo em
permanente mutação.
A mídia televisiva, emissoras radiofônicas, os outdoors, as vitrines
das lojas, estampam produtos que representam padrões de conforto, bem
estar e status. Trabalha-se, luta-se para conseguir a posse desses objetos
que parecem fazer as pessoas felizes, ricas e importantes. A felicidade,
portanto, condiciona-se à posse destes bens materiais.
Observa-se que o fenômeno da violência urbana é constituído
por uma série de situações conflitantes e cada vez mais complexas,
bem como incontroláveis, tanto pelos poderes públicos, quanto pelos
especialistas do setor privado.
Neste contexto de sociedade globalizada, constata-se um
enfraquecimento das defesas tradicionais do sistema social, com valores
de solidariedade e laços comunitários, os quais estão relativizados pelas
sociabilidades individualistas do mundo contemporâneo.
Em razão da complexidade das causas da violência urbana dentro
do domínio alarmante da globalização econômica e cultural, surge a
necessidade de pesquisá-la dentro de um contexto interdisciplinar, a
fim de termos um conhecimento científico com resultados que possam
direcionar políticas públicas eficazes para a redução da violência urbana
e seus efeitos sobre os cidadãos.

O lucro com a insegurança

A violência nas cidades tem assustado e isolado seus habitantes


em suas próprias residências, que estão se transformando em verdadeiras
fortalezas.
Em cidades grandes, médias, ou, até mesmo, de pequeno porte,
não é preciso ir muito longe para observarmos o grande número de
casas com cercas elétricas, portas e janelas com grades de proteção ou até
mesmo com placas que identificam empresas de segurança privada que
Aspectos da violência urbana 245

monitoram algumas residências vinte e quatro horas por dia, evitando


que estas casas sejam invadidas por pessoas que escolheram a vida do
crime como forma de sobrevivência na dinâmica social.
Muitas pessoas até mesmo cuidam de se equipar com tudo o que
oferece a moderna tecnologia em termos de alimentação, informação,
comunicação e lazer, evitando ao máximo sair de casa. Nessa condição,
desfrutam os fins de semana entre DVDs, televisores de plasma, “tele-
pizza”, banheiros com hidromassagens, jogos eletrônicos, horas a fio ao
celular etc. Aos que não têm acesso a esse tipo de solução dispendiosa
e cara, sobra a programação da tevê.
As pessoas que se arriscam a sair de casa em determinados
horários são aquelas que não têm quase nada a oferecer aos delinquentes.
No entanto, aquelas que têm algo de valor saem em horários pré-
estabelecidos e frequentam lugares e espaços onde é oferecida uma
maior segurança, pública ou privada.
A expansão de empresas de segurança privada que vendem seus
serviços, os quais variam desde cercas elétricas com monitoramento a
seguranças particulares, é uma realidade, em se tratando das mais variadas
cidades. Essas empresas crescem e as pessoas que podem arcar com o custo
dos seus serviços não se incomodam em pagar por eles, para se sentirem mais
seguras dentro de suas casas ou ao saírem delas para seus afazeres diários.
Percebemos, ainda, a enorme procura por serralharias que
fabricam grades e portões de ferro maciço que deem o mínimo de
proteção às pessoas de ganho mais inferior quando estiverem dentro
de suas residências.
Em outra extremidade da esfera social, nos bairros periféricos,
onde a pobreza mostra-se explicitamente, as pessoas que ali residem e
vivem do suor de seu trabalho, para terem o mínimo de segurança, usam
cacos e pontas de garrafas de vidro presos com massa de cimento nos
muros, evitando que suas casas sejam invadidas por delinquentes que
convivem em seu meio.
Nos centros das cidades, carros padronizados de empresas de
segurança privada transitam pelas ruas, e, no período noturno, ficam
246 Itamar Rocha dos Santos

em pontos estratégicos, prontos para o primeiro sinal de alerta vindo


da central de monitoramento. Percebemos que o “Ponto Base” da
segurança pública – a prevenção – está, aos poucos, sendo substituído
e administrado por empresas privadas, que, na falta de políticas públicas
sérias voltadas para a segurança, ganham espaço.
Nas ruas, pessoas apressadas agarram as suas pastas e bolsas.
Não param mais para dar alguma informação, ou, quando respondem,
o fazem com o olhar atento aos movimentos de quem pergunta e atento
às pessoas que passam ao seu redor. As pessoas também já não passeiam
mais a pé para conhecer e “curtir” a cidade.
Em determinados locais e horários, motoristas não obedecem
mais aos sinais de trânsito com medo de assaltos, e, quando param o
veículo por algum motivo, fazem-no o mais rápido possível. No jargão
popular, algumas pessoas nos dizem que estamos no tempo de “Murici”,
cada um cuidando de si, e Deus é quem cuida de todos.
Ao percorrermos, à noite, as ruas da cidade, podemos assustar
outra pessoa simplesmente pelo olhar, ou vice-versa. Calamos o medo
e desviamos nossos olhares.
Para Pedrazzini (2006), houve tempos em que a cidade era
vista como um “bem” para o ser humano (a promessa de um
futuro melhor). Era um progresso importante para o homem e para
o território, por representar o avanço da civilização, o aumento
da cultura, a ampliação do mercado, dos bens negociáveis, das
oportunidades e muito mais.
No entanto, esses tempos se passaram para aqueles que,
atualmente, veem a cidade como um espaço de sobrevivência em
condições (relativamente) aceitáveis.
Vivemos nos tempos das cidades duais. A violência, a insegurança,
o pânico, as micro-guerras dos meninos de rua e o tráfico são alguns
dos elementos duais evocados atualmente.
A cidade contemporânea, segundo Pedrazzini (2006, p. 70), é
perigosa na medida em que a globalização a divide em fragmentos
antagônicos, transformando-a em um conflito de forças e interesses.
Aspectos da violência urbana 247

O cenário urbano apresenta uma série de rupturas, fissuras,


sinuosidades, conflitos, dissensões e distorções no campo social. Com
isso, pode-se afirmar que a violência urbana provém de aspectos
contemporâneos da urbanização que envolvem modos ditados pela
globalização e pela política neoliberal, para promoverem estratégias de
dominação no mercado global.
Do bairro pobre, parcialmente globalizado, como fragmento
de uma cidade ou metrópole globalizada, emerge uma categoria de
atores potencialmente e simbolicamente globalizados para práticas de
atividades criminosas. Esses atores adquirem, por meio de atividades
ilegais e internacionais, uma cultura cosmopolita não correspondente
ao contexto e à cultura do bairro ou cidade onde moram.
Nessa realidade, um grande número de jovens e adolescentes
afronta a política neoliberal na ilegalidade e na violência. Ao traficarem,
eles esperam conservar a liderança e a possibilidade de participarem do
modo de vida ditado pelo mundo globalizado.
A “profissão” de traficante está em constante mutação; a atividade
é exercida de maneira artesanal nas esquinas de algumas ruas das cidades
e, segundo especialista está se tornando um dos setores mais rentáveis
na economia mundial.
No entanto, nesta “profissão de sobrevivência”, a ascensão social
é, na maioria das vezes, interrompida brutalmente. Estima-se que mais
de 60% dos jovens dos bairros pobres dos países do terceiro mundo
acabam em presídios ou são mortos.
Assim, a maioria das cidades e metrópoles contemporâneas
aparece como fábrica do medo, que favorece o projeto de divisão social,
dando a certos atores o poder de se orientar, de definir certos objetivos
e os meios de os alcançarem dentro de uma ordem social capitalista.
A poluição, a violência, a pobreza, a fome, assim como os
“milagres” dos meios de comunicação, a pluralidade de culturas, etnias
e tradições, o aumento de criadores, inventores e fazedores da história,
são algumas das dores e alegrias que as metrópoles e as cidades podem
oferecer ou retomar de seus habitantes.
248 Itamar Rocha dos Santos

Os habitantes criam estratégias de defesa contra seus próprios


fantasmas. Essas estratégias táticas variam consideravelmente, como
vimos anteriormente, conforme o bairro da residência, o nível cultural,
o modo de vida e a profissão.
A tendência, como foi colocada em parágrafos anteriores, à
privatização dos meios de segurança mediante o aumento do aparato de
seguranças particulares e empresas privadas que oferecem esse serviço para os
proprietários de residências, seja elas de ricos, seja de pobres, caminha para uma
segregação do espaço urbano, onde o sucesso da arquitetura urbana passa a
ser um modelo de arquitetura “policial ou militarizada”, o que vem a expressar
também a busca do lucro em função da insegurança nas cidades.
As iniciativas públicas e privadas que visam a oferecer segurança
aos cidadãos erguem apenas uma civilização em clausura. O urbanismo
contemporâneo, na visão de Pedrazzini (2006), é geralmente uma
atividade policial, segundo o modelo implantado por Hausmann em
Paris, no século XIX, que visava a um melhor controle dos espaços
públicos. Para esse autor, se o urbanismo atual (contemporâneo)
privilegia a segurança, essa arquitetura é dissuasiva e militar (arquitetura
de fortificações relativamente dissimuladas nas paisagens urbanas e uma
ocupação militar do solo urbano). Diante disso, assistimos ao triunfo
do medo e à banalização do urbanismo do medo.
Não só as classes mais favorecidas submetem o espaço urbano à
privatização por razões de segurança. Os pobres também os submetem.
Porém, o preço a pagar pelo reforço das barreiras edificadas entre o
universo da prosperidade e da precariedade não é o mesmo para todas
as pessoas. Portões e grades de ferro, cacos de garrafas e vidros têm
custos bastante razoável se comparados aos contratos de empresas de
segurança para monitoramento 24 horas das residências e comércios.
Neste contexto crescente de segregação, os privilégios de propriedade
cedem o passo aos privilégios de acesso.
A segurança passou a ser um serviço e um acesso que são
oferecidos como artigos de luxo aos clientes das camadas mais
privilegiadas da população.
Aspectos da violência urbana 249

O urbanismo contemporâneo, ainda na visão do citado autor,


pressupõe a propagação do sentimento de insegurança. Entretanto, os
projetos de segurança concebidos para proteger o conjunto de habitantes
das cidades favorecem, de forma desigual, seu acesso aos locais “seguros”.
Assim, para esse autor, o urbanismo do medo ocasiona uma radicalização
dramática dos processos de segregação espacial, levando a uma clássica
fragmentação urbana, além de uma nova fragmentação planejada dos
“Territórios”, tendo em conta o grau de segurança ou de perigo.
Essa seleção pode ser observada no reaquecimento do mercado
imobiliário, principalmente em zonas centrais, que, ao passarem por um
período de quase abandono estatal e imobiliário, renascem para projetos
de requalificação urbana (PEDRAZZINI, 2006, p. 121).
O surgimento de um urbanismo de segurança, no entanto, não traz
melhorias para a segurança das cidades ou região em questão. Instaura,
apenas, uma dualidade nas práticas de segurança, como respostas à
dualidade do medo e da violência dos ricos e dos pobres, que se escutam,
se imitam ou se opõem, de cada lado, à cortina de ferro econômica.
Ao combinarem o urbanismo do medo e a detenção do poder nas
mãos de poucos, além da combinação com o urbanismo da urgência e a
precariedade de vida de muitos, as medidas de segurança, criadas nesse
contexto, estão modelando, cada vez mais, um meio segregado. A segurança
passa a ser o fetiche para conjurar o mal e apresenta-se como a origem da
construção de novas desigualdades sociais no contexto urbano.
De outro lado, ao levarmos em conta que o mercado mundial da
defesa contra o terrorismo é avaliado em 100 bilhões de euros, e o da
segurança das redes de informações em 50 bilhões, estamos cônscios de
que Osama Bin Laden, aos lançar os aviões sobre as cidades de Nova
York e Washington, estava convencido de que daria início a uma guerra
contra o terror. No entanto, não calculou que o início desse conflito
atrairia um mercado que lucra de forma demasiada com a insegurança
com que as pessoas convivem.
A insegurança e a incerteza do mundo, segundo Pedrazzini (2006),
não surgiram com os ataques dos terroristas islâmicos, mas suas ações
250 Itamar Rocha dos Santos

espetaculares estimularam a venda de armas e de sistemas de segurança, em


razão do acesso desigual dos ricos e dos pobres a tais equipamentos. Assim, o
capital da segurança soma-se ao capital financeiro e ao capital simbólico.
A violência urbana e a insegurança que atingem as pessoas são
elementos que estão acoplados ao cotidiano de quem convive nas ou
habita as cidades. Entender esses elementos de um ponto de vista e com
uma visão interdisciplinar será uma das formas de levarmos aos poderes
públicos respostas para certas incógnitas relacionadas aos efeitos de
políticas públicas implantadas nas cidades.

Referências

AGUIAR, Edinalva Padre et al. Política: o poder em disputa. Vitória


da Conquista e Região. 1999. (série Memória Conquistense).

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando


Tomaz. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

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das reformas do FMI e Banco Mundial. Tradução de Marylene Pinto
Michel. São Paulo: Moderna, 1999.

FERREIRA, Roberto Martins. Sociologia da educação. São Paulo:


Moderna, 1993.

KUPSTAS, Márcia. Violência em debate. São Paulo: Moderna, 1997.

MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma


sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

PEDRAZZINI, Yves. A violência das cidades. Tradução de Giselle


Unti. Petrópolis: Vozes, 2006.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência urbana. São Paulo: Publifolha,


2003.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
O neoliberalismo enquanto marco das relações de
mercado no sistema capitalista e seus limites e desafios a
uma proposta de economia solidária

Maristela Miranda Vieira de Oliveira 1

Resumo: Este artigo faz uma reflexão crítica sobre os possíveis limites e desafios
de se promover a Economia Solidária no âmbito de políticas públicas nos marcos
do capitalismo neoliberal. A análise busca confrontar o conceito de Economia
Solidária com a realidade ora observada, entendendo as atividades econômicas e
sociais como uma totalidade complexa, portanto, não particularizada e dissociada
da lógica que rege a totalidade do sistema. Em razão da abrangência do tema
e de sua problemática, define-se como objeto de estudo as teorias e conceitos
desenvolvidos pelos autores França Filho, Laville e Gaiger.

Palavras-chave: Capitalismo. Estado. Neoliberalismo. Economia solidária.

Neoliberalismo while mark of the relationships of market in the


capitalist system and their limits and challenges to a proposal of
solidary economy

Abstract: This article makes a critical reflection on the possible limits and
challenges of promoting the Solidary Economy in the extent of public politics
in the marks of the neoliberal capitalism. The analysis looks for to confront the
1
Mestranda em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento Social e Desenvolvimento Regional
pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Técnica Universitária da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: maristelamvo@gmail.com
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 251-263 2009
252 Maristela Miranda Vieira de Oliveira

concept of Solidary Economy with the reality now observed, understanding


the economical and social activities as a complex totality, therefore, no
particularized and dissociated of the logic that governs the totality of the
system. Due to inclusion of the theme and of her problematic it is defined
as study object the theories and concepts developed by authors França Filho,
Laville and Gaiger.

