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A Constituição de 1988 e a

ressignificação dos quilombos


contemporâneos
Limites e potencialidades

Carlos Eduardo Marques


Lílian Gomes

Introdução No Brasil, a garantia desse direito é fruto, a


partir da década de 1970, da sinergia entre os mo-
O reconhecimento do direito ao território no vimentos sociais negros, as lutas localizadas das co-
qual as comunidades1 negras desenvolvem seus mo- munidades negras rurais – já bastante significativas
dos de fazer e viver tem sido garantido em diversas neste momento no Pará e Maranhão – e mudanças
Constituições na América Latina. Alguns dos países político-insitucionais e administrativas inaugura-
latino-americanos que têm constituições reconhe- das sobretudo com a Constituição de 1988. Esta
cendo o direito afro-descendente são: Brasil (qui- garantiu o direito à propriedade para essas popu-
lombos), Colômbia (cimarrones), Equador (afro- lações através do artigo 68 do Ato das Disposições
-equatorianos), Honduras (garifunda) e Nicarágua Constitucionais Transitórias (ADCT) que afirma:
(creoles). “Em todos esses países as mobilizações “Aos remanescentes das comunidades dos quilom-
negras têm contribuído para o estabelecimento de bos que estejam ocupando suas terras é reconhe-
ganhos constitucionais” (Thorne, 2004, p. 312). cida a propriedade definitiva, devendo o Estado
Esse direito esta ligado à tripla dimensão de justiça emitir-lhes os títulos respectivos”. Posteriormente,
social que mobiliza o reconhecimento de identida- o decreto presidencial 4.887/2003 regulamenta o
des e de direitos, à redistribuição material e simbó- procedimento para “Identificação, Reconhecimen-
lica e à representação política (Fraser, 2007). to, Delimitação, Demarcação e Titulação das ter-
Artigo recebido em 10/05/2011 ras ocupadas por remanescentes das comunidades
Aprovado em 28/11/2012 de quilombos”.
RBCS Vol. 28 n° 81 fevereiro/2013

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O artigo 68 abrange ainda uma ampliação do O presente artigo tem como objetivo compreen­
rol de atuação do Estado em relação aos direitos der5 a importância da tematização dos direitos das
desses grupos,2 que até então estiveram destituídos comunidades negras rurais na esfera pública, reco-
de garantias constitucionais positivas, uma vez que nhecidas pelo aparato legal como quilombolas ou re-
foram objetos do direito repressivo durante as fases manescente de quilombo. Na primeira seção indica-
colonial e imperial. Esta atuação contribuiu para remos com que concepção de esfera pública estamos
a ampliação da capacidade do Estado no proces- operando e a importância de pensar o tema do direi-
so de minimização dos padrões de desigualdades to dessas comunidades na tripla dimensão de justiça
sociorraciais. A questão do direito de grupos qui- social, quais sejam, reconhecimento de identidades
lombolas à sua territorialidade permaneceu não te- e de direitos, redistribuição material e simbólica e
matizado no espaço público geral desde a abolição representação política. Na segunda seção trataremos
da escravidão (1888) até a Constituição Federal de de modo mais específico da questão da identidade
1988.3 Isso levou a um déficit no reconhecimento quilombola e como pensá-la a partir do artigo 68 do
dos direitos e a uma demanda acumulada para a ADCT da Constituição Federal de 1988. Na terceira
efetivação dos direitos à territorialidade dos qui- parte trataremos de três casos empíricos e, por fim,
lombolas. Apenas para exemplificar, até junho de passaremos às considerações finais.
2008, a Fundação Cultural Palmares (FCP) cer-
tificou 1209 grupos quilombolas. No entanto, as
titulações dos territórios, que segue um processo A tripla dimensão da justiça social
com várias etapas,3 estão aquém desses números
certificados que são os seguintes: o Pará tem 35 ti- O tema do espaço público e sua relação com
tulações, seguido por Maranhão (20), São Paulo os desafios da democratização das relações sociais é
(6), Bahia (2), Piauí (2), Rio de Janeiro (1) e Mato estudado sobre diferentes perspectivas.6 Avritzer in-
Grosso do Sul (1).4 Minas Gerais tem também dica que este, provavelmente, seja o conceito mais
uma titulação, Porto Coris. importante elaborado pela segunda geração da Es-
As dificuldades em torno do reconhecimen- cola de Frankfurt (1999, p. 177). O tema do espa-
to dos direitos à territorialidade desses grupos no ço público está intimamente ligado “ao processo de
Brasil estão intimamente ligadas a uma concepção reconstrução da teoria crítica na segunda metade
de cidadania apenas como uma instituição política do século XX”, o qual permitiu que se processas-
formal, que predominou desde a proclamação da se uma mudança dentro desta teoria permitindo o
República (1889). Holston afirma que no Brasil o estabelecimento de uma nova relação entre teoria
que se estabeleceu foram os termos de uma cida- crítica e teoria democrática (Avritzer e Costa, 2004,
dania diferenciada. As diferenças sociais existentes p. 705). Isto foi possível através do esforço desem-
entre os membros de um Estado-nação são defini- penhado por Habermas na reinterpretação do sig-
das pela propriedade, ocupação e acesso à educação nificado e do impacto de diversos fenômenos da
formal, mas em nossa perspectiva elas se cruzam sociedade moderna (Avritzer, 1999, p. 180). Desse
com o viés da raça e gênero, que se perpetuaram modo, com a introdução do paradigma da lingua-
como forma para distribuir diferentes tratamentos gem, Habermas desenvolve uma teorização de es-
para diferentes categorias de cidadãos. Isso levou a paço público que é ponto de partida para qualquer
uma gradação de direitos, sendo que alguns se tor- análise sobre tal temática (Habermas, 1984, 1987).
naram privilégio para uma categoria particular de É inegável o papel que a teorização habermasiana
indivíduos, que passaram a utilizar inclusive a lei cumpriu para a possibilidade de complexização
como modo de ganhar benefícios pessoais. Como desse debate. Isto porque este autor, na década de
resultado, os brasileiros receberam desigual distri- 1960, traz luz às possibilidades de se pensar as re-
buição de cidadania por séculos, passando pelos lações entre Estado e sociedade para além do diag-
regimes colonial, imperial e republicano (Holston, nóstico weberiano e dos limites impostos pela bu-
2008, p. 112). rocratização.7 A obra de Habermas, Teoria da ação

