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Alexandre F.

Mendes
Ricardo Nery Falbo
Michael Teixeira
(Organizadores)

O Fim da Narrativa Progressista na


América do Sul: entre impasses e
alternativas constituintes

Editar
2016
Copyright by  Alexandre F. Mendes, Ricardo Nery Falbo e Michael Teixeira
(Organizadores)
2016

Capa
Márcia Geruza
Nina Vieira

Revisão
Rogéria Carvalho

Projeto gráfico
André Luiz Gama

Editoração e impressão
Editar Editora Associada
(32) 3213-2529 / 3241-2670
Juiz de Fora – MG
Dados internacionais de catalogação na publicação
M534o Mendes, Alexandre F.
F177o Falbo, Ricardo Nery
T262o Teixeira, Michael

O fim da narrativa progressista na América do Sul: entre impasses


e alternativas constituintes / Alexandre F. Mendes, Ricardo Nery
Falbo e Michael Teixeira (Organizadores), Juiz de Fora: Editar Editora
Associada Ltda, 2016.

ISBN: 978-85-7851-158-6

1. Ciência Política – Direito – Sociologia.

CDD 340
CDU 34

Apoio:

Todos os direitos reservados aos autores


Organizadores

Alexandre F. Mendes
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor em Direito pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro - UERJ (2012). Mestre em Criminologia e Direito Penal
pela Universidade Cândido Mendes - UCAM (2007). Graduado em Direito
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (2004). Foi Defensor
Público do Estado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2011, tendo coordenado o
Núcleo de Terras e Habitação (2010). Linhas de pesquisa: Filosofia política e
direito; movimentos sociais urbanos e direito à cidade. Publicou, com Bruno
Cava, o livro “A vida dos direitos. Violência e Modernidade em Foucault e
Agamben (2008).

Ricardo Nery Falbo


Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (1984), mestrado em Sociologia pelo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (2002), mestrado em Direito pela Universidade
Gama Filho (1994), doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (2004) e pós-doutorado em direitos humanos
pela Université Paris 2. Atualmente, como adjunto da Faculdade de Direito
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, leciona sociologia jurídica na
graduação e epistemologia das ciências sociais na pós-graduação (mestrado
e doutorado), em Teoria e Filosofia do Direito. Tem experiência na área de
Sociologia e Filosofia, com ênfase em DIREITOS HUMANOS, atuando
principalmente nos seguintes temas: criança e adolescente, cidadania e poder
judiciário, direitos humanos e multiculturalismo, movimentos sociais urbanos
e quilombolas.

Michael Teixeira
Acadêmico de Direito no 8º período na Faculdade de Direito da UERJ,
atualmente em mobilidade acadêmica por 1 ano (2016-2017) no Instituto
de Estudos Políticos de Rennes – Science Po (França). Editor executivo da
Revista da Faculdade de Direito da UERJ – RFD (qualis A2), e da Revista
Contexto Jurídico. É coordenador de Ensino e Pesquisa da Federação Nacional
de Estudantes de Direito. Foi bolsista do programa Jovem Pesquisador no
Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da FGV Direito Rio (2014-2015),
tendo pesquisado nas áreas de Direito Constitucional e Políticas Públicas,
Ciência Política, Direito Global (Internacional Público e Privado), Processo
legislativo e DIREITOS HUMANOS. Co-fundador e voluntário no projeto
social Escola de Direitos.

Autores

Bruno Cava
Bruno Cava é blogueiro e pesquisador associado à Universidade Nômade,
autor de A multidão foi ao deserto (2013). É graduado e mestre em direito
pela UERJ, e graduado e pós-graduado em engenharia de infraestrutura
aeronáutica pelo ITA.

Salvador Schavelzon
Atualmente atua como Professor e Pesquisador na Universidade Federal
de São Paulo. É Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ
(2010). Possui graduação em Ciencias Antropológicas pela Universidad de
Buenos Aires (2003), mestrado em Sociologia e Antropologia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2006) e atuou como professor e pesquisador visitante
na Universidade de Califórnia (Davis). Título da Tese de doutorado: ?A
Assembléia Constituinte da Bolívia: Etnografia de um Estado Plurinacional?,
publicada como livro na Bolívia em 2012, com nova versão editada em 2013.
Tem publicações sobre Cosmopolítica Indígena, Antropologia do Estado,
Estados Plurinacionais, América Latina, Teorias Nativas sobre o Estado.

Giuseppe Cocco
Possui graduação em Sciences Politiques - Universite de Paris VIII
(1984), graduação em Scienze Politiche - Università degli Studi di Padova
(1981), mestrado em Science Technologie et Société - Conservatoire National
des Arts et Métiers (1988), mestrado em História Social - Université de Paris
I (Panthéon-Sorbonne) (1986) e doutorado em História Social - Université
de Paris I (Panthéon-Sorbonne) (1993). Atualmente é professor titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro da Pós-Graduação da Escola
de Comunicação e do Programa em Ciência de Informação (Facc-Ibict),
Pesquisador 1 do CNPq, Cientista do Nosso Estado (Faperj), é editor das
revistas - Global Brasil, - Lugar comum (1415-8604) e - Multitudes (Paris)
(0292-0107). Coordena as coleções <> (ed. DP&A) e << A Política no
Império>> (Civilização Brasileira). Tem experiência na área de Planejamento
Urbano e Regional, com ênfase em Política Urbana, atuando principalmente
nos seguintes temas: trabalho, comunicação, globalização, cidade, fordismo e
cidadania.Publicou com Antonio Negri o livro GlobAL: Biopoder e lutas em
uma América Latina globalizada, (Record:2005). O último livro publicado é
KORPOBRAZ:Por uma política dos corpos (Mauad, 2014).

Guilherme dal Sasso


Possui graduação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul(2010). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em
Jornalismo e Editoração.

Barbara Szaniecki
Professora Adjunta na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, possui graduação em Graduação em Comunicação
Visual pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs (1994), Mestrado
(2005) e Doutorado (2010) em Design pela Pontificia Universidade Catolica. Tem
ampla experiência prática na área de Design Gráfico. Atualmente é co-editora das
revistas Lugar Comum - estudos de mídia, comunicação e cultura (Universidade
Nômade, Rio de Janeiro), Multitudes - revue politique, philosophique et artistique
(Paris) e Redobra (FAU/UFBA). Suas pesquisas têm ênfase nas relações entre
Design Gráfico (em particular do cartaz) e conceitos políticos como: multidão,
poder e potência, manifestação e representação. Desenvolveu pesquisa de pós-
doutorado intitulada “tecnologias digitais e autenticidade: o estatuto da imagem
fotográfica na linguagem visual contemporânea” na Escola Superior de Desenho
Industrial da UERJ. É autora dos livros Estética da Multidão (editora Civilização
Brasileira, 2007) e Disforme Contemporâneo e Design Encarnado: Outros
Monstros Possíveis (editora Annablume, 2014).

Clarissa Naback
Doutoranda em direito no programa de pós graduação de Teoria do
Estado e Direito Constitucional da Pontífice Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-RIO). Cursou o mestrado em Teoria do Estado e Direito
Constitucional na PUC-Rio. Graduada em Direito pela Faculdade Nacional
de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Já desenvolveu pesquisas na área de teoria da comunicação e direito à
comunicação. Atualmente pesquisa conflitos urbanos e direito à cidade, pela
sociologia urbana e filosofia política.
Clarissa Moreira
Professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Doutora em Filosofia da Arte e da Arquitetura
pela Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne (2007).

Ana Carolina Brandão


Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2013) e mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (2015). Foi professora substituta da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Atualmente faz doutorado em Direito na PUC-Rio, atuando
principalmente nos seguintes temas: movimentos sociais, estado democrático
de direito, gênero, espaço urbano e direitos humanos.

Alexandre Magalhães
Mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro (IUPERJ) e doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos (IESP).

Diana Bogado
Diana Bogado é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Federal Fluminense, doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade
de Sevilha, Espanha e é professora da Universidade Anhanguera

Luiz Felipe Teves de Paiva e Souza


Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Estadual do
Rio de Janeiro – UERJ. Graduado em Direito pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ. E-mail: lftdps@gmail.com. Participante da rede
Universidade Nômade.

Carolina Rocha dos Santos


Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (PPGD/UERJ).
Apresentação

Nos dias 15 e 16 de junho de 2016, foi realizado, na Faculdade


de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na
Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), o Seminário Fim do Ciclo
Progressista na América do Sul? Entre impasses e alternativas constituintes1,
buscando abrir um espaço de discussão sobre o alvoroçado contexto
político que vive o subcontinente, através da contribuição de diversos
olhares e perspectivas de análise.
O próprio cenário no qual se realizou o encontro indicava a
relevância do tema: a UERJ enfrentava (e ainda enfrenta) uma das piores
crises da sua história, tendo os seus serviços paralisados, não apenas em
função da greve deflagrada pelos três segmentos (professores, técnicos e
estudantes), mas, principalmente, pela ausência das formas de custeio
das atividades essenciais à Universidade, destacando-se, dentre elas, a
tão necessária assistência estudantil.
No âmbito da nossa Faculdade, a situação motivou algumas
iniciativas que tinham como objetivo minorar os efeitos do esvaziamento
do campus e constituir um campo transversal de reflexão sobre a crise. A
principal delas foi uma sequência semanal de aulas públicas conduzidas
por professores e alunos da pós-graduação e da graduação, em sua
maioria da linha Teoria e Filosofia do Direito, vinculada ao Programa
de Pós-Graduação em Direito, em local aberto e acessível para todos os
interessados2.
O programa teórico que guiou as aulas públicas foi construído
a partir da articulação de uma reflexão geral sobre as mutações do
capitalismo contemporâneo global e o contexto brasileiro post festum,
isto é, aquele conjunto de destroços e ruínas deixados pela eufórica
onda do “Brasil Maior”, um ciclo de acumulação que articulou grandes
1
O Seminário contou com o apoio financeiro da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Proc. E-26/010.000.552/2-15.
2
O curso foi coordenado pelos professores Alexandre F. Mendes e Guilherme Leite Gonçalves.
empreendimentos nacionais a novas formas de expropriação da vida
nas cidades, sempre através da irredutível e violenta lógica do “rolo
compressor”.
A realização do Seminário se integrou ao cronograma de atividades
públicas e serviu como uma forma, não só de condensar e prolongar
os debates que já estavam acontecendo, como também de abri-lo a
outros parceiros e pesquisadores do Rio de Janeiro e de outros estados
brasileiros, resultando nesta publicação.
O livro reflete o entrelaçamento dos dois eixos de análise da
crise assumindo, a partir de abrangências diferentes e sem qualquer
pretensão de homogeneidade entre os autores, um campo formado por
repercussões recíprocas: o ciclo político global e nacional aparecendo no
ciclo local e vice-versa. Como num terreno mil-folhas, somos capazes
de perceber que os tremores e o impacto gerado pelo desmoronamento
dos chamados “governos progressistas” da América do Sul aparecem nas
diversas pontas e camadas de sua única geologia.
Assim, o primeiro conjunto de textos enfrenta a narrativa
progressista3 desenvolvida na região nos últimos 15 anos recusando-
se a realizar uma análise da crise do ponto de vista do conforto
simplificador de uma grande derrota organizada por forças externas ou
oposicionistas. As fissuras, os talhos, os abalos estruturais responsáveis
pelo desmoronamento devem ser examinados no interior dos caminhos
tomados por esses governos. Não há saída redentora.
As armadilhas desenvolvimentistas, os feitiços privatizantes, os
delírios de um pensamento à la Guerra Fria, o medo dos tumultos e
movimentos autônomos, a dependência crônica da máquina estatal
3
Na escolha do título do livro, optamos em não reproduzir o conceito de “ciclo progressista”
e substituí-lo por “narrativa progressista”. A mudança, realizada após o debate entre os
participantes, busca romper, de um lado, com qualquer cumplicidade que tenha restado
em relação à leitura teleológica do ciclo político dos últimos 15 anos (a linearidade do
“avanço” da esquerda) e, de outro, afasta a tese da “ruptura” ocasionada por ação exclusiva
de forças externas (a descontinuidade abrupta imposta pelo “avanço da direita”), ambas
constituindo aquilo que poderíamos chamar, acompanhando alguns autores deste livro,
de “narrativa progressista”. Assim, preferimos aderir às leituras que analisam o ciclo a
partir de momentos de abertura para as práticas instituintes dos movimentos (as políticas
sociais de tipo novo, as aberturas institucionais e a produção de novos direitos, as brechas
democráticas etc.) e de momentos de absoluto fechamento e declínio (a hegemonia dos
pactos “por cima”, o esvaziamento do potencial democrático e inclusivo, a submissão às
novas e velhas formas de acumulação de capital, a repressão às manifestações autônomas
e multitudinárias etc.).

8
estão na origem do esfacelamento do progressismo e de sua desconexão
com os movimentos constituintes que lhe deram impulso (guerra da
água e do gás na Bolívia, as mobilizações dos piqueteros argentinos,
os novos movimentos sociais brasileiros e o Fórum Social Mundial, o
movimento indígena e as insurgências urbanas no Equador, o caracazo
venezuelano etc.)
O deslocamento, cada vez mais intenso, entre os governos
constituídos na década de 2000 e as forças sociais constituintes, acaba
encontrando nas cidades e metrópoles latino-americanas um novo
terreno de contestação. Novas marchas e lutas por espaços comuns,
resistências contra as remoções forçadas, revoltas dos trabalhadores
das barragens e das grandes obras, a emergência de mobilizações
“heterodoxas” à esquerda tradicional, em suma, novos conflitos que
passam a tecer uma relação intensiva entre as capitais hiper-urbanizadas
e as pequenas cidades hibridizadas na floresta (um fio invisível entre
TIPNIS, Yasuni, Jirau, Vila Autódromo, Isidoro, Cocó, Largo Glênio
Peres etc.).
Nessa linha, o segundo conjunto de textos traz à tona, em diversas
perspectivas, o polvilhar de resistências no interior do ciclo progressista
que, de um lado, expõem os pactos “por cima” realizados por todos os
governos em prol de uma nova forma de acumulação cuja centralidade é
o espaço urbano e, de outro, apontam para formas singulares de viver a
cidade que desafiam o consenso modernizador e suas técnicas recicladas
de “governança”.
As lutas de Porto Alegre (que evidenciam o esgotamento do modelo
“participativo” de gestão pública), os embates no contexto das novas
operações urbanas do Rio de Janeiro e de Niterói (que funcionam como
um novo mecanismo de expropriação do público e de segregação de
trabalhadoras pobres, como no caso das prostitutas do prédio da Caixa
Econômica), a luta emblemática dos moradores da Vila Autódromo
(que diante da trincheira da “Barra Olímpica” afirma outras formas de
viver a cidade e de re-existência diante da violência das remoções), a
memória da resistência dos moradores da Maré no interior das ações de
urbanização propostas verticalmente pelo Estado no final da década de
1970 (que enfrentou a ainda atual e autoritária pretensão de “civilizar”
os favelados por meio da intervenção urbanística no território).

9
Assim, longe de repetir a velha fórmula que vai do geral para o
particular, o livro oferece ao leitor dois platôs de análise que poderão
ser recombinados entre si, destacados de sua primeira “origem”,
associados a outras pesquisas que estão em andamento ou, talvez o mais
importante, poderão ser usados na constituição de saberes políticos e
coletivos que nos auxiliem a enfrentar a atual crise e seus ainda nebulosos
prolongamentos.
Por fim, registramos os nossos agradecimentos à Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ),
pelo apoio financeiro através do edital APQ2/2015, aos professores
Maurício Siqueira e Giuseppe Cocco, que integraram o evento aos
colóquios organizados anualmente na Fundação Casa de Rui Barbosa
(FCRB), ao professor Guilherme Leite Gonçalves, que coordenou as
aulas públicas da Faculdade de Direito da UERJ, ao professor Bruno
Cava, que palestrou por transmissão online no período de suas férias,
aos professores e pesquisadores Salvador Schavelzon, Marcio Taschetto
e Guilherme dal Sasso, que se deslocaram de seus estados para estarem
presentes no encontro, a todos os palestrantes e autores que colaboraram
com o livro e, especialmente, ao discente Felipe Lima (UERJ), pelo
apoio imprescindível.
Os organizadores

10
Sumário
Apresentação......................................................................................................... 7
Os organizadores

Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso?........................... 15


Bruno Cava

El progresismo sudamericano frente a su otro...................................................... 27


Salvador Schavelzon
Introducción ................................................................................................. 27
El otro menemista del progresismo................................................................ 33
El otro del desarrollo: de plurinacional a extractivistas................................... 37

China e Brasil no olho da crise............................................................................ 41


Giuseppe Cocco e Bruno Cava
No olho da crise e de suas três dimensões....................................................... 41
A inflexão chinesa.......................................................................................... 45
O esgotamento do ciclo das commodities: crônica de uma morte anunciada ������� 48
Qita: o que resta da narrativa progressista depois da década chinesa da
América Latina?............................................................................................. 52

A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência................. 63


Alexandre F. Mendes
Introdução .................................................................................................... 63
Do POLOP ao início da autocrítica .............................................................. 64
Quebrando muros teóricos: ciclo de lutas e transição .................................... 66
Um novo olhar sobre os personagens que entravam em cena ......................... 69
Um novo estilo de ação política .................................................................... 72
Derrota política, poder constituinte real e comum ........................................ 75
Pensar com Eder Sader: seis notas sobre a atualidade...................................... 76
Referências bibliográficas .............................................................................. 80

Junho antes de Junho: o ciclo de lutas de Porto Alegre......................................... 83


Guilherme Dal Sasso
Introdução .................................................................................................... 83
Redesenhando a cidade, explorando o comum............................................... 84
Organizando a indignação, ocupando com alegria......................................... 88
Ocupas, ocupas por todos os lados................................................................. 92
Resistência e produção do comum em Porto Alegre....................................... 94

Eleições municipais no Brasil............................................................................... 97


O que nos dizem as urnas, o que nos dizem as ruínas no Rio de Janeiro.............. 97
Barbara Szaniecki, Clarissa Naback e Clarissa Moreira
Introdução..................................................................................................... 97
Das remoções desde 2011 às manifestações de 2013 ..................................... 98
As imagens de Luiz Baltar ............................................................................. 99
As ruínas na cidade, as ruínas nas eleições ................................................... 101
Das imagens aos livros. Livros para ler e para lutar ...................................... 102
Inventar as ruínas, invenção de uma outra política....................................... 104

Direito à cidade: crises e alternativas em torno de um conceito.......................... 107


Clarissa Naback
Introdução................................................................................................... 107
O direito à cidade pela trajetória da Reforma Urbana .................................. 109
Impasses sobre a reforma urbana – o esvaziamento do direito à cidade?........ 114
Repensando o direito à cidade – impressões iniciais..................................... 117
Referências bibliográficas............................................................................. 119

As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana


Consorciada: que diversidade o planejamento estratégico inclui?....................... 121
Ana Carolina Brito Brandão
Introdução .................................................................................................. 121
II................................................................................................................. 130
Referências bibliográficas............................................................................. 135

A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico


de fatos, temas e questões sociopolíticos............................................................ 137
Ricardo Nery Falbo
Introdução .................................................................................................. 137
A Vila Autódromo através do mutirão.......................................................... 139
A Vila Autódromo através do trabalho......................................................... 142
A Vila Autódromo através da remoção......................................................... 145
A Vila Autódromo através da gestão da cidade............................................. 149
Conclusão.................................................................................................... 151
Referências bibliográficas............................................................................. 152
“Memória não se remove”: a luta dos moradores da Vila Autódromo para
continuar (re)existindo...................................................................................... 155
Alexandre Magalhães e Diana Bogado
Introdução................................................................................................... 155
A construção do Museu das Remoções......................................................... 160
Referências bibliográficas............................................................................. 164

Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a


flexibilização do Direito..................................................................................... 167
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa
Introdução................................................................................................... 167
Estrutura jurídico-política do projeto do Porto Maravilha............................ 168
Finanças e biocapitalismo............................................................................ 172
Conclusão.................................................................................................... 181
Referências bibliográficas............................................................................. 183

Urbanizações democráticas e remoções autoritárias: buscando zonas


cinzentas entre dois arquétipos através da análise do Projeto Rio......................... 185
Caroline Rocha dos Santos
Introdução................................................................................................... 185
O Projeto Rio ............................................................................................. 188
Um casamento perfeito?............................................................................... 190
Regularização Fundiária............................................................................... 192
Conclusão.................................................................................................... 195
Referências bibliográficas............................................................................. 195
Podem os governos progressistas
sobreviver ao próprio sucesso?
Bruno Cava1

South of the border2, de Oliver Stone, é a quintessência da narrativa


do ciclo progressista na América do Sul. O documentário de 2009 narra
a chegada ao poder de Chávez na Venezuela, primeiro de uma nova
safra de governantes vermelhos (ou rosés) destoando do neoliberalismo
monocromático do mundo pós-URSS. Embalados pelo apoio dos pobres
e da esquerda nacionalista, Chávez, Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa
(Equador), o casal Kirchner (Argentina) e Lula (Brasil) enfrentam as elites,
a imprensa tendenciosa, o golpismo da direita e rompem com os governos
neoliberais que haviam intensificado a exploração da pobreza na década de
90. A panorâmica do filme é o inverso de um road movie: em vez de imergir
nos territórios e processos multitudinários, Stone passeia pelos palácios e
adere às falas quase épicas dos chefes de estado. South of the border chega a
citar a queda do muro de Berlim, assinalando que o novo ciclo sul-americano
irrompeu na contracorrente do triunfalismo pós-histórico do Consenso de
Washington. Essa narrativa made for export do ciclo progressista no Sul não
poderia ser mais adequada para uma esquerda global nostálgica da Guerra
Fria e ansiosa por identificar um “fora” ao capitalismo hegemônico.
2015 foi o annus horribilis para o ciclo progressista da América do
Sul. Foi o ano em que os governos foram derrotados em seus próprios
termos, isto é, quanto ao apoio eleitoral da maioria, apoio dos pobres.
O kirchnerismo apresentou um candidato a presidente oriundo do
menemismo e foi derrotado3. A oposição venezuelana marcou 16% de
1
Bruno Cava é blogueiro e pesquisador associado à Universidade Nômade, autor de A multidão
foi ao deserto (2013). É graduado e mestre em direito pela UERJ, e graduado e pós-graduado
em engenharia de infraestrutura aeronáutica pelo ITA.
2
“Oliver Stone documentary - South of the Border Oliver Stone - Hugo Chavez Biography”,
vídeo do Youtube, postado em 28 de setembro de 2013. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=tvjIwVjJsXc
3
SCHAVELZON, Salvador. “El agotamiento kirchnerista”, In La Razón, La Paz: 30 de
novembro de 2015. Disponível em <http://www.la-razon.com/suplementos/animal_politico/
agotamiento-kirchnerista_0_2389561076.html>.
Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso?

vantagem nas eleições à assembleia nacional4. Jovem opositora a Evo,


Soledad Chapetón arrebatou a prefeitura de El Alto, segunda cidade da
Bolívia, cidade plebeia habitada por ameríndios que foi o coração da
guerra do gás de 20035. Depois dos levantes multifacetados de junho de
2015 e da intensificação da crise política6, Rafael Correa anunciou que
não vai se candidatar à reeleição, em 2017. E Dilma Rousseff, sucessora de
Lula na presidência desde 2011, enfrentou protestos na casa do milhão de
manifestantes e uma rejeição massiva em todos os segmentos sociais, com
um índice de popularidade inferior à taxa anual de inflação, de 10,5%7.
Dilma vencera a eleição presidencial de outubro de 2014 por uma pequena
margem (3%), numa campanha em que asseverou duas coisas que, semanas
depois da apuração, se mostraram falsas: 1) que o país não estava à beira
de uma grave crise, 2) que não adotaria as políticas neoliberais de “ajuste
fiscal” que, de fato, adotou integralmente em 20158.
É nesse contexto que começa a sedimentar-se o discurso do
esgotamento de ciclo9. Um diagnóstico por si mesmo insuficiente e
repleto de armadilhas, na medida em que o fim do ciclo for entendido
como uma derrota, como uma triste reviravolta em relação à era dourada
da ascensão progressista. Seus governos teriam sido dobrados pelos
mercados financeiros, a direita golpista, as elites mancomunadas com
4
STEFANONI, Pablo. “Venezuela: el ocaso de los ídolos”, In La Línea de Fuego, Quito: 8 de
dezembro de 2015. Disponível em http://lalineadefuego.info/2015/12/08/venezuela-el-ocaso-
de-los-idolos-por-pablo-stefanoni/
5
“STEFANONI, Pablo. La nueva derecha andina”, In Revista Anfibia, Buenos Aires: 25 de junho
de 2015. Disponível em http://www.revistaanfibia.com/cronica/la-nueva-derecha-andina/
6
DIAS, Bruno N. “Junho no Equador e o correísmo”, In Site da Universidade Nômade, Rio de
Janeiro: 1 de julho de 2015. Disponível em http://uninomade.net/tenda/junho-no-equador-e-
-o-correismo/
7
Sobre a maior manifestação no Brasil, em 2015, ver : IHU ONLINE. “As manifestações de
Março de 2015 são o avesso de Junho de 2013”, Entrevista especial com Giuseppe Cocco,
In site IHU, São Leopoldo: 23 de março de 2015. Disponível em http://www.ihu.unisinos.
br/entrevistas/541110-as-manifestacoes-de-marco-de-2015-sao-o-avesso-de-junho-de-2013-
entrevista-especial-com-giuseppe-cocco
8
CAVA, Bruno. “The coup in Brazil has already happened”, In OpenDemocracy, 11 de
dezembro de 2015. Disponível em https://www.opendemocracy.net/democraciaabierta/bruno-
cava/coup-in-brazil-has-already-happened
9
Por exemplo, ZIBECHI, Raúl. “Nada volverá a ser igual en América Latina”, In Aporrea,
Caracas: 28 de dezembro de 2015. Disponível em http://www.aporrea.org/actualidad/a220180.
html; MUÑOZ, Gerardo. “Notas sobre el agotamiento del ciclo progresista latinoamericano”,
In Blogue pessoal, 29 de outubro de 2015. Disponível em: https://infrapolitica.wordpress.
com/2015/10/29/notas-sobre-el-agotamiento-del-ciclo-progresista-latinoamericano-gerardo-
munoz/; SCHAVELZON, Salvador. “Fin del relato progresista en America latina”, In Diagonal
periodico, Madrid: 24 de junho de 2015. Disponível em https://www.diagonalperiodico.net/
global/27148-fin-del-relato-progresista-america-latina.html

16
Bruno Cava

o imperialismo ianque, – em todo caso, algum “fora” mistificado, uma


razão exógena, um Grande Outro que eventualmente determinou a
derrota diante do que agora deveríamos verter jeremíadas. A autocrítica
ora se resume a ressentir-se do fato que os maiores beneficiados das
políticas sociais, alienados pela ideologia do consumo a que aderiram no
processo de inclusão, passaram a votar na oposição (na melhor tradição
populista onde o povo está sempre certo até que vote contra nós); ora
a prescrever o atalho autoritário de que não teríamos sido socialistas o
suficiente, cogitando de um “golpe de esquerda” na Venezuela; ou uma
venezuelização, no Brasil.
Mas diante do prenúncio do fim do ciclo, cujo desfecho oscila
entre um fim amargo (Argentina) e uma amargura sem fim (Brasil), é
preciso de uma vez por todas afastar a narrativa épica que conta a nossa
história recente opondo imperialismo e anti-imperialismo, progressismo
e neoliberalismo, esquerda e direita, categorias que talvez fossem válidas
neste subcontinente nos anos 70 ou, com demasiada licenciosidade
analítica, nos 90. Chega de mistificar o debate com grandes narrativas
em vez de enfrentá-lo, na problematicidade necessária para a abertura da
ação e do pensamento.
Como escrevi com Alexandre Mendes10, os governos progressistas
venceram. E venceram reprimindo sistematicamente as alternativas
constituintes que se colocaram, sufocando toda a imaginação política,
todos os movimentos que não se engrenaram nos motores ideológicos de
seu projeto de governo, desenvolvimento e cidade. Que agora não fiquem
tão lamurientos, ao perceber que abriram alas a sua própria destituição,
depois de vencerem.
Nos últimos 10-15 anos, o projeto político-econômico se inspirou
numa persistente matriz teórica sobre a produção nas condições do
subdesenvolvimento, que ecoa antigos teoremas cepalinos11 (Raúl Prebisch,
Celso Furtado), ainda que aplicados com certo sincretismo. Trata-se,
grosso modo, de uma aplicação de Keynes na longue durée: por um lado,
admite-se que o investimento determina a demanda efetiva (não se produz
para distribuir, mas o inverso); por outro, que nas condições periféricas é
preciso também comandar o avanço industrial e tecnológico.
10
CAVA, Bruno; MENDES, Alexandre Fabiano. “A esquerda venceu”, In Revista Lugar
Comum, n.º 45, vol. 1, Rio de Janeiro: 24 de dezembro de 2015. p. 76-89. Disponível em
http://uninomade.net/lugarcomum/45/
11
NEGRI, Toni; COCCO, Giuseppe. Globa(AL), biopoder e lutas em uma América Latina
globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005.

17
Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso?