Keywords: Capitalism. State. Neoliberalismo. Solidary economy.

Introdução

A evolução histórica do sistema capitalista, observada em vários


séculos de existência, demonstra a sua capacidade de legitimação
através do tempo, utilizando-se não só de modelos econômicos para
se reproduzir, mas também da formação de ideologias no âmbito
das relações de Estado, capazes de justificar a sua existência e regular
os interesses do capital. Como em outros momentos da história da
humanidade, o iniciar do século XXI aponta para uma nova forma de
reprodução dessas relações, buscando um retorno ao que se chamou
liberalismo econômico e que serviu para disseminar os interesses
capitalistas durante os séculos XIX e XX. Porém, agora, com a
denominação de neoliberalismo, age no sentido de fragmentar a ação
do Estado, diminuindo a sua atuação e transformando-o, estritamente,
em um agente construtor dos interesses do capital.
Na tentativa de construir um conceito para o entendimento desse
fenômeno, Moraes (2001) apresenta algumas proposições que refletem
maneiras diferentes de explicá-lo, as quais levam à compreensão de que
se trata de uma corrente de pensamento, um movimento intelectual ou
um conjunto de políticas adotadas pelos governos. Contudo, conclui
que o neoliberalismo representa a ideologia do capitalismo na era da
financeirização da riqueza, através de um ataque às formas de regulação
econômica. A ideologia neoliberal prevê o afastamento do Estado
das questões econômicas, bem como a diminuição do seu poder por
meio de políticas de reformas orientadas para o mercado. Entre os
defensores desse pensamento, destacam-se Friedrich von Hayek que ao
O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista... 253

publicar O Caminho da Servidão (1944), lançou um manifesto inaugural


da ideologia neoliberal. Seguindo essa lógica, vários países da América
Latina, incluindo o Brasil, iniciaram a partir dos anos 90, uma onda
de reformas que incluíam o Estado e o seu aparelho administrativo
em nome de uma espécie de reengenharia na Administração Pública,
considerada pesada e de difícil operacionalização. Essas reformas foram
acompanhadas de medidas de combate à inflação, seguindo orientação
de caráter neoliberal de órgãos internacionais como Banco Mundial e
FMI (SIMIONATTO, 1997).
A partir desse momento, assiste-se a uma redefinição do papel
do Estado que passa a responder mais precisamente aos interesses do
capital, não de forma direta, mas agindo na regulação das relações sociais,
contribuindo na manutenção das relações capitalistas em seu conjunto
(OFFE, 1984 apud HÖFLIN, 2001).
Todavia, a hegemonia do capitalismo em suas diversas formas,
incluindo aí a ideologia neoliberal, não só produz o acúmulo de riquezas,
mas também desperta reações contrárias que resultam em resistência ao
modelo vigente. Uma dessas tentativas é visível nos movimentos a favor
da promoção de uma Economia Solidária, tendência que vem crescendo
e fomentando um debate em torno da possibilidade de se pensar em
uma nova forma de se fazer economia, combinando aspectos de uma
economia mercantil, com a economia não-mercantil e não monetária.
É tomando-se por base essas conjecturas que se propõe neste artigo
uma reflexão acerca dos limites e desafios para promover a Economia
Solidária no âmago de um Estado que reproduz uma ideologia neoliberal,
atuando enquanto regulador das relações sociais, a fim de responder aos
interesses capitalistas, baseados estritamente na economia mercantil.

A economia solidária

O sentido do termo Economia Solidária ainda é algo relativamente


novo, apesar de que as práticas que a traduzem não representem nada
de inédito entre comunidades de países da América Latina e Europa
254 Maristela Miranda Vieira de Oliveira

(FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2006), onde mais se tem observado


iniciativas dessa natureza. Porém, a novidade está em unir todas
essas práticas em uma só denominação, fazendo com que ao invés de
existirem isoladas, elas transformem-se em evidência, adquiram força
de revolução contra o comportamento econômico que ora se apresenta,
e que se baseia estritamente na economia de mercado, desacreditando
a possibilidade de uma economia que seja plural como pretende a
economia solidária.
Através de um processo de emancipação individual e coletiva,
baseado na lógica do aprender, entender e transformar (informação
verbal)2, essa tendência propõe um novo olhar sobre a maneira de se
pensar a economia contemporânea, buscando novas formas que vão
além da economia de mercado. Para tanto, propõe uma articulação entre
o mercado, o Estado e os grupos excluídos do atual sistema produtivo,
na expectativa de se consolidar enquanto estratégia de desenvolvimento
local. Logo, o mercado, o Estado e setores da sociedade civil excluídos
do sistema produtivo tornam-se pilares de sustentação e construtores
de relações capazes de fortalecer e definir o campo de atuação desse
novo modo de se pensar a economia.
França Filho e Laville (2004) observam que as sociedades
tradicionais priorizavam a manutenção dos vínculos sociais em relação à
produção de riquezas, tornando a economia imbricada nas relações sociais.
Porém, na modernidade presencia-se uma legitimidade da economia de
mercado, onde esta reside num desejo da pacificação das relações sociais,
mediante a busca da satisfação dos interesses individuais.
A atual concepção de economia de mercado, cria uma dissociação
entre o plano econômico e o social, o que elimina o debate político das
questões econômicas. Contudo, o que se almeja é a experiência de um
mercado pautado na economia social, criando relações que “examinam
as condições, permitindo conciliar o modo de produção econômico com
uma redução da pobreza que ameaça a ordem estabelecida” (p. 50).

2
Palestra apresentada por Paul Singer durante o “Seminário de Economia Solidária” realizado pela
Secretaria de Infra-estrutura do Estado da Bahia (SEINFRA), Salvador, abril de 2007.
O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista... 255

A observação das condições sociais no âmbito das relações de


mercado, inclui o Estado enquanto agente regulador dessa relação. E
como pensou Offe (1984, p. 125), “existe uma, e somente uma estratégia
geral de ação do Estado. Ela consiste em criar as condições segundo as
quais cada cidadão é incluído nas relações de troca”.
Considerando a posição de Claus Offe, o estado deve ser entendido
como poder público e não se confunde com governo a ser governado,
nesse sentido ele é independente da sociedade civil, porém a influencia, e
é influenciado por ela. Nessas condições, os setores da sociedade civil que
se encontram à margem do atual sistema, passam a representar as células
de edificação dessa redefinição de Estado através do qual se formará o
elo para a aproximação desses setores e do mercado.
É com base nessa estreita ligação envolvendo o mercado, o
Estado e setores da sociedade civil, que as vertentes teóricas defensoras
da Economia Solidária a definem através de quatro princípios de
comportamento econômico, representando um olhar diferenciado
em relação ao agir econômico em sociedade3. Constituem, portanto,
preceitos voltados para a domesticidade, através da produção para
usufruto próprio ou do seu grupo; reciprocidade, relação conduzida
pela dádiva e que representa uma economia não-monetária;
redistribuição, em que a produção fica a cargo de uma autoridade para
ser redistribuída, também definida como não-mercantil, e nesse caso,
assume a idéia de atuação do poder público, que intervêm através da
construção de relações de reciprocidade entre os agentes partícipes
desse modelo econômico, para tanto, agindo na formulação de políticas
públicas; e por último o mercado, que representa o lugar de encontro
entre a oferta e a demanda de bens e serviços para fins de troca, este por
sua vez, sendo o princípio que predominou nas relações econômicas
capitalistas orientando a reprodução de um sistema hegemônico e
excludente através do tempo.

3
FRANÇA FILHO; LAVILLE, op. cit., 2004. Baseado no estudo de Karl Polaniy (1983) sobre
a origem política e econômica do nosso tempo (domesticidade, reciprocidade, redistribuição e
mercado).
256 Maristela Miranda Vieira de Oliveira

A Economia Solidária, portanto, sinaliza para uma articulação


entre a econômica mercantil, não-mercantil e não-monetária,
convergindo para a solidariedade que se transforma em centro de uma
relação que permeia os objetivos de natureza social, política ou cultural
(FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004).

Relações neoliberais enquanto limite e desafio para a economia


solidária

Antes de propor uma análise sobre as relações neoliberais que


vão influenciar a proposta de uma Economia Solidária, cabe uma breve
reflexão sobre o que se pode depreender ao optar pela utilização das
expressões “limites e desafios” na construção do presente raciocínio.
Como limite, entende-se um ponto ou linha terminal, além dos
quais, cessa a continuidade. Por desafio, subtende-se instigar, incitar,
provocar. A significância desses dois verbetes torna-se quase que
antagônicas, na medida em que o primeiro propõe um sentido de fim,
enquanto que o segundo é um chamado à continuidade.
Logo, a vinculação de termos por si só conflitantes para a
construção da análise das relações neoliberais frente à Economia
Solidária, presume o caráter polêmico que tal reflexão engendra, uma
vez que estes limites podem ser visualizados de maneiras diferentes,
pressupondo um fim ou um começo, a depender da reflexão que se
faz. Se forem encarados enquanto paradigmas, tornam-se um convite a
serem ultrapassados e, portanto, transformam-se em desafios.
Consequentemente, a reflexão desvincula-se de um caráter
estritamente pontual, para adquirir um perfil instigador na medida em
que propõe em suas entrelinhas a análise sobre qual caminho seguir
na busca pela diminuição dos impactos provocados por um sistema
hegemônico e excludente, aquele que levará a um fim de linha, ou seja,
uma fronteira que não será ultrapassada, ou aquele que será construído
e reconstruído para além de suas próprias fragilidades?
O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista... 257

Relações de mercado

Diante da lógica da Economia solidária percebe-se, portanto, a


grande dimensão por ela auferida uma vez que aspira transcender a um
único comportamento econômico estritamente voltado para as relações
de mercado. Evidencia-se assim, uma proposta que reivindicando uma
economia plural, deve praticar a economia de mercado combinada
com a economia do não-mercado (poder púbico) e a não-monetária
(reciprocidade) sem, contudo, reproduzir as relações capitalistas que
dominam o cenário mundial.
Por esse viés, a competição deverá dar lugar à cooperação. O
acúmulo de capital não deverá participar das aspirações da Economia
Solidária que precisa se auto-sustentar através da redistribuição de suas
sobras, além do que, a sua produção deverá atender não só ao mercado,
bem como aos seus próprios participantes. Logo, ela também deverá
praticar preços justos sem perder de vista o foco na qualidade, o que
servirá de impulso para sua permanência no mercado.

Políticas públicas

Políticas públicas devem ser entendidas como o “Estado em


Ação” na medida em que implanta projetos de governo, programas
e ações voltadas para setores específicos da sociedade. Constituem a
natureza da intervenção do Estado (FALEIROS, 1995), suas intenções,
criando assim uma agenda pública que vai nortear os seus trabalhos
(LAHERA, 2002). As políticas públicas traduzem-se ainda em ações
que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado
e que representam uma redistribuição de benefícios sociais visando
à diminuição das desigualdades produzidas pelo desenvolvimento
socioeconômico (HÖFLING, 2001).
Lahera (2002) faz ainda uma outra distinção em relação às políticas
públicas, quando dissocia políticas de governo e políticas de Estado, sendo
aquelas compreendida como as políticas de um governo, enquanto estas
258 Maristela Miranda Vieira de Oliveira

são interpretadas como as ações que transcendem a um período específico


delimitado por um governo e tornam-se direitos inalienáveis.
A Economia Solidária, enquanto campo de práticas ainda em
construção, que não está unicamente voltada para a esfera mercantil
e que retoma o diálogo entre a economia e a política como forma
de sustentação de seus interesses, tem como desafio construir bases
sólidas no âmbito das políticas públicas, do “agir no espaço público” 4
que segundo França Filho e Laville (2004) é uma forma de conciliar o
projeto de uma Economia Solidária com a esfera política e econômica
concomitantemente.
Nessa perspectiva, a existência de programas e projetos de incentivo
a essas iniciativas e que se limitam a políticas de governo, deixando uma
lacuna na esfera das políticas de Estado, denota uma intenção efêmera
de apoio por parte do Estado, sendo este sujeito e regulador das relações
capitalistas e portanto, respondendo à lógica do mercado.
Por conseguinte, é fundamental a criação de instituições
que fortaleçam a construção do marco legal para o fomento de
empreendimentos solidários (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004).
Todavia, sabe-se que um dos pontos fortes do capitalismo está em
conseguir “legitimar-se e reproduzir-se historicamente utilizando-se
de aspectos como a tecnologia criada sob sua égide e outras formas
de alimentação do sistema” (GAIGER, 2004). Essas outras formas
de legitimação pode ser caracterizada pela legitimação política,
através do fortalecimento de instituições que preservem o campo
de atuação de interesse do capital. E atualmente, esse pensamento
se fortalece através da ideologia neoliberal reproduzida por muitas
esferas do governo.
Moraes (2001, p. 35) apresenta uma síntese das principais idéias
neoliberais que podem confirmar o grande desafio para promover a
Economia Solidária no interior do sistema capitalista:

Elas acentuam duas grandes exigências gerais e complementares:


privatizar empresas estatais e serviços públicos, por um lado; por
4
Expressão utilizada por França Filho (2004) na defesa da inclusão da proposta de Economia
Solidária no âmbito das políticas de Estado.
O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista... 259

outro, “desregulamentar”, ou antes criar novas regulamentações,


um novo quadro legal que diminua a interferência dos poderes
públicos sobre os empreendimentos privados.

É notável, portanto, que a Economia Solidária caminha na


contramão da ideologia neoliberal vigente, tendo como uma de suas
prerrogativas, contar com o apoio do poder público para se fortalecer.
Uma vez que na ideologia neoliberal o Estado passa a se eximir de certas
responsabilidades, acentuando a atuação do mercado frente às demandas
sociais e econômicas, transformando-se em agente regulador dessas
relações, a sua atuação junto ao ideal de uma economia plural torna-se
fraca ou até mesmo incoerente.
De um lado, o neoliberalismo age no sentido de enfraquecer
o Estado diante das relações de mercado, dessa forma, responde aos
interesses do capital. De outro, a Economia Solidária propõe uma
economia plural baseada em três pilares, mercado, Estado e grupos
excluídos do atual sistema produtivo numa concepção de união de
forças visando o bem comum. Poderia o Estado, servir aos interesses
do capital e do social ao mesmo tempo? Considerando uma economia de
mercado que alimenta a concorrência, o individualismo e, portanto, não
considera a problemática social como um desequilíbrio gerado dentro
desse sistema, como promover uma economia mercantil e contribuir
com uma economia plural?
Evidentemente, algumas ações do Estado devem ser pontuadas
como forma de fortalecimento da tendência da Economia Solidária,
entre elas a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária
(SENAES), ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego e que tem
como principal desafio implementar o Programa de Economia Solidária
em Desenvolvimento. Assim como inúmeros programas de governo
em diversos municípios que apóiam essas iniciativas.
Contudo, ao optar por uma via neoliberal, este Estado utiliza-
se de estratégias que servem ao sistema vigente, como ferramentas,
planejamentos, avaliações, enfim, as políticas públicas são formuladas sob
a ótica do neoliberalismo, suas ações respondem à pressão do mercado,
260 Maristela Miranda Vieira de Oliveira

seus resultados deverão ser quantificáveis conforme a lógica do sistema


(FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2006).