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comunicativa, apresenta elementos contundentes contexto de lutas contra injustiças em cada época,
que ajudam a pensar a influência da sociedade so- e isso envolveria a criação de outro vocabulário
bre o Estado a partir de uma concepção teórico- que permitisse a introdução de inovações linguís-
-discursiva da democracia. Avritzer indica que: ticas que tratam de formas de injustiça antes não
nomea­das. Esses novos sujeitos políticos criam, em
[…] para o autor da Teoria da Ação Comuni- determinados tempos históricos, seus próprios vo-
cativa, a modernidade não precisa, necessaria- cabulários contra públicos subalternos, ampliando,
mente, ser identificada com a inevitabilidade assim, as formas de interpretação de injustiça e de-
dos processos de burocratização. Para Haber- finindo situações que inicialmente não têm eco no
mas, a burocratização significa a penetração da espaço público dominante (Fraser, 2007, p. 327).
forma administrativa do Estado moderno nas A autora indica que um ponto positivo dos pú-
arenas sociais regidas pela ação comunicativa blicos fracos ou alternativos é o fato de que eles são
[…]. É no ponto de encontro entre as estru- autônomos em relação ao Estado, podendo, assim,
turas interativas e os subsistemas que se daria constituírem-se em arenas de formação de opinião
o enfrentamento central da modernidade, en- com possibilidades de questionamento crítico do
frentamento esse decisivo para se determinar a Estado. A autora argumenta ainda para a necessi-
capacidade de sobrevivência de formas de co- dade de se estabelecer uma forte conexão entre os
municação e de interação que deram origem públicos fortes e os públicos fracos. Ela diz ser ne-
aos principais movimentos sociais da moderni- cessário pensar numa concepção pós-burguesa de
dade. Seu resultado não foi o desaparecimento espaço público que ultrapasse a simples formação
das formas interativas, mas o surgimento de de uma opinião autônoma desligada dos processos
uma esfera de autonomia social identificada oficiais na tomada de decisão. Tal concepção per-
com o processo de produção da democracia mitiria refletir sobre os públicos fortes e os fracos
(1996, p. 18). a partir de várias formas híbridas, alargando a ca-
pacidade de se pensar as possibilidades e os limites
A importância da teorização habermasiana é da democracia realmente existente (Fraser, 1992,
que ela limpa o terreno e demonstra que a socie- p. 136). Esse é o ponto a reter aqui para apresen-
dade também pode exercer influência sobre a polí- tarmos a ideia de esfera pública com a qual pre-
tica. Posteriormente, o autor recebe críticas (Zaret, tendemos operar. Isso porque com esta ideia de
1992; Bohman, 1996) entre as quais nos interessa hibridação Fraser aponta para uma possibilidade
de modo específico aquelas formuladas por Nancy de superação do caráter, embora útil num primeiro
Fraser, que está preocupada com novas questões momento, mas por demais sistêmicos na análise de
que surgem no espaço público. Fraser (1988) de- Habermas. Ou seja, tomando a realidade do Brasil
senvolve uma leitura crítica da obra de Habermas e de modo mais específico a da questão quilombo-
tendo como foco determinadas interrogações com la, percebe-se que existem diferentes públicos en-
base na perspectiva feminista. Interessa aqui indicar volvidos com características próprias, e a ideia de
que Fraser aponta para elementos que possibilitam hibridação acaba por ser extremamente útil para a
ampliar muitas das questões já tematizadas em Ha- categorização de tais públicos.
bermas, isso porque essa autora se centra nas exclu- O segundo aspecto fundamental, caro para o
sões, nos atores sociais, temas e demandas que não trato com a temática quilombola, é a imbricação
alcançaram o âmbito da tomada de decisão. dos diversos elementos do reconhecimento de iden-
Dois aspectos devem ser mencionados da críti- tidades, e de direitos, de redistribuição material e
ca de Fraser a Habermas. O primeiro que interessa simbólica e da representação política, os quais não
ressaltar é que Fraser discute a importância de se podem ser confinados a determinadas categorias
pensar não apenas o que se passa nos públicos for- que estabeleçam separações estanques. No texto
tes, dominantes (lócus da tomada de decisão), mas “What’s critical about critical theory?”, considera
também nos públicos fracos, que surgem dentro do inadequado, por exemplo, o modo como a teoria

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habermasiana opera através de uma análise que se identidade étnica de cada um dos grupos forma-
estrutura em separar “sistema” e “mundo da vida”. dores da nacionalidade, em seu sentido mais am-
A autora afirma que Habermas acaba por omitir e plo” (2007, p. 109). Assim, quando mencionamos
naturalizar formas de interpretação que separam as que o direito quilombola mobiliza a redistribuição
atividades entre aquelas ligadas à reprodução simbó- material e simbólica, estamos concebendo que o
lica – que de modo geral dizem respeito ao âmbito direito ao território quilombola mobiliza também
doméstico, não são remuneradas e tradicionalmente a ideia de “patrimônio cultural” que está relacio-
desempenhadas por mulheres – e aquelas vinculadas nada com elementos da cultura material e imate-
à reprodução material – que concernem ao mundo rial, não sendo possível, portanto, reduzir a ideia de
do trabalho, são remuneradas e desempenhadas na reconhecimento dessa identidade e desses direitos
maioria das vezes por homens. Ela sustenta que es- a apenas uma dessas dimensões.8 Por este motivo
sas interpretações são potencialmente ideológicas e é necessário articular uma concepção de espaço
inadequadas (Idem, p. 33). Portanto, para Fraser, a público que permita pensar a imbricação entre os
noção de espaço público deve expandir a capacida- elementos do reconhecimento de identidades e de
de de enxergar as possibilidades da democracia além direitos, de redistribuição material e simbólica e de
dos limites da democracia atualmente existente representação política, os quais não podem ser con-
(1992, p. 136). Sua preocupação nos parece muito finados a determinadas categorias que estabeleçam
relevante, pois no caso do direito das comunidades separações estanques entre esses diversos elementos,
negras estão imbricados fatores ligados ao modo de o que permite enxergar as possibilidades além dos
produção ou de relação com o ecossistema e as espe- limites da democracia atualmente existente (Fraser,
cificidades quanto à territorialidade em que vivem; 1992, p. 136).
especificidades tão bem expressas pelos artigos 215 e Por todas essas questões é que ganha relevân-
216 que reforçam o direito das comunidades negras cia o debate sobre a capacidade de representação
que já constava no artigo 68: política adquirida por tais grupos, o que plurali-
zou as formas de entrada de temas e demandas na
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno arena política (Young, 2002; Castelo, Houtzager e
exercício dos direitos culturais e acesso às fon- Lavalle, 2006). O tema da representação política –
tes da cultura nacional, e apoiará e incentivará eleitoral ou não – leva à necessidade de análise das
a valorização e a difusão de manifestações cul- várias formas de representação (Pitkin, 1985). A
turais. […] Art. 216. Constituem patrimônio representação política que interessa investigar nes-
cultural brasileiro os bens de natureza material te estudo está ligada à “representação de temas e
e imaterial, tomados individualmente ou em experiências” (Avritzer, 2007, p. 448), e acrescen-
conjunto, portadores de referência à identidade, taríamos de demandas9 no espaço público. Essa
à ação, à memória dos diferentes grupos for- seria uma forma de representação em que deter-
madores da sociedade brasileira, nos quais se minadas associações, federações, articulações ou
incluem: I – as formas de expressão; II – os mo- coordenações apresentam as questões de grupos
dos de criar, fazer e viver (Constituição Federal, definidos e se sentem legitimados para propor
1988, grifos nossos). tais demandas pela afinidade com os outros pares
ligados­àquela questão, assim, “a legitimação se dá
Rios, reforçando esta concepção, indica que a pela relação com o tema” (Avritzer, 2007, p. 448).
Constituição de 1988 ao conceituar os bens cultu- Desse modo, estamos compreendendo represen-
rais se afasta de uma referência exclusiva aos mo- tação política não eleitoral como espaço em que
numentos e à grandiosidade da aparência externa grupos podem apresentar suas demandas, temas e
das coisas imóveis, pois passa a considerar “outras experiências no espaço público – sejam os “fortes”,
situações e contextos que ainda estão acontecen- sejam os “fracos”, dependendo de sua força políti-
do, dentro de uma visão de cultura como processo ca – e que tem importância pela possibilidade de
contínuo e dinâmico, como a representatividade e questionar e/ou desestruturar hierarquias que ins-

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titucionalizam determinados formatos de partici- do direito à territorialidade quilombola. Lima, com