Disso decorre um imperativo basilar: acumular capitais para ser


invertidos na industrialização. Esses capitais invertidos no setor industrial,
a seguir, ampliam a capacidade produtiva, alteram a composição das
importações e diversificam a economia. Mas como a relação entre centro e
periferia do capitalismo é estruturante, não resta aos governos do sul senão
fazer uso dos excedentes acumulados em função de seu posicionamento
inicial. Daí surge o tão falado “Consenso das Commodities”: suas
exportações se tornam elemento estratégico de acumulação de capital,
ponto de partida para a modernização do parque produtivo. Em tese,
esse projeto desenvolvimentista deveria fortalecer o mercado nacional em
relação às flutuações da procura externa, promover uma transformação
profunda da economia pátria e, em consequência, romper o círculo vicioso
da dependência estrutural. Noutras palavras, a industrialização é a via de
superação da pobreza e o estado deve planejá-la.
Diante do fim do ciclo, as críticas à esquerda desse projeto
efetivamente executado se concentram em dois grandes blocos. O primeiro
bloco assinala que os governos não foram desenvolvimentistas o suficiente,
que não foram capazes de romper com os entraves neoliberais, que foram
cúmplices demais com o capital improdutivo e/ou financeiro, não se
fizeram acompanhar por reformas estruturais e/ou um projeto efetivo
de emancipação. Isto leva a criticar, por exemplo, a leniência do governo
venezuelano em não forçar, mesmo que fosse manu militare, a diversificação
de sua economia, rigidamente dependente da petro-indústria. Ou, no caso
brasileiro, a crítica que se orienta contra o que seria uma “reprimarização”
da economia, mesmo que o agrobusiness, por exemplo, seja ele próprio
uma indústria de grande escala e mecanizada, totalmente emaranhada
às cadeias terciárias da bioengenharia, arquitetura financeira, brand
management e comercialização. O segundo bloco, a seu passo, se limita
a criticar os excessos extrativistas, como se o projeto desenvolvimentista
estivesse, em essência, bem norteado, faltando apenas retificar as profundas
violações às populações atingidas e ao meio ambiente em geral12, segundo
12
A crítica liberal baseada no modelo jurídico, sobre os limites do que pode ou não, a ser
ponderados, é apenas a primeira crítica “fraca” ao desenvolvimentismo. Uma segunda crítica
“fraca” seria substituir o limite jurídico por um limite quantitativo extensivo, uma espécie
de resgate do princípio antrópico da catástrofe malthusiana e seus modelos matemáticos de
progressão geométrica e curvas exponenciais. Alguns teóricos do processo capitalista (ex.: D.
Harvey, “O enigma do capital”) costumam dizer que o capital não tem limites, que ele se
expande virtualmente ao infinito. Para Marx, no entanto, o limite do capital é a classe, o poder
de classe. O “Fragmento sobre as máquinas”, trecho incluído nos Grundrisse, o texto mais
catastrofista de Marx, tem o mérito de deslocar o conceito de limite do extensivo ao intensivo,

18
Bruno Cava

uma ponderação racional de interesses. As críticas industrialistas (1º


bloco) e sociais-liberais (2º bloco) perdem de vista uma limitação interna
fundamental ao progressismo desenvolvimentista (tratarei mais adiante).
Os governos progressistas emergiram de mobilizações democráticas
em todos os casos. A Revolução Bolivariana de Chávez das sublevações
populares na esteira do Caracazo (1989); a Revolução Cidadã do Equador
a partir das revoltas urbanas de 1997, 2000 e 2001, até a rebelión de
los forajidos em 2005; a Revolução Democrática e Cultural da Bolívia,
resultado do ciclo insurgente de 2000-2005, com destaque às guerras da
água (2000) e do gás (2003)13. Nos casos de Brasil e Argentina, a crise
asiática de 1997 precipitou o desmoronamento da relativa estabilidade
construída pelos governos neoliberais, culminando na ingovernabilidade
argentina de 2001-02, – quando explodiu o tumulto dos piqueteros e
cacerolazos, ao que se seguiu o kirchnerismo, – e na ascensão eleitoral de
Lula, que havia sido derrotado nos três pleitos anteriores (1989, 94 e 98).
Vale apontar, ainda, a convergência dessas revoltas com as lutas do ciclo
alterglobalização de Seattle e Gênova, reunidas no vetor antineoliberalismo
e sob a referência de Chiapas, o que levou a uma miscigenação da geração
autonomista dos anos 1990 com a esquerda sul-americana mais tradicional
de extração setentista. Por exemplo, na realização dos Fóruns Sociais
Mundiais (FSM) sediados no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, com
governo local do PT.
As mobilizações democráticas transmitiram o impulso
multitudinário na composição dos governos, com um imediato
reposicionamento do estado que, com a lógica desenvolvimentista, passou
mediante a virada maquínica do social. Esta seria uma terceira crítica, “forte”, atrelada à
produção de subjetividade. A catástrofe é assim pode ser disputada como catástrofe do próprio
capitalismo, no momento de máximo antagonismo qualitativo. Pensada desde o Sul, essa
vertente de análise imanente do desenvolvimento pode entrelaçar-se com matrizes materiais de
alterdesenvolvimento, como pensada, por exemplo, por Alberto Acosta ou Salvador Schavelzon
(ver nota 15, abaixo). Dessa maneira, em vez de imposto de fora por uma geralmente mistificada
vontade transcendente ao processo capitalista, numa espécie de concepção negativa do Poder,
a resistência é transformação da subjetividade, devir. Nesse sentido, para virar de ponta-cabeça
o desenvolvimentismo, um devir-índio do desenvolvimento (conforme CAVA, Bruno. “Devir-
índio, devir-pobre”, In Blogue pessoal, 4 de agosto de 2012. https://umaincertaantropologia.
org/2012/12/28/devir-pobre-devir-indio-quadrado-dos-loucos/. À sua maneira, Gilles Deleuze
e Felix Guattari, no Anti-Édipo (1972), utilizam o conceito de Corpo sem Órgãos (CsO) como
figura da catástrofe.
13
CAVA, Bruno; MENDES, Alexandre Fabiano. “O Podemos e os enigmas que vêm do sul”,
In Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo: 3 de maio de 2015. Disponível em: http://www.
diplomatique.org.br/artigo.php?id=1870

19
Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso?

a investir diretamente no social. O redirecionamento do orçamento


público determinou um inédito desbloqueio da produtividade do
trabalho vivo, numa das regiões mais socialmente cindidas do mundo,
reinventando a economia “desde baixo” e promovendo um período
consistente de crescimento econômico e redução das desigualdades
sociais e regionais. Todos os indicadores socioeconômicos demonstraram
o sucesso das políticas sociais que, sem pesadas mediações do estado
ou mercado, transferiram renda, elevaram o salário real e ampliaram
o crédito popular. O efeito desta transformação se desdobrou em
múltiplas escalas e dimensões, determinando uma mudança profunda e
duradoura das sociedades sul-americanas.
Existe uma interpretação generalizada do sucesso do ciclo progressista
que aponta para as exportações relacionadas à aceleração da economia
chinesa e ao boom das commodities, – que gozavam de altas cotações,
com o petróleo a mais de 100 dólares o barril, – como o principal fator da
blindagem da região na crise de 2008-09, e da capacidade de distribuição de
renda e inclusão social. Seria, no entanto, uma onda efêmera, conjuntural,
que passaria assim que o superciclo das commodities findasse. Parece escapar
inteiramente ao campo de análise a possibilidade de que o fortalecimento
do mercado interno se deveu, sobretudo, à mudança qualitativa da
composição produtiva social, à formação de circuitos econômicos virtuosos,
independentes do sucesso ou não da industrialização, e em tendência de
autonomização em relação às exportações.
As teses desenvolvimentistas adotadas pelos governos progressistas
foram formuladas antes do deslocamento do fordismo-keynesianismo
nos anos 1970, logo, antes da globalização financeirizada. Portanto,
enxergavam na industrialização o caminho para a emancipação, seja
pela formação de um operariado com consciência de classe, seja pela
via das “reformas de base” (Celso Furtado), segundo uma análise
diacrônica. Nesse propósito, o também sucesso desenvolvimentista
da ditadura brasileira (1964-85), com o 2º Plano Nacional de
Desenvolvimento (PND), concluiu o ciclo do aço no mesmo instante
em que o mundo produtivo já abria a revolução do silício, começando
pela Califórnia. Hoje, três décadas depois, em pleno século 21, o
setor produtivo não coincide com o setor industrial, de modo que os
projetos desenvolvimentistas seguem indexados numa métrica do valor
que não mais funciona do mesmo jeito, além de ser sobredeterminada
pelo “comunismo do capital” operado pelas finanças14. A tentativa
14
FUMAGALLI, Andrea; MEZZADRA, Sandro (org.). A crise da economia global. Rio de

20
Bruno Cava

de induzir uma sociedade de pleno emprego por meio das inversões


se tornou assim uma miragem, causando um paralelo acúmulo de
capitais nas mãos dos mesmos grupos oligopolistas e proprietários
que, pelo menos no discurso, deveriam ser combatidos em primeiro
lugar.
De qualquer modo, é preciso destacar a singularidade dos processos
constituintes boliviano e equatoriano, que emplacaram tendências de
mobilização produtiva por fora dos topoi desenvolvimentistas, por exemplo,
a construção evista da sociedade plurinacional baseada no bem viver15,
ou o tecnopopulismo correísta voltado à economia do conhecimento, –
cujo modelo talvez não seja Cuba, mas a Coreia do Sul16. Apesar disso,
num e outro caso, os episódios de TIPNIS e de Yasuní-ITT marcaram
uma resolução de tensões e contradições no interior dos ricos processos
andinos, determinando a primazia do projeto desenvolvimentista de país
e dramatizando, daí por diante, o racha entre governos e movimentos.
As complexas práticas biopolíticas de autonomia e comum [commune]
sofrem assim uma reductio ao horizonte social-progressista, como
sublinhado por autores como Salvador Schavelzon ou Alberto Acosta17.
Ninguém exprime com tanta ênfase a necessidade dessa primazia do que o
próprio Rafael Correa e o vice-presidente boliviano, Álvaro G. Linera, que
repisam incessantemente que esse projeto é imprescindível para o Estado
lutar contra a pobreza18.
Janeiro: Record, 2011. Ver também COCCO, Giuseppe. KorpoBraz, Rio de Janeiro: Mauad,
2014, além da entrevista seminal ao IHU ONLINE, “O capital que neutraliza e a necessidade
de outra esquerda”, Entrevista especial com Giuseppe Cocco, In Site do IHU, São Leopoldo: 25
de junho de 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=6019&secao=468
15
Uma apreensão compreensiva do bem viver na Bolívia e Equador, trazendo sua
problematicidade, por SCHAVELZON, Salvador. Plurinacionalidade e Vivir Bien/Buon Vivir;
dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador post-constituyentes. Buenos Aires: CLACSO, 2015.
16
STEFANONI, Pablo. “La utopia coreana en los Andes”, In Rebelión, 18 de julho de 2013.
Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=171279. DE LA TORRE, Carlos. “El
tecnopopulismo de Rafael Correa: ¿Es compatible el carisma con la tecnocracia?”. In Latin
American Research Review, Volume 48, n.º 1, Primavera de 2013, pp. 24-43. Disponível em
https://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/latin_american_research_
review/v048/48.1.de-la-torre.html
17
ACOSTA, Alberto. O Bem viver, uma Oportunidade para Imaginar Outros Mundos, Tradução
de Tadeu Breda, São Paulo: Autonomia Literária/Elefante, 2015. Disponível em: br.boell.org/
sites/default/files/downloads/alberto_acosta.pdf
18
GARCÍA LINERA, Álvaro. “Empate catastrófico y punto de bifurcación”, In Crítica y eman-
cipación: Revista latinoamericana de Ciencias Sociales. n.º 1. Buenos Aires: CLACSO, 2008.
Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/CyE/cye2S1a.pdf

21
Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso?

No discurso do marxista Linera19, o mais eloquente representante


intelectual do ciclo como um todo, aparece claramente o limite interno do
projeto da esquerda desenvolvimentista (como também em Emir Sader20).
Fala-se muito em desigualdade, mas não em exploração21. O capital não
é entendido como uma relação social que, desde a sua trama molecular,
organiza a própria sociedade e o estado. O Capital aparece, em vez disso,
como um princípio organizador de fora e do alto, a escrever-se com maiúscula
e contra o que se elevaria o Estado, numa tensão molar de luta pela divisão
da riqueza social. Não à toa, recentes mobilizações de grande escala sejam
imediatamente classificadas como uma tentativa de desestabilizar o Estado,
a serviço da restauração neoliberal e do imperialismo. Isto aconteceu, por
exemplo, no levante no Brasil de 2013 (em ressonância distante com o que
se vayan todos! em 200122, e próxima com o ciclo global deflagrado com
as revoluções árabes de 2010-1123), na Venezuela do começo de 2014, nas
sublevações de junho de 2015 no Equador24, entre outras. Todos são casos
de uma mobilização por fora dos aparelhos progressistas que não somente
foi desqualificada pelas esquerdas, como reprimida como vandalismo
(Brasil), golpismo (Venezuela) ou terrorismo (Equador). O discurso do
Estado, ademais, provocou a atrofia das instituições elaboradas visando à
democratização radical da Venezuela numa matriz “nacional-estatista”25,
comprometendo seu dinamismo e capacidade de renovação, – tendência
também já praticamente realizada com movimentos sociais ligados aos
governismos de cada país.
19
CARTA MAIOR, “O socialismo é a radicalização da democracia”, entrevista com Álvaro
García Linera, In Site da Carta Maior, 6 de outubro de 2015. Disponível em http://www.
cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/alvaro-Garcia-Linera-O-socialismo-e-a-radicalizacao-da-
democracia-/4/34666
20
SADER, Emir. “A desigualdade no Brasil e no mundo”, In Site da Carta Maior, 28 de fevereiro
de 2012. Disponível em http://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/A-desigualdade-
no-Brasil-e-no-mundo/2/27098
21
Sigo aqui o insight de Giuseppe Cocco na entrevista supracitada, ao IHU.
22
PENNISI, Ariel. “Imagens e anacronismos; a questão do demos entre o 2001 argentino e o
2013 brasileiro”, In Revista Lugar Comum n.º 45, Rio de Janeiro: 24 de dezembro de 2015. p.
138-150. http://uninomade.net/lugarcomum/45/.
23
MENDES, Alexandre Fabiano. “Ocupações estudantis: novas assembleias constituintes
diante da crise?”, In Site da Universidade Nômade, Alexandre Mendes, 14 de dezembro de
2015. Disponível em http://uninomade.net/tenda/ocupacoes-estudantis-novas-assembleias-
constituintes-diante-da-crise-2/
24
PERALTA, Pablo Ospinta. “¿Por qué protestan en Ecuador?”, In Revista Nuova Sociedad, Buenos
Aires: Julho-Agosto de 2015. Disponível em http://nuso.org/articulo/por-que-protestan-en-ecuador/
25 STEFANONI, Pablo. “Chavismo, Guerra Fría y visiones ‘campistas’”, In Rebelión, 17 de
março de 2013. Disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=165376

22
Bruno Cava

Trata-se de uma esquerda que faz uma salada russa de marxismo e


hegelianismo, onde o Estado aparece como momento sintético privilegiado
de uma dialética que tende a tudo justificar pela “correlação de forças”,
apenas outro nome para a equação hegeliana por excelência, real = racional.
Isto também vale no plano internacional, segundo uma nova dialética da
economia-mundo em que os BRICs exerceriam o papel de contrapoder
à América imperialista. Uma versão mitigada desta dicotomia funciona
ao modo de Montesquieu, apenas a título de checks and balances26.
A simpatia pelo modelo chinês não consiste apenas numa nostalgia da
Guerra Fria, como se vivêssemos uma macropolaridade recauchutada
entre a doutrina Trumman e Deng Xiaoping, mas na elaboração de
novas matrizes econômicas para o desenvolvimentismo. À restauração
do Consenso de Washington, haveria uma alternativa, o Consenso de
Beijing27. A contradição aparente esconde a cumplicidade de fluxos e
refluxos e um mesmo princípio unificador, como o próprio Deng certa
vez afirmou em 1976: “planificação e forças de mercado são duas formas
de controlar a atividade econômica.”28 Mas a dialética aceita tudo, a ponto
de o governo brasileiro levantar bandeiras vermelhas e obter o apoio da
oposição socialista, embora governe com as oligarquias e empresariados
mais proprietários e conservadores. Como disse Idelber Avelar, you can’t
have your cake and eat it too. Não se pode governar com Kátia Abreu, a
rainha do agrobusiness, e defender-se como se fosse Rosa Luxemburgo – a
menos que você seja um hegeliano.
A diferença entre falar desigualdade e falar exploração está em que, no
último caso, ressalta-se a relação que constitui a exploração, o que significa
também ressaltar o seu caráter antagonista, a existência intrínseca do polo
oposto. Falar em desigualdade em vez de exploração leva a pensar, assim,
em termos de castas sociais, – um primarismo sociológico, – e não no
26
Poderíamos citar como exemplo em que as contradições são funcionais para a expansão
do regime de acumulação de capitais e a sobrevivência do capitalismo, o estudo de caso da
concatenação entre a territorialização da República de Veneza e a desterritorialização da
burguesia genovesa, durante o renascimento, conforme ARRIGHI, Giovanni, Il lungo XX
secolo; denaro, potere e le origini del nostro tempo, Milano: il Saggiatore,1996.
27
Também sigo aqui a observação sobre China e BRICs de Giuseppe Cocco, na entrevista
supra. A “nova matriz econômica” esposada pelo novo ministro da economia, Nelson Barbosa,
é tributária do modelo chinês pós-76. Um caso anedótico da simpatia mandarim, ma non
troppo, foi o comentário no Facebook do editor governista da Carta Maior, Breno Altman, que
os manifestantes anticorrupção que encheram as ruas brasileiras em 2015 deveriam ser tratados
como os opositores da Praça da Paz Celestial, em 1989.
28
XIAOPING, Deng apud The Changing Face of China. Oxford, 2005.

23
Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso?

antagonismo implícito na relação do capital, i.e., em classe. Porque a mudança


da composição social corresponde a uma disseminação dessa polarização
doravante molecularizada. Não há nada que lamentar, portanto, com a não-
formação de uma quimérica classe operária nos moldes europeus do fordismo
de grande indústria. A proletarização nas condições do Sul já implica uma
proletarização nas condições pós-fordistas. Como escreveu Giuseppe Cocco,
uma proletarização sui generis em que os pobres são incluídos enquanto
pobres29. Combater a pobreza, portanto, tem uma dimensão ambígua no
discurso oficialista, passando a significar também pacificá-la, bloquear-lhe a
capacidade de antagonizar e organizar o antagonismo. Se a inclusão social do
ciclo progressista é a inclusão do pobre numa relação de exploração (e não
apenas em termos quantitativos como redução de desigualdade), então existe
uma dimensão resistente da pobreza, uma dimensão criativa e produtiva que
não cabe na narrativa “Estado x Capital”.
Os críticos da proletarização no Sul concentrados no parâmetro moral
do “modelo de consumo”30, ou então na formação de um subproletariado
amorfo e desorganizado31, acabam apagando do quadro essa transformação
da composição de classe. Esta vem se expressando não só num novo ciclo
de lutas para além do progressismo, como também eleitoralmente contra
seus governos, mesmo que isto signifique votar mais à direita. Foi nesse
sentido, para captar a repolarização “desde baixo” subjacente à crise do sul
e à explosão de um novo ciclo de protestos, que eu e Giuseppe falamos em
lulismo selvagem32, um caldeamento potente de singularidades, como a face
da mobilização produtiva dos pobres33, – como se viu, tanto indesejada (e
reprimida) pelas esquerdas.
29
Este é o cerne da aplicação do ferramental operaísta da composição de classe na análise que
Cocco faz da mobilização produtiva dos pobres nos últimos 15 anos no Brasil, em seus livros
“MundoBraz” (2009) e “KorpoBraz” (2013).
30
Por exemplo, Emir Sader, para quem o principal é a “batalha das ideias” contra a ideologia
neoliberal: SADER, Emir. “Vencer a batalha das ideias”, 5 de maio de 2015. Disponível em:
http://cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/Vencer-a-batalha-das-ideias/2/33405
31
Vocalizando parte da esquerda do PT, André Singer, principal tese sobre o dito
“subproletariado”, formado durante os anos Lula, em SINGER, André. Os sentidos do lulismo:
reforma gradual e pacto conservador, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
32
COCCO, Giuseppe; CAVA, Bruno. “Vogliamo tutto! Le giornate di giugno in Brasile: la
costituzione selvaggia della moltitudine del lavoro metropolitano”, In Site da Euronomade, 21
de outubro de 2013. Disponível em: http://www.euronomade.info/?p=173
33
Rosto que foi Amarildo no levante brasileiro de 2013, expressão da possibilidade dos pobres
se organizarem e lutarem, apesar do biopoder racista que modula a violência de classe, atingindo
principalmente negros e indígenas, e a serviço dos megaprojetos de “pacificação” da cidade e
desenvolvimento nacional. Conforme COCCO, Giuseppe; BAKER, Eduardo; CAVA, Bruno.
“A luta pela paz”, In Le Monde Diplomatique Brasil, 6 de janeiro de 2014. Disponível em http://
www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1569.

24
Bruno Cava

Entretanto, em vez de produto de mobilizações, lutas e impulsos


constituintes, as conquistas do ciclo são sistematicamente miraculadas
como efeitos do Estado reposicionado e ocupado à esquerda, que na crise se
converte no paranoico detentor de um patrimônio simbólico que não pode
deixar escapar. Portanto, não basta lamentar, nem apenas constatar o fim
do ciclo progressista. E tampouco apontar a chegada das “novas direitas”,
guarda-chuva ideologicamente enviesado para um momento complexo de
reorientações, emergências e positividades. São insuficientes as críticas que
reclamam que os governos não foram socialistas, desenvolvimentistas ou
voluntaristas o suficiente, que não fez as reformas de base nem organizou
a massa, e que, portanto, entregou o poder às oposições liberais (Macri,
Capriles, Rodas, Aécio...).
É preciso reconhecer, antes de qualquer coisa, que os governos
progressistas venceram e, ao redor desse grau significativo de sucesso, se
desdobraram consequências ambivalentes e antagonistas. As dinâmicas de
mobilização mudaram e os projetos desenvolvimentistas e seus intelectuais
de esquerda não explicam mais: eles é que agora têm de ser explicados.
Libertar-se das narrativas dicotômicas, épicas e dialéticas é o primeiro
passo para reabrir a imaginação à nova composição social, política e
econômica do subcontinente, como certa vez o zapatismo fez. Que a
esquerda mundial faça seu próprio luto da segunda queda do muro
de Berlim – ainda que seja uma mureta. Que se liberte desse “pseudo-
heroísmo retórico tramado de impotência”34. Que caiam todos os muros.
Uma visão prospectiva, uma nova experiência de ação e pensamento. Não
há alternativa. Viva a alternativa.

LOBO SUELTO, “O país banal”, editorial do blogue Lobo suelto, 21 de setembro de 2015.
34

Disponível em http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/11/o-pais-banal.html

25
El progresismo sudamericano frente a
su otro
Salvador Schavelzon35

Introducción
En los últimos años vimos como en varios aspectos el progresismo
sudamericano se acercó en su forma de gobernar a un lugar peligrosamente
– para su continuidad – parecido a lo que años antes había surgido para
superar. Líderes sindicalistas, economistas de izquierda, oposiciones
políticas al neoliberalismo habían llegado al lugar de la gestión atrás
de candidaturas progresistas o como resultado de una construcción
política impulsada por organizaciones sociales. Los gobiernos alcanzarían
estabilidad, y encontrarían espacio político para ampliar políticas
públicas con énfasis en lo social. El contraste que establecieron con las
administraciones conservadoras de la década que les antecedía, sin embargo,
se iría desdibujando y, aunque se mantenía como lugar de enunciación, en
los hechos perdería fuerza.
Lejos de que un momento positivo en la economía y de consolidación
política abriera un momento de cambios más profundos y de multiplicación
de políticas que contaban con el apoyo de las mayorías, un modelo que
afirmó haber creado una nueva clase media, que celebraba el aumento
del consumo y que se reencontraba cada vez más con herencias de un
desarrollismo nacionalista de otras décadas, empezaría a mostrar distintos
límites. Por un lado, se mostraría la imposibilidad de realizarse, a pesar de
35
Atualmente atua como Professor e Pesquisador na Universidade Federal de São Paulo. É
Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ (2010). Possui graduação em
Ciencias Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires (2003), mestrado em Sociologia
e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006) e atuou como professor
e pesquisador visitante na Universidade de Califórnia (Davis). Título da Tese de doutorado:
A Assembleia Constituinte da Bolívia: Etnografia de um Estado Plurinacional?, publicada
como livro na Bolívia em 2012, com nova versão editada em 2013. Tem publicações sobre
Cosmopolítica Indígena, Antropologia do Estado, Estados Plurinacionais, América Latina,
Teorias Nativas sobre o Estado.
El progresismo sudamericano frente a su otro

haber sido anunciado en el debate político como ya concretado, mostrando


un fondo de políticas ortodoxas que se mantenían. Por otro lado, el modelo
abría interrogantes acerca de si era ese el camino apropiado y consecuente
con las movilizaciones y descontento político que abrió el ciclo de gobiernos
de cambio una década atrás, en un impulso que en realidad debe ubicarse
desde la redemocratización en los 80.
El fin de ciclo puede vincularse a una crisis de la izquierda del siglo
XX que ya lleva décadas,  con el fracaso de la socialdemocracia como
alternativa; o a un contexto de crisis económica más reciente, que quitó al
progresismo su base material para hacer política. Pero el cierre de un camino
político que nos interesa acá,  más bien,  es el de la derrota política que
aparece como deriva conservadora aún antes de que las urnas y debilidad
política mostraran un fin de ciclo irreversible.
La dificultad de los procesos políticos en encontrar un lugar progresista
desde donde gobernar, vería evaporar el apoyo electoral de los más pobres,
y al menos en Chile, Ecuador, Brasil y la Argentina lo reduciría a una serie
de símbolos defendidos con fervor sólo por la clase media urbana y de
origen de izquierda, desde donde habían surgido la mayoría de sus cuadros.
La mayoría del pueblo, para quien el progresismo postulaba gobernar, se
inclinaría por opciones conservadoras más rápido de lo que podría haberse
esperado, abriendo la necesidad de un debate sobre cómo pensar el Estado
desde la izquierda y cómo no dejar de discutir el horizonte de las luchas
mientras la urgencia de la resistencia a medidas conservadoras nos ubica ya
en una nueva época.
En algunos países llegarían movilizaciones con características
semejantes a las que los nuevos gobernantes habían impulsado antes de
llegar al Estado, o que buscaron representar. Marchas campesinas y por
trabajo en Ecuador, indígenas, mineros y población de El Alto en Bolivia,
clase media indignada en Argentina o, en Brasil, reclamos por derechos
que, al mismo tiempo, se mezclarían con protestas opositoras de un
perfil más parecido al que el anti-chavismo hace tiempo protagoniza en
Venezuela. Como desarrollaré más abajo, una preocupación generalizada
por la corrupción, que en lugares como India o España serían la base para
el surgimiento de nuevos partidos que renovarían el sistema político, en
Sudamérica afectaban a los sujetos políticos que poco antes también habían
intentado impulsar un cambio. El progresismo e izquierda de gobierno,
enfrentarían importantes protestas, como un síntoma más de la pérdida de
su halo renovador.

28
Salvador Schavelzon

La situación actual de derrota o retroceso en el apoyo conquistado


por estos gobiernos es analizada, comúnmente, de dos maneras. Desde
sectores que se arrogan una posición liberal y republicana se los considera
experiencias totalitarias, responsables de la debacle económica, sostenidas
apenas por demagogia populista. Los que defienden su legado, por su vez,
no cuestionan el marco republicano y liberal existente, pero se sitúan en
otro lugar, donde los gobiernos “progresistas” permitirían cierto desborde
a favor de los más pobres.
Pero de ambos lados hay mucha mistificación y acomodación de datos
a un relato dominante. Para unos junto al lenguaje de defensa del Estado de
Derecho se esconden negocios y privilegios de empresarios. Del otro, en la
versión más radical propagandística, la retirada del progresismo se explica
solamente por el accionar de una conspiración imperialista orquestada por
medios de comunicación. Estados Unidos querría adueñarse del petróleo
del Brasil, y por eso habría impulsado la destitución de Dilma Rousseff,
se afirma, sin importar que congresistas del PT hubieran aprobado la
concesión de las reservas a empresas extranjeras, y que muchas de las
políticas impulsadas por Temer, antes eran impulsadas por el gobierno de
coalición PT-PMDB.
Aquí ensayaremos otra lectura. Sin buscar resumir una miríada de
situaciones nacionales y coyunturales diversas, buscamos poner el foco
en el acercamiento de agendas, proyectos políticos y formas de gobernar
del progresismo sudamericano, con los gobiernos que antecedieron y que
suceden estas experiencias. Esta asimilación de agendas precede al fin de los
gobiernos y es también el lugar desde donde se plantearon en los últimos
años nuevas luchas y posibilidades de resistencia.
No afirmo que no haya diferencia entre el banquero Lazo y el
gobierno de Alianza País en Ecuador; o entre el proyecto político de
Macri y el defendido desde La Cámpora; o de Temer y el PT. Pero es
importante matizar contrastes de proyectos y acciones con innumerables
alianzas informales de cogobierno, asimilación discursiva entre unos
y otros en un campo político dominado por el marketing electoral,
y “consensos” transversales a partidos, poderes de estado, prensa
y presión internacional. Para una evaluación política del periodo es
importante distinguir espacios y proyectos políticos que hasta cierto
momento supieron diferenciarse, y es este también el punto en que
las diferencias dan paso al acuerdo en las bases de una gobernanza
neoliberal incuestionada.

29
El progresismo sudamericano frente a su otro

¿Cómo explicar la caída de Dilma Rousseff sin observar que poco


antes no se encontraba enfrentando intereses de banqueros y empresarios,
sino implementando un plan de “austeridad” contrario a lo que venía
de prometer en la campaña electoral, con cortes de derechos y el peso
del ajuste especialmente en gasto social? ¿Cómo negar un alejamiento
de las agendas iniciales, cuando un gobierno como el boliviano, que
supo declararse indígena y defensor de la Madre Tierra, se dirige a las
organizaciones indígenas de la misma forma en que lo había hecho poco
antes el presidente peruano Alan García?
La represión de indígenas que defendían el TIPNIS, en 2011,
encuentra varias coincidencias respecto a la matanza de Bagua, en 2009.
Respuesta estatal truculenta contra una protesta de organizaciones
indígenas históricas, y construcción discursiva de las posiciones de pueblos
minoritarios como las de un enemigo del interés nacional. El presidente
peruano compararía los indígenas con la figura popular del perro del
hortelano, “que no come y no deja comer”. Evo Morales propondría que
la aprobación de la construcción de una carretera contraria a los derechos
indígenas y del medio ambiente, se someta a un referendo nacional en el
que se decidiera por el conjunto de la población.
En la misma dirección, en 2012, Rafael Correa defendería la
undécima ronda petrolera, que afectaría a las etnias Waorani, Kichwas,
Saparas, Shuar, Shiwiar y Andoas con la licitación de 13 bloques petroleros
en su territorio, con la imagen de “mendigos sentados en un saco de
oro”. También Humala entregaría el gobierno a los intereses mineros
en Cajamarca, pese a haber citado, en tiempos de campaña, la frase del
movimiento “el agua vale más que el oro”, sumándose a un consenso del
que participan todos los gobiernos de la región.
La carretera propuesta para el TIPNIS, por otra parte, sería financiada
por créditos estatales del Brasil y ejecutada por la empresa OAS, hoy
acusada de favorecer personalmente a Lula da Silva, en un fin de ciclo
donde intereses de empresas y gobiernos también se encuentran. La obra
que buscó imponerse sin consulta previa, primero, y con una consulta
manipulada, después, daría lugar a una campaña que incluiría un libro del
vicepresidente García Linera, en que presentaría la situación en términos
de pueblos indígenas manipulados por influencia de ONGs extranjeras,
explicando la resistencia indígena en términos de supuesta opción por
vivir en “estado de naturaleza”. La demanda de “intangibilidad” de la selva,
se aplicaría desde el gobierno como el cierre de las inversiones estatales

30
Salvador Schavelzon

en salud y educación, como chantaje para imponer la ruta en la opinión


pública y para las comunidades locales.
El legado de nombres como Fernando Collor de Melo, Abdalá
Bucaram, Jamil Mahuad, Alberto Fujimori, Carlos Salinas de Gortari y
Carlos Menem ya fue estabilizado en la asociación de gobiernos a una década
que enfrentaría la movilización en las calles, puebladas y levantamientos
antineoliberales. Estas protestas abrirían un ciclo, que en secuencia
encontraría un curso institucional simultáneamente en varios países. Hoy
ese mapa progresista está deshecho, pero la imagen que acompañara a esta
fase más reciente está aún en disputa y re-definición. Mientras ex presidentes
son evitados en tiempos de elecciones por sus mismos partidarios, niños
de la clase media son bautizados con sus nombres. Salir a la calle puede
enfrentarlos a escraches, selfies o escenas de devoción.
Hay variables según qué versión actual del progresismo se observe,
con Daniel Ortega y Nicolás Maduro en un extremo y Tavaré Vázquez
en el otro, más moderado, de un cuadro variable que en otra época supo
tener de un lado a Hugo Chávez, impulsando el socialismo del siglo XXI y
del otro lado a Lula o los Kirchner, sin discurso anticapitalista y buscando
un modelo de conciliación. Quien priorice en su concepción política
del progresismo las libertades, el antimilitarismo o derechos de minorías
tendrá, por otra parte, una imagen bien diferentes de estos gobiernos
respecto de quien priorice la retórica anti-imperialista o de defensa de la
soberanía nacional.
En el cuadro variable de estos gobiernos, los procesos andinos ocuparon
el lugar de exponentes más novedosos, en la medida en que pudieron
expresar constitucionalmente y generar políticas de estado a partir de
una crítica descolonizadora formulada desde el movimiento campesino e
indígena. Ecuador y Bolivia, sin embargo, no escapan al proceso general de
desgaste. El mismo se explica por cambios generados desde su interior, en lo
que micropolíticamente se vivió como transformación de un movimiento
crítico en una máquina de estado, con la substitución, en la escala local,
de militantes de izquierda o poblaciones movilizadas por especialistas de
la política, jefes territoriales venidos de otros partidos, y el primado de
la burocracia y el control político por sobre los impulsos presentes en las
revueltas antineoliberales desde donde surgieron.
La desmovilización de bases sociales cuyos dirigentes circularían por
ministerios mucho más que por asambleas, piquetes de huelga y cortes de
calle, la preponderancia de la institución y la disputa electoral por sobre

31
El progresismo sudamericano frente a su otro

una política de reformas, se traduciría, al llegar la crisis, en la imposibilidad


de reaccionar a políticas de ajuste, represión de protestas no toleradas,
persecución judicial o administrativa de manifestantes y ONGs críticas;
junto a la desautorización desde la gestión de las nuevas constituciones
cuya aprobación se había impulsado.
Junto a las dificultades propias de una generación de dirigentes
formada en los marcos de determinado tipo de protesta y organización,
sin diálogo ni capacidad de llegada a los más jóvenes, ni de articulación
con nuevas luchas de otras características, la desaparición de agendas
tradicionales en la izquierda, como derechos de mujeres e indígenas o la
reforma agraria, daría lugar a la aceptación de agendas de clases medias
conservadoras, como seguridad, familia y crecimiento económico, que el
progresismo aceptaría tomar como propias, cuando no asumidas desde
la imposición de una especie de pragmatismo ontológico, desde el cuál
se buscaría refutar toda crítica o cuestionamiento respecto al desvío de
proyectos surgidos en otro lugar.
Hay una clara modulación de las formas políticas que recorre el aire
en el fin del progresismo, imposible de ser registrada si dependemos de
comunicadores y medios que desde el progresismo o su oposición tienen
la polaridad como principal línea editorial. Del mismo modo que la
manipulación mediática en contra del progresismo, hechos evidentes del
proceso político que dan cuenta de la continuidad y deriva conservadora de
ese espacio, fueron de hecho escamoteados por análisis que sólo encuentran
explicaciones para el agotamiento de gobiernos en factores externos, como
la crisis económica o los grandes medios.
Cuando se asiste a un desplazamiento rápido del progresismo, sin
resistencia popular ni recursos para reaccionar institucional o políticamente
en casos como el Impeachment del Brasil, en que sólo el voto de un tercio
de los senadores hubiera bloqueado el proceso contra la presidenta; surge
la pregunta de si aún después de una década el progresismo no se mantuvo
extraño a una institucionalidad ajena, aún cuando nombró jueces,
constituyó cortes y altos tribunales, formó mayorías calificadas en los
parlamentos, fue activa en la redacción de nuevas constituciones y ocupó
ampliamente la máquina gubernamental.
La respuesta, sin embargo, parece indicar el problema contrario: la
indiferencia de las mayorías ante la destitución de Dilma; o el voto de parte
del pueblo que antes apoyaba contra la posibilidad de reelección de Evo
Morales, o para elegir a Macri en segundo turno, se explica más bien por

32
Salvador Schavelzon

el grado en que el progresismo se torna parte del sistema político, siendo


absorbido por las redes que alrededor de este tejen los distintos grupos de
poder económico, pero también por las concepciones de mundo que se
cultivan desde allá arriba.
Atando su destino a la necesidad de garantizar presencia en la máquina
estatal, la continuidad del progresismo rápidamente se transforma en
la necesidad de desarticular contrapoderes, antes que a construirlos o
fomentarlos. Se financian medios de comunicación afines al gobierno y
críticos de los medios tradicionales, pero con lógicas parecidas a las de sus
antagonistas, no como construcción de una comunicación alternativa desde
abajo. Por ese camino, y más allá de trayectorias e identidades políticas
se asiste con sorpresa como el PT vuelve a concertar, en las elecciones
municipales de octubre de 2016, alianzas con los partidos que apoyaron
el Impeachment en más de 1600 municipios. Aliados del kirchnerismo, o
incluso congresistas electos en ese espacio, rápidamente se convierten en
base de apoyo para las políticas de Macri.