Controle social

Observa-se ainda, enquanto limite para a Economia Solidária a


questão do controle social que dentro da lógica neoliberal é desestimulado
como forma de enfraquecer o poder do Estado (TORRES, 2004).
Contudo, sabe-se que o Estado é um reflexo histórico, a sua qualidade se
encontra na cidadania popular mobilizada e organizada. Para se pensar
na soberania desse Estado em relação ao mercado é preciso pensar em
mudança, através do fortalecimento da cidadania, o que é desestimulado
na ideologia neoliberal (VERZA, 2000).
Esse quadro traduz perfeitamente a realidade que ora se apresenta
em relação à formulação de políticas públicas, uma vez que se presenciam
políticas sociais incapazes de resolver os problemas em sua origem, mas
apenas servem como paliativos para situações extremas de pobreza.
Ainda como forma de legitimação do sistema capitalista, percebe-
se a introdução de ideologias neoliberais agindo na desarticulação do
controle social. Isso acontece até mesmo com a massificação de termos
que passam a ser utilizados no âmbito das ações de caráter privado
e público e que tendem a ser reproduzidos nas práticas solidárias,
confundindo-as com as estratégias de autopromoção da economia de
mercado. Como exemplo, observa-se a utilização do termo “eficiência”
que, segundo Gaiger (2004) refere-se, dentro da ideologia do mercado
apenas aos aspectos quantificáveis, desprezando o lado social da
produção. Enquanto que em uma economia solidária, esse mesmo termo
vai considerar aspectos inerentes à questão social como qualidade de
vida, satisfação de objetivos culturais e éticos-morais.
Pode-se citar ainda o termo “empreendedorismo”, que conforme
Moraes (2001), remete a um elemento básico do sistema capitalista, vez
que representa a função empreendedora do indivíduo, que se move
orientado por um planejamento baseado na idéia de concorrência e
O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista... 261

numa complexa divisão social do trabalho. O mesmo que Harvey (2004,


p. 100) denomina de “empreendimentismo” quando o associa com um
individualismo possessivo na medida em que

[...] a inovação e a especulação criativos podem florescer, embora


isso também implique uma proliferante fragmentação de tarefas
e responsabilidades, bem como uma transformação necessária
das relações sociais que chega a ponto de forçar os produtores
a ver os outros em termos puramente instrumentais.

Isso revela uma articulação da economia de mercado onde esta


é vista como um modelo de funcionamento para as demais instituições
sociais (MORAES, 2001), e que as instituições do não-mercado
(poder público) acabam tomando para si na iminência de corrigir
falhas inerentes à sua realidade. Esse mesmo risco ronda as práticas da
economia solidária, que assim como a administração pública, carece de
desenvolvimento de ferramentas próprias, baseadas numa realidade que
deve responder acima de tudo aos interesses sociais e não aos interesses
individuais, como quer a economia de mercado.

Conclusão

Com base na idéia central do artigo, a caracterização do


neoliberalismo enquanto construtor de relações que respondem à
economia de mercado, revela-se um desafio dentro da proposta da
Economia Solidária, vez que esta presume uma interação entre a
economia e a política social para a construção de um modelo econômico
mais justo, fora da concepção única do princípio de mercado. Para
tanto, a vinculação desta nova forma de se pensar a economia com
as políticas públicas, criando um espaço de atuação para um novo
modelo, presume uma atuação forte do Estado, muito além de oferecer
oportunidades iguais para ideologias diferentes, pois seria o mesmo que
distribuir armas para ambos e eximir-se da responsabilidade, deixando
mais uma vez a solução para o que mostrar-se mais forte, seguindo a
262 Maristela Miranda Vieira de Oliveira

lógica da concorrência, o que reflete atitudes neoliberais. E ao analisar


os limites ora descritos, pontua-se ainda um desafio, grande o suficiente
para responder a todas as armadilhas do Estado Neoliberal, ou seja,
construir uma nova forma de ação pública que se mostrasse coerente
com a proposta da Economia Solidária.

Referências

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São Paulo: Brasiliense, 2004.

FALEIROS, V. de P. A. A política social do estado capitalista


(primeira parte). São Paulo: Cortez, 1995.

FRANÇA FILHO, G. C.; LAVILLE J. L. Economia solidária: uma


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______ et al. (Org). Ação pública e economia solidária: uma


perspectiva internacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.

GAIGER, L. I. (Org.) Sentidos e experiências da economia solidária


no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

HARVEY, D. Condição pós-moderna. 13. ed. São Paulo: Edições


Loyola, 2004.

HÖFLING, E. M. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos


Cedes, Campinas, v. 21, n. 55, p. 30-57, nov. 2001.

LAHERA, E. P. Introduccion a las políticas públicas. Santiago


(Chile): Fondo de Cultura Econômica, 2002

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Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
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implicações para a sociedade civil e para a profissão. Florianópolis, 1997.
Disponível em: <www.portalsocial.ufsc.br/crise_estado.pdf>. Acesso
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no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

VERZA, S. B. Cidadania, poder local, políticas público-sociais. In:


______. As políticas públicas de educação no município. Ijuí:
Unijuí, 2000. p. 101-148.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas
públicas e perspectivas de cenário econômico

João Ferreira Gomes Neto1


Renato Leone Miranda Léda2

Resumo: As florestas plantadas, juntamente com as florestas nativas, são


responsáveis pelo abastecimento do setor de base florestal brasileiro. Este
trabalho analisa a conjuntura econômica atual do mercado florestal brasileiro,
abordando o cenário do segmento no Estado da Bahia. Concluiu-se que o setor
florestal nacional e estadual está em expansão em virtude da favorável conjuntura
macroeconômica, das adequadas condições ambientais para essa atividade e
das ações do poder público a partir da implantação de políticas públicas de
fomento para o setor. Também são apontados alguns questionamentos sobre
os impactos sociais e ambientais dessa atividade econômica.

Palavras-chave: Desenvolvimento econômico. Meio ambiente. Políticas


públicas. Segmento florestal.

Brazilian forest market: an analysis on the public


and perspective politics of economic scene

Abtract: The planted forests, together with the native forests, they are responsible
for the provisioning of the section of base forest Brazilian. This work analyzes
1
Graduado em Administração pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail:
jf-neto@hotmail.com
2
Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor adjunto
do Departamento de Geografia da UESB. E-mail: renatoleda@uol.com.br
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 265-278 2009
266 João Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda

the current economical conjuncture of the Brazilian forest market, approaching


the scenery of the segment in the State of Bahia. It was ended that the national
and state forest section is in expansion by virtue of the favorable macroeconomic
conjuncture, of the appropriate environmental conditions for that activity and of
the actions of the public power starting from the implantation of public politics
of fomentation for the section. Also mentioned are some questions about the
social and environmental impacts of economic activity

Key-words: Economical development. Environment. Public politics. Setment


Forest.

Introdução

Alguns dos grandes desafios da civilização contemporânea


residem na geração de mecanismos de mediação capazes de enfrentar
as contraditórias relações dos homens com o meio ambiente na atual
fase do capitalismo. Nesse sentido, o Estado enquanto mediador
da relação entre sociedade e território e como gestor ambiental por
excelência tem como uma de suas funções principais, neste campo, a
elaboração e implementação de políticas públicas diante das demandas
e dos problemas econômicos, sociais e ambientais que se configuram
na atualidade.
Os debates recentes sobre a gestão sustentável dos recursos
naturais, e as pressões frente ao Estado perante a necessidade de
programas governamentais pretensamente capazes de resolver ou pelo
menos mitigar problemas tais como a pobreza e o desemprego, colocam
em evidência as discussões sobre o aproveitamento das potencialidades
naturais locais para o desenvolvimento de atividades econômicas que
supostamente geram emprego e renda para a população. Uma dessas
atividades que proporcionam algumas das discussões mais acaloradas
do momento é o plantio do eucalipto, devido aos substanciais impactos
nos territórios onde é desenvolvido, em virtude da utilização de grandes
extensões de terra e dos vultosos aportes de capital necessários à
implantação dos empreendimentos florestais.
Para o levantamento das informações e consecução dos objetivos
inicialmente propostos utilizou-se de instrumentos metodológicos que
Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas públicas e perspectivas ... 267

envolveram a revisão bibliográfica acerca do tema e o levantamento de


dados secundários em fontes especializadas referentes ao mercado do
agronegócio florestal no Brasil.
Dessa forma, o trabalho aqui apresentado tem como proposta
central a análise da conjuntura econômica do setor florestal brasileiro,
abordando o cenário do segmento no Estado da Bahia. Para isso, com
o objetivo de contextualizar o tema, procedeu-se discussão acerca das
relações entre desenvolvimento econômico, meio ambiente e políticas
públicas. Em seguida, foi realizado breve relato histórico das políticas
públicas no Brasil e no Estado da Bahia, e, finalmente, a análise de alguns
dados para a compreensão do fenômeno em questão.

Desenvolvimento econômico, meio ambiente e políticas


públicas

O paradigma do desenvolvimento se assenta no princípio de que


o crescimento econômico seria indefinido, a partir de um processo de
uso intensivo de capital, diminuição da mão-de-obra e larga utilização dos
recursos naturais (LIMA, 2004). Nesse contexto, conforme define Costa
(1997), estabeleceu-se efetivamente uma ideologia em que a industrialização
(e correspondente exploração do ambiente como fonte de insumos e
depositário de resíduos), era sinônimo de desenvolvimento. De certo modo,
tal visão hegemônica era compartilhada por correntes teóricas divergentes
quanto a outras questões econômicas essenciais, tais com as correntes
neoclássicas e keynesiana. Essa última, em particular, se afirmou como “base
ideologia desenvolvimentista” e sua proposição peculiar:

[...] se fundamenta na crise econômica dos anos 1930, quando o


principal problema enfrentado era o desemprego. A maximização
do uso de mão de obra e de capital era o desafio estabelecido
na época. Os recursos naturais renováveis pareciam ainda
extremamente abundantes e a energia era barata (CAPORALI,
2002 apud LIMA, 2004, p. 23).
268 João Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda

Tal modelo, em um sistema aberto, para se sustentar, dependeria


de suprimentos inesgotáveis de energia e matéria-prima, e de uma infinita
capacidade do meio de reciclar matéria e absorver resíduos. É pertinente
afirmar que predominava nessa ideologia uma consciência distorcida no
concernente às relações sociedade-natureza, aos impactos ambientais
e à degradação ecológica proveniente das atividades econômicas,
desconsiderando seus condicionantes e limites biofísicos (ROMEIRO;
REYNDON; LEONARDI, 1997).
É a partir da percepção da incompatibilidade de desenvolvimento
econômico com o equilíbrio do meio ambiente gerada por esse
modelo que a sociedade começa a dedicar maior atenção a essa
complexa problemática. Assim, conforme defende Cavalcanti (2002),
surge a concepção de “sustentabilidade”, que envolve aceitar que o
desenvolvimento sócio-econômico tem possibilidades definidas, isto é,
limites de crescimento. Em vários países, inclusive no Brasil, a idéia de
proteção ao meio ambiente e de conservação dos recursos naturais como
uma da necessidade social começa a ser difundida, embora de maneira
incipiente, entre os anos de 1960 e 1970, durante a fase de emergência
do chamado “moderno ambientalismo” (BAYLISS-SMITH; OWENS,
1996), e se intensificou a partir da década de 1980/90, o que pressionou
o Estado a considerar a variável ambiental na formulação das políticas
públicas, mesmo que de maneira fragmentária e tecnocrática.
Uma das políticas governamentais que pretendem alinhar
desenvolvimento econômico e conservação do meio ambiente é
a concernente aos reflorestamentos. Por meio dessas políticas, o
Estado brasileiro procura criar condições para o fornecimento
contínuo de energia e matérias-primas para a indústria, tendo em
vista pressões econômicas como as crises derivadas dos choques do
petróleo, a crescente busca por alternativas energéticas, bem como,
e particularmente, o estímulo aos investimentos nesse setor devido
ao crescimento do comércio internacional de produtos de origem
florestal, com taxa média de 6,8% entre 1985 e 2006 (SBS, 2007). Por
outro lado, a mobilização da opinião pública em torno das questões
Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas públicas e perspectivas ... 269

ambientais, sobretudo após a Conferência das Nações Unidas sobre


Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), estaria impondo a
conservação dos recursos naturais como uma variável das políticas
neste setor, especificamente no que tange à diminuição da pressão
sobre as florestas nativas.
Entretanto, como advoga Frey (2000), o Estado enquanto
expressão da disputa entre grupos de representação de interesses
político-institucionais, nem sempre tem em suas ações o objetivo
efetivo de satisfazer às necessidades da população, mas sim, atender
aos interesses de grupos sociais específicos que formatam estruturas e
estratégias para influenciar nas decisões governamentais.
Essa perspectiva fica clara ao se analisar a política florestal
brasileira de apoio à produção de madeira, pois essa historicamente não
considerou os agricultores e as áreas das localidades mais vocacionadas
à atividade florestal (CARVALHO, 1987 apud LIMA, 2004). Por
isso, as ações governamentais voltaram-se predominantemente ao
desenvolvimento setorial sem a integração ao desenvolvimento rural das
localidades onde as atividades foram desenvolvidas. Assim, conforme
Lima (2004), os investimentos do setor público e as políticas públicas
para a área do reflorestamento foram formulados com o objetivo de
se criar uma infra-estrutura de apoio à dinamização e modernização
da economia regional, o que permitiu o beneficiamento das grandes
empresas do segmento. Porém, na visão desse mesmo autor, as políticas
estatais e o próprio setor não perceberam os enormes impactos sociais
e ambientais futuros de sua implantação.