pação e que levam atores sociais a sofrerem uma base em dois relatórios antropológicos,12 descreve
exclusão estrutural (Fraser, 2007, p. 315). Assim, o regime consuetudinário de propriedade da terra:
o tema do “direito das comunidades negras à sua
territorialidade” entrou na cena política nacional10 As terras de quilombos pertencem a um regime
através do artigo 68 do ADCT. consuetudinário de propriedade da terra pra-
ticado por populações rurais brasileiras, mas
não plenamente contemplado pela legislação.
Ressignificando direitos Trata-se do regime das terras tradicionalmente
ocupadas […]. A noção de tradição tem aqui
A categoria de “remanescentes de comunida- o sentido literal de entrega, transmissão (do la-
des de quilombos” confunde-se no senso comum tim: traditio, tradere) […]. A transmissão da
com a definição histórica e passadista de Quilom- terra entre as gerações, como a de outras heran-
bo, tão bem definida por Almeida (2002) como ças recebidas de ancestrais e legadas a descen-
frigorificada e, por isso mesmo, uma concepção a dentes, segue um modelo de herança instituído
ser superada. Conforme Marques (2009, p. 340), localmente. O mais comum é a herança cogná-
a ideia de quilombo11 percorre há longo tempo tica, transmitida pelas duas linhagens de ascen-
o imaginário da nação e é uma questão relevante dentes, a paterna e a materna. Nesse regime de
desde o Brasil Colônia, passando pelo Império e ocupação da terra, os herdeiros recebem par-
chegando à República. Tratar do tema quilombos celas do pai e da mãe, configurando linhagens
e quilombolas, ainda na atualidade, pressupõe não de transmissão por onde se sucedem as parcelas
só incidir sobre uma luta política, mas também so- de terra e as gerações de pessoas. A imbricação
bre uma reflexão científica em processo de cons- entre parentes e o território é evidente, ainda
trução (Leite, 2003). mais sendo a terra a fonte de sobrevivência di-
Para que se desenvolva uma análise mais ade- reta dessas populações rurais (Lima, 2008, s/p).
quada do termo é necessário trabalhar com a ca-
tegoria já em seu significado ressemantizado, pois A noção de propriedade privada, individual,
(1) permite aos grupos que se autoidentificam foi desenvolvida pela civilização ocidental na era
como “remanescentes de quilombo” ou quilombola moderna, mas não extinguiu por completo outros
uma efetiva participação na vida política e pública, regimes de propriedade. Lima reporta tal constata-
como sujeitos de direito; e (2) se afirma com isso ção a autores como Maine, Weiner, Simmel, Mauss
a diversidade histórica e a especificidade de cada e Godelier, ao que podemos acrescentar Marx e En-
grupo. A ressemantização do termo percorreu um gels. Em nota de rodapé da segunda edição inglesa
longo caminho temporal e discursivo. A seguir, de do Manifesto do Partido Comunista (1888), Engels
forma resumida, explicaremos esse processo. descreve como é recente o surgimento da proprie-
O que significa os chamados remanescentes de dade privada:13
quilombo, ou quilombolas? Trata-se de um fenô-
meno sociológico que, segundo Almeida (2002), se A pré-história, a história da organização so-
caracteriza por: (1) identidade e território indisso- cial que precedeu toda a história escrita, era,
ciáveis; (2) processos sociais e políticos específicos ainda, em 1847, quase desconhecida. Depois,
que permitiram aos grupos uma autonomia; e (3) Haxthausen descobriu na Rússia a proprieda-
territorialidade específica, cortada pelo vetor étnico de comum da terra, Maurer demonstrou que
no qual grupos sociais específicos buscam ser reco- esta constituía a base social de onde derivavam
nhecidos. Portanto, corresponde uma afirmação a historicamente todas as tribos teutônicas e ve-
um só tempo étnica e política. rificou-se, pouco a pouco, que a comunidade
O debate sobre a concepção da propriedade rural com posse coletiva da terra era a forma
fundiária é central quando pensamos na questão primitiva da sociedade desde as Índias até a Ir-

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landa. Finalmente, a organização interna desta zados, movimentos sociais e acadêmicos), buscam
sociedade comunista primitiva foi desvendada assegurar seus direitos constitucionais. Ocorre que,
em sua forma típica pela descoberta decisiva para tanto, os agentes quilombolas e seus parceiros
de Morgan, que revelou a natureza verdadei- precisam “viabilizar o reconhecimento de suas for-
ra da gens e seu lugar na tribo. Com a disso- mas próprias de apropriação dos recursos naturais e
lução dessas comunidades primitivas, começa de sua territorialidade” (Idem, p. 12). Ou seja, pre-
a divisão da sociedade em classes diferentes e cisam se impor como um coletivo étnico, e, para
finalmente antagônicas. Procurei analisar este isso, não mais importa o arcabouço “jurídico-for-
processo na obra Der Ursprung der Familie, des mal historicamente cristalizado” a despeito dos qui-
Privateigentums Und des Staats [A origem da lombos, que existira na estrutura jurídica colonial
família, da propriedade privada e do Estado, e imperial (sempre com características restritivas e
2. ed. Stuttgart, 1886). (Nota de F. Engels à punitivas) e se encontrava ausente do campo jurídi-
edição inglesa de 1888.) co republicano até a promulgação da Constituição
de 1988. Importa aqui o direito adquirido no art.
Os grupos quilombolas não precisam apresen- 68 do ADCT.
tar (e muitas vezes não apresentam) nenhuma rela- O conceito anteriormente utilizado pela Fun-
ção com o que a historiografia convencional trata dação Cultural Palmares (FCP),14 até aproximada-
como quilombos. Os remanescentes de quilombos mente meados dos anos de 1990, que compreendia
são grupos sociais que se mobilizam ou são mobili- o quilombo por qualidades culturais substantivas e
zados por organizações sociais, políticas, religiosas, por sua história de lutas pretéritas, bem como uni-
sindicais etc. em torno do autorreconhecimento dade guerreira e autossuficiente, não mais satisfazia
como um grupo específico e, consequentemente, aos anseios criados pelo dispositivo constitucional.
busca-se a manutenção ou a reconquista da pos- Com a redefinição do termo quilombo, a nova se-
se definitiva de sua territorialidade. Eles podem matologia retira o acento da atribuição formal e das
apresentar todas ou algumas das seguintes caracte- pré-concepções e passa a considerar a categoria re-
rísticas: definição de um etnônimo, rituais ou re- manescentes de quilombo como um autorreconheci-
ligiosidades compartilhadas, origem ou ancestrais mento por parte dos atores sociais envolvidos. Nas
em comum, vínculo territorial longo, relações de palavras de Almeida:
parentesco generalizado, laços de simpatia, relações
com a escravidão e, principalmente, uma ligação Aqui começa o exercício de redefinir a semato-
umbilical com seu território. logia, de repor o significado, frigorificado no
Em outras palavras, a ideia de quilombo se senso comum. O estigma do pensamento jurí-
constitui em um campo conceitual com uma longa dico (desordem, indisciplina no trabalho, au-
história. No entanto, a definição histórica deve ser toconsumo, cultura marginal, periférica) tem
colocada “em dúvida e classificada como arbitrário que ser reinterpretado e assimilado pela mobi-
para que possa alcançar as novas dimensões do sig- lização política para ser positivado. A reivindi-
nificado atual de Quilombo” (Almeida, 1996, p. cação pública do estigma “somos quilombolas”
11). Atente-se para o fato de seu significado atual­ funciona como alavanca para institucionalizar
ser fruto das “redefinições de seus instrumentos o grupo produzido pelos efeitos de uma legis-
interpretativos”. O quilombo ressemantizado é um lação colonialista e escravocrata. A identidade
rompimento com as ideias passadistas (frigorifica- se fundamenta ai. No inverso, no que desdiz
das) e com a definição “jurídico-formal historica- o que foi assentado em bases violentas. Nes-
mente cristalizada”, tendo como ponto de partida te sentido, pode-se dizer que: o art.68 resulta
situações sociais e seus agentes que, por intermédio por abolir realmente o estigma (e não magica-
de instrumentos político-organizativos (tais como mente); trata-se de uma inversão simbólica dos
as próprias comunidades quilombolas, associações sinais que conduz a uma redefinição do signi-
quilombolas, Ongs, movimentos negros organi- ficado, a uma reconceituação, que tem como