El otro menemista del progresismo


En Argentina, la corrupción era una marca del menemismo. En
1989, Menem había sido elegido con un discurso “populista”, hablando
de “revolución productiva”, y evocando a Facundo Quiroga, caudillo de
las guerras federales del s. XIX, con que las patillas del riojano peronista
abrían un diálogo asociativo. Después fue, como graficaba el título de
un libro sobre la época: “Pizza con Champagne”, la “Fiesta Menemista”.
Los argentinos recuerdan de esos tiempos el tapado de piel de María
Julia, ministra de medio ambiente condenada por corrupción, la Ferrari
de Menem, que tuvo que devolver, el diputado “trucho”, que se sentó a
votar en una sesión clave en que se privatizó la empresa de gas natural. El
menemismo generaba continuamente este tipo de imágenes.
Esa construcción es definitiva, pero en tiempos recientes se ve
acompañada de otra construcción también sólida en que kirchnerismo
pasa a ser caracterizado como un gobierno también corrupto. Digamos
rápidamente, para evitar la rápida descalificación de algunos lectores,
que el gobierno de la alianza Cambiemos, que sucede al kirchnerismo,
ya fue comprometido en casos de corrupción en lo poco que lleva de
gobierno, sin que los mismos sean noticiados con igual tratamiento. Lo
relevante para un análisis del fin del ciclo progresista, sin embargo, es

33
El progresismo sudamericano frente a su otro

que independientemente del eje progresismo/conservadurismo, con que


la década de 90 se asocia al segundo y la última década al primero, la
corrupción aparece como transversal y endémica, no pudiendo ser más un
activo del progresismo. En el momento en que Cristina sería asociada a
corrupción, o Dilma Rousseff al ajuste, y no al enfrentamiento con fondos
buitres y “el Campo”, o a expansión universitaria y programas innovadores
de cultura, el fin de ciclo se hace carne.
La dificultad del progresismo en lidiar con asuntos como la corrupción,
de gran apelo mediático, parece no condecir con la preponderancia que los
medios de comunicación tienen en el pensamiento estratégico-político de
los defensores de gobiernos progresistas. Los escándalos de corrupción, son
vistos por el progresismo como desvío individual que intenta minimizar
argumentando que los mismos ocultan un enfoque basado en las
desigualdades, más importante. Llegando también a movilizar argumentos
en la línea de “robamos, pero los otros más”, lo cierto es que los escándalos
destruyen una narrativa basada en lo social, que mantiene al neoliberalismo
como su otro, aún cuando en política económica la ortodoxia fundada
en los 90 haya prevalecido en la mayoría de los gobiernos de la última
década. A pesar de la obsesión mediática, presentada erróneamente como
batalla cultural en sentido gramsciano, el progresismo descuida el juego
político que propone desde el pragmatismo que centra el foco en la política
comunicacional. Sin dar valor a algo que está definiendo el lugar político,
su centro es desviar la discusión al plano de la inclusión social, no como
desmonte del neoliberalismo sino más bien en la reivindicación del papel
social del Estado, entendido como instrumento compensador.
Previo a la llegada del progresismo, sería necesario un desplome del
sistema político anterior. Si bien es verdad que en Argentina el modelo
económico colapsaba – se constataría en 2001 – aún podía parecer
perdurable para un gobierno como el de La Alianza, electo en 1998,
aunque su triunfo se debiera al lugar político construido por el FREPASO,
que abriría prematuramente el ciclo progresista en Argentina, pero sin
poder encabezarlo. Junto a la crisis económica, en todo caso, lo que sacó
a Menem del poder (que aún en 2003 terminó primero en la primera
vuelta electoral) sería el descontento político y rechazo al menemismo
como fenómeno cultural, donde la corrupción no ocupaba un lugar
menor, junto al ajuste y la desocupación. Fue en los 90 en que Menem se
torna el otro del progresismo, y el progresismo la opción política posible
para superarlo.

34
Salvador Schavelzon

Nadie captaba mejor la tragedia sarcástica de los años de Menem,


que el diario matutino Página12, que es en esta época que encuentra
su lenguaje de crítica desacartonada y con humor. Un sentido común
progresista consolidaría una imagen indeleble del menemismo y los 90
como era de corrupción, en un contexto de empobrecimiento posterior a
privatizaciones y convertibilidad con el dólar que permitiría importaciones
y viajes al exterior pero no desarrollo industrial y creación de empleo. En
ese momento poco interesaba la crítica al patrimonialismo estatal, presente
en las discusiones académico-políticas del Brasil, en que la corrupción
es equivocadamente señalada como principal causa de la crisis o el
subdesarrollo, sin permitir señalar el problema de un Estado desigual y
entregado al capitalismo.
Es notorio entonces, que haya sido Jorge Lanata, director de Página12
durante el menemismo, quién ocupara un lugar importante en la sucesiva
y trabajada asociación del gobierno de Cristina con la corrupción, como
parte de un proceso en que a la hora de definir un tablero político,
interpela generaciones en relación a sus experiencias políticas concretas. Sin
minimizar el accionar de los medios de comunicación en la construcción
de reputaciones y perfiles, lo cierto es que en el campo político se juega
con imágenes que surgen de los hechos, como las que resultaron de la
detención de José López, funcionario muy cercano de los Kirchner desde
hacía décadas y descubierto intentando esconder 9 millones de dólares en
un convento de monjas.
Si la Alianza no llegó a ser el progresismo en Argentina, en parte jugaría
la debilidad política, que el kirchnerismo evitaría gracias a relaciones non
sanctas -desde el punto de vista progresista- con la estructura del PJ. Pero
especialmente puede verse la dificultad para encontrar un lugar político
realmente distante de lo anterior,  mal que explica el fin de ciclo, y del
que en un primer momento los progresismos pudieron escapar. De La
Rua, sin duda, no contaba para eso con las dotes de Chacho Álvarez, pero
también influirían escándalos tempranos de corrupción, y la imposibilidad
de plantear en lo simbólico una ruptura con el menemismo. Con Cavallo,
ministro responsable por la política económica en los 90, el progresismo
se acercaba al menemismo abriendo las puertas para un estallido y
ocupación de las calles que podemos ver en un sentido parecido al de la
ocupación de las plazas en otras democracias del mundo, cuando izquierda
y derecha se muestran indistinguibles y juntas aplicando el mismo tipo
de ajuste para privilegiar deudas y macroeconomía no soberana. “Que Se

35
El progresismo sudamericano frente a su otro

Vayan Todos”, quedaría en el aire hasta que se abriera un nuevo momento


con espacio para políticas progresistas desde el Estado.
No sería tan distante a esta experiencia la reciente dilapidación
acelerada de capital político electoral ocurrida con Dilma Rousseff, que
según los institutos de medición llegaría a una imagen de aprobación entre
6 y 10%. Como Domingo Cavallo, después de una campaña en que el
PT se plantearía como alternativa al ajuste, sería designado Joaquim Levy,
banquero y responsable del programa de quien Dilma había derrotado en
las urnas. La operación judicial Lava Jato, por otra parte, fue criticada por
apoyadores del PT como conspiración de la justicia contra Lula, pero para
la mayoría de la población mostraba como tanto gobierno como oposición
y empresarios –como novedad- transitaban el banquillo de los acusados y
hacían acuerdos por detrás buscando impunidad.
Es inapropiada una construcción del kirchnerismo como un
movimiento político o una gestión definida exclusivamente por la
corrupción. Sus partidarios tienen pleno derecho a señalar como en los
Panamá Papers, el gobierno de Cambiemos y el propio nuevo presidente,
tiene la corrupción ya en su código genético de un empresariado inseparable
de los favores del Estado. También es cierto que el gobierno de Temer
nace de los sótanos del poder, de las prácticas comunes a toda la clase
política en que se intercambia financiamiento de campañas por favores
políticos y apoyo parlamentario por cargos y influencia en la distribución
del presupuesto. Pero después de los años iniciales y momentos especiales
en que el progresismo se reactiva como lugar político posible, queda claro
que antes que reacciones conservadoras ante medidas populares, lo que
desplaza al progresismo es una situación en la que se encuentra donde
antes el progresismo definía a su otro.
Junto a la corrupción, la fuerza del progresismo K se vio también
afectada por medidas que alcanzaron símbolos cuyo descuido horadan el
apoyo de la clase media progresista, núcleo duro de sus defensores. En
lo que hacía al corazón del perfil progresista de los Kirchner, costaría
entender el mantenimiento de Cesar Milani como jefe del ejército, a pesar
de indicios serios de un pasado comprometido desde el punto de vista de
los derechos humanos; o el accionar policial represivo de Sergio Berni,
secretario de seguridad; y la aprobación de leyes “antiterrorismo”. El otro
del progresismo frente al cual emerge este espacio político, también tendría
una batalla difícil en el plano económico, con inflación, control de compra
de divisas y empobrecimiento que, como en Venezuela, después de haber

36
Salvador Schavelzon

sido reducido de forma contundente, empezaría a aumentar. Observadores


cercanos atribuían estos descuidos a la personalidad testaruda de la
presidenta. Volvía más humana una figura que la comunicación estatal
trabaja en mostrar como más allá.

El otro del desarrollo: de plurinacional a


extractivistas
Hay un proceso de moderación y corrimiento hacia el centro por
el que pasaron los partidos surgidos de movimientos sociales y que
vieron esa transformación necesaria para captar el voto de la clase media,
construcción de vínculos con el empresariado, sectores religiosos y políticos
rivales. En Brasil ese movimiento ocurrió antes de llegar al gobierno y
en Bolivia con el gobierno en marcha, pasando por una tortuosa y difícil
búsqueda de aprobación de una nueva Constitución. Pero no es de esta
moderación de donde vemos derivarse un acercamiento del progresismo
respecto de gobiernos anteriores. El mismo es posterior a un proceso de
institucionalización que podría haber seguido otro curso. La sintonización
de los gobiernos progresistas con sus otros se da en un segundo momento,
como preámbulo de la salida del poder, y no con su llegada.
En Bolivia, escándalos que involucrarían al MAS, como el que
llevó a la cárcel a Santos Ramírez, jefe del partido, senador y principal
operador, o el más reciente del FONDIOC, que procesaría dirigentes
sociales, exparlamentarios y ministros, no llegarían a poner la corrupción
en el centro del debate político en un fin de ciclo, como en Argentina y
Brasil, tampoco derivando en Bolivia en un cambio de gobierno, aunque
la derrota en el referendo habilitante a una nueva reelección sí estuvo
teñida de sospechas y operaciones mediáticas vinculadas al tráfico de
influencias de una ex amante de Evo Morales que aseguraba haber tenido
un hijo con él.
El volverse su contrario, como fin de ciclo y testimonio de desgaste,
en Bolivia se expresaría en un alejamiento evidente respecto de las
organizaciones indígenas históricas y los principios que, en alianza con
ellas, fueron introducidos en la Constitución de 2009. Manteniendo su
alianza con el sindicalismo campesino, aunque dejando de lado propuestas
de reforma agraria, la renuncia a avanzar en la construcción de un Estado
Plurinacional Comunitario, con concesiones a la oposición de la Media

37
El progresismo sudamericano frente a su otro

Luna y otros sectores conservadores realizadas para la aprobación del texto


constitucional, se convertiría en un modo de gobierno. Así se incorporarían
continuamente candidatos y aliados políticos provenientes del viejo sistema
de partidos, además de figuras reclutadas para disputar elecciones, desde la
lógica de que parezcan atractivas para el votante conservador en regiones
donde el voto resultaba tradicionalmente adverso. En los últimos tiempos,
de hecho, el proceso de volverse lo contrario en Bolivia se graficaría con un
retroceso electoral en el altiplano, donde el partido de Evo Morales ganaba
por amplia diferencia, acompañado de un crecimiento en la Media Luna,
anteriormente bastión de la oposición.
En un modelo de desarrollo que busca aprovechar los precios altos
de commodities sin reaseguros para momentos de fragilidad de una gestión
que debe recurrir a recortes, puso en evidencia una combinación de extrema
recepción a lobbies empresarios, y la búsqueda de alianzas con sectores de la
burguesía, que en momentos de crisis mostrarían su unidad, en el quiebre
de un intento de propuesta “conciliatoria”, o de priorizar una burguesía
nacional productiva, que ya no era viable cuando el poder financiero, en
Brasil, o el agroexportador en Argentina, habían encontrado un camino
para hegemonizar la economía.
La apuesta por el extractivismo, megarepresas e hidroeléctricas en la
selva u otros emprendimientos, realizados sin consulta o con manipulación
de las mismas, era un reposo sobre recetas anticuadas del nacionalismo y el
desarrollismo de antaño, que regaría selvas y montañas de nuevos conflictos
a los que los gobiernos progresistas, como vimos más arriba, respondería de
la peor manera. La cercanía con su opuesto sería también distancia con la
posibilidad de una cosmopolítica indígena (una política abierta a considerar
el cosmos y una visión no moderna de la naturaleza), presente en artículos
de las constituciones de Ecuador y Bolivia, aunque en contradicción con
secciones que priorizaban el desarrollo, la industrialización y explotación
de recursos estratégicos.
En Ecuador, la concepción biocéntrica, la naturaleza como sujeto de
derecho, el buen vivir se verían clausurados en conflictos como el Yasuní, la
expulsión de la Fundación Pachamama, la exploración petrolera y el impulso
de megaminería contaminante. En Bolivia, frente a una plurinacionalidad
de las autonomías indígenas y descolonización de las instituciones, se vería
la redefinición de la plurinacionalidad como proyecto de inclusión social
por el consumo, sin conflicto con el republicanismo liberal, el centralismo
estatal vinculado al partido de gobierno y el nacionalismo.

38
Salvador Schavelzon

La cercanía de visión con sectores empresarios se muestra con claridad


en el interés estatal por las grandes obras, salida fácil en momentos de
ingreso de recursos que se entrega a un modelo de desarrollo extractivista
con mentalidad de corto plazo y privilegio de favores políticos de un
capitalismo de amigos. En Brasil, Dilma Rousseff sería la gestora de dos
ediciones del Programa de Aceleración de Crecimiento, que prometería
inversiones de más de dos trillones de reales, y que tendría en las obras
para el mundial y en la represa de Belo Monte su ejemplo más visible
de devastación ecológica, corrupción y falta de planeamiento estratégico
favorable para la población.
El volverse tu contrario puede ser visto por algunos como movimiento
dialéctico de superación, como realismo político o como única alternativa
ante la necesidad de estar inmerso en escenarios difíciles con sectores
conservadores. En su defensa política, Dilma Rousseff hablaba de la
alianza con el PMDB como lo que pensaba como alianza con un centro
democrático, que después dejaría de serlo en el momento en que optó
repentinamente por su destitución. El exceso de cohabitación y asimilación
de lógicas, pasaría a ser entonces una victimización, que buscaría que
el mundo escuche la injusticia sufrida por los hasta poco tiempo antes
aliados, o la prensa que no noticiaba simétricamente la corrupción propia
de la de los otros.
Otro camino es el de dejar la discusión argumentativa sobre legados
y disputas jurídicas, para encontrar formas de oponerse y enfrentar los
poderes que avanzan contra lo público o comunitario. Es en el espacio
pequeño entre lo que aparece como imposible y la siempre posible
invención de nuevos escenarios políticos, donde se encuentra un germen
de renovación política desde la izquierda.
Este debate es importante para proyectos políticos que buscan obtener
incidencia a través del sistema político. Encontrar un lugar, en momentos
de fin de ciclo, resulta imposible para los que se aferran a la defensa de
un legado sin replantear los límites de un recorrido. El momento en que
la permanencia en el gobierno se muestra como prioritaria, al punto de
dar la espalda a demandas históricas y asistir como antiguos compañeros
de caminada que fueron parte del mismo proceso, hoy no encuentran
condiciones de continuar apoyando, es un fin de ciclo en la medida en que
ya no encuentra aire político ni apoyo de la población.
En lo que parece ser una nueva investida neoliberal, ya que son políticos
conservadores y representantes de bancos y mercados los que asumen el

39
El progresismo sudamericano frente a su otro

comando luego de la salida del progresismo, cuando no antes de su salida,


no sólo se desploma el progresismo, sino todo un andamiaje político que
remite a los caminos emprendidos en los 80, revisados en sus fundamentos
económicos en los ’90, y con un direccionamiento de recursos para gasto
social y distributivo a través de un ensanchamiento del Estado, en retroceso
en los 90, y planes sociales como política hacia los pobres.  Pese a postular
la llegada de una época definitiva, el progresismo llega a desandar este
camino, iniciando ajustes y privatizaciones en Brasil, acuerdos bilaterales de
comercio en Ecuador y Uruguay, leyes antiterroristas en Argentina y Brasil,
y la retomada de un discurso integrista en cuestiones sexuales y de salud
reproductiva en varios lugares, difícilmente asociable al progresismo.
Ante esta realidad, resulta urgente cuestionar el marco político polarizado
que opone progresistas y neoliberales, constituyendo un campo político ficticio
que no habla de lo que pasa en la política del día a día en el continente; sea para
derribar héroes y reputaciones en linchamientos mediáticos que aprovechan
la indignación de la gente con la corrupción; o para encolumnar seguidores
de un progresismo presentado como única opción efectiva y posible contra el
fascismo. Si la derrota de Cristina, la relativa salud económica de Bolivia que
permite hasta ahora eludir el ajuste, o el impasse sin solución que se vive en
Venezuela permite, al menos en el plano discursivo, mantener la polarización.
Es en Brasil, y exceptuando los sectores receptivos a la denuncia de un golpe,
donde es más difícil pasar por alto que el gobierno depuesto y su sucesor aplican
las mismas políticas y cuentan con buena parte de ministros y otros cargos de
confianza en común (casi la mitad del primer gabinete de Temer habían sido
parte de gobiernos del PT).
Mientras la clase política se muestra cada vez más indistinguible, sin
embargo, nuevas protestas como las de junio de 2013 en Brasil, o la de
pueblos indígenas en Ecuador y Bolivia mostraron que hay posibilidad
de espacios políticos que se opongan a los retrocesos y ajustes desde la
construcción de nuevos horizontes. La administración progresista permite
cada vez más que palabras como democracia, justicia y constitución sean
empleadas desde una oposición conservadora, poniéndolas al servicio de
una gobernanza neoliberal incuestionada. Es entonces que se muestra
necesario buscar formas de resistencia que en lugar de restauración de
un orden encuentren capacidad para pensar lugares diferentes con fuerza
política e imaginación.

40
China e Brasil no olho da crise
Giuseppe Cocco36
Bruno Cava37

No olho da crise e de suas três dimensões


Falar de desenvolvimento, crescimento e inovação na América do Sul
e particularmente no Brasil na década de 2005 a 2015 é falar da “explosão”
das relações diplomáticas e sobretudo econômicas entre essa região e
a China. A última década na América do Sul foi sobretudo uma década
chinesa. Essa linha de transformação foi, em geral, relegada aos estudos da
área de relações internacionais e ao papel dos governos ditos “progressistas”
(com particular enfoque ao BRICS). Ao mesmo tempo, essa década chinesa
na América do Sul se fecha hoje com o esgotamento do “ciclo progressista”
e uma série de turbulências macroeconômicas que envolvem ao mesmo
tempo o fracasso das políticas econômicas implementadas pelos governos
da região e a inflexão chinesa. O Brasil é o país chave para se apreender
essa fase e seus desafios, pois ele passou da condição de ser o mais estável
baricentro político e econômico da região ao mais precário, atravessado
por uma duríssima depressão econômica e uma grave crise política.
Com efeito, apreender as relações entre China e América do Sul em
geral e entre China e Brasil em particular nesse início de 2016 parece ser
uma tarefa fácil. As turbulências que atravessam as economias dessas duas
regiões se retroalimentam. O eventual “pouso forçado” do crescimento
chinês emite ulteriores sinais de alertas para uma economia sul-americana
e brasileira já profundamente extenuadas. Trata-se de um nítido e potente
indicador do peso decisivo que a China adquiriu nos últimos 15 anos, para
o bem e para mal, em toda a região. A China não só se tornou na maior
36
Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro da Pós-Graduação da
Escola de Comunicação e do Programa em Ciência de Informação (Facc-Ibict).
37
Bruno Cava é blogueiro e pesquisador associado à Universidade Nômade, autor de A multidão
foi ao deserto (2013). É graduado e mestre em direito pela UERJ, e graduado e pós-graduado
em engenharia de infraestrutura aeronáutica pelo ITA.
China e Brasil no olho da crise

receptora das commodities produzidas no subcontinente, como também


sócia de empreendimentos estatais e privados, investidora em projetos de
infraestrutura, credora de empréstimos garantidos por petróleo.
O intercâmbio entre América Latina e China se expandiu em um ritmo
sem precedentes nos últimos 15 anos (...) multiplicando-se 22 vezes”38. O
aumento geral das trocas é marcado por uma forte assimetria na cadeia global
do valor: “A participação total da América Latina no GVC aumentou muito
pouco e continua abaixo da média global”. Ao mesmo tempo, “a quota
infrarregional da região cresceu de 5% para 9%, aquela da China passou de
1% para 11%”. Não apenas a China se tornou o parceiro mais importante
da região no seu conjunto, mas ainda mais importante no que diz respeito as
trocas infrarregionais em termos de valor agregado. Entre China e América
Latina, a assimetria se torna então ainda mais forte no plano do papel que
a economia asiática desempenha dentro do continente, substituindo-se aos
países da região nas relações que eles tem entre si: “In 2013, commodities
accounted for 73% of the region’s exports to China, compared to 41% of its
worldwide export sales. Low -, medium- and high-technology manufactures
accounted for just 6% of the region exports to China, compared to 42% of
its global exports. By contrast, whereas low-, medium- and high-technology
manufactures accounted for 91% of Latin American imports from China in
2013, they represented 69% of its global imports”. China became the most
important partner for Brazil, Chile and Peru” 39.
A emergência das chamadas “novas classes médias” no ciclo progressista
da América do Sul está associada, entre outros fatores, ao crescimento acelerado
do acesso a bens de consumo. Estes, por um lado, são manufaturados a baixo
custo em fábricas asiáticas ou em maquiladoras locais alimentadas por elas e, por
outro lado, o maior acesso se viabiliza graças a um aumento de renda e crédito
que também tem a ver com a exportação das commodities para saciar a sede
da massiva urbanização chinesa por metais, energia e proteína. O consumo de
massa que chegou decisivamente ao Sul neste século é indissociável do impacto
de reestruturação em grande escala deflagrado pelo desenvolvimento chinês,
a ponto que variações na Bolsa de Xangai se convertem, com a rapidez dos
humores financeiros, em ondas de choque na América do Sul.
A movimentação da imprensa no Brasil não deixa dúvidas a esse
respeito. As turbulências chinesas na virada para 2016 geraram uma
38
OECD/CAF/ECLAC, Latin American Economic Outlook 2016. Towards a New Partnership
with China, OECD publishing, Paris.
39
Ibid., p. 21.

42
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

enxurrada de artigos, noticias, editoriais e colunas40. Um economista


da Universidade Federal do Rio de Janeiro escreveu em sua coluna: “O
episódio ocorrido nas bolsas de valores da China no último dia 4 de janeiro,
quando da reabertura do mercado financeiro mundial após as férias de ano
novo, serviu para confirmar o que já vinha sendo possível de intuir: está
todo mundo em pânico”41.
É a governança da globalização capitalista que se encontra num
impasse estratégico. O historiador nacional-desenvolvimentista José
Luís Fiori fala de “(...) uma transformação geopolítica e geoeconômica
gigantesca (cujos) desdobramentos determinarão os caminhos e as
oportunidades do século XXI”42. Uma “mudança tectônica” que deixa
o mundo “(...) ainda mais indeterminado e imprevisível” do que já
é normalmente43, na violenta transformação das relações de forças
e intercâmbios econômicos daquilo que seria o sistema interestatal
capitalista. Tributário das teorias da economia-mundo e do capitalismo
histórico, Fiori discorda das projeções que os Estados Unidos viveriam
um século de declínio, com o centro dinâmico do capitalismo se
deslocando para o Leste Asiático. Em vez disso, ele antevê um complexo
tabuleiro de tensões e interdependências entre China e EUA, os dois
gigantes do Pacific Rim, – casa de máquinas e laboratório digital da
produção planetária. Para Fiori, os EUA ainda se situam, com relativo
conforto, nessa posição privilegiada no topo do sistema, mas a China,
com matriz político-econômica própria, “entrou na disputa a longo
prazo”44.
40
Por exemplo, apenas em um dia, tão somente no diário econômico Valor, era possível
encontrar 4 artigos dedicados às turbulências chinesas. No primeiro deles retoma-se uma nota
da Reuter que diz: “Indústria piora na China e nos EUA e expõe fraqueza”, Jornal Valor, 5 de
janeiro de 2016, p. A7. Na página seguinte, o editorial do jornal afirma que “Ano novo dos
mercados começa com um susto chinês”( Ibid., p. A8). Em seguida, no caderno que publica
a edição brasileira do Wall Street Journal Americas, podemos ler a matéria de três jornalistas
das redações de Hong Kong e Pequim: “Mercado mundial despenca em meio a mais sinais
de desaceleração na China” (Chao Deng, Anjani Trivedi e Mark Magnier, p. B6). Enfim, no
caderno dedicado às “Finanças”, encontramos um artigo que nos informa: “Preocupação com
China derruba bolsas e dólar vai a R$ 4,03”, Assinado por Silvia Rosa, José de Castro e Aline
Cury Zampieri, p. C1.
41
David Kupfer, “Todo mundo em pânico”, Valor, 9 de janeiro de 2016, p. A9. Grifos nossos.
Nesse mesmo artigo, Kupfer lembra que algo como US$ 2,5 trilhões – ou seja algo como o PIB
brasileiro de 2015 - evaporaram dos mercados acionários mundiais nos primeiros quatro dias
úteis de 2016.
42
José Luís Fiori, “Sincronia e transformação”, Valor, 28 de agosto de 2015, p. A15.
43
José Luís Fiori, “A subida da ladeira”, Valor, 27 de agosto de 2014, p. A11.
44
FIORI, “Sincronia e transformação”, Ibid.

43
China e Brasil no olho da crise

A crise da Bolsa de Xangai seria, em sua avaliação, uma sinalização


da mudança de rumos da China, a fim de traçar esse caminho estratégico.
Ao contrário, nós pensamos que os impasses da crise e a violência dos
movimentos tectônicos e imprevisíveis em andamento têm a ver com o
fato que o mundo não é mais o fato de um sistema “interestatal”, mas sim
supraestatal e pós-soberano, onde os Estados ainda desempenham um papel
importante sem ao mesmo tempo ser mais os protagonistas decisivos.
Se a nova fase da globalização se abriu “formalmente” com a queda do
muro de Berlim (em 1989) que separava o reduto socialista do ocidente
neoliberal, hoje está caindo um outro muro, aquele que separava o sul e o
norte. O dispositivo fundamental dessa queda é a China: ao mesmo tempo
“comunista” e o principal ator da queda da URSS (desde a abertura das
negociações secretas, no início da década de 1970).
O risco de assumir uma concepção homogênea de poder, que se
resolve num tipo de Jogo de War por influência e supremacia, é perder de
vista que o capitalismo depende fundamentalmente de uma produção de
subjetividade. Ou seja, a realpolitik não leva em conta como o mesmo poder
que domina, subjuga e explora, também suscita, produz variações, escapa.
O sistema interestatal capitalista (SIC) supõe que a disputa geopolítica seja
determinante nas configurações político-econômicas, reduzindo assim o
terreno das lutas à conquista em dois tempos, ou escalas, primeiro o poder
do estado nacional e, depois, a sua afirmação diante dos demais estados.
A formulação do SIC lembra aquela, mais tradicional, do imperialismo
como estágio superior do capitalismo, ainda que os economistas do mundo
desdobrem uma maior complexidade topológica.
Entendemos, no entanto, que a verdadeira força motriz do
metabolismo capitalista esteja na captura e no controle que ele consegue
realizar da produção social de riqueza, da atividade constituinte da própria
vida material, hoje cada vez mais associada ao trabalho cognitivo, afetivo e
biopolítico das multidões. Aí está o segredo da “câmera escura” do capital,
e é aí que se podem perseguir estratégias de resistência que ponham a
crise intrínseca dessa operação de captura e controle. É preciso entender
a entrada decisiva da China na globalização, portanto, nem tanto como
um novo ator geopolítico de um tabuleiro interestatal reconfigurado, mas
como a emergência de uma nova subjetividade que passa a condicionar
práticas de poder e regimes de verdade, i.e., o que Foucault chamava de
‘governamentalidade’.