Políticas públicas de reflorestamento no Brasil

As políticas públicas para o setor de reflorestamento no Brasil


se configuraram efetivamente durante o período de Ditadura Militar,
cujos primeiros marcos da ação governamental foram, conforme Léda
(1986), a criação dos Parques Nacionais e Florestas Nacionais, através do
Código Florestal; a instalação do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
270 João Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda

Florestal (IBDF), cujo objetivo era formular, dirigir, coordenar e


implementar as políticas florestais do país; e, simultaneamente à criação
desse órgão, a instituição e regulamentação dos incentivos fiscais para
reflorestamento, o que caracterizou o início de uma política destinada à
reposição florestal. Ainda na época do Governo Militar foi formulado
o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que perdurou entre
os anos de 1974 e 1979 e tinha como uma das vertentes orientar e reger
as políticas públicas voltadas para a atividade florestal, as quais “[...]
apontavam os reflorestamentos com as finalidades simultâneas de dar
suporte à reformulação do setor energético e às atividades industriais
[...], assumindo um papel estratégico no modelo de desenvolvimento
econômico brasileiro” (LIMA, 2004, p. 24).
A partir do declínio da Ditadura Militar e da elaboração da
Constituição Federal de 1988, a sociedade pressionara o Estado ao
atendimento de novas necessidades sociais e interesses políticos
introduzidos no contexto brasileiro. Assim, em 1989, foi criado
o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA). Nessa mesma perspectiva, em seguida, no Estado
da Bahia ocorreu a fundação do Centro de Recursos Ambientais (CRA)
que tinha por finalidade a administração da política ambiental em nível
estadual (LIMA, 2004).
No final da década de 1980, o Estado da Bahia constituiu
estratégias voltadas ao meio ambiente, das quais se pode citar:

a) democratização da informação e da gestão ambiental; b)


promoção da conscientização da sociedade sobre a importância
da questão; c) estímulo à participação popular e comunitária no
planejamento e execução da política de defesa do meio ambiente;
e d) manutenção de uma política de transparência e veracidade
das informações, institucionalizando mecanismos de avaliação
de impactos e de gestão ambiental (PEREIRA, 1989 apud
LIMA, 2004, p. 35).

Através do decreto n° 3.420 de 20 de abril de 2000 o governo


federal criou o Plano Nacional de Florestas (PNF), que tem por
Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas públicas e perspectivas ... 271

objetivo diminuir a demanda pelo desmatamento ilegal, bem como


evitar que o Brasil se torne importador de madeira, preocupação que
se justificaria pela defasagem entre o incremento médio anual para
o abastecimento dos setores econômicos e a oferta desse tipo de
matéria-prima (SCARPINELLA, 2002). Conforme Scarpinella (2002,
p. 60), alguns dos objetivos específicos do PNF são: a) estimular o uso
sustentável de florestas nativas e plantadas; b) fomentar as atividades
de reflorestamento, notadamente em pequenas propriedades rurais; c)
apoiar as iniciativas econômicas e sociais das populações que vivem em
florestas; d) reprimir desmatamentos ilegais e extração predatória de
produtos e subprodutos florestais; e) promover o uso sustentável das
florestas de produção, sejam nacionais, estaduais, distritais ou municipais;
f) ampliar os mercados interno e externo de produtos florestais; g)
valorizar os aspectos ambientais, sociais e econômicos dos serviços e
dos benefícios proporcionados pelas florestas públicas e privadas; h)
estimular a proteção da biodiversidade e dos ecossistemas florestais.
Mas antecipando a necessidade de incentivar o reflorestamento e
disciplinar a conservação dos recursos florestais, o governo do Estado
da Bahia, a partir do decreto n° 7.396 de 04 de agosto de 1998, já havia
instituído o Programa Florestas para o Futuro, que tem por finalidades:
a) promover o desenvolvimento econômico sustentável da atividade
florestal, utilizando racionalmente os recursos naturais disponíveis,
objetivando a melhoria da qualidade de vida da população; b) ampliar
a oferta de madeira plantada, através do reflorestamento com espécies
de rápido crescimento e alto valor econômico, para os consumidores de
produtos florestais, prioritariamente os pequenos e médios; c) melhorar
a rentabilidade da propriedade rural, prioritariamente dos pequenos e
médios produtores rurais; d) utilizar racionalmente a cobertura florestal
nativa existente, destacando-se os remanescentes de caatinga e cerrado; e)
reduzir os desmatamentos; f) recuperar áreas antropizadas com o plantio
de florestas produtivas; g) preservar os remanescentes da cobertura
florestal existente, principalmente da Mata Atlântica; h) ampliar a oferta
de empregos, através da inserção das atividades florestais na atividade
272 João Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda

produtiva rural; i) reduzir o fluxo migratório para os grandes centros


urbanos; j) divulgar à população os benefícios do uso racional dos
recursos florestais; k) promover a formação e estruturação da economia
e da cultura florestal no Estado (BAHIA, 1998, p. 1).
Percebe-se o alinhamento dos objetivos traçados nos programas
quanto ao incentivo ao reflorestamento e à preservação dos recursos
naturais, tanto no plano nacional quanto no estadual, considerando a
satisfação da demanda pelos produtos agroflorestais, a necessidade de
conservação e/ou recuperação ambiental e a melhoria da qualidade de
vida da população através da geração de emprego e renda. Entretanto,
a generalidade dos objetivos, a falta de explicitação dos instrumentos
e meios para sua consecução, além das condições objetivas muitas
vezes desfavoráveis à sua implementação, fazem de tais programas
uma coleção de boas intenções que se restringem aos documentos, não
sendo concretizadas na realidade, especialmente nos quesitos ambiental
e social, tal como foi possível observar no caso da recente implantação
de projeto de reflorestamento no município de Cândido Sales, Bahia
(GOMES NETO, 2008).

Resultados e discussão

O Brasil apresenta hoje um dos maiores índices de produtividade


no setor florestal em todo o mundo. Isso ocorre por conta da composição
de fatores que dão ao país vantagem competitiva frente aos demais nesse
segmento. Dentre esses fatores se destacam as condições ambientais,
as quais tornam o país propenso ao desenvolvimento florestal em seu
território, seja para a existência e crescimento de florestas naturais,
como para a formação de maciços florestais de espécies consideradas
exóticas. A título de exemplo, o ciclo de corte do eucalipto no país (planta
mais utilizada no cultivo de florestas plantadas no Brasil e no mundo)
varia entre 5 e 7 anos, enquanto que nos países do Hemisfério Norte
esse prazo oscila entre 20 e 25 anos. Além disso, outros três aspectos
contribuem para a ampliação dessa produção madeireira no Brasil: a)
Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas públicas e perspectivas ... 273

o emprego da mecanização; b) a fertilização dos solos; e c) a utilização


da biotecnologia.
Conforme informações levantadas pelo Ministério do Meio
Ambiente (MMA), atualmente, as áreas de plantações florestais no Brasil
correspondem a cerca de 5,4 milhões de hectares, dos quais 60% são do
gênero Eucalyptus, 36% do gênero Pinus e 4% de outras espécie, sendo
que o segmento de base florestal representa cerca de 4,5% do Produto
Interno Bruto (PIB) nacional, se responsabilizando por 17,8% das
exportações do agronegócio e 7,4% do total das exportações brasileiras,
não obstante, no ano de 2004, este comércio totalizou U$S 1,7 bilhão
em exportações para a balança comercial do país.
Em 2005, pesquisas realizadas pela Food and Agriculture
Organization of the United Nations (FAO) demonstraram que o
reflorestamento comercial na América Latina pode aumentar em quatro
milhões de hectares até 2020, permitindo ao Brasil, nesse contexto, fazer
com que sua indústria de base florestal possa dobrar as exportações até lá e
alcançar a marca de 6% do comércio mundial desse ramo em expansão.
O setor de base florestal brasileiro desempenha um papel
representativo na dinâmica sócio-econômica nacional no concernente
à geração de emprego, pois no ano de 2006 esse segmento empregou
aproximadamente nove milhões de pessoas de maneira direta e indireta
o que corresponde a 12,5% da população economicamente ativa do país,
sendo as atividades de implantação e manutenção dos empreendimentos
florestais as que empregam o maior número de pessoas no setor florestal
(BRASIL, 2006).
Mas, de acordo com estudos setoriais do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) realizados em 2002,
mesmo diante de toda essa conjuntura favorável o Brasil corre o risco
iminente de sofrer um “apagão florestal” a partir de 2004, em virtude
do déficit interno de madeira oriunda de florestas plantadas, fenômeno
que atingirá de maneira heterogênea cada região do país por conta do
ritmo de exploração das coberturas vegetais originais e do ritmo de
reflorestamentos desenvolvidos.
274 João Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda

Segundo estimativas de Bacha e Barros (2004), para o Brasil como


um todo manter estável o seu estoque de área plantada existente em 2000
(4,98 milhões de hectares), o plantio mínimo anual no período de 2001
a 2010 deveria ser de 237 mil hectares por ano, porém as perspectivas
de reflorestamento de alguns agentes reflorestadores principais –
empresas de celulose, siderúrgicas e pequenos produtores – somam
aproximadamente 229.845 hectares no ano de 2010, ou seja, um déficit
de 7.155 hectares de área plantada. Nas figuras 1 e 2 pode-se observar
a evolução da oferta e do consumo de madeira entre 1990 e 2006.

Figura 1 ­- Evolução da Produção Anual de Madeira em Tora para Uso Industrial


de Floresta Plantada no Brasil: 1990 – 2006 (1.000 m3).
Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas, 2007 apud Sociedade Brasileira
de Silvicultura, 2007

Figura 2 – Evolução do Consumo Anual de Madeira em Tora para Uso


Industrial de Floresta Plantada no Brasil: 1990 – 2006 (1.000 m3).
Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas, 2007 apud Sociedade Brasileira
de Silvicultura, 2007.
Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas públicas e perspectivas ... 275

Comparativamente, observa-se que a partir de 2004 todo o volume


da produção de madeira industrial em tora é consumido, colocando o Brasil
em uma situação de risco, pois as perspectivas de aumento da demanda
energética no país poderão levar a duas situações: a uma deficiência no
fornecimento, caso não haja eficazes projetos de reflorestamentos para
fins comerciais; ou ao aumento do desmatamento em função da pressão
sobre as florestas naturais para o abastecimento do mercado futuro.
A partir desse diagnóstico, o Estado da Bahia formulou políticas de
incentivo à atividade florestal em seu território, dentre as quais se podem
exemplificar a que atualmente está em vigência: Programa Floresta Bahia
Global (anteriormente denominado Programa Florestas para o Futuro).
Essas políticas têm por objetivo reverter (mesmo que tarde) a ameaça
do dito “apagão florestal” em uma oportunidade de desenvolvimento
de uma atividade econômica, pelo menos em tese, geradora de emprego
e renda, de modo que a Bahia possa se tornar fornecedora de matérias-
primas de base florestal aproveitando-se da alta demanda pelos produtos
agroflorestais e das condições naturais propícias à silvicultura.
Entretanto, alguns questionamentos devem ser apontados em face
de tal estratégia de incentivo à atividade florestal, tanto como política de
desenvolvimento, como na vertente da “gestão ambiental” do território,
pois o aproveitamento das chamadas “vantagens comparativas ambientais”
e da conjuntura de mercado favorável pode reforçar a especialização
da economia regional na produção commodities e a tendência à regressão
produtiva (BRANDÃO, 2007), numa versão tecnológica e ideologicamente
atualizada de velhos modelos nos quais a exploração das “vantagens
naturais” enquanto trunfo de “competitividade real”, possivelmente
reforça estruturas socioeconômicas vigentes ao invés de contribuir para
a consecução dos objetivos sociais e ambientais preconizados.

Considerações finais

Neste trabalho foi possível analisar alguns aspectos do mercado


de base florestal como um segmento em franca expansão em virtude do
276 João Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda

crescimento econômico verificado no Brasil e no mundo, nos primeiros


anos deste século, o que implica em uma maior necessidade de fontes
de energia para o abastecimento do sistema.
No setor florestal o Brasil aparece como um dos mais eficientes
países no desenvolvimento de florestas plantadas, isso ocorre por conta
das propícias condições ambientais encontradas no território para essa
atividade, da utilização da mecanização, da fertilização do solo e do
emprego da biotecnologia no desenvolvimento dos empreendimentos
florestais. Tal expansão tem sido favorecida pela a ação do Estado por
meio de políticas de fomento para o setor, viabilizando as condições
técnicas, legais e financeiras.
Apesar de uma conjuntura favorável em relação ao setor florestal,
o Brasil sofre com a defasagem entre a demanda e a oferta de madeira.
Nesse contexto, o Estado da Bahia fixou o objetivo estratégico (pelo
menos do ponto de vista econômico) de se tornar fornecedor de matéria-
prima de base florestal, e para isso elaborou e está executando políticas
voltadas ao incentivo dessa atividade, buscando atrair investimentos
externos, o que, em tese, contribuiria para diversificar as atividades
produtivas e gerar emprego e renda para a população local.
Na verdade, o impacto da atividade florestal no Brasil é tão forte
na geração de emprego, na balança comercial e na geração de divisas,
que muitas vezes as devidas precauções com relação à implantação dos
empreendimentos florestais, principalmente no concernente ao aspecto
ambiental, são desconsideradas, o que poderá implicar em enormes
custos sociais e ambientais no futuro.

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Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
Gêneros do discurso e divulgação científica:
desafios do discurso jornalístico

Moisés dos Santos Viana 1


Lúcia Gracia Ferreira 2
Adriana Guerra Ferreira 3
Sandra Lúcia da Cunha e Silva 4

Resumo: O presente artigo é uma reflexão acerca da linguagem, o discurso


científico e a divulgação do discurso científico, sendo este último discurso
expresso no jornalismo, tratando da questão dos gêneros de discurso em
geral e do gênero de divulgação científica em particular. Para iniciarmos tal
abordagem, partimos do cabedal teórico do filólogo russo Mikhail Bakhtin
e de alguns expoentes da Análise do Discurso (AD), tratando de referenciais
como o universo linguístico gêneros do discurso, necessários à comunicação na
sociedade. Ademais fazemos uma teorização sobre o discurso cientifico e sua
relação locutor-interlocutor e também a sua relevância e precisão na criação do
discurso de divulgação científica (midiática) que tem características próprias.
Assim, este artigo tem o objetivo de fazer uma reflexão teórica sobre a divulgação
científica, mais precisamente o discurso jornalístico que realiza essa tarefa.

Palavras-chave: Ciência. Gênero de discurso. Análise do discurso.

1
Jornalista. Especialista em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB)/Itapetinga. Mestrando em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC). Professor Auxiliar UESB/Itapetinga. E-mail: tutmosh@gmail.com
2
Pedagoga. Mestranda em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). E-mail: luciagferreira@hotmail.com
3
Graduanda em Matemática pela UESC. E-mail: drylguerra@bol.com.br
4
Doutora em Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Professora Titular da UESB/
Itapetinga. E-mail: cunhasl@hotmail.com
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 279-296 2009
280 Moisés dos Santos Viana et al.

Gender of speech and scientific spreading:


journalistic speech challenges

Abstract: The present article is a reflection about language, the scientific


speech and the spread of the scientific speech, being the last speech reported
in journalism, dealing with gender of speech generally and with scientific
spread in particular. In order to start such a broach, we depart from the russian
philosopher Mikhail Bakhtin and from some state of Speech Analysis, dealing
with references like the linguistic universe of speech gender, necessary to society
communication. Furthermore, we set a theorization about scientific speech and
speaker-interspeaker and as well its importance and accuracy in the scientific
spread of speech (midiatic) which has proper features. Thus, this article has
objective to set a theoretical reflection on a scientific spread, however precisely
the journalistic speech that accomplishes this task.

Keywords: Science. Speech gender. Speech Analysis.