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ponto de partida a autodefinição e as práticas consideradas pelos próprios atores as mais significa-
dos próprios interessados ou daqueles que po- tivas e de maior relevância.
tencialmente podem ser contemplados pela A Associação Brasileira de Antropologia
aplicação da lei reparadora de danos históricos (ABA), por sua vez, define identidade coletiva pela
(Idem, p. 17). “referência histórica comum, construída a partir de
vivências e valores partilhados”. Trata-se, portanto,
O atual conceito de quilombo difere funda- de uma identidade em termos étnicos, de uma exis-
mentalmente do que representava no transcorrer tência coletiva em consolidação, que se fundamenta
do regime escravocrata, e mesmo quase um século em uma autoconsciência identitária, cujas deman-
após a abolição da escravidão. O que antes era uma das por direitos se revelam por meio da organização
categoria vinculada à criminalidade, à marginalida- social e política, que tem no território uma de suas
de e ao banditismo é hoje considerado, de acordo formas mais expressivas de afirmação.
com a perspectiva antropológica mais recente, en- Como vimos, a definição de quilombo perdu-
tre outros elementos, como um ente vivo e dinâmi- rou por mais de dois séculos e só começou a ser
co, “um lócus de produção simbólica” (Marques, modificada mediante movimentos organizados pe-
2008) sujeito a mudanças culturais. Está também los próprios quilombolas e seus apoiadores e par-
associado a um poderoso instrumento político-or- ceiros. A partir da Constituição de 1988, termo
ganizacional e ao acesso a políticas públicas. Nesse quilombo passou a representar, juridicamente, uma
sentido, é vital a combinação entre a definição de nova concepção. Com efeito, o ingresso dessa cate-
Weber para comunidades étnicas e a de Barth para goria na nova constituinte não foi um presente, ao
grupos étnicos. contrário, foi fruto de uma árdua conquista, o que
Em consonância com Weber (2004), a etnici- reflete a crescente apropriação dos instrumentos
dade é um instrumento político-organizacional, e político-organizativos pelos sujeitos do direito, no
o caráter político da ação comunitária é uma das caso, os quilombolas.
características mais elementares de uma comunida- Portanto, trata-se de uma categoria não essen-
de. Ele afirma que a ideia de étnico pode ser con- cial. A essencialização, frigorificação ou objetificação
formada por vários fatores, como visão de mundo, é redução fenomenológica inaceitável, pois neste
língua própria, religião, lugar de origem, relações caso perde-se a sua principal característica – a viva-
de consangüinidade. No entanto, a motriz que en- cidade, um bem em movimento constante, dinâmi-
volve a noção de etnicidade é a unidade de ação, ou co e vivo, o que ele é – e o transforma em objeto de
melhor, uma união em termos de vontade política. desejo insaciável, a ser rememorado a partir de uma
Barth (1998) entende os grupos étnicos, pri- definição externa a despeito de suas especificidades.
meiramente, como tipos de organização social. Na versão ressignificada o termo remanescentes de
Desse modo, a característica fundamental que os quilombo exprime um direito a ser reconhecido em
define é a autoatribuição. Consiste em um tipo de suas especificidades e não apenas um passado a ser
organização que confere pertencimento via afiliação rememorado. Ele é a voz da cidadania autônoma
e exclusão, em uma relação de fronteiras contrasti- dessas comunidades.
vas. Barth, ao enfatizar como princípio primordial Nos termos de Sahlins, o conceito pode ser
o fato de os grupos étnicos serem categorias de atri- entendido como “o que os antropólogos chamam
buição e identificação realizada pelos próprios ato- de ‘estrutura’”, ou seja, “as relações simbólicas de
res, afirma o caráter organizativo de interação entre ordem cultural”, e, portanto, “é um objeto histó-
as pessoas. Interação que, quando ocorre entre di- rico” (1990, pp. 7-8). A ressemantização funcional
ferentes grupos étnicos, não produz aculturação e retirou dessa categoria o estatuto de convenção
tampouco leva ao desaparecimento dos grupos e de prescritiva, para criar a noção de invenção perfor-
sua identidade cultural, pelo contrário, o contato mativa (passando do plano do ideal para o âmbito
interétnico produz na maioria das vezes uma afir- real, isto é, a aplicação de políticas públicas voltadas
mação dos contrastes e das características culturais para esses grupos). É justamente essa reprodução da

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estrutura, que implica em sua transformação, que construto que só atinge sua plenitude na interface
não é bem aceita pelo senso comum e por setores entre os múltiplos discursos: antropológico, polí-
do campo jurídico. tico, jurídico, dos quilombolas e dos movimentos
Invenção performativa é o diálogo entre as ca- envolvidos com a temática.
tegorias recebidas e os contextos percebidos, entre A Constituição de 1988 define o Estado bra-
o sentido cultural e a referência prática. Daí tomar- sileiro como multicultural e pluriétnico.15 Nesse
mos de empréstimo da obra de Sahlins (1990, p. contexto, a aplicação das normas passa a ser acom-
190) a explosão do conceito de história pelo con- panhada por uma pluralidade jurídica: hermenêu-
ceito de antropologia, e este pelo conceito de histó- tica e transdisciplinar. Duprat (2007, p. 16) aponta
ria. A estrutura de conjuntura é uma ação simbólica corretamente que para uma efetiva aplicação do
comunicativa e conceitual, uma prática antropoló- direito aos remanescentes quilombolas devem-se con-
gica total que, contrastando com qualquer redução siderar suas especificidades, pois, do contrário, em
fenomenológica, não pode omitir que a síntese vez de uma conquista constitucional haveria uma
exata do passado e do presente é relativa à ordem perpetuação do quadro de exclusão social e racial.
cultural, do modo como se manifesta em uma es- O texto constitucional pode ser considerado
trutura da conjuntura específica. ambíguo, permitindo várias leituras. De um ponto
Estrutura de conjuntura pode ser aplicado à de vista menos hermenêutico, entende-se que aos
categoria remanescentes de quilombo, que é fruto “sobreviventes” (os que remanesceram) é dado o
de uma história na qual tanto seu significado se- direito à propriedade definitiva. Essa interpretação
mântico como sua operacionalidade política são incorre em uma cilada para os coletivos étnicos qui-
igualmente importantes. Em forma esquemática lombolas, uma vez que todas as leis que vigoraram
apresentar-se-ia: no período colonial e imperial (vale lembrar que
esta categoria desaparece nas constituições republi-
Práxis teoria estrutura evento canas até a Constituição de 1988) se referiram à
categoria quilombo de forma negativa – uma cha-
Estabilidade Mudança ga, uma organização criminosa, algo que deveria ser
combatido. Portanto, se o texto desse dispositivo
for tomado de forma literal, não é possível nem
(estrutura de conjuntura) mesmo falar em remanescentes de quilombo. Como
Terceiro termo mediador afirma Almeida:

Admitir que era quilombola equivalia ao ris-


Permite superar os contrastes binários/possui um valor co de ser posto à margem. Daí as narrativas
para as determinações simbólicas e um valor para os
míticas: terras de herança, terras de santo,
poderes estabelecidos.
terras de índio, doações, concessões e aquisi-
Fonte: Marques (2009, pp. 351-352) ções de terras. Cada grupo tem sua estória e
construiu sua identidade a partir dela. Existe,
Cada esquema cultural particular cria as pos- pois, uma atualidade dos quilombos deslocada
sibilidades de referências materiais para as pessoas de seu campo de significação “original”, isto é,
e é constituído a parti de distinções de princípios da matriz colonial. Quilombo se mescla com
que, em relação aos objetos, jamais são unívocas. conflito direto, com confronto, com emergên-
Pensar a ressemantização como uma definição cia de identidade para quem enquanto escra-
pragmática das categorias e das transformações vo é “coisa” e não tem identidade, “não é”. O
entre elas significa perceber que o alcance lógico quilombo como possibilidade de ser, constitui
(a práxis) precede às transformações funcionais. numa forma mais que simbólica de negar o
Daí a reprodução da estrutura implicar sua pró- sistema escravocrata. É um ritual de passagem
pria modificação. Remanescentes de quilombos é um para a cidadania, para que se possa usufruir

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A Constituição de 1988 e a ressignificação dos quilombos… 145

