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DARWIN E PIAGET

Imaginemos que um avião caia em plena selva e um bebê, de apenas alguns dias, seja resgatado por
chimpanzés ou outros animais e por eles criado. Imaginemos ainda que essa criança faça-se
adolescente e que no momento que a examinamos possui dezesseis anos, período no qual não
conviveu ou viu qualquer ser humano.

O que essa criança sabe da vida e do mundo com o qual interage?

Muitas coisas, muito mais que somos levados a crer. O ser humano, produto de uma longa e lenta
evolução biológica, incorporou uma série de “saberes” ou “instintos” e mesmo sem dispor de pessoas
que os mostrasse ou fizesse com eles interagir, seriam capazes de exercitá-los. Dessa maneira, é
provável que essa criança darwiniana, fosse plenamente capaz de perceber que uma pedra atirada
com força produz efeitos diferentes que outra jogada displicentemente, que afiando-se a extremidade
de outra, dela podemos fazer objeto de furar e que a força e o movimento aplicado sobre um corpo
pode transformá-lo e como o transforma. Mesmo sem ter quem lhe ensinasse diferenças, saberia
reconhecer estruturas de animais e de plantas e identificar semelhanças e distinções entre espécies.
Teria por certo noção clara de grandeza, seria capaz, por exemplo, de saber que dez macacos são bem
mais que dois e, mesmo que não aprendesse símbolos formais para com uma palavra expressar um
número, perceberia que existem expressões quantitativamente diferentes entre os seres ou as coisas
ao seu redor. Essa criança desenvolveria noção de perigo e saberia o risco de lugares altos, águas
revoltas e tempestades cruéis. O medo estaria cercando-o mesmo que jamais alguém o demonstrasse
e isso o afastaria de predadores, animais peçonhentos e feras que poderiam estraçalha-lo; jamais
saberia o nome de uma fruta, mas identificaria coisas boas para comer e outras venenosas,
desenvolvendo percepção de “veneno” e apresentando reação “instintiva” sobre coisas nojentas,
fugindo de produtos que nós também consideramos repugnantes.

Esse “selvagem” não saberia falar a nossa língua, mas seria proprietário de uma linguagem pessoal e,
como ela, poderia atribuir nome as coisas e teria maneira própria de usar uma gramática e com ela
diferenciar singular de plural, masculino de feminino, seres de coisas. Possuiria sensação de bem
estar ou de pavor e, como qualquer um de nós, apresentaria estados de alegria e de tristeza, de calma
e inquietação, de raiva e até mesmo de vingança. Teria, enfim, um autoconceito e percebendo em suas
iniciativas sucesso ou fracasso, organizaria informações sobre seu “eu”. Mais tarde, ao ser
eventualmente encontrado pelos que se acreditam “civilizados”, ainda que pudesse aprender muitas
coisas, mostraria uma inata capacidade de pressentir quem gosta dele e quem o repudia e sobre que
valor alguns outros lhe atribuem. Mostraria senso de orientação, provavelmente nunca se perderia
nos caminhos que viesse a percorrer e, se descobrisse uma companheira, mostraria conhecimentos
de atração e repulsa sentimentos primários de sexo e, tendo filhos, cuidaria de defendê-los, protegê-
los, mostrando por eles estranha, mas coerente forma de amar. Possuiria noções de fidelidade e de
infidelidade e saberia, em relação a elas, reagir de maneira surpreendentemente pertinente e
parecida à nossa.
À luz dessas evidências que a Biologia tão bem
conhece e descreve e que a teoria evolucionista de Darwin admiravelmente explica, ficaria uma
questão essencial. A escola é necessária? Se trazemos programado em nossos genes tantas e tão
curiosas formas de se relacionar com o mundo e construir uma forma de viver, será que existe espaço
para mais coisas aprender e, por esse motivo, razão para estudar Piaget?
Claro que sim e a crônica seguinte busca justificá-la.

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