44
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

A inflexão chinesa
A inflexão (ou crise) do modelo chinês de desenvolvimento é delicada
por causa de suas variáveis internas e sobretudo dessa absoluta inscrição nos
fluxos globais. Não se trata de uma questão “chinesa”, mas imediatamente
global e isso já nos antecipa a clivagem que queremos investigar: um
mundo que vai além do sistema interestatal. Para a América do Sul, essa
“mudança” e seus desafios constituem uma oportunidade para aprofundar
o debate sobre a economia global e sistema-mundo para apreender, ao
mesmo tempo, o esgotamento da governança neoliberal da globalização e
o fracasso das tentativas de saída neodesenvolvimentista.
A economia chinesa já se tornou “muito importante e grande
(demais) para fracassar: nenhum outro lugar – nem a Índia, a Rússia
ou o Brasil – oferece a escala e o potencial da China”45. Por um lado, os
riscos são internos ao modelo chinês e à narrativa que, pelo que parece,
proporcionou até agora o mix de loyalty and voice46 suficiente ao Partido
Comunista para manter-se no poder. Pelo outro, a trajetória chinesa tem
impactos gerais na economia global e, particularmente, nas economias
emergentes especializadas na exportação de commodities, como a quase
totalidade da América do Sul, pondo em risco projetos, investimentos e
circuitos econômicos em via de consolidação.
Isto não significa, como se poderia supor à primeira vista, que haja
uma dependência ferrenha entre os governos progressistas e o governo
chinês, nos termos dos teóricos da troca desigual ou do “desenvolvimento
do subdesenvolvimento”. O paradoxo é que a entrada da China se dá
mediante projetos executados de maneira integrada e planificada pelas
políticas estratégicas dos governos progressistas. Quer dizer, os próprios
governos interpretam a chegada da China como oportunidade para o
aumento e não redução do grau de soberania de sua presença no SIC, mas
de fato aprofundam a dependência47. A dependência chinesa se insere,
45
Vivian Oswald, entrevista a Kerry Brown, “A China é muito importante e grande para
fracassar”, Valor-Eu, 29 de janeiro de 2016.
46
Alberto O. Hirschman, Exit, Voice and Loyalty, Harvard, 1970.
47
Tome-se, por exemplo, o megaprojeto do Arco Norte na frontier amazônica do Brasil, que
prevê um circuito integrado de portos, hidrovias, redes de transmissão, barragens e vias inter-
oceânicas (a “Estrada do Pacífico”), integrando um gigantesco complexo agromineral, focado
na extração de soja, milho e minérios. Como alerta Camila Moreno, tal entrada violenta do
fator China na Amazônia exacerba contradições e dissemina conflitos por todos os ecossistemas
e comunidades envolvidos. Diante dessa revolução permanente do capital, difícil não pensar na
perspectiva do Antropoceno ou nas palavras de Marx e Engels, no Manifesto Comunista, sobre a

45
China e Brasil no olho da crise

assim, na lógica interdependente, de maneira similar a que, nos anos


1970, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto se referiam à “nova
dependência”.
Como dissemos, nos últimos 15 anos, a novidade na América do
Sul e, sobretudo, no Brasil foi a “chegada” multifacetada e em contínua
expansão da China: como importadora de commodities, exportadora de
bens manufaturados e agora como investidora e banco: a nova condição
é a de um “Brasil, Made in China”48. A China não é apenas uma parceira
comercial, mais uma referência norteadora para o neodesenvolvimentismo:
primado da intervenção estatal mediante direcionamento de fundos
públicos e planejamento central de infraestrutura de energia, transportes
e integração logística; preferência por grandes empresas que possam
atuar competitivamente na globalização (as ditas “campeãs nacionais”);
megaeventos que também sirvam para projetar a imagem do país e
mega-obras que concentrem enorme afluxo de capitais, em particular
as megabarragens. A China, o seu Partido Comunista, o seu mercado
“regulado” pela centralização “socialista”, as suas políticas de vigilância das
redes e de controle (pelo passaporte interno, o Hukou49) do êxodo rural (dos
mingong, os rurais que trabalham ilegalmente nas cidades)50 constituem
ao mesmo tempo os fins das esperanças neodesenvolvimentistas brasileiras
e sul-americanas e, agora, – com seus bancos e empresas investindo
diretamente na América do Sul, – também os meios.
É preciso lembrar que o mecanismo pelo qual o poder na China
controla a mobilização dos pobres para o trabalho constitui o cerne do
modelo chinês. Se trata de um dispositivo de articulação entre Hukou
e Mingong: por um lado, os trabalhadores migrantes são regulados pelo
sistema nacional de vistos (Hukou), criado em 1958 para impedir o êxodo
dos camponeses para as cidades. Pelo outro, um sistema de contratação
nacional foi introduzido em 1978 para liberar os camponeses do trabalhou
civilização capitalista que “que fez surgir gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-
se ao feiticeiro que já não pode controlar as forças internas que pôs em movimento com suas
palavras mágicas.”
48
Camilla Moreno, Cit.
49
Vide Ricardo Sugai de Castro Andrade, HUKOU: PLANEJAMENTO OU CONTROLE?
Desenvolvimento e migrações na China contemporânea, março de 2008., UFSC, Florianópolis,
disponível in
http://tcc.bu.ufsc.br/Economia293338
50
Daouda Cissé, The invisible face of China’s economic development: the mingong, Centre for
Chinese Studies Stellenbosch University, March, 25, 2013, disponível in http://www.ccs.org.
za/wp-content/uploads/2013/03/CCS_Commentary_The_Mingong_DC.pdf

46
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

coletivo forçado nas comunas e alocá-los às cidades. Esse é o dispositivo da


disciplina e da oferta de trabalho a baixo preço: os camponeses podem ir
para as cidades, mas o sistema do Hukou continua a negar-lhes a cidadania
urbana e os reduz a Mingong51. Uma dinâmica parecida às das favelas
brasileira, só que aqui a negação da cidadania é algo produzido por um
biopoder que insiste mais na política de extermínio dos pobres do que na
explicita discriminação legal (a guerra à drogas e o instituto legal do “auto
de resistência” que permite às polícias de matar quem elas bem querem nas
periferias e nas favelas mais em geral).
Assim, a China desempenhou um duplo papel dentro dessa
evolução: em primeiro lugar puxando as exportações de commodities
brasileiras e continentais; em seguida, tornando-se o modelo de referência:
com suas altíssimas taxas de crescimento, grandes empresas, grandes
bancos estatais e megaobras, sob o comando do Partido central. Hoje, a
China corre o “risco” de desempenhar um terceiro papel, irônico: ser a
potência econômica que mais pode se beneficiar com a quebra econômica
dos governos progressistas na América do Sul, que haviam querido imitá-la
ou nela se inspiraram52.
Tudo isso claramente enfatiza a urgência das pesquisas e reflexões
sobre as relações que se teceram e se tecem entre o Brasil e a China e mais
em geral entre todos os países e/ou mercados “emergentes”. Ao mesmo
tempo, temos obviamente um desafio: como colocar as questões da
urgência de uma conjuntura extremamente móvel e incerta na perspectiva
das dinâmicas estruturais e de longo prazo? Por um lado, o fato de
estarmos “no olho do furacão” da crise torna os contornos de nosso objeto
51
Chris King-Chi Chan, The Challenge of Labour in China. Strikes and the changing labour
regime in global factories, Routledge, New York, 2010, p. 6.
52
Cláudia Schüffner, “Empréstimo chinês de US$ 10 bi da Petrobras não é secutirização”,
Valor, 1 de março de 2016, p.B4. Daniel Rittner, Murilo Camarotto e Tainara Machado,
“”Rodovias entram no radar dos chineses”, Valor, 12 de Janeiro de 2016. Apesar de a Petrobras
não ter comunicado os termos desse empréstimo, Camila Moreno escreve que em 2009 a estatal
chinesa Sinopec assinou um contrato de compra de petróleo da Petrobras por 10 anos, que
serviu como garantia de um empréstimo de US$10 bilhões do Banco de Desenvolvimento
da China para a Petrobras. O acordo estipulou que a Petrobras devia aumentar suas vendas
para a Unipec Asia (uma subsidiária da Sinopec) de 150 mil barris por dia no primeiro ano
do contrato para 200 mil barris por dia durante os nove anos seguintes. Além do empréstimo,
na ocasião foi firmado um memorando de entendimento entre a estatal brasileira e a Sinopec
visando à cooperação em áreas de exploração, refino e petroquímica. Esse empréstimo à
Petrobras foi de suma importância, tendo em vista o momento de fragilidade financeira que a
empresa experimentou naquele ano e continua tendo. Cf. O Brasil Made in China: Pensar as
reconfigurações do capitalismo contemporâneo, Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo, 2015

47
China e Brasil no olho da crise

de reflexão (as relações entre China e Brasil) mais nítidos e produtivamente


contrastados. Pelo outro, a única maneira para não sermos sugados dentro
do vórtice das incertezas da conjuntura e perder assim toda possibilidade
de apreender os desafios abertos pela e dentro da crise, é de se afastar dele
procurando outros pontos de vista. A questão que está em jogo é de se
saber se a ascensão das economias emergentes, nas últimas décadas, veio
apenas a reboque da expansão chinesa e, pois, se as turbulências da China
agora determinarão um inevitável e incontrastável efeito depressivo – ou
se, ao contrário, existem elementos estruturais e duradouros nos últimos
20 anos no Sul, isto é, se houve produção de novos valores.

O esgotamento do ciclo das commodities: crônica


de uma morte anunciada
Em geral, a literatura econômica descreve o dispositivo de integração
das economias emergentes na economia global como algo que funciona
com base nos diferenciais entre taxas de crescimento, taxas de juros e a
aversão a riscos: “Crescimento mais rápido e taxas de juro mais elevadas
nos mercados emergentes estimulam os fluxos de capital com destino aos
primeiros, ao passo que um aumento na aversão mundial a riscos (...) os
desincentivam”53. No período pós-crise de 2007-2008 houve uma série
de mudanças: inicialmente, os fluxos de investimentos em direção aos
países emergentes aumentaram mais do esperado, acima de sua tendência
estrutural de longo prazo, pois estavam mais sensíveis aos diferenciais de
juros: assim podíamos ler – em 2011 – que “as regiões emergentes da Ásia
e da América Latina (são) os motores do investimento mundial”54. Em
seguida, a partir de 2013, houve uma diminuição mais abrupta do previsto.
A desaceleração da China e a recessão prolongada em regiões da Europa
enfraqueceram a demanda de commodities no mundo, pressionando para
baixo o crescimento em países exportadores de commodities como Brasil,
Rússia e África do Sul. Já em setembro de 2013, o ex-economista-chefe do
FMI, Kenneth Rogoff, escrevia: “a desaceleração dos mercados emergentes
deveria ser uma advertência de que algo muito pior poderia acontecer”55.
53
Laura Tyson, “Rota atribulada para os emergentes”, Valor, 4 de setembro de 2013.
54
Le régions émergentes d’Asie et d’Amérique latina, moteurs de l’investissement mondial, Le
Monde, 27 juillet 2011.
55
“Os mercados emergentes estão submergindo?”, O Globo, 4 de setembro de 2013. Grifos
nossos.

48
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

Em meado de 2015, dentre todos os países emergentes, o Brasil é visto


como “provavelmente o que mais vem sendo impactado adversamente. O
escândalo de corrupção envolvendo a Petrobras, gigante petrolífero, gerou
uma crise econômica, a moeda sofreu uma desvalorização e o crescimento
cessou”56. Na realidade, em 2015 e 2016, o Brasil entrou numa recessão
profunda que beira a depressão e o tal do “escândalo” é mais uma
consequência do que uma causa de uma crise que, antes de se manifestar
nos números da recessão e do desemprego, tinha manifestado nas ruas de
todo o Brasil em junho de 201357.
O esgotamento do ciclo das commodities foi anunciado desde
pelo menos 2012. A crise atual é, para muitos observadores nacionais e
internacionais, a ”crônica de uma morte anunciada”58. Já em 11 de janeiro
de 2012, Jan Kregel afirmava: “Sem fluxo chinês, não há crescimento para
o Brasil e, pois, o crescimento que o Brasil conheceu na primeira década
de 2000 não veio do investimento, do aumento da produtividade ou da
expansão da produção manufatureira. Mas da China. Sem ela, tudo isso
desaparece”59. Em dezembro de 2012, o Diretor do Nomura Securities
International Inc escrevia: “A questão mais importante hoje é a desaceleração
das grandes economias emergentes, como a China e o Brasil”60. O fim do
ciclo de commodities e o pouso da China são fenômenos entrelaçados.
Em termos de previsões, tudo isso produz um pessimismo generalizado:
caso a China desacelere mais do que o esperado, uma nova queda forte
das commodities poderá ocorrer, gerando uma nova perda de renda nas
economias emergentes. Já se fala de mais uma “década perdida”: calcula-se
que o Brasil recuperará “o PIB per capita de 2013 somente por volta de
2022” e isso implicará num maior distanciamento do Brasil de China e
Índia” 61. Distanciamento que pode enfraquecer os esforços – muito deles
brasileiros – de transformar os BRICS em um bloco geopolítico e reduzi-lo
a um grupo de “China + 4”62.
56
Dani Rodik, “Emergentes de volta aos fundamentos”, Valor, 14 de agosto de 2015. Grifos
nossos.
57
Sobre o levanter de junho de 2013, vide Bruno Cava e Giuseppe Cocco (orgs), Amanhã vai
ser Maior, Anna Blume, São Paulo, 2014. Also see Giuseppe Cocco, Against the Day – The
Insurgent Multitude in Brazil – June in Janeiro, South Atlantic Quarterly (2014), 113(4): 838
– 845 - Duhran
58
Ha-Joon Chang, Turbulência à vista, de novo, Valor, 29 de janeiro de 2016.
59
Valor, 11 de janeiro de 2012.
60
Tony Volpon, “A crise é permanente, mutante e contagiosa”, Valor, 21 de setembro de 2012.
61
Jorge Arbache, “Para voltar a crescer”, Valor, 6 de janeiro de 2016.
62
See: Proposal by BRICS Think Tanks Council, Towards a Long-Term Strategy for BRICS,
in http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/150724_brics_long_term_strategy.pdf

49
China e Brasil no olho da crise

Temos assim uma crise de três dimensões: a crise brasileira (e de todo


o subcontinente sul-americano); a crise ou inflexão chinesa (com todo o
debate sobre suas reais dimensões) e enfim, a interconexão entre as duas
como algo que precisa ser apreendido com urgência e em todas suas
dimensões. A essas três dimensões podemos juntar uma quarta, aquela
que parece vir de uma nova guerra fria. Setores da esquerda neosoberanista
europeia e sul-americana esperam a afirmação de um novo fora. Para
Boaventura de Souza Santos, a nova guerra fria estaria colocada entre um
“capitalismo neoliberal global”, representado pelo sistema financeiro cujo
coração está em Wall Street, nos EUA, e um “capitalismo social-democrático
ou (residualmente) nacional-popular”, representado pelo bloco alternativo
dos BRICS63. O sociólogo português reproduz um argumento de Giovanni
Arrighi e Lu Zhang64, de que a virada neoliberal dos anos 1980-90 foram
um instrumento contrarrevolucionário coordenado por Washington para
retomar a hegemonia norte-americana no Terceiro Mundo. A agenda do
Consenso de Washington significou, assim, a reação das elites financeiras
globais contra estratégias estatalistas ou desenvolvimentistas emanadas do
bojo das lutas anticoloniais do século 20. Diante das shock therapies receitadas
por instituições como o FMI ou o Banco Mundial, a via chinesa teria sido
o teatro de um gradualismo assentado sobre o equilíbrio entre intervenção
estatal e economia de mercado, combinando assim a força manufatureira
das economias locais com o direcionamento export-led propiciado pelo
estado central65. “A ascensão chinesa já está colocando um sério desafio
ao cada vez mais desacreditado Consenso de Washington”66. Santos pensa
que, no século 21, o Brasil também respondeu à hegemonia neoliberal
com um projeto capaz de dosar a lógica de mercado e a realização de uma
agenda social, num equilíbrio propiciado pelo governo progressista e seu
intervencionismo. Tudo isso configuraria uma nova disputa hegemônica
de projetos, entre duas matrizes do capitalismo, por assim dizer, entre
um neoliberalismo tout court e um capitalismo com face social. Ao
contrário, nos parece que que a pujança chinesa não apenas é fruto da
globalização neoliberal, mas um de seus mais importantes dispositivos.
63
Boaventura de Sousa Santos, “Brasil: a grande divisão”, Carta Maior, 5 de novembro de 2014,
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Brasil-A-Grande-Divisao/32167
64
ARRIGHI, Giovanni; ZHANG, Lu. Dopo il neoliberismo. Il nuovo ruolo del Sud nel mondo.
In ARRIGHI, Giovanni. Capitalismo e (dis)ordine mondiale. Roma: manifestolibri, 2010. p.
181-185
65
Ibid. p. 189-191.
66
Cit. P. 206.

50
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

Sem a deslocalização industrial em território chinês, a flexibilização das


condições de trabalho no mundo como um todo não teria tido condições
de se afirmar.
Mais ou menos na mesma linha de Santos, Fiori afirma que haveria
uma mudança em curso e que essa seria o fato da iniciativa dos países
emergentes: “O mundo bipolar da Guerra Fria acabou há muito tempo”,
mas também já teria acabado “o mundo multipolar que se desenhara como
possibilidade no início do século XXI”. A clivagem estaria se construindo
exatamente em torno dos BRICS: “(a) mudança (...) ficou caracterizada na
reunião realizada na cidade de Ufa, na Rússia, no mês de julho de 2015, do
grupo dos BRICS, e logo em seguida, da Organização da Cooperação de
Xangai, que já conta com adesão, como observadores, de Índia e Mongólia,
configurando uma nova bipolaridade global entre regiões e civilizações, e
não entre países de uma mesma cultura europeia e ocidental”67.
Pelo visto, o choque das civilizações (Huntington: 1993, Minxin
Pei:2008) não empolga apenas os conservadores, mas também setores da
esquerda anti-imperialista europeia e brasileira. Teríamos aqui uma quinta
dimensão, que seria aquela das guerras globais, mas desenvolveremos apenas
para falar da questão da corrupção. O horizonte de uma nova competição
entre Estados Unidos e um novo polo de poder, a China, é necessário para
a manutenção de uma perspectiva estatal e nacional, da mesma maneira
que ele permite reforçar a ideia de que a China seria um “novo velho” fora.
Mas, Steen Christensen e Raúl Bernal-Mezra lembram que a integração da
China no mercado capitalista global foi estratégica para a queda da União
Soviética. Se trata também do que aparece no livro de Henry Kissinger:
On China (2011).
Diferentemente das análises em termos de soberania ou hegemonia
estatal, residuais de uma esquerda nacionalista e nostálgica do xadrez
da Guerra Fria, precisamos de uma perspectiva que realce os elementos
de complementaridade, juntando simbioticamente as transformações
da economia norte-americana e o rápido crescimento da chinesa..
Camila Moreno aponta como é “preço chinês” que permitiu o “preço
Walmart”68. Noutros termos, Mezzadra e Roggero (2010) sugerem que
“o Ipod, o Iphone e o Ipad (não) existiriam sem as fábricas da Foxconn
nas zonas econômicas especiais do Sul da China”. Ou seja, há uma
complementaridade e interdependência entre o campeão do Ocidente (os
67
“Sincronia e transformação”, cit.
68
Ibid.

51
China e Brasil no olho da crise

Estados Unidos) e aquele do Oriente (a China), algo que a literatura chegou


a chamar de Chimerica, com toda a ambiguidade do jogo de palavras: uma
complementaridade entre China e América que não deixa de ser uma...
quimera69.
No meio dessa complementaridade e de suas transformações, temos
a possibilidade de ir além da clivagem (e dos choques) de civilizações
e de interesses entre grandes potências, a fim de apreender as linhas de
conflito e a produção de subjetividades envolvida que, no leste e no oeste,
no sul e no norte, definem as novas formas de exploração e também de
luta pela democracia. Não foi por acaso que a tão esquecida acampada
de Tiananmen Square – ainda em 1989 – e sua “Comunidade por vir”
anteciparam o longo ciclo de lutas que se desdobrou nas ruas de Túnis, nas
acampadas da Praça Tharir no Cairo e da Puerta del Sol em Madrid, antes
de chegar no Zuccotti Park de New York, no Parque Gezi em Istambul, no
levante da multidão brasileira de junho de 2013 ou na Praça Maidan em
Kiev, na Ucrânia.

Qita70: o que resta da narrativa progressista depois


da década chinesa da América Latina?
As atuais turbulências chinesas, sejam elas um pouso forçado ou
uma inflexão administrada do modelo de desenvolvimento baseado no
investimento pesado para a exportação para um destinado ao consumo
interno, transformam essa partnership numa fonte suplementar de crise
e instabilidade para toda a América Latina. Essa súbita inversão dos
trends já é vista como a revelação de uma grande fraqueza: o potencial
de crescimento (das economias Latino Americanas) parece ser bem mais
franco que o esperado.
Já temos aqui uma questão sobre a noção de economias emergentes
e também sobre a transformação do acrônimo BRIC em uma realidade
geopolítica: podemos ainda falar de um deslocamento geral do centro
mundial da economia para o conjunto das economias emergentes
ou isso se reduz apenas à China? Mais ainda, esse deslocamento está
mesmo acontecendo ou estamos apenas assistindo a uma crise terminal
69
Vide Niall Ferguson and Moritz Schularick, The end of Chimerica, Harvard Business School,
Working Paper 10-037.
70
Qita significa em chinês: o resto. Cf. Lucien Bianco, La récidive. Révolution russe, revolution
chinoise, Gallimard, Paris, 2014, p.63.

52
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

da globalização neoliberal? A consolidação diplomática dos BRIC pode


esconder na realidade apenas um novo tipo de hegemonia da China – e,
portanto, uma nova dependência – junto a seus maiores fornecedores de
insumos básicos ou um novo tipo de cooperação Sul-Sul?
A interdependência entre exportações manufatureiras chinesas e
exportações sul-americanas de commodities está hoje funcionando pelo
avesso, aprofundando a crise das economias da América do Sul e levando
com elas os governos progressistas. A queda dos preços e dos volumes de
exportação das commodities não tem como consequência uma redução
das relações entre China e América Latina, mas uma transformação de seu
conteúdo rumo a um aprofundamento mais estrutural: “China has declared
Latin America priority region for financial investment. Since 2010, loans
from China alone reached USD 94 billion compared to USD 156 form
the World Bank, the CAF – Development Bank of Latin America and
the Inter-American Development Bank combined”. It mean: “this trend
is likely to persist given China’s long-term financial strategy to broaden
portfolio of countries and sectors”71.
Entre China e Brasil temos uma situação invertida bastante
interessante: a China está querendo passar do modelo de investimento
pesado extremamente concentrado ao investimento baseado no consumo
ao passo que o Brasil enfrentaria o desafio oposto: passar de um modelo
popular de investimento baseado em consumo para outro, focado em
investimento e competitividade.
Em geral, a maioria das abordagens da crise se caracteriza por assumir
como dada e resolvida a inflexão chinesa (em termos de modelo futuro) e
se divide na análise da situação brasileira (e sul-americana): por um lado há
os que dizem que o Brasil se manteve na “mordomia” das commodities sem
usar os fluxos de riquezas gerados pelas exportações para fomentar a sua
própria indústria (se reindustrializar), desperdiçando uma oportunidade
histórica; pelo outro, há os que, – ao contrário, – dizem que essa tentativa
foi mal conduzida e mal administrada. Grosso modo, todo o mundo
concorda em dizer que o Brasil (e a América do Sul) ficou preso no modelo
neoextrativista. Michael Pettis, da Guanghua School of Management de
Pequim, sugere que o “preço das commodities em alta é como cocaína.
Quando os preços aumentam, as pessoas simplesmente se esquecem de
tudo”72. O Brasil teria, pois, se “viciado” no dinheiro fácil das exportações
71
OECD/CAF/ECLAC, Latin America Outlook 2016, Cit. , p.18.
72
“Preço alto das commodities é como cocaína, diz Pettis”, Valor, 25 de setembro de 2015.

53
China e Brasil no olho da crise

de minério e produtos agrícolas de base e assim esquecido de investir em


suas indústrias de transformação. O economista de Cambridge, Ha-Joon
Chang, pensa que o Brasil não soube usar os recursos do período de ouro das
commodities para reindustrializar o país: “Negligenciaram a reconstrução
da indústria. (...) o governo não usou contra (a desindustrialização) os
recursos que o país obteve graça ao boom de exportações”73.
Com nuances diferentes, os economistas que enfatizam a
incapacidade das economias da América do Sul e do Brasil em particular
de aproveitar o ciclo de ouro das commodities para reindustrializar-se
pensam, ao mesmo tempo, que a chegada da China constitui mais uma
ameaça do que uma oportunidade para o desenvolvimento da região. À
medida que a participação da China aumenta, ocorre o deslocamento do
comércio intrarregional, com o gigante asiático se tornando o principal
parceiro comercial (amiúde financeiro) de cada um dos diferentes países
do subcontinente. O economista argentino Aldo Ferrer afirma: “Esse
relacionamento que cada um dos países latinos está tendo com a China é
muito ruim para a integração (latino-americana)”. Com efeito, continua
Ferrer, “a produção da China está substituindo o Brasil na Argentina e a
Argentina no Brasil”. A OCDE chama para uma possível harmonia entre
a agenda da integração regional e os laços que cada país estabelece com a
China. Mas, “a experiência recente mostra que acordos bilaterais podem
beneficiar os mercados de alguns países e ter um impacto negativo sobre
outros. O uso de plataformas regionais de competitividade poderia ao
contrário reforçar a capacidade regional de negociar com a China”. Isso
dependerá da capacidade que as diferentes plataformas regionais (como
Caricom, Mercado Comum da América Central, Mercosul, Aliança do
Pacifico) de contribuir “para a construção o mecanismo de coordenação,
desenhando uma estratégia vis-à-vis da China, ao mesmo tempo que a
criação de um maior mercado regional, mais atrativo para os investidores,
melhorando as infraestruturas e a logística, com base em investimentos
públicos e privados, poderá contribuir à agenda da integração, ajudando
as economias da região a reposicionar-se na cadeia global do valor” 74.
Diplomaticamente, os autores do OECD Economic Outlook (2016) avisam:
“A China também precisa entender os desafios do desenvolvimento Latino
73
“Turbulência à vista, de novo”, Valor, 29 de janeiro de 2016.
74
Latin American Economic Outlook 2016, cit., p.28. It is importante to see that “In Latin
America, 57% of exports consisti f perishable or logistic-intensive products, cargo costs are
high, and transport services unreliable. There is a wide margin for action to imporve access to
global production services networks through infrastructures upgrading”.

54
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

Americano. A boa vontade no estabelecimento de canais de cooperação


precisa ir além das formas de diálogo bilateral e incluir um diálogo
estruturado com a região como um todo”75.
O fato é que a presença chinesa constitui ao mesmo tempo “o” fato
novo desses últimos 15 anos de integração global da economia regional
e uma série de novas contradições que não tem solução simples. Por um
lado, a China aprofunda a especialização sul-americana na produção e
exportação de commodities de baixo valor agregado e acirra os processos
de desindustrialização da região que passou a importar volumes crescentes
de manufaturados asiáticos. Pelo outro, o gigante asiático desdobra
sua presença ao longo de duas linhas complementares: numa primeira,
tornando-se um ator importante de crédito e de investimento em cada
país; numa segunda, substituindo em nível infrarregional os diferentes
países entre si: tornando-se para o Brasil o que antes era a Argentina e
vice-versa. Temos imediatamente duas contradições imbricadas: uma
relativamente “simples” e óbvia e uma outra bem mais complexa. A
primeira diz respeito ao fato que o desenvolvimento da América Latina
depende da sua capacidade de se “emancipar” do modelo extrativista e
ao mesmo tempo o fechamento do ciclo das commodities se transforma
imediatamente em crise da capacidade dos diferentes países governar suas
políticas de desenvolvimento. Uma segunda contradição está no fato
que toda tentativa de rever a assimetria das trocas e dos laços entre os
diferentes países da região e a China mobiliza hoje um horizonte nacional-
desenvolvimentismo (estatal) que só faria se aprofundar a dissimetria, pois
somente uma maior integração regional permitiria de contrabalancear a
pressão competitiva do gigante chinês.
Assim, as críticas da presença da China em geral convergem para
reforçar o discurso de que seria preciso que os países da América do Sul se
integrem às cadeias globais de valor: “não podemos nos integrar – insiste
Ferrer – com recursos naturais crus”. Isso implica que o que deveria importar
não é ter a China como parceria a qualquer preço, mas o tipo de relação que
se estabelecerá, para não acabar se tornando a periferia desse novo centro
hegemônico que é a Ásia”. Para Ferrer, o risco só pode ser evitado se forem
implementadas importantes políticas nacionais para desenvolver fortes
empresas nacionais de alta tecnologia76. Ao mesmo tempo, quando passamos

Ibid., p. 31.
75

Vanessa Jurgenfeld (entrevista a Aldo Ferrer), “Crise industrial leva países para periferia da
76

China”, Valor, 25 de outubro de 2014.

55
China e Brasil no olho da crise

ao Brasil, as análises da crise convergem em atribuí-la à inflexão realizada


por Lula e Dilma logo depois da crise global de 2007-2008. Obviamente,
essas abordagens se dividem em duas direções opostas: a nacional-
desenvolvimentista e a neoliberal. Do lado dos nacionaldesenvolvimentistas,
o problema continuaria o mesmo de sempre: o Brasil não teria conseguido
definir uma estratégia de desenvolvimento à altura dos tabuleiros
geopolíticos e dos desafios do mercado mundial e as elites teriam sabotado
essas tentativas. Nessa perspectiva, a ruína atual do governo do PT e a crise
econômica seriam as consequências da vitória reeditada da hegemonia
neoliberal, representada no Brasil pela oposição sediada no estado de São
Paulo: “democrática, mas ao mesmo tempo antiestatista, antinacionalista,
antipopulista, e em última instância também antidesenvolvimentista”77.
Do lado dos neoliberais, as análises não divergem completamente daquelas
que apontam a incapacidade do Brasil aproveitar o período favorável
anterior à queda dos preços das commodities. Contudo, ao invés de acusar
o imobilismo, apontam as soluções “erradas” que determinaram: “a perda
de credibilidade da política econômica, que acabou com a previsibilidade da
economia política”. Esse diagnóstico geral se baseia na “coincidência perfeita
entre as mudanças operadas na condução das políticas fiscal, monetária e
cambial e a queda da taxa de investimento do ritmo de expansão do PIB no
primeiro mandato de Dilma (2011-2014)” 78. Se descartam – justamente
– todas as explicações da crise brasileira como tendo sido o resultado de
um choque externo: “não houve crise global no primeiro mandato Dilma.
A crise propriamente dita afetou os países ricos entre meados de 2007 e
2008 e os emergentes de setembro de 2008 a 2009. Entre 2011 e 2015 a
economia global cresceu a uma média anual de 3,5%. No mesmo período, a
média anual do crescimento do Brasil foi de 0,95%”. Nessa visão, a crise tem
um determinante endógeno e mais precisamente o tipo de caminho que o
governo Dilma escolheu para implantar a chamada Nova Matriz Econômica.
Nenhuma das duas abordagens nos parece capaz de enfrentar as
contradições determinadas pela “virada chinesa” da globalização na
América Latina e particularmente no Brasil. Uma defende uma saída da
globalização e, pois, um ulterior enfraquecimento da capacidade nacional
de encontrar um caminho para enfrentar as antigas e novas assimetrias. A
outra, defende uma globalização que não tem como encontrar forças de
renovação diante da crise vez mais grave de sua governança.
77
José Luís Fiori, “Longa duração e incerteza”, Valor, 26 de junho de 2015.
78
Cristiano Romero, “A armadilha brasileira”, Valor, 18 de abril de 2012.

56
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

Precisamos ir além do discurso neoliberal e daquele neodesenvolvimentista.