das liberdades civis. Aqui começa o exercício e denomina a expressão quilombo no § 5° do art.
de redefinir a sematologia, de repor o signifi- 216, seção II, capítulo III, título VIII, que trata da
cado, frigorificado no senso comum (Almeida, cultura em suas formas permanentes –, por outro
1996, p. 17). A partir da definição constitu- lado, contudo, não seria suficiente no embate po-
cional, Arruti (2003) deduz que foi necessária lítico. Neste ponto, trata-se como se dá na prática:
uma renovação no plano do direito fundiário, aquilo que os antropólogos denominam estar lá e os
e também no plano do imaginário social, da juristas chamam de realidade jurídica com causas e
historiografia, dos estudos antropológicos e so- princípios verificáveis.
ciológicos sobre populações camponesas com Segundo Arruti (2006, pp. 66-70), a separa-
características étnicas. Acreditamos que isto ção entre o art. 68 do ADCT e os arts. 215 e 216
vale também para populações urbanas com es- do corpo permanente da Constituição ocorreram
sas mesmas características. por razões políticas. Por pressão de parlamentares
conservadores, a parte referente ao tombamento dos
Da forma como foi redigido, o art. 68 cria documentos relativos à história dos quilombos ficou
não só um direito (propriedade definitiva das ter- no corpo permanente da Constituição (no capítulo
ras ocupadas), mas também a categoria política e relativo à cultura), mas a parte relativa à questão
sociológica detentora deste direito (remanescente de fundiária foi “exilada” no corpo transitório. Para
quilombos). O problema aqui é político-semânti- um mesmo sujeito jurídico, tratamentos diferentes.
co: os grupos étnicos beneficiados pela legislação Tal fato, seguindo o autor, pode ser interpretado
existiam anteriormente a ela, no entanto não se pelo menos de duas maneiras. Por um lado, como
utilizavam dessa denominação legal, pois tal fi- reação de parlamentares conservadores a um futuro
gura jurídica não existia. É possível se considerar uso dos direitos relativos à questão fundiária. Isso
remanescente de algo que durante todo o período é reforçado pela constatação de que, nos anos de
colonial e imperial sempre foi considerado uma 1980, grupos camponeses do Pará e, posteriormen-
atividade criminosa e que desapareceu do léxico te, do Maranhão se organizavam em mobilizações
constitucional por cem anos no período republi- em torno da terra; foram, portanto, as bancadas
cano? O que viria a ser então um remanescente de desses estados as mais resistentes ao art. 68, como
quilombo?16 Que categori a era esta? Percebe-se na que antevendo as possíveis consequências desta lei
redação do artigo a insuficiência conceitual, práti- em termos de redistribuição fundiária. Por outro
ca, histórica e política do legislador, uma vez que lado, a evidência de que a questão do negro se con-
ele se manteve ligado a uma visão objetificadora e funde em nosso país com a questão cultural, o que,
passadista do conceito de quilombo. O dispositivo para os antropólogos, se constitui em um frutífero
não reconhece a questão quilom­bola em seu viés objeto de reflexão.
étnico, como resposta a uma situação de conflito e Destarte, ao combinar a aplicação do art. 68 do
confronto com outros grupos sociais, econômicos ADCT com os arts. 215 e 216 do corpo permanen-
e com agências governamentais. te, pode-se extrair algumas conclusões: (1) a Consti-
Aqui, precisamente, têm-se o exemplo de um tuição brasileira reconhece que a formação nacional
caso em que se torna necessário uma leitura her- é pluriétnica ou multiétnica; (2) é obrigação de Es-
menêutica e transdisciplinar da legislação. Por um tado proteger as diferentes manifestações, historio-
lado, uma leitura apenas normativo-dogmática17 grafias e tradições; (3) é obrigação estatal a promo-
poderia ser favorável aos quilombolas – segundo ção da diferenciação e da diversidade cultural. Mas é
Silva (1995), a aplicabilidade do art. 68 é imedia- preciso haver uma transformação no modus operandi
ta, não necessitando de lei ordinária; para a procu- do sistema jurídico, bem como na dimensão mo-
radora federal Deborah Duprat (2002), embora o ral do direito (Cardoso de Oliveira, 2002), ou, nos
art. 68 esteja no ADCT, ele deve ser interpretado termos de Mauss (1974), criar um sistema menos
de acordo com a Constituição e, assim, percebe- preocupado com o indivíduo (categoria jurídico-
-se que em seu corpo permanente esta reconhece -política) e mais preocupado com a noção de pessoa.

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A ciência jurídica, tal como se conhece, é uma soas (qualitas moralis personae competens, segun-
aquisição da modernidade e, especificamente, do li- do a conhecida definição de Grocio), onde,
beralismo. A ideia de universalidade e do individu- portanto, o individuo ocupa o lugar primeiro
alismo moderno, o que Dumont (1985) chama de e central. Esse sujeito de direito, no cadinho
“individuo no mundo”, é claramente datada: engen- de homogeneidade e de unidade que lhe é cor-
drada na Europa, na passagem da Idade Média e a relato, é um ser abstrato, intercambiável, sem
Idade Moderna, época em que também se organi- qualidades (Duprat, 2007, p. 11).
zam as primeiras escolas superiores. É no contexto
de sucessivas movimentações e revoluções no campo Duprat esclarece, no entanto, que o Direito em
político, filosófico, jurídico, científico, teológico, sua efetividade não é cego às qualidades e às com-
ideológico, visando à derrubada do Ancient Regime, petências das pessoas, e, podemos dizer, dos grupos
que se torna possível a universalização do indivíduo étnicos. Na realidade brasileira “o sujeito de direito,
humano como pertencente a um mesmo gênero por- aparentemente abstrato e intercambiável, tinha, na
tador de direitos. Neste quadro dinâmico e de des- verdade, cara: era masculino, adulto, branco, proprie-
compasso entre tempo e espaço (Giddens, 1991), a tário e são” (Idem, p. 13). Se isso é verdade, as me-
ideia de justiça (temporal e espacialmente localizada) lhorias para as minorias políticas (que não raras vezes
foi apropriada pelos jus naturalistas como um direito são maiorias demográficas) não são dádivas e sim con-
natural e transformada em um dogma universal. A quistas. Para Hannah Arendt (1989), estas conquistas,
teoria dos direitos naturais baseia-se, então, no tripé denominadas de forma ampla como direitos huma-
individualismo, contrato social e Estado-nação. nos, estão em um constante processo de construção e
Segundo os jus naturalistas, o individualismo se reconstrução na busca da dignidade humana.
explica a partir da consciência de que os indivíduos Como lembra Boaventura Sousa Santos
são anteriores à criação do Estado, gozando, por- (2002), uma justiça efetiva tem caráter de redis-
tanto, de direitos naturais como à vida, à proprie- tribuição e reconhecimento,18 e também de repre-
dade, à liberdade, à segurança. O Estado é resul- sentação. Em outras palavras, não basta tratar o
tante de um pacto, hipotético ou não, denominado indivíduo e seus agrupamentos de forma genérica
contrato social, por meio do qual indivíduos livres e abstrata. É imperioso enxergá-los em suas espe-
em busca da superação do estado de natureza fun- cificidades – algo mais próximo da noção de eu ou
dam a sociedade civil. Se de um lado tal contrato de pessoa, descrita por Mauss. A efetiva proteção e
exige a renúncia de parte da liberdade inerente ao promoção de direitos necessita da diversidade, e,
indivíduo, de outro, funda um novo ente, o cida- para tanto, da aplicação de políticas específicas ou
dão, a quem se estão garantindo direitos e deveres diferencialistas, endereçadas a indivíduos ou a gru-
sob a guarda do Estado-nação. pos socialmente vulneráveis ou alvo preferencial de
Por essa rápida descrição percebe-se que se tra- exclusão. Se o direito à igualdade é fundamental,
ta de um projeto associado a um tempo, um lugar o direito à diferença também o é no mesmo nível.
e uma classe revolucionária – Europa do séculos Para uma justiça eficiente, portanto, é necessário
XVII e XVIII no período de ascensão da burgue- que se adote postura de soma e não de subtração;
sia. Pleiteava-se ali o direito à liberdade, mas uma em vez da contraposição “política universalista ver-
liberdade de características negativas, ou seja, que sus política diferencialista”, deve haver uma aplica-
se qualifica e se caracteriza pela imposição de uma ção concomitante dos dois tipos.
série de proibições, sobretudo ao Estado no que se
refere à esfera dos direitos individuais. É compreen-
sível, pois, a opção, ao menos no plano do discurso A luta por reconhecimento territorial
do Direito, pelo individuo homogêneo e abstrato:
Treccani (2006, p. 268) indica a existên-
[…] o Direito, nesse contexto, é entendido cia de 3.523 comunidades quilombolas no Bra-
como uma qualidade moral que compete à pes- sil. A Fundação Cultural Palmares, responsável