Introdução

Este artigo trata de questões relacionadas ao discurso, a


linguagem, a divulgação cientifica e ao discurso jornalístico. A
partir disso, analisamos a relevância dos gêneros dos discursos no
entendimento dos gêneros de discurso envolvido na divulgação
científica. Assim, esta reflexão tem um caráter especificamente teórico,
e para sua realização construímos um referencial, a partir de autores
como Bakhtin (2002, 2003); Brandão (1990); Burkett (2004); Foucault
(2003); Hernando (1977); Lage (2001); Lopes (2003); Serra (2001);
Zamboni (2001) dentre outros. O artigo tem o objetivo de fazer uma
reflexão teórica sobre a divulgação científica, mas precisamente, o
discurso jornalístico. Partimos da idéia de que o sujeito, após produzir
seu discurso e transmiti-lo, o faz por si só, assumindo o papel de locutor
ou sujeito falante de uma situação: “[...] os indivíduos são ‘interpelados’
em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações
discursivas que representam ‘na linguagem’ [...]” (BRANDÃO, 1990, p.
63). Eles carregam consigo um conjunto de fatores que proporcionam
Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico 281

o desenvolvimento articulado de enunciados referentes às áreas


familiares e pertinentes à vida desses indivíduos, ou seja, trazem em
seu discurso a sua experiência de vida. Assim, tem-se o gênero de
discurso, uma referência à locução verbal fixado em um campo do
conhecimento ou situacional: “[...] o gênero pode ser definido como
um tipo relativamente estável de discurso, elaborado por cada esfera
de utilização da língua” (ZAMBONI, 2001, p. 88).
Ademais, aqui tomamos como referência teórica o parecer de
Lilian Zamboni ao encontrar gêneros diferentes de discurso quando há a
locução verbal entre cientistas: discurso científico (um tipo); e quando o
discurso do cientista é intermediado por outros sujeitos para um público
não-iniciado no campo científico, fazendo surgir um discurso diferente,
o de divulgação científica.

Linguagem e discurso: uma questão de gênero

Em seus estudos sobre a linguagem e o discurso, Bakhtin (2003,


p. 261) levanta a hipótese de que há diversos tipos de discursos para as
diversas variedades de áreas do corpo social, que envolvem as relações
do ser humano “Esses enunciados refletem as condições específicas e as
finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático)
e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo, por sua
construção composicional”.
Nessas áreas, segundo Mondin (1980, p. 36), o universo linguístico
torna-se representações da realidade em que o ser humano se insere.
“[...] a linguagem é o instrumento ideal da intencionalidade essencial do
homem. Este é um ser aberto e em movimento constante, orientado para
a realidade que o circunda e ameaça”. Por isso, o discurso é instrumento,
uma brecha para descrever o espaço, o tempo e o contexto onde o sujeito
está inserido: “Essa abertura dispõe para a comunicação e a comunicação
faz-se principalmente por intermédio da linguagem” (MONDIN, 1980,
p. 36). Desse modo, a função do discurso é a representação, a descrição e
282 Moisés dos Santos Viana et al.

a interlocução de acordo com a dinâmica contextual que o sujeito atua e


se relaciona. Para cada dinâmica um tipo de linguagem e de discurso.
Bakhtin chama de gênero de discurso os tipos estáveis do discurso,
aplicados dentro de um campo. Destaca-se o domínio de produção do
discurso: “[...] características dos discursos dependem essencialmente
de suas condições de produção situacionais nas quais são definidas as
coerções que determinam as características da organização discursiva
e formal [...]” (CHARAUDEAU, 2004, p. 251). Tudo porque, cada
gênero torna-se dependente do contexto de produção que o rodeia
e o define. Em Bakhtin, há duas categorias de base, que ele chama
de gêneros primários e gêneros secundários de discurso. Os gêneros
primários são espontâneos e se ligam ao cotidiano dos sujeitos; são
também heterogêneos e dialógicos, constituindo uma troca enunciativa
imediata, sem muita sofisticação; já o gênero secundário está ligado às
elaborações sofisticadas, derivados dos gêneros primários, são mais
complexos e especialmente organizados. Contudo, há que se ressaltar
a importância do estudo conjunto e mútuo desses campos discursivos,
conforme salienta a observação bakhtiniana sobre os gêneros, pois eles
refletem o conteúdo do tema abordado, o estilo verbal e a construção
composicional do enunciado:

Uma determinada função (científica, técnica, publicista,


oficial, cotidiana) em determinadas condições de comunicação
discursiva, específicas de cada campo, geram determinados
tipos de enunciados estilíticos, temáticos e composicionais
relativamente estáveis (BAKHTIN, 2003, p. 266).

Bakhtin (2003) ainda discute as relações entre os enunciados


e os gêneros do discurso e salienta que, de um lado, há uma certa
individualidade do enunciado e, por outro, a variedade dos gêneros
do discurso. Que o estilo está ligado ao enunciado e aos gêneros do
discurso. E que tanto a escolha dos gêneros como a escolha do estilo
do enunciado são decorrentes da assunção de que cada enunciado tem
autor e destinatário.
Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico 283

Gênero, temática e estilo se unem e mudam de acordo com


o campo específico da formulação do discurso. Aí, encontra-se a
presença e a função do sujeito, seu objetivo comunicacional. Ao ser
locutor do enunciado, ele delimita sua área de atuação interagindo,
modulando e delimitando seu parecer discursivo: “[...] cria limites
precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da
vida, dependendo das diversas funções da linguagem e das diferentes
condições e situações de comunicação é de natureza diferente e assume
formas várias” (p. 275).
Na opção por um gênero do discurso, deve-se levar em conta
o objeto e o sentido; o projeto do discurso no locutor; bem como as
formas que compõem os gêneros.
O objetivo do discurso se esgota, exaure-se ao se tornar tema
de um enunciado. O autor como que define a idéia enunciada. “Essa
idéia determina tanto a própria escolha do objeto [...] quando os
seus limites e sua exauribilidade do enunciado: [...] também a escolha
da forma do gênero na qual será construído o enunciado [...]”
(BAKHTIN, 2003, p. 281). Assim sendo, essas condições semântico-
objetais são tematizadss pelos participantes. A sua exaurabilidade
depende da destreza pelo qual é utilizado o gênero determinado.
Com relação ao projeto discursivo, a individualidade do discurso é
perpassada pela situação, determinando o gênero a ser usado para a
ação comunicacional. É o sujeito falante que elabora o projeto das
cadeias enunciativas. No que diz respeito às formas gramaticais e de
língua, essas se apresentam ao sujeito falante junto com as cadeias
de vocabulários e sintaxe (instrumentos linguísticos determinantes
na comunicação enunciativa). Estas são as normas recebidas pelo
sujeito, que é obrigado a se subordinar ao parecer preestabelecido
pela sociedade, onde ele está inserido ou a um subgrupo social em
que ele é iniciado. Em síntese, os gêneros de discurso se entrelaçam,
a partir do sujeito, posicionado num determinado campo, acabando
por exaurir seu objeto e o seu sentido:
284 Moisés dos Santos Viana et al.

Por isso, cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por um


determinado conteúdo semântico-objetal. A escolha dos meios
linguísticos e dos gêneros de discursos é determinada, antes
de tudo, tarefas (pela idéia) do sujeito do discurso (ou autor)
centradas no objeto e no sentido. É o primeiro momento do
enunciado que determina as suas peculiaridades estilísticos-
composicionais (BAKHTIN, 2003, p. 289).

As realidades que contextualizam e preparam o sujeito em sua


expressão enunciativa também determinam a escolha do gênero de
discurso. Ao sujeito locutor, com sua índole individual, cabe, ainda, os
sentidos que dá ao objeto do enunciado e seu objetivo específico. Este
se liga ao destinatário (a comunicação tem objetivo), ou seja, “um traço
essencial (constitutivo) do enunciado e o seu direcionamento a alguém, o
seu endereçamento” (BAKHTIN, 2003, p. 301). Desse modo, interessa
ressaltar que, para atingir o objetivo do discurso e da comunicação, o
interlocutor tem uma participação importante:

A quem se destina o enunciado como o falante (ou o que escreve)


percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força
e a influência deles no enunciado – disto dependem tanto a
composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado. Cada
gênero do discurso em cada campo da comunicação discursiva
tem a sua concepção típica de destinatário que o determina como
gênero (BAKHTIN, 2003, p. 301).

É o destinatário que pode apresentar o grau de percepção suficiente,


o nível de conhecimento, sua inteiração e concepção de mundo, até os
preconceitos. Por isso, o gênero de discurso leva em conta a posição
social, idade, grau de instrução e o nível social do falante, bem como o
do receptor. Na comunicação de massa de mercado, essas características
são catalisadas no que se conhece por “perfil de público”.
No discurso, o receptor assume um papel de participante, pois
tem influência sobre o locutor e seu enunciado. Assim, a composição e
o estilo do discurso dependem da percepção e da imagem que o locutor
formula do destinatário (ZAMBONI, 2001, p. 93).
Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico 285

Discurso científico

Para Bakhtin (2003, p. 390), os enunciados são destinados e variados


em grau de assimilação do destinatário. O locutor projeta e antecipa a
compreensão daquilo que é formulado: “Quem fala e a quem fala. Tudo
isso determina o gênero, o tom e o estilo do enunciado: a palavra do líder,
a palavra do juiz, a palavra do mestre, a palavra do pai, etc.”. Nesse sentido,
pode-se argumentar que o discurso científico seja diferente do discurso
de divulgação científica, o qual surge dentro de um contexto, enunciativo
sócio-cultural específico, abrangendo tempo e espaço.
Segundo o físico norte-americano Lawrence M. Krauss, nessa
época contemporânea, a ciência tem precedência e valor de verdade,
por conta da “transparência”, do uso da metodologia e dos benefícios
e desenvolvimento social que ela proporciona, incluindo também o que
os cientistas têm a dizer sobre seus estudos:

Ela acontece em um contexto social, e os resultados dela têm


implicações importantes para a sociedade, mesmo se usados
apenas para compreender como nós humanos nos encaixamos
no Cosmos. Portanto, a simples geração de conhecimento, sem
nenhuma tentativa de disseminá-lo e explicá-lo, não é suficiente
(KRAUSS, 2004, p. 89).

Entretanto, o desenvolvimento e o resultado teórico da ciência


é restrito a certos indivíduos, grupos especializados:

Numa visão sociopolítica mais alargada, as comunidades de


cientistas formam-se no interior de instituições de pesquisa, nas
universidades, nos centros de pesquisa privados, nos laboratórios,
com finalidades e motivações de variada ordem [...] (ZAMBONI,
2001, p. 30).

Os cientistas formam um corpo de analistas, que desenvolveram


uma práxis dedutiva ou indutiva sob o objeto qualquer de sua escolha,
num determinado campo do conhecimento. Tal postulado é um ponto
286 Moisés dos Santos Viana et al.

que pode esclarecer a formação de um tipo de discurso pertencente às


pessoas que desenvolvem as ciências. Como salienta o filósofo Michel
Foucault, eles compõem um grupo privilegiado, instituído de qualificação
para tal procedimento: criar um enunciado verbal e competente no assunto.
A fala científica se restringe nessa área: “[...] ninguém entrará na ordem
do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início,
qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 2003, p. 37). A competência
desse discurso é restringida tecnicamente e por isso, determinada pela
sociedade que Foucault denomina “sociedade de discurso” e que tem e
usa mecanismos restritivos eficientes: “[...] cuja função é conservar ou
produzir discursos, mas para fazê-los somente segundo regras estritas, sem
que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (p. 39). A
questão do discurso é posta de forma a abranger o produtor, o locutor
do enunciado dentro de normas restritas.
Nos discursos científicos há a presença do locutor e do
interlocutor. Eles estão num mesmo nível de conhecimento, numa
mesma comunidade científica. Eles falam para seus pares: “Em cada
campo existem e são empregados gêneros que correspondem às
condições específicas de dado campo [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 266).
Esses dados são avaliados num nível horizontal na comunidade restrita.
“Todo enunciado tem sempre um destinatário (de índole variada, graus
variados de proximidade, de concretude, de compreensibilidade, etc.),
cuja compreensão responsiva o autor da obra do discurso procura e
antecipa” (p. 333).
Para Lopes (2003) o discurso dos cientistas é sustentado pela
harmonia com o tempo lógico e o tempo histórico, concebendo um
discurso como uma totalidade:

[...] o princípio da não-contradição interna, pelo qual o módulo


deve dar conta do tempo lógico em que o discurso se inscreve; o
princípio da não-contradição externa, que exige que se dê conta do
tempo histórico presente na obra; o princípio da responsabilidade
científica, que reclama do autor do discurso o desempenho
consciente em sua produção (LOPES, 2003, p. 118).
Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico 287

Ademais, em seus estudos, Zamboni (2001) salienta a importância


do discurso científico e o concebe como um enunciado hermético, por
se tratar de uma área restrita de campos específicos de vários níveis de
gêneros científicos, como o discurso científico de audiência leiga (mas
não se trata de um discurso de divulgação científica – gênero –, pois tem
as características dos enunciados científicos, expressados por cientistas);
o discurso científico especializados (circulam como descobertas antigas,
servem como forma pedagógica de um conhecimento); e o discurso
científico altamente especializados (trata-se de novidades de pesquisas
inéditas, descobertas recentes e originais). Outra peculiaridade desse
discurso se apresenta nas esferas sintática, semântica e lexical com seus
repertórios e a escolha do repertório científico que provoca um sentido
linguístico dentro do meio científico.
Nesses gêneros científicos há o caráter esotérico e duro para um
público não iniciado nesse tipo de leitura. No caso, a autora esquematiza
as partes competentes desses discursos que podem ser divididos em: a)
introdução; b) material e métodos; c) resultados e discussão. A introdução
compõe o início, como numa dissertação, onde se apresenta o problema,
a hipótese e é comum apresentar o “[...] objeto específico que está sendo
investigado [...], importância da pesquisa [...]” (ZAMBONI, 2001, p.
37). Os materiais e métodos correspondem a parte caracteristicamente
desse discurso que mais se restringe ao grupo enunciador desses
gêneros, uma parte importante: “[...] apresentação detalhada do material,
a potencialidade de permitir a repetição da experiência em outro
centro de pesquisa [...]” (p. 37). Os resultados e a discussão é a parte
conclusiva, onde se tabulam as deliberações expressadas na pesquisa:
“[...] as consequências originadas pelo emprego da metodologia adotada,
apresentam-se os resultados [...], os comentários acerca dos resultados
[...]” (p. 38). Vale ressaltar que essas idéias nem sempre são acessíveis a
quem está fora da comunidade científica e iniciados.
Por tudo isso, pode-se falar que há o processo pragmático e plástico
da pesquisa. Ele é base do processo enunciativo desses gêneros. Assim,
os enunciados científicos não são meras repetições discursivas, mas
288 Moisés dos Santos Viana et al.

possuem um caráter de sustentáculo e genealógico para outros gêneros,


sem esquecer, é claro, da dimensão contínua dos discursos em geral:
Nenhum enunciado pode ser o primeiro e último. Ele é apenas
o elo na cadeia, de fora dessa cadeia não pode ser estudado. Entre os
enunciados existem relações que não podem ser definidas em categorias
nem mecânicas nem linguísticas. Eles não têm analogias consigo
(BAKHTIN, 2003, p. 371).