O nacional-desenvolvimentismo critica o neoliberalismo, mas também a timidez
do neodesenvolvimentismo: os dois se envolvem numa “crença comum (...) de
que as mudanças de políticas econômicas podem por si só reverter a tendência
declinante e reanimar a economia brasileira (e regional). Pelo contrário, a subida
da ladeira exige muito mais do que isto: exige poder, capacidade de inovação,
grande mobilidade, iniciativa política a serviço de uma estratégia de movimento
e de enfrentamento global das transformações que estão em curso no mundo,
e cujo futuro está inteiramente aberto e indeterminado”79. Fica o mistério de se
saber de onde poderia vir essa ousadia e essa estratégia se tudo isso se resolve numa
questão de Estado e, pois, desse Estado que está lá: como pode haver inovação
se não há sujeitos capazes de inovar e o pensamento “de esquerda” se recusa de
pensá-los? De onde viria a força para alterar a correlação de forças na direção do
planejamento estratégico geopolítico sonhado por Fiori? Fica parecendo que a
saída pelo Estado nacionalista, populista e estatista se dá à moda do Barão de
Munchausen80.
As análises neoliberais não resolvem, mas são mais efetivas. Já em 2012,
o editor-executivo do diário econômico Valor, Cristiano Romero, escrevia
que a economia brasileira estava presa numa “armadilha”81. Os resultados
do intervencionismo do Plano Dilma foram opostos ao esperado pelos
heterodoxos e no sentido antecipado pelos ortodoxos. Ao invés de amplificar
os investimentos industriais e o crescimento, a formação bruta de capital
fixo, que reflete os investimentos em máquinas e equipamentos e construção
civil, passou a ser negativa em todos os trimestres de 2012. Diante da não
reação do setor empresarial à Nova Matriz Econômica, a política econômica
foi derivando ao terreno dos subsídios generalizados, com critérios
“suicidas” para os capitais envolvidos. Quando o economista sul coreano
Ha-Joon Chang pergunta: “Para onde foi o dinheiro” do período dourado
das commodities, a resposta é simples, nos subsídio aos Global Players, às
megaobras (desde as grandes barragens até as 4 refinarias concluídas e sem
perspectivas de entrada em função) e os megaeventos negociados com um
cartel de grandes empresas (e alguns grandes bancos) que monopolizaram
a maioria das obras públicas82. Noutras palavras, aos campeões nacionais
79
Fiori, “A subida da ladeira”, cit.
80
Nas histórias compiladas por Erich Raspe, para escapar de um atoleiro, o barão puxou-se
pelos próprios cabelos.
81
Cristiano Romero, “A armadilha brasileira”, Valor, 18 de abril de 2012.
82
“Dilma deu R$ 458 bilhões em desonerações”, IHU-Online, http://www.ihu.unisinos.br/
noticias/546515-dilma-deu-r-458-bilhoes-em-desoneracoes

57
China e Brasil no olho da crise

selecionados para compor o núcleo duro do intervencionismo planejado


e que, sintomaticamente, atuam como parceiros de primeira hora no
financiamento das campanhas eleitorais. Aqui reencontramos a China
como novo tipo ideal de nacional-desenvolvimentismo: “The remarkable
success of China alone has encouraged others countries to explore ways of
boosting their prosperity by becoming more engaged with the rest of the
world”83. Inspirado na China, o governo neodesenvolvimentista de Dilma
Roussef privilegiou os grandes projetos, as grandes obras e as empresas
gigantes: “Brazil is now home to giant companies such as Petrobras, which
in September 2010 launched the world’s largest share offering, of $67
billion, to fund exploitation of some of the world’s largest oil reserves”84. É o
Estado que deve fazer expandir “(…) as grandes corporações multinacionais
(…)” e permitir-lhe de “conquistar vantagens monopólicas”85. Pouco mais
de um ano depois dessas afirmações, as agências internacionais de rating
classificam a Petrobras a um degrau do default86.
Mas, o outro lado da moeda, que os teóricos da esquerda nacionalista
resolvem com as mais improváveis teorias do complô87 é que, com no
caso da Petrobras e dos investimentos sem retorno em refinarias e pré-
sal, o sem número de grandes projetos e grandes obras levou o Brasil to
share another popular criticism of China: investment spending is too
high, too unprofitable and thus unsustainable88. No Brasil se repete algo
que acontece na China: ao passo que o voluntarismo da Nova Matriz
83
Jim O’Neill, cit., p. 99.
84
Jim O’Neill, cit. p. 53.
85
José Luís Fiori, “Estratégia e preços de mercado”, Valor, 30 de janeiro de 2015, p. A13.
86
“Moody’s coloca nota da petroleira perto de default”, Valor, 25 de fevereiro de 2016.
87
Segundo Fiori, o Brasil entrou na linha de tiro dos Estados Unidos em função de três decisões
cruciais de sua política externa. A primeira, foi quando o Brasil decidiu transformar um mero
projeto de integração comercial (Mercosul) num bloco político sob sua liderança, bloqueando
toda tentativa de intervenção externa e tendo sucesso contra a tentativa da OEA de envolver-
se na crise da Venezuela em 2014. A segunda, quando o Brasil decidiu se aliar a Rússia, Índia
e China na transformação do acrônimo BRIC em “bloco de poder internacional que se opõe
hoje ao projeto universalista da ‘globalização americana. Sobretudo depois da VI Cúpula Brics
de Fortaleza. Quando o Brasil promoveu o encontro e a convergência de agendas dos países
da Unasul com os governos da China, Rússia e Índia. A terceira enfim foi quando o Brasil
decidiu abandonar sua tradicional zona de conforto diplomático no Oriente Médio (...) ao
condenar veementemente a ofensiva israelita na Faixa de Gaza, em agosto-setembro de 2014”.
Segundo Fiori isso teria determinado as tentativas de intervenção direta ou indireta nas eleições
de outubro (da mesma maneira que seriam os Estados Unidos que teriam derrubado o avião
da Malasyan Airlines sobre o céu da Ucrânia) “Chuvas e trovoadas”, Valor, 6 de novembro de
2014, p. A15.
88
Cit., p. 92.

58
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

Econômica pretendia mobilizar os investimentos em capital fixo e estimular


o crescimento, o dinheiro público fluía de maneira nada democrática
rumo a investimentos e projetos improdutivos, incapazes de mudar (a
não ser piorando) os valores e a qualidade de vida nas grandes cidades
brasileiras e nos ecossistemas do cerrado do grande Planalto Central e da
Amazônia brasileiros. A nova matriz que deveria funcionar como “fase
2” do progressismo se converteu num grande maquinário de subsídio
do lucro, desrespeito a direitos e produção massiva de mal viver. Esta é a
genealogia das relações de força da questão da corrupção, um sistema de
expropriação permanente da riqueza social através do estado, em nome do
desenvolvimento e sob a inspiração da via alternativa chinesa. A corrupção
não foi inventada nesse período, mas se tornou política e economicamente
insustentável por causa disso89.
Com efeito, o “socialismo” desenvolvimentista pensa que o
desenvolvimento passaria pela luta contra o capitalismo financeiro em prol
de um capitalismo industrial que simplesmente não existe mais, sequer na
China onde a industrialização parece ter batido no teto, em termos sociais
e ambientais. O fato é que isso não funciona: as tentativas de decretar uma
outra política monetária (baixando os juros a partir de 2012) foram um
fracasso. O intervencionismo estatal clássico, voltado para as empresas, por
um lado, acabou deprimindo ainda mais o crescimento, pelo outro, ao
invés de sair da armadilha das commodities o levou para dentro da nova
dependência de uma maneira ainda mais violenta. O debate sobre a moeda
explicita os novos desafios: os economistas main stream afirmam que a
taxa de juros e o câmbio são preços que refletem avaliações de confiança e
desconfiança do mercado, sobretudo, no que diz respeito às contas públicas.
Para os neodesenvolvimentistas, ao contrário, juros e câmbio são
instrumentos de modulação da moeda que o Estado precisa disputar ao
mercado, fixando administrativamente (politicamente) os seus valores90.
89
Vide “Toda a representação está num impasse” Entrevista especial com Giuseppe Cocco, 5 de
janeiro de 2016. IHU-OnLine, Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/550482-
toda-a-representacao-esta-num-impasse-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco
90
Romero explica: “O governo Dilma agiu sucessivamente sobre a taxa de juro, o câmbio e
os preços administrados: em agosto de 2011, em meio ao aumento da inflação e à piora das
expectativas do mercado, o Banco Central baixa a taxa de juros (Selic), levando-a mais adiante
para 7,25% ao ano (o juro real caiu para 2%). No fim de 2011, o Ministério da Fazenda
eleva o IOF para forçar uma desvalorização do Real e enfim, para assegurar que os preços
administrados não pressionassem a inflação obrigando o BC a interromper a queda dos juros,
o governo congela os combustíveis (gasolina e álcool) e adota medidas para forçar a queda das
tarifas da energia elétrica.”, Ibid.

59
China e Brasil no olho da crise

Para os economistas ortodoxos, é o mercado quem determina as relações


de força que qualificam a moeda e não adianta o Estado (o governo) querer
mudar essas situações por decreto, artificialmente. Para os heterodoxos, a
política é uma determinação estatal e é apenas por meio do intervencionismo
que se pode mudar o papel da moeda. Clássicos (neodesenvolvimentistas)
e neoclássicos (neoliberais) pensam que a moeda reflete o valor como
substância: do trabalho, no primeiro caso, da utilidade, no segundo.
Mas, nesse duelo de ciclopes, os economistas neoliberais, acabam tendo
uma visão da moeda mais adequada do que os economistas heterodoxos.
Pois, para os defensores do mercado, juros e câmbio são preços e a moeda
– apesar de tudo – tem uma dimensão relacional: a moeda é determinada
pelos preços que, por sua vez, são determinado pela relação entre oferta e
procura. As duas abordagens são substancialistas, mas a neoliberal mantém
– paradoxalmente e apesar de tudo – uma dimensão relacional e com isso
mais força. O que precisamos pensar são as relações capazes de produzir
e transformar os valores. Sem novos valores, não há saída dos impasses da
crise e das novas dependências. Sem processos de subjetividade, não há
transformação dos valores.
Quando explodiu a crise financeira do capitalismo global, em 2007 e
2008, parecia que o caminho dos governos “progressistas” da América do Sul
se aprofundaria, rumo à construção de um novo modelo de desenvolvimento
e, por isso, alimentado por com um deslocamento da economia global
em direção às economias emergentes. Mas, na virada da segunda década,
todos os governos progressistas da América do Sul entraram em crise e, em
2016,estamos diante de seu dramático esgotamento. Embora os termos e
os ritmos dessa crise sejam diferentes em cada país, de uma forma ou de
outra, ela envolve o subcontinente como um todo.
A derrota de Evo Morales em fevereiro de 2016, no Referendum que
devia permitir sua reeleição, mostra que sequer a Bolívia fica de fora do
declínio continental dessas narrativas91. Pior, o diagnóstico de mais uma
década de tentativas de sair do Consenso de Washington não é alentador.
Ainda temos “164 million Latin Americans, or 28% of the population,
91
Sobre a narrativa dos governos progressistas da América do Sul (e seu esgotamento), ver
Salvador Schavelzon, O Fim da Narrativa progressista na América Latina, La Razón,
29 de junho de 2015, disponível em http://uninomade.net/tenda/o-fim-da-narrativa-
progressista-na-america-latina/ e Bruno Cava, “Podem os governos progressistas
sobreviver a seu sucesso?”, Quadrado dos Loucos, 2 de janeiro de 2016, disponível in
http://uninomade.net/tenda/podem-os-governos-progressistas-sobreviver-ao-proprio-
sucesso/

60
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

living below the poverty threshold in 2013. Informally levels are also high,
with around half middle-sector workers in the informal sector”92.
O que resta da dinâmica política dos novos governos na América
do Sul e da pujança econômica dos BRICS é, por um lado, a tradução
diplomática e geopolítica das relações entre Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul e, pelo outro, a incontornável presença chinesa no panorama
da economia global e particularmente na economia latino-americana. Já na
ocasião da cúpula de Fortaleza – em 2014, antes da crise brasileira explodir
–, o Conselho dos think tanks oficiais dos BRICS preparou um documento
conjunto no qual se apontam alguns desafios e riscos93. O primeiro deles
é que na realidade o grupo dos BRICS seja fortemente marcado pela
assimetria entre países de escalas e realidades tão diferentes e assim se
converta num grupo de “China + 4” com a consequente convergência de
sua dinâmica em torno dos interesses da economia mais forte do grupo. Isso
implica que a consolidação diplomática do BRICS como nova realidade
de relações internacionais de tipo Sul-Sul só poderá se concretizar como
tal se esse âmbito promover reais convergências de interesses entre todos os
países. Mas isso leva para o segundo risco, quer dizer o fato que o menor
ritmo de crescimento das economias emergentes possa afetar seu empenho
em promover convergência. A transformação desse crescimento menor em
crise aberta – como no caso do Brasil e como pode acontecer também com
a China – pode chegar a afetar não apenas as vontades mas também as
capacidades de convergência. A construção do Banco de Desenvolvimento
se mostra assim, ao mesmo tempo, urgente e conturbada, pois ele poderá
logo ser chamado a atuar em situações de urgência e com isso correrá o
risco de não conseguir se consolidar como instituição financeira94.
“China has been – and will continue to be – a game changer for
the region”95. At the same time, “the world’s economic centre of gravity
has shifted away from OECD economies towards emerging economies
during the past two decades”. This is the phenomenon called “shifting
wealth”. By these changes, the relationship between Latin American
countries and China passed to involve much more then only trade. More
than a shift towards emerging economies, we had a shift towards China
economy challenging Latin American countries to face this new reality.
92
Latin American Economic Outolook 2016 – Towards a new partnership with China, OECD –
CAF – ECLAC/UN, Paris, 2016, pp. 22-3.
93
Towards a long-term strategy for BRICS - A proposal by the BRICS Think Tanks Council,.
94
Renato Baumann, “Os Brics e sua imagem”, Valor, 7 de julho de 2015.
95
Cit., p.17.

61
China e Brasil no olho da crise

Com efeito o Qita (o resto) parece ser um consenso sobre “mudanças”


ou “reformas” estruturais que tem um recorte neoliberal, alimentado e
não desestruturado pela chegada da China. Ou seja, entre o “consenso de
Washington” e aquele de “Pequim” há mais hibridização que substituição.
Contudo, as estilizações que mais circulam tendem a convergir numa forte
assimetria entre Brasil (e América do Sul) e China.
No que diz respeito à China, a inflexão de modelo não passaria
por nenhuma turbulência e é totalmente controlada pelo governo e o
Partido Comunista rumo a objetivos bem definidos. No que diz respeito
a América do Sul e particularmente ao Brasil, evita-se de mencionar
que a grave crise pela qual suas economias estão passando não deriva da
permanência do modelo de economia exportadora de commodities, mas
de como os governos têm tentado – desde pelo menos 2009 – sair dela. A
economia administrada pelo Estado chinês deveria poder se transformar
estruturalmente enfrentando apenas resistências internas ao Partido e ao
governo.
Não sabemos se isso é possível na China, mas no Brasil, o ponto de
inflexão foi o levante de junho de 2013. A transformação dos valores está
totalmente em aberto e ela é atravessada pelos desdobramentos, em termos
de novas institucionalidades e de restauração, pela qual passa o ciclo de
levantes que começaram com as primaveras árabes, cuja inspiração deixa
de ser o primeiro grande movimento pós-comunista, a comunidade de
Tienanmen Square, um movimento que colocava em prática a pergunta
formulada logo depois pelo filósofo italiano Giorgio Agamben: “Qual pode
ser a política da singularidade qualquer, isto é de um ser cuja comunidade
não é mediatizada por nenhuma condição de pertencimento (...)” 96.

96
Giorgio Agamben, La comunità che viene, Bollati – Boringhieri, Torino, 2001, p. 67.

62
A travessia de Eder Sader: da grande
tarefa aos pedaços de experiência
Alexandre F. Mendes97

Introdução
O resgate, através deste texto, da trajetória teórico-política do
sociólogo brasileiro Eder Sader possui um duplo significado: primeiro, é
uma homenagem pelos 75 anos de seu nascimento, completados, de forma
quase silenciosa98, em 07 de agosto deste ano; segundo, na linha de reflexão
deste Seminário, é uma tentativa de trazer para a atualidade um tipo de
abordagem – um olhar – que poderia nos auxiliar no enfrentamento do fim
do ciclo político iniciado, em 1988, na denominada “Nova República”.
A vida de Eder Sader, como a de outros militantes políticos da sua geração,
foi atravessada por perseguições, exílios, sofrimentos e dilemas intermináveis.
Ele assistiu, no interior das agitações latino-americanas da década de 1960, ao
progressivo desmoronamento das utopias que marcaram a sua época e ao seu
posterior esfacelamento em uma miríade de fragmentos perdidos, dispersos e
corroídos pela confusão e pela violência dos acontecimentos.
E como ele resistiu? Como ele caminhou pela tormenta? A travessia
de Eder é marcada pela paulatina descoberta de que o tempo-longo de uma
grande derrota pode ser formado também por uma série de temporalidades
intensivas e de “pedaços” de experiências que permitem novas aberturas e
possibilidades. Não nos referimos aqui a uma descoberta arquimediana,
através da qual a verdade vem à tona na forma de uma solução redentora.
Foi preciso fabricar, juntando retalhos, e com o empurrão de múltiplas e
descontínuas trajetórias de luta, as ferramentas que irão captar a emergência
de novos personagens que resistiam nas conjunturas mais adversas.
97
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ.
98
Podemos citar, como exceção, o prêmio CLASCO Eder Sader instituído em 2014, que
selecionou artigos acadêmicos, publicando-os em 2016. Cf. TAVARES, A. et al. Movimentos
populares, democracia e participação social no Brasil [et al.]; prólogo de César Barreira. Ciudad
Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2016.
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

Da experiência de juventude no Brasil, ele herda a crítica ao projeto


nacionalista e industrializante do Partido Comunista Brasileiro e, ao mesmo
tempo, a vivência do impasse e das infinitas cisões entre as táticas de luta
do pós-1964. Do Chile, carrega a análise dos movimentos sociais urbanos,
agrários e sindicais, o embate entre reformismo e ação revolucionária, e
a experiência de mais um golpe militar. Do novo exílio na França, traz
a organização de uma rede de solidariedade aos perseguidos políticos do
Cone Sul, o contato com as críticas europeias ao stalinismo, a herança das
barricadas de 1968 e a proximidade com as lutas autônomas italianas99.
De volta ao Brasil, com a anistia de 1979, realiza uma grande imersão
na constelação de atividades e agitações que marcaram o momento de
abertura política: a emergência do novo sindicalismo, os novos movimentos
sociais, os debates nas universidades, as atividades de mobilização para a
fundação de um novo partido etc. Eder Sader já havia retirado dos ombros
o pesado fardo das “grandes tarefas”, marca da sua prática política de
juventude, e está pronto para encontrar as subjetividades emergentes que
farão parte da fase final de sua jornada.

Do POLOP ao início da autocrítica


Eder inicia a sua militância política em 1961 participando da
formação da Organização Marxista Revolucionária Política Operária
(POLOP100) que, segundo documento publicado na ocasião de um dos seus
congressos, propunha “a formação de um partido revolucionário marxista
(...) como premissa da revolução socialista no País”, colocando entre as
suas tarefas prioritárias, “o problema prático da penetração orgânica na
classe operária”101.
Coerente com as diretrizes da organização, Sader publica, em 1968,
sob o pseudônimo de Raul Villa, um artigo102 defendendo a urgência de
99
Uma parte de sua biografia, utilizada no presente artigo, foi resumida no obituário escrito
por Marco Aurélio Garcia: Eder Sader – o futuro sem este homem, publicado em setembro de
1988. Disponível em: http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/eder-sader-o-futuro-
sem-este-homem?page=0,0 Acesso em 04 de outubro de 2016.
100
Sobre a POLOP, conferir: CENTRO DE ESTUDOS VICTOR MAYER. POLOP: Uma
trajetória de luta pela organização independente da classe operária no Brasil. Salvador: CVM,
2009. Disponível em: http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/uploads/2010/04/Polop-
Uma-trajetoria-de-lutas.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016.
101
Cf. MENDES, Eurico. O crescimento do movimento operário e as tarefas da vanguarda. In:
Política Operária, n. 06, 1963, p. 51.
102
SADER, E. A crise do reformismo e a formação do partido revolucionário. In: Revista Marxismo

64
Alexandre F. Mendes

uma ruptura com as concepções reformistas da luta de classes e, diante


da crise política brasileira, a necessidade de amadurecer uma “esquerda
revolucionária” que, segundo o autor, avançava através da unidade entre
a política do próprio POLOP e de uma significativa dissidência que se
operava no interior do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Esse processo de “amadurecimento”, que deveria culminar na
formação de um partido revolucionário leninista constituído como uma
“vanguarda efetiva da classe e da revolução”, dependia de outras duas
condições: “a presença revolucionária no meio da massa (...) com o fim
de criar nas lutas diárias uma nova liderança nas fábricas” e “a deflagração
e o desenvolvimento da guerrilha no campo” que teria a capacidade de
colocar “toda a luta política num nível superior e acelerará a mobilização
nas cidades”103.
Durante a década de 1970, após duas experiências de exílio e derrota
política (Brasil e Chile), e logo após o fim trágico dos focos de luta armada
que polvilharam entre 1968-75, o sociólogo passa a publicar uma série de
críticas à linha política da POLOP e inicia uma profunda reavaliação das
concepções defendidas na década anterior.
O primeiro conflito público104 ocorreu durante a elaboração da revista
Brasil Socialista, que reunia militantes brasileiros exilados na Europa em
decorrência do AI-5, girando em torno do papel da “luta por liberdades
democráticas” nas táticas revolucionárias e a criação de uma plataforma
política heterodoxa para a realização de um enfrentamento contras as
ditaduras da América do Sul. Uma das principais lideranças da POLOP,
Eric Sach, cujos pseudônimos eram Ernesto Martins, Eurico Mendes ou
Eurico Linhares, combateu com veemência aquilo que denominou de
“abandono prático de uma política para a classe operária” 105.
Eder Sader respondeu a acusação com uma extensa avaliação da história
da POLOP, afirmando uma crítica da guerrilha como “típica ingenuidade
voluntarista”, questionando a inegável generalidade e superficialidade das
Militante Nº 1, 1968, s/p. Utilizamos a versão disponibilizada em: http://centrovictormeyer.
org.br/wp-content/uploads/2011/03/A-crise-do-reformismo-e-a-forma%C3%A7%C3%A3o-
do-Partido-Revolucion%C3%A1rio.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016.
103
Todas as citações em: Id. Ibidem.
104
Para uma resenha do debate: CORREA, Lucas Andrade Sá. Esboço para a análise de
um debate no exílio: O debate entre Érico Sachs e Eder Sader. In: Anais do VIII Colóquio
Internacional Marx Engels, 2015. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/formulario_
cemarx/selecao/2015/. Acesso em 04 de outubro de 2016.
105
MARTINS, E. Post – Scriptum a “Como aprender – com quem aprender”. In: Revista Marxismo
Militante Exterior nº 1, 1975, p. 60.

65
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

análises realizadas sobre a formação social brasileira, o dogmatismo no


debate sobre o caráter da revolução e das tarefas do revolucionário e o que
ele chamou de “pedagogia ideológica” proposta pela organização sobre as
concepções marxistas que, nos dizeres de Ernesto Marins, deveriam: “ser
levadas conscientemente para dentro da classe operária” 106.
De um ponto de vista mais amplo, o esforço de Eder Sader está
inserido num contexto de grande questionamento às formas de ação política
imaginadas nos anos anteriores, realizadas durante o exílio político107.
Essas críticas se direcionam, justamente, à luta armada, à desconsideração
sumária das discussões sobre democracia, à ausência da luta feminista nas
análises que eram realizadas e ao vanguardismo deslocado das lutas reais,
que teria colaborado com a derrota política da esquerda brasileira. No
entanto, em boa parte das discussões na linha comunista, ainda prevalece
o desejo por um partido revolucionário que pudesse “orientar” as massas
e a busca por um sujeito que permanecia ausente do horizonte de lutas.
O autor também vive essas ambivalências e, embora crítico das abstrações
do dogmatismo, defenderá a ideia de uma vanguarda “propositiva” (e não
professoral) que deveria se juntar a uma organização unificada da classe que,
no entanto, estava ausente no país. No documento de 1976, podemos ler:
“Na verdade, não temos no Brasil a bem dizer, uma ‘organização majoritária
da classe’ (...)”; “nós temos que ser os defensores consequentes da unidade
proletária a partir dos interesses imediatos e das lutas que travamos”108.

Quebrando muros teóricos: ciclo de lutas e


transição
A transição de Eder é definitivamente operada quando irrompe a
jornada de lutas dos operários de São Paulo, que evidenciou um ciclo que
estava em andamento entre 1970-1980. Através dele, Eder Sader pôde
não só analisar, com lentes totalmente renovadas, a constituição de novos
sujeitos em luta, como reavaliar a própria experiência política da década
de 1970.
106
SADER, E. Para um balanço da P.O. In: Revista Brasil Socialista nº 7, outubro de 1976,
s/p. Utilizamos a versão disponibilizada em: http://centrovictormeyer.org.br//wp-content/
uploads/2011/03/Para-um-balanco-da-PO.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016.
107
Para uma resenha do debate, conferir: ROLLEMBERG, Denise. “Debate no exílio: em busca
de renovação”. In: RIDENTI, M; REIS FILHO, D. A. (Orgs.). História do marxismo no Brasil.
Partidos e movimentos após os anos 1960. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, v. 6, pp. 291-339.
108
SADER, E. Ibidem, 1976.

66
Alexandre F. Mendes

Ele se deparou com a multiplicação de lutas operárias que, a partir


de práticas que se constituíam de forma autônoma, conseguiam se deslizar
tanto da tutela dos sindicatos autoritários, como dos núcleos de militantes
iluminados que pretendiam dirigir os trabalhadores. Deixando-se conduzir
pelas forças do novo movimento, Eder abandona seu antigo dilema
político – o problema de como estabelecer uma relação entre vanguardas
formuladoras, mas sem capacidade de ação, e massas potencialmente
ativas, mas sem capacidade de formulação – descortinando um caminho
totalmente novo.
Pela primeira vez, nos textos do sociólogo, verificamos que ele é capaz
de desenvolver uma análise da luta dos trabalhadores colocando-se de
forma imanente a todo processo. Assim, em artigo de 1980, escrito com
Paulo Sandroni109, através de informações prestadas por militantes do ABC
paulista, os autores afirmam que: “já entre 1974 e 1977, se desenrola uma
grande variedade de ‘pequenas lutas difíceis’” 110. Essas “pequenas lutas”
(operação tartaruga, exigência de melhor alimentação, transporte e limpeza
nos banheiros, recusa de horas extras, pequenas interrupções da jornada de
trabalho), conseguiam driblar o forte esquema repressivo estabelecido pela
ditadura contra as greves e, ao mesmo tempo, teciam um fio de afirmação
operária nas grandes fábricas paulistas.
Os fios dessa “organização invisível”, expressão utilizada pelo
operaísta Romano Alquati, em suas pesquisas sobre as lutas na FIAT dos
anos 1960111, só apareceram de forma explícita nas jornadas pela reposição
salarial de 1977, quando os operários reivindicam a devolução de perdas
geradas por erros no cálculo dos índices de inflação em 1973.
Em São Bernardo, o Sindicato dos Metalúrgicos realiza uma
assembleia de dez mil pessoas, e começa a organizar aquilo que os autores
denominam de “sindicalismo autêntico”, excluindo qualquer referência que
não expressasse “o próprio interesse dos trabalhadores”. Na conclusão do
artigo, os autores defendem que um dos pontos de destaque do movimento
operário e sindical, que se iniciou naquele ano, foi a presença de “traços de
autonomia e independência tanto a respeito dos aparatos estatais quanto a
dos partidos de oposição e esquerdas tradicionais”112.
109
SADER, E; SANDRONI, P. Luchas obreras y táctica burguesa en Brasil. In: Cuadernos
Políticos, n. 26, México D.F.: Era, outubro-dezembro, 1980, pp. 51-63.
110
Id. Ibidem.
111
ALQUATI, R. Sulla FIAT e altri scritti. Milano: Feltrinelli, 1975, p. 190.
112
Todas as citações em: SADER, E; SANDRONI. Ibidem.

67
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

Em 1986, Eder Sader realiza o esforço teórico de lançar as novas


inquietações para dentro da tradição marxista e da história do movimento
operário. No livro Marxismo e teoria da revolução operária113, o autor
acerta as contas, no campo teórico, com todas as formas de positivismo,
racionalismo, determinismo e evolucionismo presentes no pensamento
marxista desde o séc. 19 e, no campo político, com as tendências e práticas
estalinistas, burocratizantes e autoritárias arquitetadas a partir do séc. 20.
Enfrentando os impasses de seu tempo, o autor afirma que o ponto
central da crise da teoria revolucionária é que ela se propôs a definir
uma tarefa a ser realizada pela classe operária. E “tão pesado foi o fardo
dessa missão que o proletariado desapareceu nela”114. Mas, enquanto
o proletariado, em sua materialidade, desaparecia nas “representações
instituídas” da missão revolucionária, múltiplos pontos de resistências e
de práticas coletivas se espalhavam e davam vida a novos sujeitos em luta.
Para Eder, “mesmo a irrupção das greves de 1978, surgidas de fora
das formas consagradas de organização e discurso da esquerda, expressou
esse divórcio”115. Os traços de autonomia identificados pelo autor, não
só forjavam novas práticas e saberes coletivos, alheios às concepções
totalizantes da ortodoxia, como se relacionavam com um amplo processo
de politização do social que trouxe à tona a realidade de uma pluralidade
de sujeitos que recusavam as mesmas pretensões ordenadoras116.
Este “divórcio”, para Eder Sader, se traduzirá em duas formas distintas
de perdurar o marxismo. Através da bela passagem que encerra o livro, as
consequências definitivas dessa clivagem são explicadas:

De um lado, enquanto ideologia, sistema totalizador, pelo qual intelectuais


produzem a ‘ciência da História’ nas mais diferentes disciplinas e burocratas
da política ordenam a realidade onde agem. De outro, enquanto fonte de
elaboração que ajudam intelectuais a produzirem novos conhecimentos e
militantes de diferentes movimentos sociais a formularem seus projetos e
formas de ação. Só que, neste segundo modo, o marxismo não é mais a
totalização capaz de nos explicar o sentido de nossas ações. Isso cabe a cada
um de nós, em cada uma das aventuras em que nos engajamos. Essa é,
talvez, uma das ‘lições’ que os movimentos sociais recentes nos deixaram.117

113
SADER, E. Marxismo e teoria da revolução operária. 2a edição. São Paulo: Ática, 1991.
114
Id. Ibidem, p. 55
115
Id. Ibidem, p. 56
116
Id. Ibidem.
117
Id. Ibidem, p. 57

68
Alexandre F. Mendes

E é através do marxismo visto como fonte de elaboração e de criação de


pensamento e ação que Eder Sader analisará, em 1988, no seu último e mais
relembrado livro, Quando novos personagens entraram em cena: experiências
e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980118, o ciclo de lutas
daquela década. Ele será descrito, não através da tentação de uma grande
totalização, mas através dos pedaços de experiência e da partitura comum
escrita pelas aventuras, às vezes titubeantes e contraditórias, dos sujeitos
reais que, no cotidiano ou em novas organizações, se engajaram em lutas
concretas.