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A Constituição de 1988 e a ressignificação dos quilombos… 147

pela concessão da certidão de autodefinição, 19 isto é, uma reserva extrativista. Temia-se na época
identifica 1.523 comunidades quilombolas com que a regularização do território na modalidade de
certidões, estimando-se a existência de aproxi- “remanescentes das comunidades de quilombos”
madamente 123.592 famílias. O movimento qui- ­resultasse muito lento ou mesmo impossível.
lombola organizado fala em quase 5 mil comuni- Dados os limites deste artigo, não nos dete-
dades. Dada a própria característica processual do remos nos meandros dos processos de titulação
fenômeno estudado, o campo empírico é bastante de cada uma dessas áreas; de qualquer maneira,
amplo, e por isso optou-se aqui por apresentar 20 essas comunidades são emblemáticas para mostrar
alguns elementos do processo de luta jurídica em a passagem de uma luta local, que ainda não apa-
três comunidades quilombolas: Campinho da recia no âmbito nacional, para o acionamento do
Independência (RJ), Rio das Rãs (BA) e Frechal art. 68 do ADCT. Gusmão mostra que “a con-
(MA). O que há de semelhante entre essas três quista desse princípio, desde 1988, tem ensejado
experiências é que a luta pela regularização dos uma série de fatos que o legitimam como meio de
territórios começou antes mesmo da aprovação garantir direitos e assegurar condições fundamen-
do artigo 68 do ADCT. tais de existência” (1996, p. 245). A comunidade
No caso de Campinho da Independência (RJ), de Campinho da Independência (RJ) foi titulada
a única alternativa para a defesa desse território ét- em 1999, cujo processo partiu de uma reivindica-
nico/racial, ameaçado pelo crescente interesse eco- ção de usucapião para se tornar uma comunidade
nômico e turístico na área onde se localiza,21 foi remanescente de quilombos. No caso de Rio das
entrar com um processo individual, embora eles Rãs, o art. 68, de acordo com Carvalho e Doria
vivessem segundo o conceito de família extensa, (1995, p. 190), teve um papel muito importan-
sendo que uma das regras da comunidade era que te no processo de titulação dessa comunidade.22
a terra não poderia ser vendida (Gusmão, 1996, p. Mesmo no caso de Frechal, que foi regularizada
32). Segundo Gusmão: “não aceitando mais ‘voltar como reserva extrativista em 1994, há a identifi-
à escravidão’ o povo de Campinho se reúne, busca cação dessa área como quilombo, tanto é que a
um advogado que os esclarece sobre seus direitos comunidade foi declarada em 1992 como “Re-
e, em 1975, entra com uma ação de usucapião” serva Extrativista do Quilombo Frechal” (Costa e
(Idem, pp. 39-40). Pedrosa, 1996, p. 121). Essas três situações per-
No caso da comunidade de Rio das Rãs (BA), mitem apontar dois aspectos. Em primeiro lugar,
com o início do processo de expropriação das famí- em todas as três a luta passou da mobilização de
lias por parte de fazendeiros da região, em 1972, recursos jurídicos que justificassem a titulação
a comunidade passa a sofrer ameaças e proibições para a mobilização de uma garantia constitucional
de toda ordem. Conforme Doria e Carvalho: “em aprovada na Carta Magna de 1988. Em segundo,
1989, a comunidade, inicialmente representada a luta transpôs a esfera local atingindo uma esfera
por setenta famílias, iniciou um processo judicial de mobilização nacional, o que pode ser atestado
e conseguiu uma liminar de reintegração de posse” pela criação em 1996, na cidade de Bom Jesus da
(1995, p. 77). Foi um longo processo de batalhas Lapa (Bahia), da Coordenação Nacional de Qui-
judiciais. Também neste caso foram as próprias fa- lombos – Conaq.
mílias que entraram com o processo judicial. Esses três processos de titulação revelam que
No caso de Frechal (MA), a luta teve início em as novas identidades reinstrumentalizam antigos
1974, com a chegada do pretenso dono das terras, valores (Comarroff e Comarroff, 2010). Conforme
Thomaz Melo Cruz. Isso fez com que o grupo, demonstramos ao longo deste estudo, a etnicidade
embora sendo um quilombo desde 1834 (Costa aqui não é primordial (essencialista); ao contrário,
e Pedrosa, 1996, p. 116), fosse obrigado a acei- ela é tangível e estabelece relações entre o mundo
tar, para minimizar a insegurança provocada pela local e o global (Idem, ibidem). No caso em análise
chegada do referido fazendeiro, sua regularização poderíamos mesmo falar em termos de um “direito
fundiária como unidade de conservação ambiental, local” e um “direito positivo”, hegemônico.

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Considerações finais apresentação mais detalhada dos “híbridos orga-


nizacionais” e um maior desenvolvimento do que
Pretendemos mostrar que a luta das “comuni- consideramos uma análise performativa do direito.
dades remanescentes de quilombo” tem na Consti- Este texto, portanto, constitui-se mais como um
tuição de 1988 um marco histórico e de visibilida- programa de pesquisa do que um estudo conclusivo
de no espaço público nacional, mas não seu marco a respeito da temática proposta.
fundante, já que ela é anterior, tendo sido a Cons-
tituição, em seu corpo legal, uma resultante desse
processo de luta.23 No entanto, é preciso chamar a Notas
atenção para a importância da nomeação. Lemos
na Carta o termo comunidades remanescentes de qui- 1 O termo “comunidades” tem sido utilizado de modo
lombos que, como vimos, não é algo natural e sim generalizado para todos os grupos sociais e tem sua
um construto constituído por uma historia políti- origem nas designações utilizadas pelas pastorais liga-
das às Comunidades Eclesiais de Base. O uso desse
ca, legal, sociológica, antropológica e econômica.
termo no presente artigo deve-se tanto a essa gene-
História que tem sido utilizada atualmente, na are-
ralização quanto ao fato de que essa é a designação
na jurídica, para desqualificar o pleito dos grupos utilizada no art. 68 do Ato das Disposições Consti-
autoidentificados como quilombolas. Tal conceito/ tucionais Transitórias (ADCT), na Constituição Fe-
categoria consiste em um sistema de identificação – deral do Brasil de 1988, qual seja, “remanescentes das
portanto uma redução fenomenológica –, isto é, comunidades de quilombos”. Esclarece-se, portanto,
uma ação que reponde a uma demanda pelo avan- que não se busca aqui uma maior gênese do termo co-
ço da democracia em um processo de emancipação munidade que se transmutou em categoria/conceito.
social e em uma cidadania que requer o reconheci- 2 O termo “afro” expressa a necessidade de rememorar
mento da diferença, a redução das desigualdades e a a origem desses grupos, a experiência da escravidão e
inclusão social através da redistribuição de recursos as marcas deixadas por ela, seja no âmbito das desi-
e da representação política. gualdades socioeconômicas, seja no âmbito das rela-
A Constituição de 1988 tem pelo menos dois ções sociais marcadas pela discriminação e nas relações
simbólicas marcadas pelo preconceito. Do amplo es-
significados importantes. Apesar das dificuldades
copo de demandas dos afrodescendentes está aquele
de interpretação que o termo “remanescentes de que neste estudo interessa mais de perto, que são os
quilombos” encerra, a inserção desta categoria no afro-descendentes com identidade ligada à terra. Por
texto constitui um aparato jurídico-legal que dá outro lado, tal como o termo comunidade, não se
sustentação ao direito à territorialidade para esses busca aqui uma maior gênese do termo afro, o qual
grupos. Por outro lado, a Carta permitiu que a luta se transmutou em categoria/conceito. A opção por
que já vinha se desenvolvendo há décadas de modo este termo polissêmico visa exatamente demonstrar a
localizado em diversas regiões do Brasil pudesse ga- riqueza de casos empíricos que podem ser abarcados
nhar a esfera pública nacional e, desse modo, tor- dentro do direito à territorialidade quilombola. Estes
nar públicas as demandas específicas de grupos que grupos são designados por diversos termos – como
quilombos, mocambos, terras de preto, comunidades
lutam pela garantia da territorialidade, onde pos-
negras rurais, comunidades de terreiro, terras de santo,
sam desenvolver seus “modos de criar, fazer e viver” terras de santíssima – que surgiram depois da desestru-
em conformidade com o Artigo 216 desta mesma turação das irmandades religiosas (Almeida, 2006, p.
Constituição Federal. 16). Neste estudo, alguns termos serão utilizados com
Reconhecemos, por fim, a necessidade de um maior frequência, para designar os “remanescentes de
maior investimento em apresentar a maneira pela quilombos”, tais como: “quilombolas”, “grupos étni-
qual os termos de luta pelas classificações produ- cos”, “grupos quilombolas”, “comunidades negras”.
zem um “aparato legal”. Reconhecemos ainda ser No entanto, todos seguindo o conceito de Weber, se-
imprescindível um maior aprofundamento na “te- gundo o qual “A crença na afinidade de origem – seja
matização da esfera pública dos direitos através esta objetivamente fundada ou não – pode ter conse-
quências importantes particularmente para a formação
do aparato legal quilombolas”, assim como uma