Especificamente, o discurso científico inspira e nutre o discurso


de divulgação científica ou discurso midiático: “Em realidade,
repetimos, todo enunciado além do seu objeto, sempre responde
(no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos
enunciados do outro que o antecederam” (BAKHTIN, 2003, p.
300). Portanto, tal proposição indica o surgimento e o uso do
gênero discursivo diferente e mais acessível.

Discurso de divulgação científica

Segundo Zamboni a divulgação científica é um gênero de discurso


distinto de outros, contudo, como os demais, assume o caráter pouco
autônomo, necessitando de outros discursos fontes. O discurso de
divulgação é elaborado tendo em vista a acessibilidade de um tipo de
receptor que não pertence exclusivamente ao âmbito dos cientistas: “O
destinatário, que era originalmente a comunidade científica, passa a ser
agora um público aberto, tido como leigo em matéria de ciência [...]”
(ZAMBONI, 2001, p. 10). Assim, o gênero de discurso de divulgação se
torna um conjunto de enunciados interpretantes do discurso científico
para o público de não-cientistas. “[...] o divulgador falando por um outro,
o cientista, e para um outro, o público leigo” (p. 85). Dessa maneira, o que
pode caracterizar bem esse tipo de discurso é uma estrutura resultante
da peculiaridade de sua produção, como a presença de termos científicos
diluídos didaticamente, mas que surgem no discurso de divulgação.
Lage (2001, p. 123) afirma que o objetivo de quem informa sobre
ciência é transformar conhecimento científico em conteúdo divulgador,
Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico 289

isto é, clarear e simplificar as hipóteses, teorias da pesquisa científica


para o público, a exemplo do jornalismo científico:

O jornalismo procura grau distinto de precisão, determinado pela


amplitude diversa de seu público, que é extenso e disperso. O
texto jornalístico traduz conhecimento científico em informação
jornalística científico-tecnológica, procurando tornar conteúdos
da ciência compreensíveis e atraentes.

Há a tentativa de compartilhar o saber que o receptor não possui,


para isso, é preciso determinados graus de inteligibilidade, variadas por
mecanismos eficazes, junto com o uso de formas instrumentais tais como
denominações, exemplificações, classificações, sinônimos, comparações:
“[...] representações que os enunciadores fazem das lacunas dos
seus destinatários e atribuem, por consequência, graus diferentes de
didaticidade, laicidade ou cientificidade” (ZAMBONI, 2001, p. 97). Uma
mediação interessante e salutar, cujo objetivo é mostrar e expor numa
superfície social o trabalho científico.

Além de comunicar fatos científicos, idéias, processos, o


jornalista deve entender e tratar do contexto em que a ciência
é gerada e usada, de sua gênese, que é também política e
econômica, de seus efeitos e entrelaçamentos sociais e culturais
às vezes dramáticos. Em uma palavra, o jornalista científico não
pode apenas informar. Comunicar a ciência jornalisticamente
implica comunicar de forma crítica, situada, contextual,
rigorosa. Ao mesmo tempo, implica comunicar de maneira
interessante, cativante, ágil e dentro dos vínculos frustrantes
que o funcionamento da mega-máquina midiática impõe
(CASTELFRANCHI, 2008, p. 19).

Falar sobre ciência é antes de tudo colocá-la a serviço da


sociedade, juntamente com sua aplicação prática, abrangendo temas
que alcançam o cotidiano, como destaca o estudioso do jornalismo
científico, Burkett (1990, p. 5): “Redigir ciência também abrange
temas como aplicação da ciência através da engenharia e tecnologia e,
especialmente as ciências-arte, da medicina e cuidados com a saúde”.
290 Moisés dos Santos Viana et al.

Dessa maneira, o periódico de caráter científico tem como objetivo


mediar as instâncias entre o público leigo e o mundo das descobertas
científicas: “[...] a redação científica tende a ser dirigida para fora, para a
audiência além da estreita especialidade científica onde a informação se
origina. [...] a redação científica ajuda a transpor a brecha entre cientistas
e não-cientistas” (p. 6).
Fabíola Oliveira (2002) vem nos apontar algumas diferenças entre
os discursos da ciência e os jornalísticos:

A redação do texto científico segue normas rígidas de


padronização e normatização universais, além de ser mais árida,
desprovida de atrativos. A escrita jornalística deve ser coloquial,
amena, atraente, objetiva e simples. A produção de um trabalho é
resultado não raro de anos de investigação. A jornalística rápida
e efêmera. O trabalho científico normalmente encontra amplos
espaços para publicação nas revistas especializadas, permitindo
linguagem prolixa, enquanto o texto jornalístico esbarra em
espaços cada vez mais restritos, e portanto deve ser enxuto,
sintético (p. 43).

Forma-se a opinião pública sobre a ciência (fórum privilegiado),


mostrando o poder desses grupos, que detêm o conhecimento, e sua
posição em relação aos demais grupos. Nos seus estudos ligados à
nutrição, Serra apresenta e denomina a presença do discurso midiático
como mediador entre os enunciados científicos com o público. Seus
estudos não salientam a presença de um discurso de divulgação, mas o
gênero midiático, com seu caráter universal e seus enunciados acessíveis:
“A característica distintiva do discurso midiático é o fato de o âmbito da
sua legitimidade não ser delimitado pelas fronteiras de um domínio restrito
da experiência, ou seja, a mídia se apropria do discurso e da experiência
de diversas áreas de conhecimento” (SERRA, 2001, p. 17).
Nas idéias defendidas pela nutricionista, em suas análises
discursivas, o discurso midiático é aberto, público e pode ser entendido
por muitas pessoas que se interessam pelo assunto. Diferente das
características esotéricas dos enunciados puramente científicos, limitados
Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico 291

a um grupo e, portanto, restritivos, fechados e difíceis: “Desse modo,


a mídia, mesmo quando utiliza termos científicos, os expressa em
palavras do domínio público, atribui a determinados termos científicos,
significados populares” (SERRA, 2001, p. 17). Apresenta-se então um
caráter democrático e possível de ser avaliado em outras esferas sociais
que perpassam a vida humana. Quem emite o discurso de divulgação,
segundo Hernando (1977, p. 19), deve assumir o papel de interlocutor
junto à fonte: “El periodista científico debe ser, ante todo, periodista.
En outro lugar, y al hablar de los problemas de la difusión de la ciencia
[...]”. Assim, o divulgador deve, por conseguinte, conhecer o assunto a
que se refere e saber traduzir, em uma linguagem fácil o conhecimento
acerca do tema abordado:

El periodista científico debe cumplir una doble condición:


conocimientos científicos y conocimientos de técnica
periodística. Lo que importa, en definitiva, es disponer de una
capacidad de selección de lo que es verdaderamente importante
y debe llegar a la opinión pública y que el tratamiento de la
información sea correcto (HERNANDO, 1977, p. 20).

Para isso, Zamboni (2001, p. 62) destaca a necessidade de refazer


o discurso científico, traduzindo-o com resumos, resenhas e paráfrases,
surgindo daí a divulgação. “Submetido a outras condições de produção,
o discurso científico deixa de ser o que é”. Isso é feito sobre a matéria-
prima retirada dos papers de ciência, notícias, entrevistas, press releases.
Depois são aplicados mecanismos que proporcionam, ao conhecimento
criado pelos cientistas, o nivelamento máximo possível ao grande
público, conforme demonstra a Figura 1.
292 Moisés dos Santos Viana et al.

Locutor Gênero de discurso Receptor

Cientistas Discurso científico Cientistas

Reelaboração

Divulgador Discurso de divulgação Grande público

Figura 1 - Processo de elaboração e reelaboração do discurso científico, com


vistas ao público alvo.
Fonte: Elaborada pelos autores.

Consequentemente, exposta através dos veículos de informação,


a característica da ciência perde, de certa forma, a pureza objetiva da
análise científica. Tudo porque muitos conceitos são empobrecidos,
ou até mesmo retirados, para o entendimento geral do conteúdo
informativo, ao se transmitir a informação para um público fora do
círculo científico:

À medida que os escritores de ciência espalham informações


fora do núcleo das disciplinas científicas, a ciência perde
alguma precisão e muito do jargão técnico. Nos meios de
comunicação de massa – jornais, rádio e televisão – a ciência
torna-se popularizada [...]. Portanto, o redator de ciência deve
procurar o “significado” para o seu público-alvo (BURKETT,
1990, p. 8-9).

O rigorismo e a postura sisuda do cientista, outrora presente no


discurso científico, é posto de lado, pois na divulgação científica, interessa
muito mais envolver emocionalmente o leitor, num ritmo e entonação
discursiva cativante, numa maneira de dizer peculiar dos gêneros discursivos
Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico 293

mais populares. Uma outra característica da divulgação é a aproximação da


ciência, suas descobertas, com a vida das pessoas e seu dia-a-dia (O que
poderia ser útil? O que é interessante saber sobre ciência?).
Zamboni (2001) ressalta as peculiaridades desse gênero, cujas
funções e formas linguísticas das inserções lexicais na sintaxe discursiva,
são métodos eloquentes que acentuam com “aspas” ou itálicos as
partes léxicas diferentes do resto do corpo enunciativo, podendo vir
marcado tanto termos científicos como familiares ou coloquiais. Nesse
caso, ele assume um valor conotativo para uma melhor assimilação do
conteúdo científico, aproximando do léxico comum do público. Um
outro ponto destacado pela autora diz respeito à nomeação (função
legitimadora), para melhor elucidar as questões, tais como o mecanismo
se chama..., o nome da nova teoria é..., o método de pesquisa é
denominado..., entre outros. Há uma reformulação do discurso por
parte do divulgador, com vistas à “facilitar a compreensibilidade, na
tentativa de aproximar o leigo do recorte de mundo de que vai se tratar”
(ZAMBONI, 2001, p. 134). Zamboni destaca ainda, a necessidade
da existência de profissionais de comunicação (não-cientistas), mas
divulgadores do discurso científico. Por último a definição (função
explicadora), semelhante à nomeação, faz-se presente para esclarecer
certos termos incomuns ao público, desse modo são explicitados. Ela
se subdivide em definição por aproximação, definição por justaposição
metalinguística e definição por conceituação. A primeira garante a
compreensão do destinatário, assim são usados termos familiares
ao leitor, mas com resguardo conceitual e igualdade de valor com o
objeto científico, a exemplo de: “a luz viaja no espaço” e “os buracos
da lua”. A segunda definição introduz termos de metalinguagem
diante de um jargão científico (termo técnico): “nanômetro é o nome
que se dá a escala de medida para objetos pequeninos”. Na definição
por conceituação o termo técnico recebe uma conceituação e assim
é entendido, identificando os objetos que são estudados pela ciência:
“O DNA é uma estrutura, em escala nanométrica, de um esqueleto
formado de duas colunas de bases protéicas”.
294 Moisés dos Santos Viana et al.

Portanto, é necessário para boa divulgação da ciência, enquanto


informação difusa, a percepção de intermediador. A ciência, de uns
poucos cientistas, pode ser compreendida e permeada por quem tem
acesso ao discurso de divulgação científica dos veículos informativos,
que a apresentam como uma especialidade. Põe no contexto social e
cultural o receptor da mensagem de divulgação científica, a partir do
discurso matriz (científico), para o público, usando códigos num nível
desse destinatário, observando os interesses e necessidades de cada
um. Seria a combinação entre o conhecimento adquirido e conquistado
com o interesse do público: “[...] a exposição que combina interesse do
assunto com o maior número possível de dados formando um todo
compreensível e abrangente” (LAGE, 2001, p. 112).

Conclusão

Diante do exposto, a divulgação é a área de construção do


discurso informativo, o qual irá perpassar a realidade como tentativa
de explicar o todo, para isso é interessante retomar o argumento da
objetividade comunicativa, justificando a existência da argumentação e
da retórica no discurso, ou seja, “comunicar, explicar, legitimar e fazer
compartilhar o ponto de vista que ali se exprime e as palavras que o
dizem; ou então, ao contrário, de eliminar os discursos concorrentes
para reinar soberano em seu domínio” (PLANTIN, 2004, p. 376). Ao
tratar de ciência, a divulgação funciona como forma de transmissão de
informação, com uma identificação objetiva e ideológica. Segundo Lage
(2001, p. 122) “ao informar, complementa e atualiza conhecimentos e
neste sentido, educa; ao transmitir conhecimento, atua sobre a sociedade
e a cultura, determinando escolhas econômicas e, no fim, opções
político-ideológicas”. O discurso científico se torna um poderoso
meio persuasivo na concretização de idéias. Através dos meios de
divulgação, ele se torna acessível e se cristaliza tornando-se base singular
dos discursos ideológicos vigentes, e para tanto faz uso do poderoso
instrumento de difusão informativo.
Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico 295

Referências

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linguagem: problemas fundamentais de método sociológico da ciência
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BURKETT, Warren. Jornalismo científico. Rio de Janeiro: Forense


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científico crítico na teoria e na prática. In: Jornadas Iberoamericanas
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Cruz de la Sierra - Bolívia). Los desafíos y la evaluación del periodismo
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HERNANDO, Manoel Calvo. Periodismo científico. Madrid:


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KRAUSS, Lawrence M. Perguntas que atormentam a Física. Scientific


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LAGE, Nilson. A reportagem. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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São Paulo: Edições Loyola, 2003.
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MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso.
São Paulo: Contexto, 2004. p. 375-377.

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revista Capricho. 2001. 76 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública)
– Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz, Rio de
Janeiro, 2001.

ZAMBONI, Lilian Márcia Simões. Cientistas, jornalistas e a


divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da
divulgação científica. Campinas: FAPESP/Editora Autores Associados,
2001.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
O discurso ecológico no discurso jornalístico:
novas atitudes mentais, sociais e ambientais
na prática jornalística

Moisés dos Santos Viana 1


José Everaldo Oliveira Santos 2

Resumo: O presente artigo é uma elucidação acerca do discurso em geral,


e do discurso ecológico em particular no discurso jornalístico. Destacam-se
a importância do contexto, do diálogo como características principais para
desenvolvimento dessas manifestações da linguagem, os discursos. Para tanto,
observa-se neles um espaço dialógico de inúmeros enunciados que se alternam
infinitamente, comunicando-se dentro de infinitas possibilidades, como o
discurso ecológico e o discurso jornalístico. Assim, dentro do contexto atual
há um diálogo rico e necessário entre esses dois discursos.

Palavras-chave: Discurso ecológico. Discurso jornalístico. Linguagem.