Um novo olhar sobre os personagens que


entravam em cena
Para desenvolver este olhar, que sem dúvida é o traço mais penetrante
do livro, Eder opera um importante deslize das análises verticalmente
“estruturantes” que interpretavam as práticas sociais da época através de
unidades causais-explicativas que privilegiavam as “condições objetivas
dadas” (a coerção do Estado militar, o automatismo dos processos
econômicos da acumulação capitalista, a alienação ideológica etc.). Para
Eder Sader, era preciso estilhar essas unidades para que a relação entre as
ações produzidas e a emergência de novos personagens irrompesse em sua
singularidade119.
Por outro lado, se afastar da explicação objetivante não quer dizer
retomar a ideia de um sujeito absoluto, pleno de liberdade e senhor de
todas as ações possíveis. Realizando um panorama sobre o debate filosófico
em torno do conceito de sujeito, Eder tenta compreender como novos
imaginários e práticas instituintes120 são possíveis de serem articulados,
mesmo que imbricados nas condições e estruturas já dadas. Nessa linha,
sujeito autônomo não é aquele que “seria livre de todas as determinações
externas, mas aquele que é capaz de reelaborá-las em função daquilo que
define como sua vontade”121.
118
SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores
da Grande São Paulo 1970-1980. 4a edição. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
119
Id. Ibidem, p. 40
120
Conferir a seguinte passagem: “Com essas referências procurei pensar as alterações nas
práticas coletivas de trabalhadores, como reelaboração do imaginário constituído, através de
novas experiências, onde se produzem alterações de falas e deslocamento de significados. Por aí
surgem práticas instituintes” (Id. Ibidem, p. 46).
121
Id. Ibidem, p. 56. Vale comentar que o conceito de “vontade” não deixa de ser problemático

69
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

Assim, o sociólogo reconhece que, se de um lado, os discursos – ou


as “matrizes discursivas tradicionais” – produzem os sujeitos e seus campos
de ação, de outro, os sujeitos produzidos são capazes de agenciar novas
práticas e novos enunciados. Os enunciados cristalizados numa cultura
podem, portanto, sofrer deslocamentos, reutilizações, torções, dispersões e
serem atravessados por novos arranjos de distribuição:

Constitui-se um novo sujeito político quando emerge uma matriz discursiva


capaz de reordenar os enunciados, nomear aspirações difusas ou articulá-
las de outro modo, logrando que indivíduos se reconheçam nesses novos
significados. É assim que, formados no campo comum do imaginário de
uma sociedade, emergem matrizes discursivas que expressam as divisões e
os antagonismos dessa sociedade122.

Nesse sentido, a mobilização dos diversos sujeitos e a construção de


novas esferas de participação, através das comunidades eclesiais de base, do
novo sindicalismo e dos novos movimentos sociais, são interpretadas por
uma leitura que busca compreender as novas formas de expressão política a
partir de um movimento coextensivo de produção dos próprios sujeitos. Desse
ponto de partida, Eder Sader consegue descrever processos subjetivos de
luta e organização social que estavam “apagados” pelo objetivismo e pela
incapacidade de representar as mudanças em curso através da mecânica
causal das análises tradicionais.
Encontramos uma boa demonstração da perspectiva desenvolvida,
no capítulo em que o autor descreve as lutas da Oposição Metalúrgica
de São Paulo. Eder revela que o acontecimento mais relevante da nova
luta sindical não residia necessariamente nas reivindicações, que eram até
clássicas (melhorias salariais, pagamento atrasados, melhora nas condições
por retomar concepções clássicas de sujeito que pressupõem sua separação com relação às
práticas sociais. Uma das formas de contornar esse problema pode ser encontrada no conceito
de “modos de subjetivação”, desenvolvido por Foucault na última fase de seu pensamento, à
qual Eder Sader não teve acesso. Sobre o tema, conferir o preciso comentário de Judith Revel:
“O termo ‘subjetivação’ designa, em Foucault, um processo pelo qual obtemos a constituição de
um sujeito, ou mais exatamente de uma subjetividade. Os ‘modos de subjetivação’ ou ‘processos
de subjetivação’ da existência humana correspondem a dois tipos de análise. De uma parte, os
modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos – o que significa que
há somente sujeitos objetivados, e que os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas
de objetivação; de outra, a maneira como a relação com si, estabelecida através de um certo
número de práticas, permite que ele se constitua como sujeito de sua própria existência”.
REVEL, J (Org). Dictionnaire Foucault. Paris: Ellipses, 2008, p. 128.
122
Id. Ibidem, p. 60.

70
Alexandre F. Mendes

de trabalho etc.), e sim na constituição de um “outro discurso” sobre a


classe operária, aquele que retoma a dignidade dos trabalhadores.
Uma profunda ressignificação dos espaços de encontro e de fala
surgiu a partir de pequenas lutas, quase insignificantes, mas que eram
fundamentais na produção de uma subjetividade que retomava o papel
da autovalorização do trabalhador. Lutas pela utilização de ônibus da
empresa, pequenos boicotes no refeitório pela qualidade da comida, a
produção de um pequeno jornal que relatava as condições de trabalho,
passam a constituir, pouco a pouco, o tecido que produzirá um novo sujeito
político: “é nesse quadro que as lutas fabris são assumidas como momentos
de autoafirmação de grupos operários, que veem nelas o processo de sua
constituição como sujeitos políticos”123.
Outro exemplo marcante do deslocamento de abordagem efetuado
encontra-se na leitura realizada pelo sociólogo sobre a reconstituição dos
espaços de encontro nas franjas do poder coercitivo militar. Se a ditadura
investia para desconstruir todo e qualquer núcleo visível de participação
social e atividade política, nas franjas da cidade emergiam novas formas de
discutir os problemas vividos pelos trabalhadores e pobres da metrópole
paulista:

Em salões de sinuca, terreiros, feira livres, botequins, salões de baile,


cabeleireiras, pontos de ônibus, fliperamas, foram se reconstituindo
espaços de encontros, onde se trocavam informações sobre emprego,
futebol, a novela da TV, assim como sobre as escolas dos filhos, a excursão a
Santos, sobre as conquistas amorosas, a meningite, o Esquadrão da Morte,
o incêndio do Joelma, a construção do metrô, o quebra-quebra dos trens.
Desse cruzamento de falas e experiências foi se reconstituindo um novo
espaço público.124

As feiras, botequins, salões de beleza, pontos de ônibus, terreiros e


fliperamas formam, assim como no caso das pequenas lutas operárias, os
espaços de encontro que ajudarão a constituir “pedaços” onde “fluem novos
significados coletivos que expressam as interpretações formuladas sobre
as condições de vida na metrópole”125. Ainda segundo Eder, nos espaços
difusos da cidade, a retórica dominante, que condenava a política como
palco de interesses escusos, passa a ser reinterpretada pelos explorados
123
Id. Ibidem, p. 250.
124
Id. Ibidem, p. 61.
125
Id. Ibidem.

71
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

como possibilidade de cuidar dos assuntos referentes à vida na cidade a


partir de seus próprios interesses e experiências. E é nesse ambiente de
aparente conformismo e suposta alienação que “brotam os movimentos
sociais a partir da metade da década de 1970”126.
Portanto, longe de buscar explicações que derivam de uma única e
totalizante lógica, apresentada como grande tarefa da crítica sociológica,
Eder deseja compreender o movimento que entrelaça discursos
consolidados, aberturas para novos imaginários, práticas sociais e processos
de constituição de subjetividades políticas. Só assim torna-se possível
dimensionar a centralidade de experiências que, mesmo parecendo sem
importância, apontam para a formação de novos e potentes espaços de
expansão do político.

Um novo estilo de ação política


“Você trocou Lênin por Paulo Freire!”. É com essa acusação,
presenciada pelo próprio autor e desferida contra um militante em 1980,
que Eder Sader abre o capítulo sobre o balanço teórico do “marxismo de
uma esquerda dispersa”127. O sucesso dos métodos de educação popular,
e sua predominância com relação aos clássicos da teoria revolucionária
(Lênin, Mao e até o fugaz Debray128), é percebido como a possibilidade de
abertura de “um lugar para a elaboração crítica e coletiva das experiências
da vida individual e social”129.
Através de alguns depoimentos pessoais, o autor mostra o caminho
realizado, um pouco de forma intuitiva, por vários militantes de esquerda
oriundos dos grupos vanguardistas. Ele apontava na direção de um novo
estilo de ação política, que tinha como centro, não mais uma determinação
abstrata da vontade em torno da revolução, mas “vinculações políticas a
partir de suas competências profissionais: advogados, arquitetos, assistentes
sociais, professoras”130. Os relatos mostram que os militantes “desgarrados”
de suas organizações também encontrarão espaços de atuação nos novos
126
Id. Ibidem.
127
Id. Ibidem, pp. 167-178.
128
O autor cita referências que eram leituras “obrigatórias” para os militantes da década de
1960-70: “Mas o fato é que, nessa ‘ida ao povo’, buscando ajudar num processo de fazer
despertar a ‘consciência crítica’, o método Paulo Freire esteve mais presente que os escritos
de Gramsci, ‘Que fazer?’, de Lenin, os livrinhos de Mao ou a ‘Revolução na revolução’ de, de
Debray, de meteórica carreira” (Idem, ibidem, p. 167).
129
Id. Ibidem, p. 169.
130
Id. Ibidem, p. 176.

72
Alexandre F. Mendes

movimentos de bairro, nas comissões de moradores, nos grupos de fábrica,


nos movimentos sanitaristas, nas pastorais da Igreja Católica etc.
O encontro dessas trajetórias, que Foucault descreveria igualmente
através da figura do “intelectual específico”131, com o processo material
de produção de subjetividade que se efetuava no interior do ciclo de lutas
de 1970-1980, não apenas exemplifica o que seria aquele “marxismo
vivo”, utilizado como fonte de elaboração de novos conhecimentos e
práticas, mas também demonstra que as ações políticas desencadeiam
vetores qualitativamente expansivos quando articuladas com as novas
temporalidades políticas produzidas pelos novos sujeitos.
Por isso, a constatação da centralidade das “pequenas lutas” no
contexto das experiências coletivas da Grande São Paulo, a importância dos
temas relacionados ao cotidiano dos trabalhadores, as “formas singulares
de expressão” carreadas pelos novos movimentos sociais, a valorização da
“organização por elas mesmas” do Clube das Mães, as pequenas rupturas
das mulheres com relação ao ambiente fechado da unidade doméstica, a
capacidade do Movimento do Custo de Vida de levantar um problema
comum à maioria da população, a dignidade comemorada em cada
pequena vitória no interior da fábrica, os atos de solidariedade que
rompiam com o vazio existencial do conformismo diário, aparecem como
uma multiplicidade de lutas que formam um conjunto marcado por novos
significados históricos:

E, no entanto, há uma novidade no significado dessas lutas no correr dos anos


70. Movimentações que antes podiam ocorrer de modo quase silencioso,
como se fossem a reiteração de um cotidiano onde ‘nada acontece’, passam
a ser valorizadas enquanto sinais de resistência, vinculadas a outras, num
conjunto que lhes dá a dignidade de um ‘acontecimento histórico’. Até
mesmo acontecimentos que antes poderiam ser vividos como expressão
de uma impotência sempre igual começam a ser vistos como lutas que se
inserem num movimento social132.

É este solo comum que garante uma proliferação de experiências


organizativas e afirmativas que se colocam em contraposição “às estruturas
impessoais, aos objetivos abstratos e às teorias preestabelecidas” 133. Segundo
Eder, no campo dos trabalhadores da fábrica, isso significou a invenção de
131
Cf. FOUCAULT, M. “Verdade e Poder”. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1979, p. 10.
132
EDER, S. 2010, p. 243.
133
Id. Ibidem, p. 194.

73
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

um novo modo de valorizar as suas próprias lutas, através da formação de


grupos que, primando pela autonomia, não se recusavam a atuar por dentro
das estruturas legais e sindicais existentes.
Já no caso dos movimentos dos trabalhadores precários (donas de
casa, favelados etc.), excluídos do poder econômico de barganha, de
direitos (sociais) reconhecidos e de um trabalho estável, tratou-se de criar
laços de solidariedade e comunidade que não tinham como referência
uma estrutura predefinida legalmente, e contava apenas, ou com as ações
pastorais difundidas no território, ou com a sua própria capacidade de
produzir auto-organização134.
De qualquer forma, seja através da requalificação de institucionalidades
já existentes, ou da invenção radical de novas práticas coletivas, essa
contraposição também reaparece na conclusão do livro, através da relação
estabelecida entre a força plural de expansão dos movimentos sociais e o
poder instituído. Para o autor, os novos sujeitos “expressaram tendências
profundas na sociedade que assinalavam a perda de sustentação do sistema
político instituído”135. Eles indicavam “a enorme distância existente entre
os mecanismos políticos instituídos e as formas de vida social.” E não
apenas de uma forma passiva. Os movimentos sociais se constituíram
como os próprios “fatores que aceleraram essa crise e que apontaram um
sentido para a transformação social”136.
Dentro do marco das práticas instituintes que abrem um novo
horizonte, as experiências desses movimentos passariam a indicar que, no
campo da representação política, os partidos “já não cobrem todo o espaço
da política e perdem sua substância na medida em que não dão conta
dessa nova realidade”137. Para Eder, é a própria compreensão daquilo que
entendemos como “política” que se transformou, abrangendo questões
da vida cotidiana e novas formas de organização das práticas coletivas, “a
partir da intervenção direta dos interessados”. No que tange à reivindicação
por democracia, os novos sujeitos não se limitariam ao sistema político
tradicional, mas conduziriam os seus desejos para “as esferas da vida social,
em que a população trabalhadora está diretamente implicada: nas fábricas,
nos sindicatos, nos serviços públicos e nas administrações de bairro”138.

134
Id. Ibidem.
135
Id. Ibidem, p. 313.
136
Id. Ibidem.
137
Id. Ibidem.
138
Id. Ibidem.

74
Alexandre F. Mendes

Derrota política, poder constituinte real e comum


Eder Sader encerra o livro com um olhar já externo ao ciclo de
lutas, avaliando as derrotas sofridas pelos novos movimentos sociais e
afirmando, enigmaticamente, que as suas promessas (consideradas por
alguns como “ilusões”, “mistificações” ou “erros de avaliação”) poderiam
ser reatualizadas, já que estão “inscritas numa memória coletiva”139.
Para entender o que o autor chama de “derrota”, é preciso ter em mente
os seus comentários num colóquio intitulado A constituinte em debate140,
realizado em maio de 1986, reunindo juristas e intelectuais de esquerda. O
título sugerido pelo autor foi “Poder constituinte e democracia no Brasil
hoje”, e a intervenção se deu num contexto geral de crítica do idealismo
presente nas discussões sobre a elaboração de uma nova Constituição.
Eder Sader concordou sobre a importância de se evitar a armadilha da
abstração, mesmo reconhecendo que uma Constituinte, inevitavelmente,
lança os participantes para um terreno propenso às idealizações. O ponto
de partida que o autor utilizou para qualificar materialmente o processo
consistiu na proposta de examiná-lo à luz de um “poder constituinte
realmente existente” que, segundo o autor, seria a expressão das lutas políticas
em curso no Brasil e estaria efetuando transformações significativas no
marco da transição para a Nova República141.
O problema seria que, apesar de fundamentais na derrota do Estado
Militar, os novos movimentos sociais não tiveram, naquele momento,
êxito em se constituir como uma força política apta a disputar as
institucionalidades. Esse papel acabou sendo exercido pelo MDB que,
a partir de sua atuação parlamentar contra a ditadura, apareceu como
representante indireto das insatisfações e aspirações populares difusas. Ele
acabaria por reelaborá-las, sempre através de suas expressões particulares,
como pressupostos de uma vontade geral de democracia e de justiça social.
A derrota residiu na impossibilidade dos novos movimentos sociais
de darem a suas aspirações “uma voz própria”142. Por isso, o desafio da
Constituinte seria, primeiro, impedir que o processo se transformasse
na conclusão de uma transição política realizada “por cima” e, segundo,
139
Id. Ibidem, p. 315.
140
FORTES, Luiz Roberto Salinas; NASCIMENTO, Milton Meira do. (Orgs.) A constituinte
em debate: colóquio realizado de 12 a 16 de maio de 1986. São Paulo: Sofia, 1987.
141
SADER, E. “Poder constituinte e democracia no Brasil hoje”. In: FORTES, Luiz Roberto
Salinas; NASCIMENTO, Milton Meira do. (Orgs.) A constituinte em debate (...), p. 200.
142
Id. Ibidem, p. 201.

75
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

construir as condições de democratização do próprio exercício do poder


constituinte. Assim, uma das batalhas mais importantes que se configurava
seria “alargar as possibilidades de intervenção da população no sistema
político” e “alargar vários direitos” que teriam vindo à tona nas lutas
políticas dos anos anteriores143.
Um dos principais temas, segundo Eder Sader, elaborados, mesmo
que precariamente, pelos movimentos sociais, seria a relação entre público e
privado. O autor comenta, que, naquele momento, estava se consolidando
a ideia de que o combate ao Estado Militar demonstrava que a Nova
República deveria apostar na ampliação do âmbito privado em detrimento
do público, evitando o retorno de um estado intervencionista e autoritário.
Escapando da dicotomia, Eder argumenta que a ditadura militar foi um
exemplo de como estado e mercado se retroalimentam e que a saída era
pensar uma democratização dos próprios recursos públicos, a partir do
poder constituinte real que se afirmava.
Por isso, a participação invocada por Eder Sader caminha lado a
lado com uma democratização mais radical do público, uma apropriação
democrática do público-privado que poderia reativar o papel dos novos
movimentos sociais no contexto pós-constitucional. Ao direcionar sua
análise para o terreno que hoje denominamos de comum, o autor tenta
manter uma brecha aberta para que a produção de autonomia dos
movimentos sociais não fosse enclausurada numa ideia institucional de
representação política ou por um constitucionalismo de viés abstrato,
através dos quais a perspectiva autônoma seria tratada como ilusão típica
de um momento pré-jurídico ou de transição.

Pensar com Eder Sader: seis notas sobre a


atualidade
Quase três décadas se passaram após as reflexões de Eder Sader sobre
a emergência de novos sujeitos políticos e os dilemas apresentados na
disputa pela representação política e por condições de permanência de um
poder constituinte real que atuasse em prol da radicalização da democracia
brasileira. A sensação é de desmoronamento e perplexidade, tornando-se
comum a afirmação de que a Nova República, fundada pela Constituição
de 1988, simplesmente acabou144.
143
Id. Ibidem.
144
A expressão é do filósofo Vladimir Safatle. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/

76
Alexandre F. Mendes

Mas como qualificar este “fim”? Por que temos a impressão de viver o
esgotamento profundo de um ciclo? É aqui que a chave de leitura operada
por Eder, e o exemplo dos próprios dilemas políticos enfrentados em sua
trajetória, podem nos ajudar em muitas direções. No mínimo, precisaríamos
realizar uma nova travessia, reunindo “pedaços” de experiências vividas nos
últimos anos, recusando o imobilismo dos velhos personagens que não
admitem sair de cena e buscando encontrar as novas subjetividades que
emergem no contexto da crise.
É do próprio léxico e dos problemas levantados por Eder Sader que
alguns elementos para futuras reflexões podem ser pontuados:
a) Autonomia: perceber a crise como o esgotamento da possibilidade
de manter em aberto uma dimensão instituinte que permita que os novos
sujeitos políticos possam continuar elaborando suas trajetórias e lutas
através de uma “voz própria”, que na verdade se articula polifonicamente
com muitas vozes produzidas desde baixo. Os últimos anos indicam que
a realidade dos próprios movimentos sociais que surgiram na década de
1980 pode ser vista como sintoma dessa crise. Incapazes de reelaborem
suas lutas através de novas práticas autônomas, acabam subordinados a
governos, burocracias ou instâncias decisivas cada vez mais externas aos
problemas reais enfrentados por seus integrantes;
b) Comum: a relação entre estado e mercado, como pressentia Eder
Sader, foi rearticulada através de novas formas de gestão que eliminaram
qualquer forma de participação ou de questionamento das decisões sobre
projetos e investimentos. A resposta brasileira à crise global de 2008 foi
reforçar dinâmicas desenvolvimentistas híbridas que mesclaram uma
imposição estatal de grandes projetos, com novas formas de privatização
e empresariamento dos espaços comuns das cidades e das florestas. A
aposta de resgatar a mobilização produtiva “por cima” não só lançou o
Brasil para uma crise ainda mais profunda, como gerou um efeito de “rolo
compressor” contra qualquer tentativa de questionamento das decisões
tomadas. Perspectivas alternativas como o marco do bem viver ou de
políticas do comum foram esquecidas ou atropeladas pela utopia modernista
de um “Brasil Maior”;
c) Novos personagens entram em cena: as novas mobilizações indicam
que a heterogeneidade que marca os movimentos sociais dos anos 1980,
não só é estendida por toda a dinâmica de funcionamento das metrópoles,
politica/ultimas-noticias/2015/03/15/a-nova-republica-acabou-diz-filosofo-vladimir-safatle.
htm Acesso em 14 de outubro de 2016.

77
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

como ganha contornos irreversíveis. Nas análises Eder Sader, a separação


entre esfera da produção (sindicalismo) e esfera da reprodução (movimentos
sociais) determinava características distintas no conjunto das lutas sociais,
mas também ensaiava o seu canto do cisne. Atualmente, essa divisão perde
o sentido, na medida em que a heterogeneidade do trabalho precário passa
a atravessar a própria esfera da produção e esta última, por sua vez, se dilui
cada vez mais na antiga esfera da reprodução, atingindo a vida como um
todo. Um novo sindicalismo social “autêntico”, que tenha a metrópole
como base, só é possível com a articulação de uma multiplicidade de
sujeitos singulares que definem um terreno comum de luta (ex: mareas na
Espanha e luta contra a tarifa dos transportes no Brasil). Uma compreensão
da figura dos “indignados” é importante, não só para dar carne a esta
multiplicidade capaz de ações comuns, mas também para mostrar que
as lutas contemporâneas dependem de um tipo de cooperação que está
para além, na maioria dos casos, do que entendemos por “esquerda” e seus
atores tradicionais (movimentos, sindicatos e partidos);
d) Poder constituinte realmente existente: para além do idealismo e
das promessas não correspondidas do constitucionalismo, exasperado às
ultimas consequências na recente crise política brasileira, uma investigação
das dinâmicas constituintes dos últimos anos deve reconhecer que há um
desejo transversal de mudança que transborda e se volta contra todo o
poder constituído existente. Este desejo se condensou em múltiplas formas,
ambíguas e contraditórias, em Junho de 2013. Assim como na emergência
dos movimentos sociais analisados por Eder, é preciso ter em conta que o
poder constituinte também é exercido através do conformismo, de uma
suposta atitude de “alienação política” e até por expressões aparentemente
conservadoras. O contexto atual parece indicar que o desafio reside na
criação de plataformas de ação onde estas manifestações possam encontrar
ferramentas materiais de transformação que apontem para caminhos de
mais democracia, participação e direitos;
e) A constituição de uma força política: no Brasil, o poder constituinte
de Junho de 2013, por enquanto, não foi capaz de organizar uma força
política nova que possa atravessar as institucionalidades com ventos
de renovação. Ele foi canalizado apenas em sua dimensão destituinte
através de grandes operações policiais e judiciais que são incapazes de
constituir um terreno de radicalização democrática. Um dos motivos
desta mutilação foi a homogeneização das “aspirações difusas” que
constituíram Junho através de sua subordinação às figuras mórbidas de

78
Alexandre F. Mendes

uma representação política que não guarda mais qualquer relação efetiva
com elas. A constituição de uma força política através das experiências
do ciclo de Junho se constitui como um enigma que diz respeito à
recuperação da autonomia das mobilizações sociais, à reinvenção da
forma-partido através da premissa, também comentada por Eder, de que
os movimentos transbordam e não são redutíveis aos partidos políticos
(que deveriam assumir um código aberto e renunciar às pretensões de
totalização) e à necessidade de uma reforma política que não seja forjada
no interior de uma representação política em crise e que tenha como
centro as multiplicidades emergentes.
f ) Autocrítica e dispersão da esquerda brasileira: se, no tempo de
Eder, a dispersão forçada da esquerda brasileira permitiu, de um lado,
um movimento de autocrítica (mesmo com toda a dramaticidade da
situação) de seu vanguardismo anterior e, nos caminhos intuídos por
essa dispersão, um posterior encontro com novas lutas e personagens, o
momento atual exige, paradoxalmente, um deslocamento semelhante.
Um exílio que, mesmo sem precisar atravessar fronteiras geográficas, não
deixa de se configurar como um êxodo necessário. Um exílio, digamos,
ontológico. Ele implica: a recusa de novas lógicas objetivantes que
impedem um olhar adequado sobre os novos movimentos (por exemplo,
derivando o vazio deixado por uma ausência de alternativa da ascensão de
uma “onda conservadora”); a recusa do falso conforto de uma “unidade de
esquerda” que, em vez de se constituir como contrapoder por dentro da
crise, opera, ao contrário, reforçando uma subordinação das mobilizações
e das aspirações difusas à agenda e aos formatos pré-determinados de suas
decadentes figuras representativas, em especial o Partido dos Trabalhadores
(PT); um questionamento do imobilismo da tradição organizativa que
funda esta “unidade” para imaginar novas experiências de ação comum e
autônoma (movimentos em rede, sindicatos sociais, confluências eleitorais
e partidos de novo tipo); por fim, a recusa, como afirmou Eder, de todas
as “representações instituídas” que promovem o desaparecimento das
subjetividades que lutam e nos impedem de perceber os fios das novas
organizações invisíveis que já estão em atuação.
Seis pontos que indicam o mesmo movimento: dispersar, fazer uma
nova travessia, empreender um êxodo. E, quem sabe, durante a caminhada,
nos pedaços de experiência, encontrar os novos personagens que entraram
em cena.

79
A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência

Referências bibliográficas
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SADER, E; SANDRONI, P. Luchas obreras y táctica burguesa en Brasil. In: Cuadernos
Políticos, n. 26, México D.F.: Era, outubro-dezembro, 1980.

80
Alexandre F. Mendes

SAFATLE, Vladimir. A Nova República Acabou, diz filósofo Vladimir Safatle.


Entrevista concedida ao portal UOL. Em 15 de março de 2015. Disponível em: http://
noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/03/15/a-nova-republica-acabou-diz-
filosofo-vladimir-safatle.htm Acesso em 14 de outubro de 2016.
TAVARES, A. et al. Movimentos populares, democracia e participação social no Brasil
[et al.]; prólogo de César Barreira. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2016.

81
Junho antes de Junho: o ciclo de lutas
de Porto Alegre
Guilherme Dal Sasso145

Introdução
Para o bem ou para o mal, junho de 2013 permanece um marco
para entender como se deu o fim do ciclo progressista latino-americano
no Brasil. Por um lado, intelectuais ligados ao antigo governo enxergam
naqueles eventos “a semente do golpe”, ou na melhor das hipóteses, uma
esquerda radical e inconsequente que acabou por “fazer o jogo da direita”.
Por outro lado, outras análises buscam entender aquele levante como
sintoma do esgotamento do lulismo, talvez o último sintoma com potência
política. Nesse sentido, o presente capítulo é um esforço de recompor
alguns acontecimentos que antecedem junho de 2013 na cidade de Porto
Alegre, a partir de conflitos que se desenrolavam no tecido urbano a partir
das ações de novos atores políticos.
A hipótese que esboçamos é que os eventos narrados são experiências
de resistência contra a gestão local dos grandes projetos de desenvolvimento
nacionais e seus desdobramentos metropolitanos. Se a nível estadual
o Rio Grande do Sul era governado por Tarso Genro (PT), no plano
municipal José Fortunati (PDT) governou a cidade entre 2010 e 2016,
tendo assumindo a prefeitura depois que Fogaça (PMDB), prefeito entre
2004 e 2010, se licenciou para disputar o governo estadual. Como vemos,
todos figuras de algum modo ligadas ao consenso lulista. Suas políticas não
diferiam muito da tocada pela maioria dos prefeitos de grandes centros
urbanos no Brasil: tratava-se fundamentalmente de uma gestão neoliberal
local dos grandes projetos de desenvolvimento nacionais, a exemplo da
execução do Minha Casa Minha Vida conciliada com políticas de remoção
de vilas e ocupações urbanas; grandes obras de infraestrutura (duplicação
145
Possui graduação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010). Tem
experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração.
Junho antes de Junho: o ciclo de lutas de Porto Alegre

de avenidas, construção de viadutos); gestão público-privada de espaços


urbanos centrais para a recepção de megaeventos (como a Copa do
Mundo), entre os quais destacamos a “revitalização” de bairros como o
Centro Histórico e a Cidade Baixa.

Redesenhando a cidade, explorando o comum


A prefeitura pretendia uma ampla reconfiguração da cidade a partir
desses investimentos. As grandes obras viárias foram em boa parte realizadas
com recursos do PAC, tendo os repasses do governo federal chegando a R$
900 milhões146, ao passo que novos investimentos no Centro e na Cidade
Baixa, entre outros bairros, privilegiaram as Parcerias Público-Privadas
(PPPs). Alexandre Kunsler147 analisou com minúcia esses planos, como os
projetos “Viva o Centro” e “Cidade Baixa em Alta”, no que denominou de
operação de “ortopedia urbana”:

“Esta arte de governar os espaços públicos é atravessada pela economia


esboçando a estratégia em que opera o marco da governamentalidade
contemporânea. A atual gestão dos espaços assume a roupagem de
parcerias público-privadas na forma de concessões temporárias onde as
empresas parceiras se comprometem em realizar melhorias no ambiente”
(KUNSLER, 2012, p.68).

Nesse cenário, a Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (SMIC),


responsável pela fiscalização dos bares, feiras e comércio em geral, tinha
um papel central. Valter Nagelstein (PMDB), um vereador conservador e
truculento, era o secretário. Uma de suas primeiras medidas para “revitalizar
o Centro Histórico” foi a tentativa de transformar o Largo Glênio Peres, praça
histórica em frente ao Mercado Público de Porto Alegre, em estacionamento.
Nas palavras do próprio Nagelstein, tal medida seria necessária para
“qualificar o público” que frequentava o Mercado148. Tradicionalmente,
146
STURM, Heloísa. Porto Alegre terá R$ 424 milhões para obras de mobilidade. Zero
Hora. Porto Alegre, 15 jan. 2014. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/
noticia/2014/01/porto-alegre-tera-r-424-milhoes-para-obras-de-mobilidade-4390480.html>.
Acesso em: 15 set. 2016.
147
KUNSLER, Alexandre. (Des) Governando o espaço público: a experiência dos ocupa e a
resistência cultural em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: PUCRS, 2012.
148
CARVALHO, André. Ciclistas fazem farofada dos desqualificados contra afirmação de
secretário. Sul21. Porto Alegre, 26 set. 2011. Disponível em: <http://www.sul21.com.br/jornal/
ciclistas-fazem-farofada-dos-desqualificados-em-protesto-contra-afirmacao-de-secretario/>.

84
Guilherme Dal Sasso

o Largo é um espaço de grandes manifestações sociais e políticas, local de


comícios históricos (como as das Diretas Já) e grandes marchas, como as
que costumam abrir o Fórum Social Mundial. Cotidianamente, é habitado
por uma multiplicidade, desde grandes feiras populares até as singularidades
que ocupam aquele espaço da cidade para ganhar e exercer sua vida:
ambulantes, pregadores evangélicos, músicos e artistas de rua, índios guarani
e kaingang que vendem seu artesanato, rodas de capoeira, etc. Alguns anos
antes o Largo também concentrava inúmeros camelôs, que em 2009 foram
removidos e realocados no “Camelódromo”, mudando as dinâmicas fluidas
do trabalho informal onde estes se inseriam e impondo-lhes um novo regime
de controle. Seguindo o plano de transformar o Largo em estacionamento,
a prefeitura tratou de proibir manifestações artísticas sem autorização
prévia e as tradicionais feiras, preparando o caminho para trazer o “público
qualificado”149, que só iria ao centro se fosse de carro. Não bastasse, tratou de
entregar sua manutenção à Coca-Cola, que a partir de então passou a exibir
seu logo em todos cantos da praça.
Em resposta a tais iniciativas, em setembro de 2011 alguns grupos
de ativistas e artistas afetados pelas medidas passaram a organizar
a “Farofada da gente desqualificada”, inspirados no “Churrasco da
gente diferenciada”, ocorrido em maio daquele ano em São Paulo150.
A iniciativa seria logo rebatizada de Largo Vivo: com a ideia de ocupar
o Largo, jovens passam a chamar um evento todas as terças-feiras para
resistir aos carros, trazendo cangas, comidas, instrumentos musicais,
malabares, etc. O largo sempre esteve “ocupado”, mas o Largo Vivo
tornou-se uma forma de ocupação sistemática que buscava chamar a
atenção para o projeto elitista da prefeitura. Nagelstein, evidentemente,
não gostou dessa reação, chegando a escrever artigos na mídia local onde
sugeria que os cicloativistas que promoviam o evento queriam na verdade
usar a bicicleta na tentativa de implementar o comunismo na cidade151.
Acesso em: 15 set. 2016.
149
MARCELO. O Largo é das pessoas, não dos carros! Porto Alegre, 22 set. 2011. Disponível
em <https://vadebici.wordpress.com/2011/09/22/o-largo-e-das-pessoas-nao-dos-carros/>.
Acesso em 16 set. 2016.
150
CHURRASCO da gente diferenciada reúne centenas de pessoas em SP. Último Segundo
IG. São Paulo, 15 maio 2011. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/
churrasco-de-gente-diferenciada-reune-centenas-de-pessoas-em-sp/n1596952519276.html>.
Acesso em: 16 set. 2016.
151
NAGELSTEIN, Valter. A Bicicleta, a Cidade – e o outro. 29 fev. 2012. Disponível em:
<https://portoimagem.wordpress.com/2012/02/29/artigo-a-bicicleta-a-cidade-e-o-outro-por-
valter-nagelstein/>. Acesso em 16 set. 2016.