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A Constituição de 1988 e a ressignificação dos quilombos… 149

da comunidade política. Como não se trata de clãs, 5 Em consonância com Max Weber, busca-se compreen-
chamaremos grupos “étnicos” aqueles grupos huma- der as relações sociais; portanto, trata-se de uma inter-
nos que, em virtude de semelhanças no habitus externo pretação da ação em termos de significado subjetivo da
ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lem- ação. Busca-se compreender a questão como um fato
branças de colonização e migração e nutrem uma cren- carregado de sentido, isto é, como algo que aponta
ça subjetiva na procedência comum, de tal modo que para outros elementos, e somente em função dos quais
esta se torna importante para a propagação das relações poderia ser conhecido em toda a sua amplitude.
comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma 6 Embora no presente estudo a análise recaia nos termos
comunidade de sangue efetiva” (Weber, 2004, p. 270). no debate entre Jurgen Habermas e Nancy Fraser, de-
3 O processo que leva à titulação é longo e tem a par- ve-se ressaltar que Hannah Arendt é uma das precur-
ticipação de duas entidades públicas com atribuições soras do conceito de espaço público na modernidade
diferentes, sendo que um terceiro pode atuar em nível tardia. Para aprofundamento da obra de Arendt, ver
estadual. O primeiro é a Fundação Cultural Palma- Canovan (1994).
res (FCP), do Ministério da Cultura, responsável por 7 Avritzer (1996, p. 18) aponta que, embora Habermas
emitir o certificado de reconhecimento à comunida- indique que a modernidade não precisa ser identifica-
de como quilombola. Depois disso, seu registro no da com a inevitabilidade dos processos de burocratiza-
“Cadastro Geral dos Remanescentes de Quilombos ção, ele também percebe a “existência de uma tensão
da Fundação Cultura Palmares”. O segundo órgão a entre o crescimento da racionalidade de meios, pró-
atuar,­já no processo de titulação dos territórios, no pria à administração burocrática vigente no Estado
nível federal é o Incra (Instituto Nacional de Colo- moderno, e os princípios organizativos de uma esfera
nização e Reforma Agrária) podendo, ainda, contar baseada na interação social”.
com o trabalho dos Iter (Instituto de Terras do Es-
8 Sarmento afirma que “o art. 68 do ADCT, além de
tado) quando a terra demandada envolver o espaço
proteger direitos fundamentais dos quilombolas, visa
territorial estadual. O processo obedece ainda às se-
também à salvaguarda de interesses transindividuais
guintes etapas: abertura; caracterização da comunida-
de toda a população brasileira” (2007, p. 85). Portan-
de; produção do Relatório Técnico de Identificação
to, na perspectiva desse autor, a garantia do direito
e Delimitação (RTID); ocorrem, simultaneamente, a
quilombola liga-se à própria preservação do patrimô-
publicação e a consulta a órgãos e entidades envolvi-
nio cultural do país.
das no processo; julgamento das contestações e mani-
festações contrárias à titulação; Portaria do presidente 9 Embora o presente estudo mantenha o foco nas for-
do Incra reconhecendo e declarando os limites das ter- mas de representação não-eleitoral para se pensar
ras do território quilombola; após esta medida, o pro- a questão quilombola, concordamos com Avritzer
cesso pode seguir diferentes caminhos dependendo do quando esse afirma que é “desejável que uma recons-
caso (envio para a Secretaria de Patrimônio da União; trução adequada do conceito de representação reforce
ou envio para o governo estadual; desapropriação, ou tanto os seus elementos eleitorais quanto os não-elei-
anulação de títulos viciados; reassentamento de pos- torais […]” (Avritzer, 2007, p. 456).
seiros). Trilhado algum desses caminhos, procedem-se 10 Almeida indica que a luta pelo direito à estas terri-
a demarcação física, outorga do título e o registro em torialidades já conhecia diversas formas de organi-
cartório. Tal percurso é extremamente moroso po- zação e resistência muito antes da Constituição de
dendo durar vários anos e não raras vezes até décadas. 1988. Ele indica que o direito garantido neste apa-
Cf. <http://www.cpisp.org.br/terras/html/comoseti- rato Constitucional é resultante “de intensas mobi-
tula_caminho.html>. Fonte: CPISP. Disponível em lizações, acirrados conflitos e lutas sociais que impu-
<http://www.cpisp.org.br/terras/>. seram as denominadas terras de preto, mocambos,
4 Fonte: CPISP. Disponível em <http://www.cpisp.org. lugar de preto e outras designações que consolidaram
br/terras/>. Estes dados por si só dramáticos tornam- de certo modo as diferentes modalidades de territo-
-se mais graves quando se analisa que nos estados rialização das comunidades remanescentes de qui-
com maior número de titulação o processo ocorreu lombos” (2006, p. 33).
antes mesmo da regularização da política fundiária 11 Para uma definição processual do conceito de quilom-
quilombola e é fruto ou de vontade política local ou bo e sua ressignificação quilombola, recomenda-se a
da utilização de outras legislações ambientais, como leitura de Marques (2009), principalmente as subse-
no caso do Pará. ções deste trabalho: “Quilombo enquanto definição

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150  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 81

científica”; “A ressignificação da ideia de quilombo”; nos esquecer de que essas conquistas não são defini-
“De quilombos a quilombolas”. tivas, estando em constante disputa com outras forças
12 Redigidos por pesquisadores da UFMG, integrantes ativas na sociedade, que enxergam esses direitos como
do NuQ (Relatório Antropológico Comunidade de nocivos. O jurista José Afonso da Silva assim se re-
Mumbuca e Relatório Antropológico Comunidade porta à Constituição: “dentro e à vista dessas circuns-
de Marques). tâncias, fez-se uma obra, certamente imperfeita, mas
digna e preocupada com os destinos do povo sofredor.
13 Faz-se necessário afirmar que não defendemos tratar
Oxalá se cumpra, porque é nisso que está o drama
as terras quilombolas como propriedade comunais no
das Constituições voltadas para o povo: cumprir-se
sentido adotado pela maioria dos marxistas (para uma
e realizar-se, na prática como se propõe nas normas,
leitura aprofundada sobre territorialidade quilombola,
porque uma coisa têm sido as promessas, outra a rea-
ver Marques (2008, cap. 5). A utilização desse cânone
lidade” (Silva, 1991, p. 723).
tem como finalidade reafirmar o quão recente é o sur-
gimento da propriedade privada e desta forma dêsna- 16 Benedito Souza Filho (2008, p. 26) cita Paula Andrade
turalizar esse tipo de ocupação e seu discurso. Dito de (2003, p. 37) a respeito da distinção entre “categorias
outro modo, trata-se de desvelar a forma de ocupação analíticas”, elaboradas como ferramentas teóricas, e
fundiária brasileira e inverter o discurso conservador “categorias nativas”, adotadas pelos próprios campone-
que fala em oportunismo por parte dos quilombolas. ses para se autodefinir. Acreditamos que tal distinção é
A partir de uma leitura mais profunda da ocupação essencial para se entender a problemática quilombola.
fundiária brasileira percebe-se que os oportunistas são 17 Segundo Miranda Rosa (1999), há três modos de en-
os grandes latifundiários e seus métodos pouco orto- carar o fenômeno jurídico e sua inter-relação: teoria
doxos de legitimação de terras. Por conseqüência isso normativo-dogmática, que diz respeito à atividade
nos indicaria outro flanco deste debate, os diferentes profissional dos juristas como analistas de um con-
modos de acesso ao sistema jurídico e o comporta- junto sistemático de normas apresentadas quase como
mento deste poder como um braço de imposição de dogmas (jurista tradicional); filosofia do direito, mais
vontade das minorias dominantes. preocupada com a natureza do direito e de sua signi-
14 A Fundação Cultural Palmares (FCP) é uma funda- ficação essencial; sociologia do direito, que entende o
ção do governo federal, cuja criação foi autorizada direito como um fato social que busca captar a reali-
pela Lei nº 7.668/88 e materializada pelo Decreto nº dade jurídica em afinidade com causas e princípios
148/92, com a finalidade de promover a cultura negra verificáveis.
e suas várias expressões no seio da sociedade brasileira. 18 “Este reconhecimento pode resultar em múltiplas for-
15 Ela é chamada de Constituição Cidadã por seu amplo mas de partilha – tais como, identidades duais, iden-
caráter democrático, inclusivo, fruto da mobilização e tidades híbridas, interidentidade e transidentidade –
da participação dos movimentos sociais, políticos, re- mas todas elas devem orientar-se pela seguinte pauta
ligiosos, ecológicos etc. reunidos sob a rubrica de pro- transidentitária e trasncultural: temos o direito de ser
gressistas e organizados em grande parte nos fins dos iguais quando a diferença nos inferioza e a ser diferen-
chamados anos de chumbo da ditadura militar. A fei- tes quando a igualdade nos descaracteriza" (Santos,
ção cidadã de nossa Constituição, por influência des- 2002, p. 75).
ses movimentos, permite sermos, ainda que somente 19 A partir do Decreto 4.887/2003, coube à Fundação
na teoria e não na prática, uma das sociedades mais Cultural Palmares organizar um cadastro geral das
avançadas em termos constitucionais, quer no campo ­comunidades quilombolas, visando emitir uma cer-
dos direitos humanos, dos direitos de minorias, dos tidão de autodefinição a esses grupos. No art. 3º do
direitos sociais e previdenciários, quer em relação a referido decreto, define-se a atribuição do Instituto
temáticas específicas, tais como o direito das crianças e Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra):
dos adolescentes, dos portadores de necessidades espe- “Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrá-
ciais, ou o que nos interessa em particular neste estu- rio, por meio do Instituto Nacional de Colonização
do, os direitos de grupos étnicos específicos, tais como e Reforma Agrária – Incra, a identificação, reconheci-
indígenas e quilombolas. É necessário reafirmar que mento, delimitação, demarcação e titulação das terras
tais direitos não são uma dádiva do poder legislativo ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos
reunido na Constituinte, mas uma conquista árdua e quilombos, sem prejuízo da competência concorrente
tensa dos movimentos sociais em torno de cada um dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”
dos artigos constitucionais. Ademais, não devemos (Decreto 4887/2003, art. 3º).

