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É, ou queria ser, uma micro historia, a história de um ofício e suas derrotas, triunfos

e misérias, tal como todos desejam contar quando sentem próximo a fechar-se ao arco
de sua carreira e a arte deixa de ser ampla.
PrimoLevi, El sistema periódico

O meu é um trabalho que disse algo sobre algo de outro.


Saul Steinberg, Reflexos e sombras

O âmbito de investigação (ou se se preferir, a área disciplinar) a que este livro se refere
é, segundo indica o título, a “paleografia”. Mas qual paleografia? A de tradição antiga, ou seja
a “ciência das antigas escrituras, limitada, não obstante, às de documentos de caráter não
monumental”. (Luigi Schiaparelli, em 1935); ou a “global”, reivindica, desde 1952, pelo grande
estudioso francês Jean Mallon “que deve ocupar-se dos monumentos gráficos de todo tipo e
natureza e, em cada um dos casos, de modo total”, em suma, de todos os testemunhos escritos
de uma determinada tradição cultural e linguística?
A opção reivindicada aqui é para seguir a linha malloniana, a de uma disciplina que se
configure como uma autêntica “história da cultura escrita” e que, por isso, se ocupe da história
e da produção; das características formais e dos usos sociais da escrita; e dos testemunhos
escritos em uma determinada sociedade, independente das técnicas e matérias utilizados.
Para citar novamente Mallon: “O âmbito é imenso, tão imenso que ninguém no mundo
poderia pretender explorá-lo por completo. Somente se pode passear por ele e, desses passeios,
sempre regressar trazendo algo consigo.”
Além do objeto de investigação característico, toda área disciplinar é definida pelo
método que, em nosso caso, é o indicativo, de revelação e análise formal e comparativa das
características gráficas e matérias de cada um dos testemunhos escritos, levando em
consideração os problemas que se propõem afrontar durante a análise, problemas que podem
ser resumidos nestas perguntas:
1. Que? Em que consiste o texto escrito, que faz com que ele precise ser
transferido do código gráfico habitual para o nosso, mediante a dupla operação de leitura
e transcrição.
2. Quando? Época em que o texto em si foi escrito no testemunho que
estamos estudando
3. Onde? Zona ou lugar em que se finalizou a obra em transcrição
4. Como? Com que técnicas, com que instrumentos, sobre que materiais,
segundo quais modelos foi escrito esse texto
5. Quem o realizou? A que ambiente sócio cultural pertencia o executor e
qual era, em seu tempo e ambiente, a difusão social da escrita.
6. Para que foi escrito esse texto? Qual era a finalidade específica desse
testemunho em particular e, além disso, qual podia ser, em sua época e em seu lugar de
produção, a finalidade ideológica e social de escrever

O âmbito de investigação identificado até agora como positivo também pode ser
identificado como negativo. De fato, não é a história do livro ou do documento; não é história
dos textos; não é história da cultura intelectual; não é história das culturas subalternas; tão pouco
é, scrito sensu, história das escritas ou das escrituras. É, ou melhor, aspira ser, muito mais, uma
história, sempre renovada graça ao confronto direto com os fragmentos escritos do passado, dos
processo e práticas de confecção e uso dos produtos escritos de qualquer natureza e de suas
funções; também, se não antes de tudo, em seus aspectos antropológicos e sociologicamente
mais relevantes e significativos. Enquanto a opção explícita por um âmbito, este pequeno livro
se configura como um convite, articulado por problemas e exemplos, a considerar os
testemunhos escritos, independentes ou em série, antigos ou recentes, elegantes ou descuidados,
públicos ou privados, expostos ou ocultos, como outros tantos episódios de um dos capítulos
mais ricos e apaixonantes da história da humanidade: o das expressões escritas. Alcançou o seu
objetivo quando seus leitores não podiam deixar logo um olhar indiferente ou descuidado sobre
uma tábua encerada, um códice medieval, um livro impresso, um grafite ou um cartaz sem
encher-se de uma série de interrogações, sem deter-se em uma série de problemas, mais
precisamente o que estas páginas tentam propor e ilustrar a todo aquele que queira folheá-las
Segundo Giorgio Raimondo Cardona, historiador das escritas e das línguas, “ a escrita
pode ser tudo o que nos conseguimos ler nela”, ante tudo, o que concerne aos homens que a
tenham usado no mundo. Por tanto, realmente vale a pena ocupar-se dela, ainda que seja
passeando. Eu fiz isso durante toda a minha vida e me diverti imensamente.

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