85
Junho antes de Junho: o ciclo de lutas de Porto Alegre

No verão de 2012, a SMIC iniciou uma onda de operações na Cidade


Baixa, único bairro boêmio da cidade. Historicamente, a Cidade Baixa foi
primeiramente ocupada pela população negra, e portanto alvo de violentas
intervenções, como foi o caso da vila conhecida como Ilhota, removida
durante a ditadura152. Apesar de ainda contar com bares populares, a
dinâmica de concentração dos grandes estabelecimentos nas mãos de
poucos empresários junto ao fechamento dos pequenos bares já era visível
a olho nu, e podia ser confirmada em conversas informais com os donos
de pequenos estabelecimentos, que sempre contaram com uma fiscalização
muito mais dura por parte da SMIC. A prefeitura e a PM, com apoio
midiático, já direcionavam suas ações para reprimir os locais de lazer da
juventude no bairro, com foco nos encontros de rua de jovens emo, na
sua maioria entre os 14 e 18 anos, que bebiam vinhos baratos e criavam
um espaço mais livre para sexualidades não-hegemônicas. Esses encontros
aconteciam todos os domingos na Rua Lima e Silva, até que uma matéria
de capa do maior jornal do estado, a Zero Hora, intitulada “Vandalismo,
drogas e sexo ao céu aberto”153, de abril de 2011, deu a senha para uma
repressão mais contundente, levando ao fim desse tipo de encontro. De
novo nas palavras de Kunsler:

“o endurecimento da atuação da Secretaria Municipal da Indústria


e Comércio (SMIC) se deu junto a determinados estabelecimentos,
aqueles que atendiam justamente o público encarado como problemático
e que cobravam valores mais baixos na entrada dos eventos e no preço
das bebidas. Seriam estes pequenos comerciantes, há anos estabelecidos
no bairro, um dos principais eixos a estimular o fluxo dos grupos jovens
‘desviantes’. São as casas noturnas de cultura negra, de samba e rap, os
tradicionais ‘botecos’, os bares populares que vendiam cervejas a um
preço reduzido, aqueles que não oferecem o mesmo ‘conforto’, que
não possuem garçom, que exigem que os fregueses se sirvam no balcão.
Espaços em que os frequentadores levavam seus próprios instrumentos
musicais, cantavam músicas e elaboravam suas próprias versões”
(KUNSLER, 2012, p. 84).

152
FAGUNDES, Ariel; RODRIGUES, Leandro H. Ilhados na Miséria. Jornal Tabaré. Porto
Alegre, 2 dez. 2011. Disponível em: <https://jornaltabare.wordpress.com/2011/12/02/ilhados-
na-miseria/>. Acesso em: 17 set. 2016.
153
AZEVEDO, Gustavo; GONZATTO, Marcelo. Vandalismo, drogas e sexo ao céu aberto.
Zero Hora. Porto Alegre, 4 março 2011. Disponível em: <http://ordemeliberdadebrasil.
blogspot.com.br/2011/04/sem-limites-vandalismo-drogas-e-sexo.html>. Acesso em: 17 set.
2016.

86
Guilherme Dal Sasso

Uma parcela mais ou menos organizada da juventude, que já puxava


o Largo Vivo, passou a explorar outros modos de reagir. Um exemplo foi
a Chinelagem na Padre Chagas: também através de eventos convocados por
Facebook, e aos moldes da farofada dos desqualificados, jovens frequentadores
dos bares fechados da Cidade Baixa passaram a promover uma festa na rua
que conta com os bares mais caros da cidade, a Padre Chagas, localizada no
bairro mais rico, o Moinhos de Vento – onde os bacanas podem beber na
rua à vontade sem serem perturbados pela SMIC e pela BM. A intervenção
era baseada em levar um isopor com cerveja e interromper o desfile de
carrões na rua badalada, gerando desconforto na burguesia da cidade.
Relativamente próximo ao centro, o acesso aos Moinhos não era difícil,
mas essas intervenções não arrefeceram o ímpeto da prefeitura.
Na metade de 2012, apesar do crescimento do Largo Vivo como forma
de oposição à gestão público-privada do Largo Glênio Peres, a prefeitura
decide instalar um grande FULECO (mascote da Copa do Mundo 2014)
no meio da praça154. Tal gesto foi tomado como provocação deliberada
por parte da prefeitura, e se organizou uma pequena festa de noite para
protestar e quem sabe derrubar o bicho. O evento, convocado por uma
série de coletivos de artistas, grupos musicais e de teatro, foi batizado
de Defesa Pública da Alegria, e começou no final da tarde daquele 4 de
outubro, culminando numa “ciranda” em torno do Fuleco. No entanto,
antes mesmo do Tatu começar a murchar, o Batalhão de Choque, que fazia
a segurança do bicho de plástico, iniciou uma verdadeira batalha campal.
Dezenas de pessoas saíram gravemente feridas e outras tantas foram presas,
no evento que ficou conhecido como Batalha do Tatu.
Na esteira dos acontecimentos, o Largo Vivo cresce em quantidade e
qualidade: se antes era puxado pelo meio mais universitário-militante, ele
passa a contar com uma diversidade cada vez maior de público. Como o
evento era autoconvocado via Facebook, outros grupos passam a fazê-lo:
temos então edições do Largo Verde, puxado por grupos de reggae demais
coletivos que promoviam a Marcha da Maconha, edições temáticas do
Marco Civil da Internet, com a presença do ônibus hacker e mais música
eletrônica, etc. A prefeitura desiste de reerguer o tatu-bola, que também
é derrubado em outras cidades no Brasil, e também do projeto sobre o
estacionamento. O Largo Vivo é tomado hoje como referência não só por
154
MASCOTE da Copa é exposto no centro da capital. Zero Hora. Porto Alegre, 24 set. 2012.
Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/noticia/2012/09/mascote-da-copa-e-
exposto-no-centro-da-capital-3895557.html>. Acesso em: 19 set. 2016.

87
Junho antes de Junho: o ciclo de lutas de Porto Alegre

ter criado um novo ponto de encontro e organização da juventude, mas


por ter sido considerado a primeira “batalha ganha” nessa tensão com a
prefeitura, barrando o projeto do estacionamento e também os planos da
prefeitura de realizar no local a FIFA Fan Fest durante a Copa.
Em síntese, o que estava em pauta era como tornar a cidade mais
governável (diminuindo a capacidade de resistência política nela) e
mais lucrativa. Não que seja algo novo na história do urbanismo e da
governamentalidade, mas a proliferação das formas de resistência é que
nos interessam em particular.

Organizando a indignação, ocupando com alegria


Os eventos narrados até aqui privilegiaram uma tensão específica: a
que colocava em confronto espaços de socialização da juventude porto-
alegrense com as ambições dos governantes de Porto Alegre. A prefeitura
já havia privatizado o Auditório Araújo Vianna, localizado no parque da
Redenção e que costumava receber grandes shows a preços populares, sem
contar com uma resistência à altura. Caberia mencionar, no entanto, que no
dia anterior à Batalha do Tatu, uma parte da plateia que assistia a um show
de Tom Zé no Araújo Vianna incendiou anúncios publicitários da Coca-
Cola no local, aos gritos de “Amanhã vai ser o tatu!”. Se multiplicavam
pontos de tensão, assim como as táticas de resistência.
A mobilidade era um desses pontos. Como já afirmado, a prefeitura era
abertamente antipática às demandas de ciclistas por mais ciclovias, levando
a um crescimento da Massa Crítica na cidade. A Massa Crítica, para quem
não sabe, é um evento organizado globalmente que visa promover a bicicleta
como meio de transporte e pautar os poderes públicos na construção de
ciclovias e outros meios de incentivar o transporte sustentável. Em Porto
Alegre, além das hostilidades já mencionadas do secretário da SMIC
contra os ciclistas, um atropelamento coletivo da pedala por um golf preto,
em 25 de fevereiro de 2011, foi também um marco traumatizante que
ajudou a fortalecer o movimento, multiplicando a adesão de ciclistas em
toda última sexta-feira de cada mês.
Por outro lado, e como nas demais capitais brasileiras, a prefeitura
seguia aumentando a passagem dos ônibus sem apresentar uma melhora
significativa no transporte público. Após uma tentativa frustrada de criar
em Porto Alegre o Movimento Passe Livre (MPL) na segunda metade
da década de 2000, ativistas passaram a se organizar em torno do Bloco

88
Guilherme Dal Sasso

de Lutas pelo Transporte Público. O Bloco mostra-se uma experiência


política instável ao mesmo tempo em que bem-sucedida. Era composto
por uma grande coalizão de organizações: a juventude de partidos de
esquerda como PSOL, PSTU, PCB, PCdoB, PCR e até mesmo do PT,
organizações anarquistas como a Federação Anarquista Gaúcha (FAG) e a
Frente Autônoma, coletivos LGBT, os chamados DAs de Luta (Diretórios
Acadêmicos combativos de algumas universidades), o Levante Popular
da Juventude, sindicalistas, membros do MST, coletivos do Movimento
Negro, coletivos feministas, além de um grande contingente de indivíduos
independentes. O Bloco demonstra forte capacidade de mobilização,
além de conseguir superar (momentaneamente) problemas históricos de
composição política centrando nas suas assembleias as tomadas de decisões.
O Bloco vinha ganhando corpo desde 2011, mas foi definitivamente em
2013 que ganhou corpo e tal abrangência de organizações participantes.
Nesse ano, os atos começaram em fevereiro, antes de efetivado o aumento,
mas apenas após o aumento das passagens, em março, de R$ 2,80 para
R$ 3,05, que a cidade assistiu uma sequência de atos com crescimento
exponencial de participantes e apoio da população. As marchas logo
ultrapassam a barreira das 5 mil pessoas. Em abril, com manifestações que
já agregavam quase 10 mil pessoas, os vereadores Fernanda Melchiona e
Pedro Ruas, ambos do PSOL, entraram com uma liminar na Justiça contra
o aumento da passagem, alegando que Porto Alegre jamais havia feito uma
licitação para as empresas de ônibus operarem. A Justiça acatou a liminar
e a prefeitura anunciou que não iria recorrer, acuada que estava pelas ruas.
O ano de 2013 também foi marcado por outras ocupas que visavam
bater de frente com projetos da prefeitura. Outro exemplo é o Ocupa
Árvore, entre abril e maio de 2013. A prefeitura pretendia duplicar a
Avenida Presidente João Goulart e a Avenida Edvaldo Pereira, que
separam o centro da cidade da orla do rio Guaíba, justamente na altura
de um dos maiores pontos turísticos da cidade, a Usina do Gasômetro,
que também vem a ser o principal ponto da orla onde os porto-alegrenses
conseguem acessar o rio, principalmente nos finais de semana. Não
bastasse aprofundar a separação da orla com a praça do outro lado da
rua e aumentar o fluxo de carros no local, a obra previa o corte de mais
de 115 (sim, cento e quinze) árvores de grande porte, que compunham
a paisagem do Parque Gasômetro (previsto no plano da cidade, mas na
prática ignorado pela prefeitura). Além do corte de árvores, buscava-se
lutar contra os impactos da obra: enorme aumento do fluxo de carros

89
Junho antes de Junho: o ciclo de lutas de Porto Alegre

por uma via que deveria ser um parque e separa um dos maiores pontos
turísticos do resto da cidade. É necessário frisar que, apesar de Porto
Alegre ser costeada pelo rio, são raros os espaços públicos onde se tem
livre acesso à orla. Desse modo, um só projeto municipal mais uma vez
impactava as tensões já descritas em torno de mobilidade urbana, espaços
públicos e também o meio-ambiente.
Quando a prefeitura iniciou os cortes, não contava que jovens que
passavam pelo local subissem nas árvores para impedir seu corte. O que
se seguiu foi uma mobilização puxada por alguns militantes que haviam
promovido o “Defesa Pública da Alegria” na véspera da Batalha do
Tatu. Convertido em coletivo com esse mesmo nome, o Defesa Pública
da Alegria passa a ser um grupo que atua “em defesa da cidade”. São
convocados atos em Defesa Pública das Árvores, num formato parecido ao
de ocupação do Largo Glênio Peres: eventos festivos com forte divulgação
que buscam uma ocupação sistemática de um local ameaçado. Em
seguida, ergueram acampamento no local, próximo também à Câmara
de Vereadores de Porto Alegre, que durou 43 dias, e impossibilitava o
seguimento das obras. No entanto, na madrugada da quarta-feira do dia
29 de maio, a Tropa de Choque invade de surpresa o acampamento e
prende todos manifestantes, que se encontravam dormindo, mesmo sem
esses terem cometido crime algum (o que foi inclusive confessado pelo
comandante da BM). O corte começou a ser realizado às 6h e acabou
antes mesmo do amanhecer. Hoje a Avenida encontra-se duplicada e
mais congestionada do que antes.
Em junho de 2013, quando as coisas começaram a esquentar em São
Paulo, o Bloco de Lutas voltou a convocar manifestações. À semelhança
do MPL, havia adquirido legitimidade e capacidade de mobilização,
sendo o principal responsável pelo chamamento dos atos. Não há,
entanto, um dia específico de ruptura no “espírito” da manifestação:
após os acontecimentos em São Paulo e o realinhamento do discurso
da mídia hegemônica, os protestos já contavam com a presença de
mais de 10 mil pessoas, algo extremamente raro em Porto Alegre.
O que se viu não fugiu à linha dos acontecimentos do resto do país:
multiplicidade de pautas e demandas, seguindo em torno das questões de
transporte, saúde e educação; movimentos feministas e LGBT se fazem
presentes com a pauta #ForaFeliciano; outros setores, considerados
“coxinhas”, mas principalmente de jovens “desorganizados”, se somam
com pautas anticorrupção (contra a PEC 37) e já se vislumbrava com

90
Guilherme Dal Sasso

força questionamentos relativos à Copa do Mundo (saúde e educação


padrão FIFA, etc.) – as pichações “Não vai ter Copa” apareciam por
toda cidade. Um ponto importante de destacar é que praticamente
todas grandes marchas de junho de 2013 em Porto Alegre saíam do
Centro da cidade, em frente à Prefeitura, que era o poder de Estado que
mais antagonizava com as lutas de rua nos últimos anos. Em seguida,
rumavam até a esquina da Avenida João Pessoa com a Avenida Ipiranga,
onde eram invariavelmente reprimidas fortemente. A forte repressão
tinha explicação: é nessa esquina que se localizada a sede do jornal Zero
Hora, do grupo RBS, concessionária da Globo no estado e maior grupo
de comunicação do sul do país. Não se tratava de coincidência: a RBS
foi junto à prefeitura um dos maiores inimigos de todas lutas e atores
políticos listados até aqui.
No dia 10 de julho, seguindo a efervescência política que vive o país,
militantes do Bloco de Lutas ocupam a Câmara dos Vereadores de Porto
Alegre. Após essa rejeitar emendas de vereadores do PSOL (Fernanda
Melchiona e Pedro Ruas) que garantiam a transparência dos cálculos de
reajuste da passagem, o Bloco percebeu que teria de eliminar a casta
atravessadora para criar a lei por mecanismos de democracia real e direta.
É o principal desdobramento local da brecha democrática. Em meio a
vereadores incrédulos, o Bloco de Lutas tomou o plenário, encerrou a
sessão daquele dia e montou uma assembleia para tomar as primeiras
decisões. Centenas de pessoas, possivelmente milhares, se direcionaram
à Câmara para garantir que não haveria reintegração de posse. Após um
acordo com o presidente da Câmara, Thiago Duarte (então no PDT,
partido do prefeito), centenas de pessoas se estabeleceram no Plenário
e passaram a “viver” ali, se organizando em GTs de Comunicação,
Segurança, Limpeza, Alimentação, etc. Durante o dia, havia rodas
de discussão para a construção coletiva dos projetos de lei e outras
atividades paralelas se desenrolam. Assembleias eram feitas duas vezes
por dia, uma no início, para decidir os afazeres do dia, e uma no final,
para os grupos se comunicarem o que foi discutido e/ou decidido. A
ocupação terminou oito dias depois, após a elaboração de dois projetos,
um que propunham o encampamento de todo transporte público de
Porto Alegre pela Carris, a concessionária pública (ou seja, a estatização
das outras três concessionárias que operam na cidade, que por sua vez são
conglomerados de várias empresas) e outro projeto que implementava
o Passe Livre na cidade, cujo financiamento se daria através da maior

91
Junho antes de Junho: o ciclo de lutas de Porto Alegre

taxação de grandes propriedades urbanas e/ou automóveis individuais, a


ser regulamentada pela Câmara dos Vereadores. A Ocupação da Câmara
teve um saldo extremamente positivo, tendo sido bem-sucedida em
termos de cooperação, por ter resistido por oito dias e conseguido um
acordo onde os manifestantes se retiravam contanto que seus projetos
fossem votados – e, no entanto, foram arquivados – e não houvesse
represália política através de processos que criminalizassem o movimento
e seus membros.

Ocupas, ocupas por todos os lados


Como nossos amigos disseram, ocupar e montar barracas se tornou
um reflexo político tão básico quanto a greve foi outrora155. Na esteira
das lutas contra a gentrificação do centro da cidade, a Ocupação Saraí
(2014) também é um marco: uma das dezenas de ocupações urbanas
de Porto Alegre, simbólica por exigir moradia popular no centro da
cidade, ocupando um prédio inteiro em frente ao Cais do Porto (em
breve falaremos dele), enquanto a maioria das ocupações se concentrava
em terrenos nas periferias. Era a quarta vez que o prédio era ocupado,
sendo a última remoção promovida de forma policial-espetacular no
governo Yeda junto ao de Fogaça. A ocupação Saraí pode ser tomada
com um marco por ter promovido a confluência entre as recentes
ocupações festivas de espaços públicos com as tradicionais ocupações
por moradia.
O Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) era o
movimento à frente da ocupação, e iniciou uma aliança com o coletivo
Defesa Pública da Alegria, que passou a atuar como Defesa Pública da
Saraí. A mobilização pela desapropriação do prédio contou com estratégias
semelhantes a do Largo Vivo: fechar a rua, promover atividades com
música, apresentações, feiras de troca e demais atrações para criar laços
mais fortes com a vizinhança e notoriedade perante a sociedade. Foi mais
um movimento de hibridação entre movimentos sociais tradicionais e as
novas formas emergentes de participação e resistência. Uma forte campanha
se desencadeou a partir dessa aliança, ganhando destaque na mídia local
e atenção do meio político e militante. A vitória popular no apagar das
luzes do governo Tarso, que encaminhou a desapropriação do prédio nos
últimos dias de seu governo, encontra-se hoje ameaçada pelo novo governo
155
COMITÊ Invisível. Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições, 2014.

92
Guilherme Dal Sasso

do estado, que diz não ter verbas para a execução da desapropriação. O


prédio segue ocupado, mas sem resolução jurídica.
Hoje, existe uma rede de novas ocupações: Ocupa Violeta, Ocupa
Caracol, Ocupa Pandorga, Ocupa Kuna, Ocupa Chaminé (essas duas
últimas, infelizmente, já extintas por ações de reintegração), que se
conformam de uma maneira peculiar. São ocupações menores, puxadas
por jovens estudantes e trabalhadores, coletivos anarquistas e demais
coletivos que iniciam ocupas em casarões abandonados. Essas iniciativas
multiplicam eventos culturais de diálogo com a vizinhança, cine-debates,
exposições artísticas, oficinas dos mais diversos artifícios (yoga, dança,
teatro, instrumentos musicais, vídeo e edição, longo etc), até festas,
tendendo a se localizar em regiões mais centrais, ao contrário das maiores
ocupações de imóveis urbanos.
Atualmente se desdobra na cidade o Ocupa Cais: iniciativa para tentar
barrar a privatização de mais um patrimônio histórico-cultural da cidade:
o Cais Mauá, conhecido popularmente como Cais do Porto, no centro da
cidade. Trata-se de um processo semelhante ao Ocupa Estelita, de Recife,
mas em menores proporções: o projeto é transformar o Cais que dá origem
a Porto Alegre e consiste numa das principais paisagens da cidade em um
shopping com torres comerciais. Desde a década de 1940 o cais é “protegido”
pelo Muro da Mauá, contíguo à Avenida Mauá, que separa o Cais e o Rio
Guaíba do Mercado Público e do centro da cidade. Mesmo assim, o Cais
era aberto e contava com atividades esporádicas: era possível transitar por
ele e lamentar suas estruturas abandonas enquanto se tomava um mate
assistindo o sol se por no Rio Guaíba. Mesmo relativamente abandonado,
o Cais recebia grande eventos culturais esporadicamente, como a Feira do
Livro e a Bienal do Mercosul. Embora não tenha ocupado de fato o local,
devido ao muro e à ostensiva vigilância privada, o movimento tem buscado
questionar juridicamente e politicamente a estratégia privatizante. As obras
ainda não começaram e a revolta contra o projeto cresce na medida em
que o consórcio de empresários divulga o que pretende fazer com o local,
que além de shopping e torres comerciais, promete um estacionamento
com 4 mil vagas para automóveis. O movimento fez algumas festas dentro
do Cais, e após o fechamento completo deste, tem buscado ocupar com
shows, festas e encontros em frente ao pórtico central, para chamar atenção
da população e convocar a indignação por não mais poder entrar nesse
patrimônio histórico da cidade.

93
Junho antes de Junho: o ciclo de lutas de Porto Alegre

Resistência e produção do comum em Porto Alegre


Como colocamos antes, não existe aqui uma tentativa de explicar
as causas suficientes de junho de 2013, mas sim explorar experiências de
resistência que proliferavam na cidade nos anos imediatamente anteriores
aos acontecimentos de junho, e nos posteriores também. Algumas
características são marcantes desses movimentos e chamam atenção por se
relacionarem aos eventos de junho de 2013 e à onda global de protestos
que varreu o mundo. Como dizem Negri e Hardt156 (2014, p. 14-15) em
Isso não é um manifesto:

“Esses movimentos compartilham diversas características; a mais óbvia


delas é a estratégia de acampamento ou ocupação. [...] permanecem em um
lugar e, em verdade, recusam-se a se mover. Até certo ponto, a imobilidade
deve-se ao fato de que estão profundamente enraizados em questões
sociais locais e nacionais. Os movimentos também compartilham suas
organizações internas como se fossem uma multidão [...], não construíram
quartéis-generais nem formaram comitês centrais, mas se espalharam
como enxames, e, o mais importante, criaram práticas democráticas de
tomada de decisão, para que todos participantes pudessem liderar juntos.
Uma terceira característica que os movimentos exibem, embora de
maneiras distintas, é o que concebemos como uma luta pelo comum [...],
no sentido em que contestam as injustiças do neoliberalismo e, em última
análise, a regra da propriedade privada [...], igualmente se opondo à regra
da propriedade pública e ao controle do Estado”.

Além dessas características, em Porto Alegre esses movimentos


se articularam em torno da questão urbana. Isso pode soar vago, mas se
pensarmos que o Bloco de Lutas e a Massa Crítica foram atores políticos
destacados na cidade, não à toa eram movimentos de contestação sobre as
políticas de mobilidade. Parece-nos claro que a mobilidade é central no atual
paradigma do capitalismo, onde a própria cidade se tornou a fábrica: só se
produz na medida em que é possível se deslocar no meio urbano. E longe
de ser um direito, a mobilidade urbana é antes de tudo uma mercadoria
hoje. Como já disse Cocco157, na passagem da fábrica para a metrópole,
os conflitos de classe se deslocam da relação salarial e transbordam para a
156
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração: Isto não é um Manifesto. São Paulo:
n-1 edições, 2014.
157
COCCO, Giuseppe. As biolutas e a constituição do comum. Le Monde Diplomatique. 2
maio 2011. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=939>. Acesso em:
19 set. 2016.

94
Guilherme Dal Sasso

“esfera da reprodução”: as lutas por transporte, moradia e até mesmo por


diversão devem ser compreendidas a partir da centralidade que adquirem
na possibilidade dos jovens trabalhadores (sobre)viverem e produzirem
nesse paradigma. Ao contrário do paradigma fabril, é na circulação que se
produz valor.
Por outro lado, os movimentos de ocupação dos espaços públicos
contestam as investidas em espaços de lazer, de confraternização e de
trabalho informal. Não à toa a cidade é governada a partir de PPPs e espaços
públicos são totalmente privatizados. Ao analisar diferentes modulações
do regime de propriedade privada, Hardt afirma, no texto O comum no
comunismo158, que:

“o processo de produção do comum goza de uma autonomia limitada em


relação à partilha dos recursos e à determinação dos modos de cooperação,
e o capital é sempre capaz de exercer um controle e de expropriar o valor
através da renda. A exploração nesse contexto toma a forma da expropriação
do comum”.

Desse modo, a privatização do Cais Mauá, do auditório Araújo


Viana, do Largo Glênio Peres, a destruição de árvores e espaços verdes e
a imposição de uma nova matriz mercadológica sobre os bairros boêmios,
representaram uma investida sobre dinâmicas sociais já estabelecidas na
cidade, mas buscando impor-lhes um novo regime de propriedade, capaz
de tornar possível a extração de valor a partir da produção do comum.
No entanto, é importante notar que muitos dos espaços que sofreram
intervenção não deixaram de ser “públicos”: Estado e Capital atuam como
forças complementares, encontrando oposição apenas na multidão e na
sua defesa do comum, e não nas tradicionais organizações socialistas.
Essas reflexões devem ser estendidas também a uma compreensão
desse tipo de cidade como resultante do desenvolvimentismo lulista,
no que Moyses Pinto Neto (2015)159 chamou de “reorganização
neodesenvolvimentista do espaço urbano”: se a mobilidade urbana
tornou-se imóvel, em grande parte isso foi resultante da duplicação da
frota de veículos particulares promovida pelas políticas federais de redução
do IPI dos mesmos, ao passo que os investimentos federais nas cidades
158
HARDT, Michael. O comum no comunismo. 7 março 2014. Disponível em: <http://blog.
indisciplinar.com/texto-o-comum-no-comunismo-de-michael-hardt/>. Acesso em: 19 set. 2016
159
NETO, Moyses Pinto. O progressismo como modernização unidimensional do Brasil.
In: Governo, Cultura e Desenvolvimento: Reflexões a partir da Amazônia. Porto Alegre:
Editora Fi, 2015

95
Junho antes de Junho: o ciclo de lutas de Porto Alegre

eram convertidos em viadutos e avenidas duplicadas, promovendo um


ciclo vicioso do transporte individual e impactando todo tecido urbano.
Por outro lado, não é possível compreender os processos de especulação
imobiliária e privatização de espaços comuns sem atentar que a construção
civil e as empreiteiras eram aliadas de primeira ordem do governo federal
e os principais beneficiários de políticas centrais para o governo, como
o PAC, os megaeventos (Copa), Minha Casa Minha Vida, entre outros.
Resumindo de outro modo, os enormes investimentos feitos através desses
programas redesenhavam as cidades, gerando ou agravando os conflitos em
torno de mobilidade, moradia, acesso à cidade, e promovendo novas lógicas
de governo capazes de controlar as revoltas e resistências decorrentes.
Desse modo, cremos ser importante pensar o fim do ciclo progressista
na América Latina também a nível dessas lutas locais que, não à toa, se
constituíram de modo autônomo, à margem das tradicionais instituições
de esquerda, dos seus partidos políticos, seus sindicatos e movimentos
sociais tradicionais. Antes de ser uma “acusação” sobre a obsolescência
desses, trata-se de ser capaz de atentar para novos fronts de conflito e para
novas linhas de aliança que se desenham. Se tais movimentos se mostraram
um empecilho às estratégias de acumulação do capital e de governo do
Estado, talvez o secretário Nagelstein não estivesse tão errado na sua
acusação contra os ciclistas. Como disse Pelbart160, a respeito de junho
de 2013: “tornar cada vez mais comum o que é comum – outrora alguns
chamaram isso de comunismo”.

160
PELBART, Peter Pal. Anota aí: eu sou ninguém. O Povo online. Fortaleza, 30 out.
2014. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2014/10/30/
noticiasjornalvidaearte,3339478/leia-artigo-do-filosofo-tradutor-e-professor-peter-pal-pelbart.
shtml>. Acesso em: 19 set. 2016.

96
Eleições municipais no Brasil.
O que nos dizem as urnas, o que nos
dizem as ruínas no Rio de Janeiro
Barbara Szaniecki161
Clarissa Naback162
Clarissa Moreira163

Introdução
As eleições municipais acabaram de acontecer, mas podemos desde já
tecer algumas considerações sobre seus resultados. Enquanto o Partido dos
Trabalhadores (PT) perdeu mais de 400 cidades (638 cidades em 2012, 254
em 2016), o PSDB, sua oposição, venceu em mais cidades (695 cidades
em 2012, 803 em 2016). E o PMDB, que é não é exatamente um partido
de centro, mas que está sempre no governo, restou estável (1021 cidades
em 2012, 1028 em 2016). Vale lembrar que o PMDB estava presente
no governo de Fernando Henrique Cardoso do PSDB de 1995 a 2002,
e permaneceu no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva do PT
de 2003 a 2010, ganhando ainda mais importância sob a presidência de
Dilma Roussef. Eleita em 2010 e reeleita em 2014, seu segundo mandato
foi recentemente interrompido por um processo de impeachment que foi
denunciado como um “golpe de estado” pelo PT e por seus partidos mais
próximos.
Em outro ponto de vista, ilustrado pelo mapa dos resultados da gestão
do PMDB-PT no Rio de Janeiro, mostra que as camadas menos favorecidas,
161
Professora Adjunta na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. É autora dos livros Estética da Multidão (editora Civilização Brasileira, 2007) e Disforme
Contemporâneo e Design Encarnado: Outros Monstros Possíveis (editora Annablume, 2014).
162
Doutoranda em direito no programa de pós-graduação de Teoria do Estado e Direito
Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
163
Professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Doutora em Filosofia da Arte e da Arquitetura pela Universidade de Paris I, Panthéon-
Sorbonne (2007).
Eleições municipais no Brasil. O que nos dizem as urnas, o que nos dizem as ruínas no Rio de Janeiro

contra as quais foi organizado esse “golpe de Estado”, já sentiam os efeitos de


diferentes ataques mais graves e diretos por muito mais tempo. Trata-se de um
ponto de vista particular. Pode-se argumentar que a cidade do Rio de Janeiro
é uma ilha no oceano que é o território brasileiro. No entanto, o Rio não é
um caso isolado, mas um caso particular a partir do qual podemos melhor
compreender um dos aspectos mais controversos da grave crise nacional.
Este é o caso típico do modelo de desenvolvimento de um país e de gestão
da cidade ao gosto dos anos 70, ancorado na realização de obras de grande
escala – das hidroelétricas aos grandes conjuntos habitacionais localizados em
regiões distante dos centros urbanos – com efeitos muito negativos sobre as
comunidades locais. Apesar das experiências negativas acumuladas por todo
mundo, esse modelo criou uma ilusão de desenvolvimento de país. Mas é,
sobretudo, no Rio que este modelo, baseado em uma sequência megaeventos
– Rio + 20 em 2012, Copa das Confederações e Jornada Mundial da
Juventude em 2013, a Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016
–, provocou grandes transformações urbanas, nas quais esteve envolvido o
volumoso despejo dos pobres do centro da cidade para as periferias mais
distantes. E esse projeto, promovido no âmbito municipal pela prefeitura
de Eduardo Paes, e no nível estadual, pelo governo de Sérgio Cabral, ambos
do PMDB, teve forte apoio de Lula e Dilma. A relação entre os fatos e os
resultados das urnas, ou melhor, o desgasta da relação entre PT e sua base
eleitoral – os pobres – é o que nos propomos analisar aqui.