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A Constituição de 1988 e a ressignificação dos quilombos… 151

20 Apresentaremos apenas os casos, sem uma interpreta- Egbé – Territórios Negros (Koinonia), Rio de
ção, já que o espaço restrito deste artigo não permi- Janeiro, Koinonia Ecumênica.
tiria uma análise mais aprofundada. Ver, para isso, a . (2006), Mocambo: antropologia e his-
tese Justiça seja feita: direito quilombola ao território, de tória do processo de formação quilombola. Bauru
Lilian Gomes (2009).
(SP), Edusc.
21 O interesse na área é deve-se, sobretudo, à construção AVRITZER, Leonardo. (1996), A moralidade da
da BR-101. Conforme Gusmão, “antes mesmo de ser
democracia: ensaios em teoria habermasiana e
construída, a estrada possibilita uma intensa especu-
lação, marcada por processos violentos de expulsão e
teoria democrática. São Paulo/Belo Horizonte,
expropriação do homem do campo” (1996, p. 125). Perspectiva/Editora da UFMG (série Debates,
272).
22 A titulação de Rio das Rãs ocorreu em 14 de julho de
2000. Para mais detalhes, ver <http://www.cpisp.org. . (1999), “Teoria crítica e teoria demo-
br/terras/asp/ficha_resumo.asp?terra=t&tipo=t&codi crática: do diagnóstico da impossibilidade da
go=20022>. democracia ao conceito de esfera pública”. No-
23 Nas palavras de Almeida: “Entendo que o processo vos Estudos Cebrap, 53: 167-188.
social de afirmação étnica, referido aos chamados qui- . (2007), “Sociedade civil, instituições
lombolas, não se desencadeia necessariamente a partir participativas e representação: da autorização à
da Constituição de 1988, uma vez que ela própria é legitimação da ação”. Dados, 50 (3): 443-464.
resultante de intensas mobilizações, acirrados con- AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2004),
flitos e lutas sociais que impuseram as denominadas “Teoria crítica, democracia e esfera pública:
terras de preto, mocambos, lugar de preto e outras de- concepções e usos na América Latina”. Dados,
signações que consolidaram de certo modo as diferen- 47 (4): 703-728.
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  255

A Constituição de 1988 THE CONSTITUTION OF LA ConstitutION de 1988


e a ressignificação 1988 AND THE REASSIGNED eT La ressignificaTION dEs
dos quilombos SIGNIFICATION OF quilombos contempoRAINS :
contemporâneos: Limites e CONTEMPORARY QUILOMBOS: Limites eT potenTialiTÉS
potencialidades LIMITS AND POTENTIALITIES
Carlos Eduardo Marques et
Carlos Eduardo Marques e Carlos Eduardo Marques and Lílian Gomes
Lílian Gomes Lilian Gomes
Mots-clés: Communautés quilombolas;
Palavras-chave: Comunidades quilom- Keywords: Quilombola communities; Reconnaissance; Redistribution; Droit
bolas; Reconhecimento; Redistribuição; Recognition; Redistribution; Ethnic ethnique; Justice.
Direito étnico; Justiça. Rights; Justice.
L’article propose une analyse de la ques-
O artigo pretende analisar a questão do The article analyses the issue of the rights tion du droit des communautés quilom-
direito das comunidades tradicionais qui- of traditional quilombola communities in bolas traditionnelles au Brésil à partir
lombolas no Brasil a partir de uma pers- Brazil through a politico-anthropological d’une perspective politique et anthro-
pectiva político antropológica. A análise perspective. The analysis is centered on pologique. L’analyse se centre sur la visi-
focaliza a crescente visibilidade do direito the growing visibility of ethnic rights bilité croissante du droit ethnique dans
étnico na esfera pública brasileira e sua te- in the Brazilian public sphere and their la sphère publique brésilienne et de sa
matização na tripla dimensão de justiça, thematic constitution in the triple di- thématisation dans la triple dimension
qual seja, reconhecimento de identidades mension of justice: identity and rights de justice, c’est-à-dire, la reconnaissance
e direitos, redistribuição material e sim- recognition, material and symbolical d’identités et de droits, la redistribution
bólica e representação política. Pretende- redistribution, and political representa- matérielle et symbolique et la représen-
-se investigar as características decorrentes tion. The investigation focuses on the tation politique. Nous proposons de
do fato de esta identidade aparecer no characteristics resulting from the fact rechercher les caractéristiques qui dé-
plano do direito legislativo, visto que é that such identity appears rather as an coulent du fait que cette identité apparait
o art. 68 do Ato das Disposições Cons- outcome of the legislative right – for it is sur le plan du droit législatif étant donné
titucionais Transitórias da Constituição the article 68 of the “Temporary Consti- que c’est l’article 68 de l’Acte es Dispo-
Federal de 1988 que inaugura esta forma tutional Provisions” of the Constitution sitions Constitutionnelles Transitoires
passadista de reinscrição das comunidades of 1988 that, looking back to the past, de la Constitution de 1988 qui inaugure
quilombolas no presente, muito mais vol- inaugurates this form of reintroducing cette forme passéiste de réinscription des
tado para o passado do que pela capaci- the quilombola issue into present times – communautés quilombolas dans le pré-
dade de esses grupos resignificarem suas than as a consequence of the abilities of sent et qui est davantage tournée vers le
práticas diante dos desafios e das contin- these groups in re-signifying their prac- passé que par la capacité de ces groupes
gências impostas pelo contexto socioeco- tices in face of the challenges and the de resignifier leurs pratiques face aux
nômico e político atual. contingencies imposed by the present défis et aux contingences imposées par
socioeconomic context. l’actuel contexte socioéconomique et
politique.

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