Dialogismo.

1
Jornalista. Especialista em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Itapetinga. Mestrando em Cultura e Turismo pela
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professor Auxiliar da UESB/Itapetinga. E-mail:
tutmosh@gmail.com
2
Mestre em Educação. Professor do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Itapetinga. Professor
Assistente da UESB/Itapetinga. E-mail: zeveraldo9@yahoo.com.br.
Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 297-312 2009
298 Moises dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos

The ecological discourse in the journalism discourse: new attitudes


mental, social and environmental in the journalism

Abstract: This article is an elucidation about the in general, and in the ecological
discourse and the journalism discourse. To be detached the importance of
context dialogue and main features for development of these manifestations
of the language, the discourses. However notes a space of dialogue which
listed numerous alternate infinitely. Communicating within infinite possibilities,
such the ecological discourse and the journalism discourse. Thus within in this
context there is a rich and necessary dialogue in the discourses.

Keywords: Ecological discourse. Journalism discourse. Language.


Dialogism.

Introdução

A linguagem é forma de expressão do indivíduo dentro de um


campo social. Uma faculdade que o ser humano tem para apresentar
seu pensamento, usando, nesse caso, o suporte da língua humana
(organização de sons, os fonemas). A linguagem pode ter variações,
dependendo do contexto que é empregada dentro da realidade, e como
apoio na construção dos vínculos sociais.
Para Saussure (1972, p. 17), essa linguagem não se desvincula da
língua, pois esta faz parte daquela e ambas se completam, à medida que
contribui para formação e coesão coletiva dos indivíduos: “É, ao mesmo
tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto
de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o
exercício dessa faculdade nos indivíduos”. Por isso, não se pode separar a
vida em sociedade da prática da linguagem. Elas se confundem, assinala
Orlandi (1987, p. 89), conservando uma homogeneidade histórica e
enraizada em tradições culturais antigas: “[...] a língua não é só um
instrumento, nem um dado, mas um trabalho humano, um produto
histórico-cultural”. A produção da linguagem se origina na interação
social ou no conflito de idéias entre sujeitos heterogêneos. Nesse caso, a
linguagem é mais que símbolos arbitrários, palavras em uso. Representa
valores e pensamentos já cristalizados ou impostos na sociedade.
O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais ... 299

Assim, as premissas sociais, para formar a questão do ato


comunicacional da linguagem, tornam-se conteúdo comunicado
ou partilha de convicções dos sujeitos da língua, que se entendem
mutuamente no discurso. Quanto à formação do discurso, deve-se
levar em conta o contexto que o determina, pois ele é fruto da junção
sócio-cultural e histórica. A possibilidade do discurso é o contexto
sociocultural, sua condição de produção. Para tanto, Marcondes Filho
salienta que o discurso não é gratuito por si só, ele tem sentido num
dado momento quando é produzido e quando é posto em uso:

Uma palavra não é só uma palavra, ela produz, ao ser pronunciada,


algo de novo, inesperado, estranho que se acrescenta a ela. Trata-se
de algo criado apenas naquele momento específico, que se instala
lá dentro, um ‘qualquer coisa’ de inspirado, que toma corpo dentro
das palavras. (MARCONDES FILHO, 2004, p. 53).

Portanto, na produção do discurso emergem significações e


sentidos, ou seja, é na construção do sentido que se encontra a formação
discursiva. Os sentidos que se inter-relacionam no estado social do
emissor (locutor do discurso e interlocutor) e do receptor, chama-se
situação de comunicação: “[...] dependem da estrutura das formações
sociais e decorrem das relações de classes, tais como descritas pelo
materialismo histórico”3 (MARCONDES FILHO, 2004, p. 114). Tudo
isso forma as condições de produção do discurso. No contexto de
produção surge a interface em que o discurso é assumido, ele se liga
ao sujeito que o elabora, e nem por isso não deixa de fazer parte das
condições preestabelecidas que fazem surgir o fenômeno discursivo.
Em outra palavras, o sujeito do discurso está inserido nas condições
de produção.

3
Para Karl Marx (1818-1883), filósofo alemão, a realidade deve ser entendido do ponto de vista
material e econômico-social. Ora, a realidade histórica, segundo o marxismo, baseando-se em Hegel,
interpreta a história como o palco da luta entre classes opostas (escravos X senhores, burgueses X
proletários). A realidade social é fruto dos meios de produção e de sua distribuição. Constituindo
a realidade do materialismo histórico: “Marx, por su parte, encargará de hacer una lectura materi-
alista de la realidad donde Hegal había hecho una lectura idealista. [...] la historia es el producto de
condiciones materiales tanto de la naturaleza como de la historia” (ELLACURÍA, 1991, p. 23).
300 Moises dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos

Desse modo, nesse artigo, através de uma pesquisa bibliográfica,


apresenta-se uma reflexão acerca do discurso gerado no contexto atual
de crise ecológica. A pesquisa teve como com objetivo de encontrar as
características do discurso ecológico e tecer uma relação com o discurso
jornalístico. A pesquisa recorre à teoria do discurso, em Bakhtin (2002)
e o conceito de Ecologia em Guattari (1991). Destacam-se a análise das
variações enunciativas, comunicativas no universo interpessoal
Na primeira parte fazemos elucidações sobre o discurso jornalístico
e como este nasce do contexto social. Após isso, refletimos sobre os
aspectos do discurso ecológico e como este se faz presente atualmente
em meio aos desafios sócio-ambientais da contemporaneidade.

Discurso jornalístico

Há a necessidade de quem produz o discurso, de voltar-se para


os mecanismos fornecidos pela linguagem e, a partir disso, medir seus
efeitos de sentidos dentro do contexto social que envolve as condições de
produção. Dessa maneira, na formação do discurso, o emissor antecipa
as representações do receptor e funda estratégias de discurso para obter
êxito no seu objetivo.
Assim, tem-se o sujeito falante do discurso que é o porta-voz que
dialoga subjetivamente com o contexto discursivo. Ele assume o papel
social e o papel discursivo. Ele que possui as ferramentas da linguagem
para utilizar na língua sua forma morfológica, suas regras sintáxicas e o
sentido semântico de cada palavra expressada.
Ele é o interlocutor não o autor do discurso, formulando-o
e reformulando-o, para expressá-lo. Escolhe, privilegia e determina
maneiras ou formas para expressar seu pensamento, adequando-o
para obter sucesso na comunicação. No sujeito, o discurso se faz numa
perspectiva do “eu” com o “tu”, uma troca interlocutiva. Depois, o
“tu” determina o que o “eu” irá dizer, seguido por um anseio pela
completude, o sujeito do discurso se completa interagindo com o
outro.
O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais ... 301

Há assim um diálogo intradiscursivo que se chama dialogismo:


“Fenômeno que participa da estrutura interna de todo discurso.
Criticando a filosofia da linguagem e a linguística por terem estudado
o diálogo apenas como uma forma composicional de construção do
discurso [...]” (ZAMBONI, 2001, p. 23). Ademais, a interatividade do
discurso é instante pelo qual o sujeito passa a ser espectador e ator,
interagindo com o outro, variando o papel discursivo. A interação entre
os sujeitos é percebida, no momento em que os observadores conhecem
os efeitos do discurso sobre os interlocutores, um feedback discursivo.
Desse modo, pode-se argumentar sobre a existência de vários sujeitos
discursivos, um é o enunciador e o outro é o destinatário. Eles sempre
alternam os papéis que formam a interdiscursividade.
O sujeito é essencialmente histórico num espaço social, projeta-
se num tempo, situando-se numa correlação com o discurso do outro,
inserindo-se no discurso do outro, reformulando e reelaborando. O
discurso sempre se localiza em relação ao já enunciado como verdade já
discutida, julgada e escolhida ou rejeitada. Ele aparece de modo implícito
ou explícito no sistema de produção de novos enunciados discursivos.
Assim sendo, tenta-se elucidar, a partir do teórico russo, Mikhail Bakhtin,
o que seria o enunciado, expresso por um sujeito, anteriormente ou
posteriormente ao silêncio entre os interlocutores:

O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade


real, precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do
discurso, a qual termina com a transmissão da palavra ao outro,
por mais silencioso que seja o “dixi” percebido pelos ouvintes
[como sinal] de que o falante terminou (BAKHTIN, 2003, p.
275).

É a enunciação que contém os conceitos, as idéias e a informação,


codificados e relacionados no corpo do discurso. A enunciação frequente
singulariza o discurso com jogos enunciativos, dando–lhe um corpo
linguístico. A frequência regular dos enunciados constitui o discurso,
dentro de relações históricas. É no acontecimento histórico que há
302 Moises dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos

a realização de um enunciado, pois ele só existe durante o discurso,


uma aparição momentânea chamada enunciação, contudo, ela precisa
do sujeito para que tenha sentido, juntamente com um contexto.
Portanto, o sujeito da enunciação procede de modo a responder ao
contexto discursivo, levando em conta a contextualidade no qual surge
o enunciado e sua função no discurso. Uma leva desses enunciados
reunidos forma o discurso, que seria, então, um conjunto de enunciados
numa mesma estruturação discursiva.
No discurso jornalístico há o espaço de diálogo entre diversos
enunciados. Nele se encontra também a dinâmica dialética que concede
à categoria discursiva uma peculiar maneira de apresentar a realidade.
Há nesse tipo de discurso uma síntese que apresenta o contexto
enquanto espaço conflitante: “[...] em um instante qualquer, os objetivos
reais praticados no cotidiano superam a ordem do discurso e vêm à
tona na ordem real, provocando o rearranjo das forças em conflito”
(BARROS FILHO; MARTINO, 2003, p. 160). Portanto, no discurso
do jornalismo o contextual se faz presente intradiscursivamente, bem
como o diálogo que é influenciado de forma bem relevante e se sintetiza:
“O texto só tem vida contactando com o outro texto (contexto). Só no
ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e
prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo” (BAKHTIN, 2003,
p. 401). O discurso jornalístico busca uma meta denominada síntese:

Se tratarmos o diálogo em um texto contínuo, isto é, se apagarmos


as divisões das vozes (a alternância de sujeitos falantes), o que
é extremamente possível (a dialética monológica de Hegel), o
sentido profundo (infinito) desaparecerá (bateremos contra o
fundo, poremos um ponto morto) (BAKHTIN, 2003, p. 401).

Dessa maneira é interessante salientar que no discurso jornalístico


forma-se a partir do discurso do outro que pode aparecer inter-
relacionados, de acordo com o contexto e com o fim que é direcionado:
“As palavras e expressões de outrem integrados no discurso indireto e
percebidos na sua especificidade (particularmente quando são postos
O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais ... 303

entre aspas), sofrem um ‘estranhamento’ [...], justamente na direção


que convém às necessidades do autor [...]” (BAKHTIN, 2002, p. 163).
Assim sendo, pode-se examinar a questão do jornalismo como espaço
do discurso do outro. Nessa perspectiva examinamos como o discurso
ecológico pode ocupar esse espaço, inter-relacionado-se com diversos
enunciados.

O discurso ecológico no discurso jornalístico

A palavra ecologia vem dos vocábulos gregos: eco casa, lar e logia,
que significa estudo. Ecologia é o estudo da casa, do meio onde os
seres vivem, onde se constrói o bem-estar, o habitat. O cientista alemão
Ernest Haechel, cunhou o termo na biologia em 1866 (morfologia
geral dos organismos). Depois disso o conceito se amplia e se torna
multidisciplinar: “Através da Ecologia, por fim, valores filosóficos de
unidade da vida e integração homem/natureza, presentes em várias
culturas tradicionais da humanidade estão renascendo numa linguagem
prática e acessível ao homem moderno” (LAGO; PÁDOA, 1984, p. 11).
Ecologia envolve o cuidado da casa que se relaciona de forma íntima com
a mente, a sociedade e o cosmos. Desse modo, pode-se falar de ecologia
em três níveis: ecologia mental, ecologia social e ecologia ambiental.
A ecologia mental é a ecologia da pessoa. Ela nasce do desejo de
autoconhecimento, desenvolvendo ações emocionais positivas que se
desdobram num processo de interação intrapessoal e interpessoal. Faz-se
mister construir valores de integração humana para bem-viver, de boa
saúde corporal e espiritual. A violência do ser humano contra si mesmo
é a imagem real da ação contra a natureza. Disso, busca-se o cultivo da
paz e a transmissão desta num nível coletivo (GUATTARI, 1990).
As guerras, o capitalismo no seu modelo mais grotesco
(neoliberalismo) desacredita a sociedade e a justiça social. Há uma
degeneração das pessoas, uma agressividade gerada num meio desumano
e miserável, onde qualquer tipo de valor ético se desfaz na luta da lei do
mais rico, mais forte ou do mais armado (GUATTARI, 1990).
304 Moises dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos

Nessa ecologia social, a integração de um bem-estar pessoal


se amplia na busca por uma sociedade igualitária, justa e equilibrada.
Despertam-se valores de respeito pelo trabalho, pelo bem-estar material
e cultural das pessoas. Nessa ecologia tenta-se interagir a cidade
com seus habitantes, pensando numa economia auto-sustentável,
com equidade, e estruturas de poder mais democráticas, para gerar
dignidade, justiça e paz. A integração da ecologia mental e a social gera
uma ecologia do sujeito total num processo de valor e luta contra a
injustiça gerada pelo capitalismo que concentra os meios de produção
nas mãos de uns poucos e aliena milhões, causando sofrimento e
destruição (GUATTARI, 1990).

Gradualmente progresa el reemplazo del sistema ecológico


natural por el sistema ecológico humano. Este progreso no es
uniforme [justo] sino que depende de los avances intelectuales y
técnicos que, por lo general, están directamente correlacionados
com la acumulación de riqueza, tomando ésta en términos de
aquellos valores de intercambio que puedan comprar alimento,
recursos y servicios (HOLDRIDGE, 1996, p. 117).

Aqui, é desejoso restabelecer novas atitudes sociais, éticas e


econômicas. E, além de tudo restabelecer valores que modificam para
melhor a visão e relação com o planeta.

A problemática ambiental gerou mudanças globais em


sistemas socioambientais complexos que afetam as condições
de sustentabilidade do planeta, propondo a necessidade de
internalizar as bases ecológicas e os princípios jurídicos e
sociais para a gestão democrática dos recursos naturais. Estes
processos estão intimamente vinculados ao conhecimento
das relações sociedade-natureza: não só estão associados a
novos valores, mas a princípios epistemológicos e estratégias
conceituais que orientam a construção de uma racionalidade
produtiva sobre bases de sustentabilidade ecológica e de
equidade social (LEFF, 2002, p. 60).

Precisa-se passar para uma nova maneira de compreender o


mundo. Este não é uma máquina fragmentada, mas um organismo vivo
O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais ... 305

que se auto-regula, um ser vivo que interage e inter-relaciona com tudo e


com todos. Esse planeta é o lar, a casa, o ethos: “Chegamos assim a teoria
de Gaia, que considera que a evolução dos organismos é de tal modo
inseparável da evolução de seu ambiente físico e químico, que juntos
constituem um único processo evolutivo, auto-regulável” (LOVELOCK,
1991, p. 39). Por isso, deve-se entender que os elementos constituintes
do ecossistema: água, ar, rochas e outros se relacionam com as partes
vivas formando reações físico-químicas. Eles constituem um todo
sistêmico e não podem ser fragmentados. “A relação da parte com o todo
tem a especial reciprocidade associada à noção de organismo em que a
parte está para o todo; mas essa relação prevalece em toda a natureza
e não se inicia no caso especial dos organismos mais complexos”
(WHITEHEAD, 2006, p. 185). Desse modo, a justiça e a paz social se
desdobram numa relação de integração ambiental, é a ecologia cósmica.
Ela envolve indivíduos que querem a saúde mente-corpo,
buscando com dignidade e harmonia comunitária e ambiental, mediante
o cuidado e o respeito pela natureza e os outros seres que formam a vida.
Vive-se na busca de uma interação com o todo, com o planeta, criando
mecanismos alternativos de desenvolvimento socioeconômicos. Por
fim, é preciso haver a integração das três ecologias, pois o planeta é um
organismo vivo, um sistema complexo de inter-relações constantes que
nos proporciona a vida e o bem-estar. Portanto, ecologia diz respeito
a vida e a sobrevivência, desafio na busca de novas atitudes mentais,
sociais e ambientais.
Desse modo, é preciso que se compreenda a ecologia para ser
elaborada e divulgada segundo um discurso ecológico contundente e
esclarecedor. A responsabilidade dos profissionais de comunicação é
imensa, porque eles devem orientar e proporcionar conceitos, mudanças
de hábito e comportamentos através dos diversos meios de comunicação
social, mensagens e dinâmicas dos processos comunicacionais
(diversos meios e mídias). Também o discurso ecológico nos meios
de comunicação deve proporcionar envolvimento da população na
conservação dos recursos naturais, fazendo entender os impactos da
306 Moises dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos

degradação ambiental à saúde, ao trabalho, às condições de vida, ao lar,


ao lazer, à escola e à comunidade.
Esta questão faz-se, então, presente criando enunciados próprios
que emergem de um contexto social, fruto de uma dialética entre saber
e realidade, também entre interesses diversos, formando o discurso.
Assim sendo, ele é um acontecimento constituído sob diversos pontos de
vista: atores, espectadores, autores e leitores. Destarte, o discurso faz-se
referência às relações de significação que perpassam o acontecimento e
seus protagonistas na sociedade.
O discurso está na apresentação situacional e histórica, pois narra
o evento e envolve diversos níveis inter-relacionados e díspares. Aqui,
pode-se assumir o parecer de Maingueneau (2004, p. 171), ele apresenta
o discurso como embrião de um contexto: “[...] não se pode, de fato,
atribuir um sentido a um enunciado fora do contexto”. Exemplificando:
a frase jornalística, “Desmatamento da Mata Atlântica ameaça mico-
leão-dourado”, resume-se num discurso diferente do adágio, “Penso,
logo existo”. Assim, a matéria jornalística sobre o desmatamento de um
bioma e a possível extinção de uma espécie é entendida diferentemente
de um tratado filosófico de metafísica, cada um desses discursos tem
suas próprias regras de apresentação contextual.
Numa perspectiva bakhtiniana, pode-se argumentar que a
formação do discurso é especificamente realizada no mínimo em duas
instâncias que se inter-relacionam que se interagem na concepção do
enunciado. Dessa maneira, o enunciado toma para si confrontos que
formam relações de âmbito semântico denominado dialogismo para
assim compor a realidade percebida:

Natureza dialógica da consciência, natureza dialógica da própria
vida humana. A única forma adequada de expressão verbal
da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida
é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo:
interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Aplica-se totalmente
na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida
humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 2003, p. 348).
O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais ... 307

A realidade aponta para um contexto onde a questão ecológica


atinge fundamentalmente todos os seres humanos. No momento atual,
o discurso ecológico envolve os problemas da cidade, das casas e das
pessoas, do meio ambiente. Por isso, é errado pensar em ecologia
separada do cotidiano. Aqui, entra a inter-relação entre discurso
ecológico e discurso jornalístico, pois o jornalismo narra o cotidiano.
O discurso ecológico faz parte do dia-a-dia, e o jornalismo como práxis
que compõe o fenômeno da comunicação humana participa disso,
interpretando e narrando o problema ecológico. A questão ecológica
impacta na sociedade humana uma situação sem precedentes.

Eventualmente, à medida que os efeitos da crise ecológica,


intensificam-se, os desequilíbrios de poder entre nações em
desenvolvimento provavelmente não serão suficientes para
proteger si quer os cidadãos mais ricos dos conflitos sociais
vividos agora pelos países em desenvolvimento (HUTCHISON,
2000, p. 23).

A crise existe e atinge toda civilização provocando desastres


ecológicos inimagináveis à condição humana. Assim, há o desejo de
entender a ecologia como mudança humana e histórica. O discurso
ecológico parte desse pressuposto contextual. Essa é sua condição de
produção. A agressão ao corpo humano, ao psicológico, às neuroses
urbanas, agressão ao sistema da terra ao desequilíbrio ambiental. Esse
discurso apresenta-se numa perspectiva globalizante. Num primeiro
momento, voltado para preservação de espécies ameaçadas de extinção,
fim das poluições objetivas e destruição das florestas. Depois se discute
a questão social e o atual sistema de produção-consumo do capitalismo
de mercado que privilegia uns e desabona a maioria.
Deve-se ter pensamentos e ações que construa a paz, acabando
com os conflitos, estabelecendo novos paradigmas para construção da
justiça e da equidade.

A necessidade de recuperar um sentido de conexão com o


mundo natural e do homem com a comunidade da Terra como
308 Moises dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos

um todo surge como uma tarefa cultural essencial para que


possamos responder efetivamente ao desafio ecológico. Tal
recuperação precisará ser multifacetada, envolvendo pessoas
de todas as idades e profissões, e de todas as instituições sociais
(HUTCHISON, 2000, p. 136).

Propõem-se a construção uma nova cultura onde valores como


ternura, fraternidade se faça presente na dia-a-dia como forma basilar
de comportamento das pessoas, como ética. A responsabilidade dos
enunciados jornalísticos se encontra na elaboração de mensagens e
dinâmicas que fundamentem melhores ações para uma nova realidade
ecológica.
Para Bakhtin (2003, p. 379), o enunciado como produto final
se relaciona numa mescla construtiva entre agentes discursivos que
interagem, completando-se, formando o discurso: “Eu vivo em um
mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação
nesse mundo; é a reação à palavra do outro (uma reação infinitamente
diversificada), a começar pela assimilação delas [...]”. O jornalismo
é porta-voz do seu contexto, assimilando, rejeitando, redistribuindo
discursos com a realidade onde todos se envolvem.
Portanto, o discurso jornalístico pode nutrir-se do discurso
ecológico na sua formação. Daí o jornalismo assumiria uma vocação
esclarecedora, educadora e formadora. Desse modo, é preciso que se
compreenda a ecologia para ser elaborada e divulgada segundo um
discurso ecológico contundente e esclarecedor.

O discurso ecológico se estrutura ao redor da teia de relações,


interdependências e inclusões que sustentam e perfazem nosso
universo. Junto com a unidade (um só cosmos, um só planeta
Terra, uma só espécie humana, etc.) vigora também a diversidade
(conglomerados galácticos, sistemas solares, biodiversidade e
multiplicidade de raças, culturas e indivíduos) (BOFF, 2004, p.
211-212).

Há, aqui, ainda, a concepção da realidade do discurso jornalístico


que é composto de inúmeros enunciados que dialogam entre si através
O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais ... 309

do polissêmico da fala da fonte (emissor), do jornalista (interlocutor) e


do ouvinte/leitor/telespectador (receptor).
O discurso ecológico é fonte para o jornalismo ao fornecer a
concepção de uma ecologia mental que nasce do autoconhecimento,
desenvolvendo ações emocionais mais positivas num processo de
interação intrapessoal e interpessoal. Faz-se mister a integração humana
da saúde corporal e espiritual. “A singularidade do discurso ecológico
não está no estudo de um ou de outro pólo, tomados em si mesmos.
Mas na interação e na inter-relação entre eles” (BOFF, 2004, p. 16).
Disso, busca-se o cultivo da paz e transmiti-la num nível coletivo. A
ecologia social amplia-se na busca por uma sociedade igualitária, justa
e equilibrada. Desperta-se valores de respeito pelo trabalho, pelo bem-
estar material e cultural das pessoas.
O jornalismo apreende da ecologia a possibilidade numa economia
auto-sustentável, com equidade, e estruturas de poder mais democráticas,
para gerar dignidade, justiça e paz. O jornalismo ao assumir o discurso
ecológico pode enriquecer-se para influenciar e convencer para uma
nova mentalidade, uma ecologia cósmica. “Este saber se plasma num
discurso teórico, ideológico e técnico, e circula dentro de diferentes
esferas institucionais e ordens de legitimação social” (LEFF, 2002, p.
144). Desse modo, a justiça e a paz social se desdobram numa relação
de integração ambiental, saúde mente-corpo, dignidade e harmonia
comunitária, cuidado e o respeito pela natureza e os outros seres que
formam a vida.

Conclusão

Portanto, o discurso ecológico nasce no desafio de novas atitudes


mentais, sociais e ambientais e desdobra-se na prática jornalística,
elaborada para divulgar nos meios de comunicação uma nova
mentalidade ecológica. Fazendo com que se entenda os impactos da
degradação ambiental à saúde, ao trabalho, às condições de vida, ao lar,
ao lazer, à escola e à comunidade como um todo, pois o jornalismo é
310 Moises dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos

uma práxis a ser exercida em casa, na rua, no bairro, no trabalho e no


cotidiano como a ecologia em seus três níveis.
A interdiscursividade compreende ações e elucidações
comunicativas que levem o sujeito a ser ator do seu contexto. E o desafio
da linguagem, enquanto processo comunicativo é expressar rompimento,
quebra de paradigma, morte e por isso mesmo renascimento, esperanças,
transformações.
Cabe ao discurso ecológico em sua força nascente, em seu poder
natalício, impregnar-se em todos os âmbitos humanos, potencializando
o desejo de superar a crise cultural que passa a estabelecer novos
valores inter-relacionados, cujo cerne é a integralidade humana e o meio
ambiente complexo chamado comunidade da Terra (BOFF, 2004).
Como é de se esperar, esse processo é paulatino, mas iminente,
diria urgente, por isso necessário ser canalizado pelos meios de
comunicação, no discurso educacional e institucional, inserido no
jornalismo como fonte principal de todo enunciado.
O discurso jornalístico como transmissor de informação e um
espaço privilegiado de desenvolvimento mental, pode e deve assumir
a missão de popularizar, apresentar e introduzir o desejo da ecologia:
integrar todos seres vivos, renovar o desejo de pertença ao imenso
nicho ecológico, organismo vivo que engloba a humanidade complexa,
fascinante e evolutiva.

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ZAMBONI, Lilian Márcia Simões. Cientistas, jornalistas e a


divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da
divulgação científica. Campinas: FAPESP/Editora Autores Associados,
2001.

Recebido em: agosto de 2008


Aprovado em: abril de 2009
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

Título da revista: Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas

Informações gerais: É uma edição semestral destinada à publicação


de trabalhos originais nas áreas de Ciências Sociais Aplicadas, sob a
responsabilidade do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas –
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais Aplicadas (Nepaad),
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e conta com a
contribuição de docentes e pesquisadores que desenvolvam estudos em
Administração, Ciências Contábeis, Direito, Economia, Comunicação
Social e áreas afins.

Envio dos trabalhos: Serão publicados nos Cadernos de Ciências


Sociais Aplicadas trabalhos inéditos em português, na íntegra,
preferencialmente apresentados sob a forma de artigos e ensaios, podendo,
ainda, ser contemplados resenhas, comentários e opiniões com enfoque
temático nas áreas já mencionadas. Somente serão publicados os trabalhos
que obtiverem parecer favorável emitido pelo Conselho Editorial da
Revista. Na cópia encaminhada para análise e parecer, serão omitidos os
dados relativos à identidade do(s) autor(es) e de sua(s) instituição(ões). A
coordenação editorial do periódico se encarregará de informar aos autores
sobre a aceitação ou não de seus artigos para publicação. Os trabalhos
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esquerda da página (não devem ser numerados);
5. Figuras e fotos devem vir no corpo do texto, em local desejado
pelo autor;
6.Gráficos devem vir no final do trabalho, de maneira legível e
com indicações por extenso;
7. A margem deve conter 3,0 cm de borda superior, 2,5 cm de
borda inferior, 3,0 cm de borda à esquerda e 2,5 cm de borda à direita,
em papel tamanho A4;
8. A fonte do corpo do texto deverá ser Times New Roman,
tamanho 12, com espaçamento de 1,5 cm entre as linhas;
9. Os trabalhos não deverão ultrapassar 15 (quinze) páginas,
incluindo-se as referências bibliográficas para artigos e, para as demais
seções, até 06 (seis) páginas;
10. O trabalho deve ser digitado segundo as normais atuais da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Condições Contratuais: Os autores dos trabalhos publicados nos


Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas deverão abdicar dos
direitos autorais sobre o texto selecionado para publicação, em favor
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e receberão doação
de 3 (três) exemplares do número do Caderno em que seu texto estiver
incluído.
Equipe TéCNICA

Coordenação editorial e normalização Técnica


Jacinto Braz David Filho

Capa
Marcelo Costa Lopes
Reformulação: Luiz Evandro de Souza Ribeiro
DRT-BA 2535

Editoração eletrônica
Ana Cristina Novais Menezes
DRT-BA 1613

Revisão de linguagem (Textos em Português)


Luciana Moreira Pires Flôres (Revisora - Edições Uesb)
- A possibilidade da pessoa casada constituir união estável
- Um olhar sobre a reforma do estado brasileiro nos anos de 1990
- Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte-CE: uma discussão a
partir da qualidade de vida dos residentes
- As inovações tecnológicas geradas para a ovinocaprinocultura e o contexto econômico
camponês dessa atividade no nordeste brasileiro
- A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da
comunicação
Maria Dalva Rosa Silva (Revisora - Edições Uesb)

- O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade de um sistema


processual único e multifuncional
- Criminalística: origens, evolução e descaminhos
- Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo
com empresários de Vitória da Conquista – Bahia
- O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista e seus
limites e desafios a uma proposta de economia solidária
- Metodologia do ensino superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis
- Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica

OBS.: Os demais artigos que não constam dessa relação, a revisão de linguagem
é de responsabilidade dos próprios autores.

Impresso na Empresa Gráfica da Bahia


Na tipologia Garamond 11/15/papel offset 90g/m²
Em: agosto/2009

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