Das remoções desde 2011 às manifestações de 2013


Em 2011, durante uma visita de investigadores europeus ao Rio de
Janeiro, fomos até ao Morro da Providência. A comunidade, localizada
na zona portuária, é reconhecida como a primeira “favela” do Rio de
Janeiro. Poucos meses antes, os habitantes da favela foram surpreendidos,
de um dia para outro, com inscrições em suas paredes com a sigla SMH
(Secretaria Municipal de Habitação) seguida de um número. É desta forma
que a Secretaria Municipal de Habitação decidiu comunicar a demolição
de suas casas para a construção de um teleférico e a implantação de
melhorias da infraestrutura urbana que, se baseando em conceitos como o
de “desadensamento”, visavam claramente o desenvolvimento do turismo
na comunidade e substituição gradual da população. Isso fazia parte do
projeto de renovação urbana de toda a área portuária carioca. A Prefeitura
propôs algumas contrapartidas inadequadas e parciais para a comunidade

98
Barbara Szaniecki, Clarissa Naback e Clarissa Moreira

e os moradores se organizaram para resistir.


Um verdadeiro filho da Providência, o fotógrafo Mauricio Hora
conhecia bem o drama. Apoiado pelo fotógrafo francês JR, ele começou
a fotografar os moradores ameaçados de despejo, para imprimir essas
imagens em grande formato e colá-las nas paredes das casas, para que os
trabalhadores do município devessem confrontar aqueles rostos durante
as demolições. Um cara a cara difícil de sustentar. Estas imagens fizeram a
volta ao mundo. Outro artista, português, desta vez, começou a trabalhar
diretamente sobre as paredes. Alexandre Farto conhecido como Vhils
(http://vhils.com/) esculpiu o retrato dos habitantes. Com seus retratos,
Hora e Vhils gritaram para o prefeito do Rio e para o mundo que estas
casas são habitadas.
Os despejos não se limitaram ao Morro da Providência. Toda a zona
portuária foi alvo de um projeto de renovação urbana inspirada por outras
cidades do mundo, bem como outras regiões do Rio sofreram do mesmo
fenômeno. Duas em particular: os arredores do estádio de futebol do
Maracanã, com o evento dramático da favela do Metrô, e o entorno do que
viria a ser o Parque Olímpico, no bairro da Barra da Tijuca, com a remoção
da Vila Autódromo. A SMH era então gerida por um quadro do PT (com
Jorge Bittar e depois, com Pierre Batista), enquanto a cidade estava sob
gestão de uma coligação entre PMDB com Eduardo Paes (prefeito) e PT
com Adilson Pires (vice-prefeito). Para remover as favelas, a tática era
demolir as casas dos moradores que tinham aceitado se mudar para uma
casa do programa federal Minha Casa Minha Vida e deixar o entulho se
acumular na comunidade. As “ruínas” produzidas pelos escombros das
casas e seus entulhos tiveram um forte impacto negativo sobre o espaço e
as pessoas eram forçadas a sair pela degradação ambiental e mesmo moral,
assim infligida. Essas imagens não só testemunham o que aconteceu, mas
produzem uma real indignação para que isso não aconteça nunca mais –
esta consiste na terceira das maiores ondas de remoção da cidade (após
Pereira Passos, início do século XX, e Carlos Lacerda, na década de 70).

As imagens de Luiz Baltar


(http://luizbaltar.com.br/)

Originário do bairro de Bento Ribeiro, Luiz Baltar, fotógrafo, faz de


suas viagens entre a periferia e o centro do Rio de Janeiro um dos principais
temas de sua obra. Estas idas e vindas são marcadas por uma paisagem

99
Eleições municipais no Brasil. O que nos dizem as urnas, o que nos dizem as ruínas no Rio de Janeiro

particular, povoada de algumas favelas e principalmente das ruas e casas


em sua maioria simples, do subúrbio carioca. No Morro da Providência,
o fotógrafo documenta os retratos dos moradores ameaçados de despejo,
estendidos nas paredes das casas ameaçadas de demolição. “Tem morador”
é o título de um conjunto de imagens que buscam perenizar esse momento
de luta no morro. Outro conjunto, “Vazios Forçados” mostra os efeitos do
tempo sobre os retratos dos habitantes e o vazio que se faria cada vez mais
presente.
Baltar também registra eventos e outras formas de mobilização nas
comunidades e bairros. Ativistas ligados à luta pela moradia se organizaram
em fóruns como o Comitê Popular da Copa do Mundo e Jogos Olímpicos,
mas foram os eventos de 2013 que lhes deram uma força absolutamente
incrível. Os movimentos começaram por exigir preços mais baixos para
o transporte em São Paulo e ficaram conhecidos como “a revolta de 20
centavos”, antes de se espalhar por todo o país. Esta reivindicação específica
era a que mais se sobressaía nos protestos, mas ainda subsistiam outras. Por
um lado, não tratava apenas da exigência de uma diminuição nas tarifas de
ônibus ou a melhoria da qualidade dos serviços de transporte, mas também
de uma maior mobilidade na cidade. A validade muito limitada de bilhetes
de transporte articulados reduz a mobilidade da população da ida direta da
casa ao trabalho, excluindo a vida na metrópole e seus movimentos possíveis
em todas as suas dimensões, que requerem circulação bem mais ampla. Por
outro lado, logo após as primeiras manifestações para o “passe livre”, as
reivindicações têm aumentado em número, mas também em temas.
Após dez anos no poder, a política social do PT parecia ter perdido
o fôlego e as ruas das cidades brasileiras estavam prontas para inflamar. A
violência das forças de repressão por parte da Polícia Militar do Estado do
Rio de Janeiro (PMRJ) foi considerável. Nas favelas cariocas, novas forças
de ocupação se instalaram: ironicamente, elas são chamadas de Unidades de
Polícia Pacificadora (UPP) e por ocasião de grandes eventos como a Copa
do Mundo e os Jogos Olímpicos, as forças militares do governo federal
– a chamada Força Nacional (FN) – vêm em sua ajuda. A “pacificação”
do Rio é uma mistura de PM, UPP e FN. As imagens de Baltar, “Paz
Armada” mostram a população das favelas tratada como inimiga, sem
piedade. Apesar desta situação, na cidade, os protestos persistiram e
sempre sem nenhuma escuta pelos diferentes níveis de governo ao longo
de 2013 e 2014. Pelo contrário, não só os manifestantes foram reprimidos
localmente, mas aqueles que mais se engajaram foram alvo de investigações

100
Barbara Szaniecki, Clarissa Naback e Clarissa Moreira

criminais, vendo suas ações criminalizados por uma “lei antiterrorista” (lei
13,260 / 2016) implementada pelo governo federal de Dilma Rousseff.
Para a esquerda no poder e, mais genericamente, a institucionalizada, as
redes e ruas congestionadas de pessoas indignadas eram decididamente
fascistas e contra os pobres. E os pobres, instrumentalizados pela grande
mídia e incapazes de pensar por si só. Na Academia da Polícia Militar, a
declaração de Marilena Chauí, uma das principais intelectuais do PT e da
esquerda institucionalizada, segundo a qual os Black Blocks eram fascistas
e não anarquistas, legitimavam a repressão.

As ruínas na cidade, as ruínas nas eleições


É, portanto, no seio de um ciclo de reivindicações ignoradas e de
manifestações reprimidas que devemos avaliar a crise da representação no
Brasil. Se, no nível nacional, o PT de Dilma Roussef sofreu um impeachment
que favoreceu o PMDB do seu vice-presidente, no Rio de Janeiro, o PMDB
do prefeito Eduardo Paes e o PT do seu vice Adilson Pires não conseguiram
eleger um sucessor. Este fracasso é bem significativo da rejeição popular aos
personagens envolvidos e ao projeto empreendido nos últimos 8 anos. No
lugar do candidato Pedro Paulo e de sua vice Cidinha Campos, enfrentaram-
se no segundo turno das eleições municipais Marcelo Crivella do PRB e
Marcelo Freixo do PSOL. O primeiro é reconhecido como conservador pelo
fato de ser Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus que em diversas
ocasiões manifestou intolerância com as religiões de matriz africana assim
como com grupos LGBT, ambos muito presentes na cidade; já o segundo
é visto como progressista visto seu engajamento nas lutas pelos direitos
humanos. Se tentarmos situá-los no espectro ideológico esquerda-direita,
pelo seu conservadorismo religioso e sociocultural, Crivella estaria à direita
no espectro, mas isso não foi um impedimento para obter um grande apoio
do PT em suas candidaturas ao governo do Estado do Rio de Janeiro e para
assumir o Ministério da Pesca no primeiro governo de Dilma. Freixo, que
está naturalmente à esquerda do espectro, ora apoiou o governo ora o criticou
duramente. Enquanto Freixo obteve seus votos nas classes médias e altas
das zonas centro e sul da cidade, Crivella obteve os seus no seio das classes
menos favorecidas, isto é, entre aqueles que foram extremamente afetados
pela gestão do PT-PMDB no Rio. Entretanto, podemos afirmar que não foi
exatamente Crivella com seu populismo que ganhou as eleições municipais
e sim os votos nulos e brancos.

101
Eleições municipais no Brasil. O que nos dizem as urnas, o que nos dizem as ruínas no Rio de Janeiro

As ruínas urbanas fotografadas por Luiz Baltar são à imagem das


ruínas da esquerda. É preciso saber encarar essas ruínas porque são as
nossas. Com o fim dos Jogos Olímpicos e desse ciclo espetacular de
megaeventos, os cariocas manifestaram nas urnas a rejeição a esse modelo
de desenvolvimento cuja política de habitação, sustentada pelas alianças
entre partidos que não representam mais ninguém e sim sustentam
as grandes empresas e empreiteiras da construção civil, sempre mais
presentes nas manchetes dos jornais, acusadas de corrupção. O resultado
desse ciclo é catastrófico tanto para a cidade quanto para o Estado do
Rio de Janeiro. Na escala da cidade, ao invés de projetos de renovação
urbana que integrem favelas e bairros, prefeitura, vice-prefeitura e
secretaria municipal de habitação (PMDB e PT de mãos dadas) optaram
pelas remoções de população para periferias longínquas, agravando o
quadro de segregação social com uma segregação espacial. No nível do
Estado, ao lado do estádio do Maracanã, reformado pela enésima vez,
a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e o Hospital Universitário
Pedro Ernesto padecem com suas instalações e equipamentos em ruínas
e seus funcionários arruinados sob ameaça de perder seus salários, seus
empregos e até mesmo seus direitos à aposentadoria, a uma vida digna.
Nas favelas removidas, entre elas a conhecida como “favela do metrô”
entre a UERJ e o Maracanã, alguns moradores resistem, vivendo entre
os entulhos, crianças brincam com restos de tudo e qualquer coisa. À
noite, luzes frágeis insistem em brilhar. Tal como os vagalumes evocados
por Georges Didi-Huberman, elas resistem aos projetores de um projeto
de gestão das cidades que articulou um discurso de esquerda com
práticas de direita, isto é, de remoção de pobres em nome de um suposto
desenvolvimento.

Das imagens aos livros. Livros para ler e para lutar


Frente às ruínas, é tempo de se fazer um balanço. Foi publicado e
lançado recentemente, o livro A resistência à remoção de favelas no Rio
de Janeiro: instituições do comum e resistências urbanas: a história
do Núcleo de Terras e Habitação e a luta contra a remoção de favelas
no Rio de Janeiro – 2007-2011, organizado por Alexandre Mendes e
Giuseppe Cocco. O livro conta a história dessas lutas urbanas e foi dividido
em quatro partes. A primeira abre o debate com algumas reflexões sobre
a disputa da cidade, das lutas históricas das favelas até as resistências em

102
Barbara Szaniecki, Clarissa Naback e Clarissa Moreira

tempo de megaeventos. A segunda conta a história do Núcleo de Terras


e Habitação (NUTH) de 2007 à 2011 instituído no seio da Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro. A parte que lhe é dedicado apresenta
expulsões de favelas assim como os meios legais utilizados para evitá-las.
A terceira parte aborda essas mesmas lutas do ponto de vista da resistência
das diferentes favelas como também das ocupações urbanas. E a quarta
parte relata como esse ciclo de lutas em favor das comunidades acabou por
atingir o próprio NUTH. O lançamento do livro foi realizado com uma
roda de conversa reunindo vários atores. O momento não poderia ser mais
oportuno.
Um novo prefeito acaba de ser eleito: quais são as perspectivas
para essas populações continuamente marginalizadas? Esse últimos
anos foram extremamente difíceis para as comunidades cariocas. Elas
viveram sob a permanente ameaça de remoção da Prefeitura com vice-
prefeitura e secretaria municipal de habitação. Algumas resistiram e
obtiveram a permanência dos moradores, outras foram arrasadas. Na
Estradinha, uma centena de famílias permaneceu, na Vila Autódromo
somente umas vinte. Todo o processo começa com alguns rumores, em
seguida chegam as ameaças a violência e a remoção. É impossível ouvir os
relatos dos habitantes sem se deixar levar pela emoção. Fátima Amorim
(líder comunitária da Estradinha – Tabajaras) se declara evangélica,
Jorge Santos (líder comunitário da Vila Recreio II) também. Vindos
de duas comunidades diferentes, ambos comentam que logo no início
das remoções, eles sequer sabiam que tinham o direito de resistir e que
aprenderam muito com os defensores públicos do NUTH. Estes últimos,
por sua vez, contam como optaram por deixar o conforto de seus escritórios
para ir ao front e que aprenderam muito com os moradores. Nessas trocas
entre moradores e defensores públicos, o próprio campo do Direito se
transformou, deixando de ser mera aplicação de normas e assumindo
afirmativamente as práticas de resistência. Após informar o Comitê
Olímpico Internacional (COI) sobre a situação da Vila Autódromo –
pequena comunidade situada perto do Parque Olímpico da Barra da
Tijuca – o próprio NUTH foi ameaçado e submetido a intervenções
políticas que culminaram na exoneração de alguns de seus membros.
Todavia, o NUTH persistiu recusando os procedimentos burocráticos
e os privilégios dos poderosos e prosseguiu com sua atividade jurídica
engajada com os moradores.

103
Eleições municipais no Brasil. O que nos dizem as urnas, o que nos dizem as ruínas no Rio de Janeiro

Inventar as ruínas, invenção de uma outra


política
Se as lutas contra as remoções permitiram ao longo desses últimos
anos uma aprendizagem para todos que se engajaram, esse encontro
possibilitou a construção de uma reflexão sobre esse processo. Um ganho
em conhecimento, mas uma derrota ante aos fatos: a perda das casas,
muitas vezes a perda do trabalho e, especialmente, a perda da vida em
comunidade. Altair Guimarães da comunidade Vila Autódromo afirma
sem hesitar : « nós saímos derrotados ». No outro aspecto da cidade, depois
da sua derrota nas urnas, em uma entrevista ao jornal O Globo164, Marcelo
Freixo refletiu sobre outra perda – a sua e a da esquerda –, relacionada
à escolha dos pobres nas últimas eleições, principalmente sob uma
perspectiva nacional: “nós podemos afirmar que este é o pior momento
para a esquerda desde a ditadura. Eu não me recordo de uma crise tão
grande assim. A esquerda não deve culpar os outros atores e esquecer de sua
responsabilidade. É o momento de fazer uma autocrítica e compreender os
erros. É o fim de um ciclo. Todo o projeto de esquerda está pagando caro
pelos erros do modelo de governamentalidade, erros cometido sobretudo
pelo PT. Mas é ainda inútil crucificar o PT, é fundamental que a esquerda
não se vitimize”. Analisando questões mais locais, Freixo fala abertamente
de sua dificuldade de penetrar a zona oeste, a região mais pobre da cidade,
e que também foi o principal destino dos moradores removidos de favela.
Em confronto aberto com o discurso acrítico, Freixo diz que a falta de
penetração da esquerda nessas regiões não se deve unicamente à presença da
milícia nesses territórios: “É um desafio. É devido apenas à milícia? Não. É
fato que a candidatura de Crivella tem um forte caráter popular. Isto vem
da Igreja Universal (IURD) e Record (canal de televisão de propriedade
da Igreja Universal), que tem uma forte penetração nos setores populares.
É inútil tentar resolver durante as eleições o nosso distanciamento com a
população da zona oeste. É ainda mais fácil dialogar fora deste período,
porque a credibilidade (do candidato) aumenta se ele não vai unicamente
por esse interesse imediato (as eleições). Nós conseguimos penetrar um
pouco, mas isso deve ser permanente. O trabalho de base deve chegar na
zona oeste. Ele ainda é precário e frágil, por parte de toda a esquerda”.

164
http://oglobo.globo.com/brasil/derrotado-freixo-ve-pior-crise-da-esquerda-faz-autocritica-
20393757

104
Barbara Szaniecki, Clarissa Naback e Clarissa Moreira

Se levarmos adiante as reflexões de Freixo, podemos perceber que no


Rio, o governo do PMDB-PT, ao remover sistematicamente mais de 60.000
habitantes das favelas para as periferias mais distantes da cidade, deixando-
os a sua própria sorte, em nome de grandes projetos bilionários, esse
governo contribuiu sistematicamente para a derrota da esquerda. Quanto
mais a política de base recua, mas a política populista/providencial avança,
atrelada à religião. O PT, que um dia já fez das « Comunidades Eclesiais de
Base » – comunidades promovidas por padres da Teologia da Libertação –
a sua base para uma outra política, parece ter esquecido tudo isso. Com a
« PMDBzação » do PT, os pobres do Rio optaram por Crivella. Aqui, no
Rio de Janeiro, desse ponto de vista particular, mas bastante emblemático
do ponto de vista dos pobres do Brasil, o impeachment da Dilma é mais
um «  arranjo entre aqueles que sempre estiveram no poder  » do que o
«  golpe de estado  », invocado por intelectuais brasileiros e estrangeiros.
Para os pobres, se « golpe » há, ele é exatamente aquele que ocorre todos os
dias contra as suas vidas. Uma das mais importantes revistas da esquerda
publicou em sua capa: «  Pobre Povo Brasileiro: as eleições municipais
provaram sua incapacidade de agir politicamente e de compreender que os
golpistas o escolhem como vítima. E pobre Brasil... » Será que é mesmo o
povo que tem que se transformar?
O resultado das urnas demonstra o desgaste da relação entre PT e sua
base eleitoral. As imagens de Luiz Baltar revelam esse abandono dos pobres
do Rio pelo PT. Alguns deixaram suas casas por uma indenização miserável
e outros conseguiram permanecer em suas casas, mas morando em meio aos
escombros. O espetáculo dos Jogos Olímpicos acabou, o próximo prefeito
em breve vai descobrir o estado das finanças municipais. Enquanto isso,
o governo do Estado justifica, como uma falha financeira, os atrasos nos
pagamentos dos funcionários. Outros estados brasileiros já comunicaram
ao governo federal suas dificuldades econômicas, mas é o Rio que tem
a crise mais grave. Nesses últimos dias, as manifestações que tomaram
as ruas da cidade carioca tinham como base funcionários da segurança
pública, da saúde e da educação, todos enfrentando a mesma situação.
No Brasil, inúmeras escolas e universidades foram ocupadas contra as
reformas que querem reduzir as despesas públicas O jogo da representação
política se tona cada vez mais difícil e tenso. Aqueles que protestam nas
ruas e ocupam as escolas e universidades não são só os pobres que o poder
público pode ignorar ou até mesmo rapidamente entregar aos interesses
das empreiteiras da construção civil entre outras empresas para se manter

105
Eleições municipais no Brasil. O que nos dizem as urnas, o que nos dizem as ruínas no Rio de Janeiro

no poder. Agora são também as classes médias que não querem pagar com
seus salários e redução de direitos os efeitos da corrupção e com as quais
os governos terão de negociar as medidas de austeridade apesar da situação
econômica catastrófica. Será preciso que a esquerda encare as ruínas de seu
modelo de desenvolvimento ao invés de se limitar a acusar o liberalismo.
Para salvar vidas reais, em vez de biografias intelectuais, para reinventar a
política no Brasil, é preciso ter a coragem da verdade e construir um pacto
social de novo tipo. Aquele pacto estabelecido por Lula há mais de uma
década, apesar dos avanços obtidos nas medidas de inclusão social, chegou
ao seu limite com as restrições ao debate e à crítica, à própria verdade.

106
Direito à cidade: crises e alternativas em
torno de um conceito
Clarissa Naback165

Introdução
O direito à cidade foi um conceito desenvolvido por Henri Lefebvre
em sua obra Direito à Cidade (1968), que acabou se tornando um
prenúncio da irrupção social de maio de 68, que paralisou Paris. Lefebvre
apontava em seu livro que o Urbanismo (seja dos técnicos, do Estado ou
do mercado), promovia segregações urbanas e sufocava as práticas criativas,
atuando principalmente contra os pobres e trabalhadores, afastando-os da
centralidade que a cidade compõe. O direito à cidade seria então o direito
de participar dessa centralidade e a liberdade de produzir diferenças.
Quando Henri Lefebvre desenvolveu sua análise sobre o fenômeno
urbano, Paris experimentava uma crise onde a antiga cidade já não
poderia mais subsistir frente à política urbana do pós-guerra, que
objetivava transformá-la de uma cidade industrial para um centro
comercial e financeiro, segundo formulações de um urbanismo ainda
predominantemente funcionalista. Lefebvre, junto ao movimento
Internacional Situacionista, do qual fica próximo no final dos anos
1950, propunha uma reapropriação do cotidiano, que cada vez mais era
segmentado (trabalho e vida privada) e organizado a partir de atividades
de consumo (CORTÉS, 2008).166
165
Doutoranda em direito no programa de pós-graduação de Teoria do Estado e Direito
Constitucional da Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
166
Os situacionistas se formaram no final dos anos 1950, com a junção de movimentos
artísticos e intelectuais. Suas figuras mais conhecidas são Guy Debord que escreveu Perspectivas
Conscientes da Vida Cotidiana e Sociedade do Espetáculo e Raoul Vaneigen que desenvolveu
críticas sobre urbanismo e arquitetura como ideologia na revista Internacionale Situationniste.
Eles tinham como pensamento revolucionário a própria libertação do cotidiano e pensavam
em estratégias de resistência a partir da criação de situações, que seriam práticas concretas
construídas coletivamente, que gerassem acontecimentos de ruptura e subversão da ordem do
consumo.
Direito à cidade: crises e alternativas em torno de um conceito

Se o movimento de 1968 foi o que poderíamos chamar de


um levante contra uma cidade disciplinar, atualmente observamos
transbordar revoltas e manifestações em diferentes cidades do mundo,
que brevemente podemos citar: o 15M na Espanha em 2008 em meio
a crise financeira; a ocupação da praça Taskim em Istambul em 2013
contra expropriação do espaço público; as manifestações em diversas
cidades brasileiras contra o aumento da tarifa de ônibus; as ocupações
em Hong Kong por um sistema político mais democrático em 2014; as
manifestações em Baltimore contra o racismo institucional em 2015.167
Nesse sentido, Lefebvre acerta em apontar o urbano como horizonte
tanto de expropriação capitalista quanto de transformação na “realidade
pós-industrial” (LEFEBVRE, 2008, p. 67).
O que interessa destacar aqui é que entre maio de 68 e os recentes
levantes e manifestações, podemos perceber que o direito à cidade é
sucessivamente apropriado e reiterado. Nas palavras de David Harvey
o conceito acabou seguindo uma “vida própria” e recorrentemente é
utilizado por inúmeros movimentos. Em Cidades Rebeldes (2014), ele
observa que foi a partir das ruas, dos movimentos e das lutas urbanas
que o direito à cidade ressurge constantemente. Inúmeros movimentos e
organizações utilizaram o direito à cidade sem nenhum vínculo ou menção
à conceituação de Lefebvre. Um exemplo é a conquista dos movimentos
sociais da regulamentação do direito à moradia e da inovação do orçamento
participativo no Brasil, que para Harvey, teve pouco a ver com o legado de
Lefebvre (HARVEY, 2014, p. 14).
Nas linhas do livro, o direito à cidade consistiria em um “significante
vazio repleto de possibilidades imanentes, mas não transcendentes”
(HARVEY, 2014, p. 244). Os significados possíveis desse conceito são,
então, produzidos a partir de um campo material de lutas. O que é
relevante para o autor é perceber que o urbano e a urbanização cumprem
um papel importante para a absorção de excedentes do capital. Diante
dessa expropriação do urbano pelo capital, Harvey destaca a importância
do direito à cidade para uma luta anticapitalista, como reivindicação de um
“controle democrático sobre a utilização dos excedentes da urbanização”
(HARVEY, 2014, p. 81).
167
Acompanhei o acontecimento dessas manifestações através de meio eletrônicos e redes
sociais, o que ocorre de modo difuso e rizomático. No entanto, uma análise mais teórica e
sistemática desses eventos pode ser encontrada no livro KorpoBraz, de Giuseppe Cocco (2014),
ou no livro de Manuel Castells (2013). Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais na
era da Internet.

108
Clarissa Naback

Em consideração a esse relevo histórico, não nos parece correto tomar


o direito à cidade como um significante vazio: ele está atrelado a múltiplos
significados que emergem nesse contexto – porque o próprio significante
emerge desse contexto –, mas está constantemente aberto a esses múltiplos
significados e reapropriações. O conceito de direito à cidade é um conceito
de nosso tempo: percorre diferentes trajetórias porque a cidade se torna
um importante palco de luta; seu uso se generaliza em diferentes espaços-
tempo.
Pretende-se nesse texto retomar os sentidos sobre o direito à cidade
construídos a partir da trajetória do Movimento de Reforma Urbana. Ele
esteve atrelado a uma mobilização que buscava por justiça e democratização
do espaço urbano e do espaço político, em contraponto às segregações
urbanas e o regime autoritário anterior. Sua atuação foi bastante importante
durante a constituinte de 87 e seguiu o sendo na construção de outros
instrumentos políticos e jurídicos, como o Estatuto da Cidade (Lei 10257
de 2001).
No entanto, atualmente esse movimento, bem como o próprio
discurso da reforma urbana se depara com alguns impasses, dentre a eles a
parca efetividade dos direitos que ele ajudou a regular. Por isso, entendemos
que é importante repensar o conceito de direito à cidade a partir das
contribuições teóricas de Lefebvre, mesmo que construídos por caminhos
e visões distintas. Não se tratar de buscar um significado verdadeiro, mas
de tentar construir outra perspectiva sobre tema, capaz de requalificar o
direito à cidade a partir do campo das lutas.

O Direito à Cidade pela trajetória da Reforma


Urbana
O conceito de direito à cidade no Brasil esteve no cerne dos debates
sobre a reforma urbana durante o período de redemocratização. O
processo constituinte na década de 80 abriu um campo de debate e ação
para a democratização do planejamento urbano, que durante o regime
militar foi caracterizado pela tecnocracia, centralização e autoritarismo.
Os Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado, concebidos a partir
de uma orientação pautada pelo governo federal, limitavam a autonomia
e o poder de governos locais. Raquel Rolnik (1990, p. 4) aponta que
existia certa esquizofrenia entre a racionalização desses planos, obrigatórios

109
Direito à cidade: crises e alternativas em torno de um conceito

para a captação de investimento federal, e a prática política e econômica


pela qual “o destino da cidade ia sendo negociado, dia-a-dia, com os
interesses econômicos, locais e corporativos através de instrumentos como
cooptação, corrupção, lobby ou outras formas de pressão utilizadas pelos
que conseguiam ter acesso à mesa centralizada de decisões”.
A “bandeira” da reforma urbana já fora levantada no período pré-
ditadura militar, durante o governo de João Goulart (1961-19654). Em
1963, o Seminário de Habitação e Reforma Urbana168 procurou discutir
os problemas urbanos com vista nas políticas de reforma de base em
simetria ao debate sobre reforma agrária. As discussões giraram em torno
da questão habitacional, considerada central na análise sobre as cidades,
que na época já sofriam um intenso adensamento, destacando-se nesse
contexto o fluxo migratório. A reforma urbana se direcionava para a
construção de mecanismos que limitassem o direito de propriedade e
que resolvessem o déficit na oferta de habitações para população de baixa
renda, que somada à exploração do trabalho mal remunerado e ao pouco
investimento públicos nas áreas mais pobres e nas periferias, tornavam o
espaço urbano extremamente desigual (SILVA, SILVA, 2005).
“Abafada” pela ditadura, a reforma urbana foi retomada no fim do
regime militar, principalmente pelo Movimento Nacional da Reforma
Urbana. Já no final da década de 1970, inúmeros encontros entre entidades
da Igreja Católica – a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
e as Comissões Pastorais da Terra – a Articulação Nacional do Solo Urbano
(ANSUR), criada em 1983, e outros movimentos populares, como a
FAFERJ, possibilitaram a consolidação desse movimento em 1987. O
“ideário da reforma urbana”, termo usualmente aplicado para entender
a visão que circulava no MNRU, entendia a reforma urbana como
possibilidade de politizar a discussão sobre cidade, e de construir uma ética
política de atuação que, de um lado, contestasse as estruturas econômicas e
políticas capitalistas que produziam, com o auxílio do Estado, segregações
e desigualdades urbanas; de outro, se empenhasse a construir e formular o
acesso à cidade como direito (BASSUL, 2005).
168
Esse seminário foi organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e ocorreu em
Petrópolis e ficou mais conhecido como o Seminário do Quitandinha, por ter sido realizado
no Hotel Quitandinha. Nele, pela primeira vez, a expressão “reforma urbana” foi empregada
como modo de promover maior justiça social nas cidades, principalmente no que tange à
questão habitacional (BASSUL, 2005, p. 37). Como resultado do encontro foi produzido um
documento que determinava o acesso habitação como direito fundamental e a reforma urbana
como limitação ao direito de propriedade e uso do solo (SILVA, SILVA, 2005).

110
Clarissa Naback

Podemos traçar uma relação entre esse “ideário” e a produção de


um pensamento crítico produzido em relação à “cidade periférica”. A
crescente e “monstruosa” urbanização das cidades brasileiras teve como
um dos fatores principais o processo de industrialização intensificado a
partir da década de 30. Em Crítica à razão dualista, Francisco de Oliveira
(2003) apontou que a passagem do rural para o urbano, sem qualquer
planejamento ou com uma parca infraestrutura urbana, se apoiou sobre
um contingente expressivo de mercado de trabalho, oriundo das relações
de exploração do campo, que tornavam as condições no campo ainda
piores que na cidade. A industrialização se desenvolveu a partir de uma
significativa reserva de mão de obra e alta exploração, contribuindo para o
achatamento dos salários e custos da produção. Nesse sentido, a habitação
popular, caracterizada majoritariamente pela autoconstrução, significava
que os custos da reprodução da força de trabalho, como a moradia, ficavam
a cargo dos próprios trabalhadores, produzindo um supertrabalho, ou um
salário não-pago169.

Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas


na “economia natural” dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem
com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e
dinamismos na intensa exploração da força de trabalho (OLIVEIRA,
2003, p. 59).

No mesmo sentido, Lúcio Kowarick aponta que a superexploração de


trabalho somada ao controle autoritário do Estado, tornava as condições
de vida dos trabalhadores extremamente difícil e precária, constituindo
uma espoliação urbana: um “somatório de operações que se opera através
da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo”, serviços
que são necessários aos trabalhos como condições mínimas de subsistência,
inclusive para a reprodução da força de trabalho (KOWARICK, 1979,
p. 58). As longas horas gastas na locomoção, os custos na moradia e em
outros serviços, fazem parte da espoliação, na qual tem o Estado tem um
importante papel ao não prover tais condições ou garantir o acesso aos
serviços, que deveriam se constituir como direitos.
169
Francisco de Oliveira escreveu um ensaio publicado em 1972 sobre o processo de expansão
do capitalismo brasileiro, focando principalmente as transformações e relações socioeconômicas
que emergem do impulso de industrialização. Sua análise sobre urbanização, associada a esse
processo, se tornou referência para outros teóricos que refletiram a realidade urbana no Brasil,
como Lúcio Kowarik e Ermínia Maricato. Ver: A espoliação urbana, de Lúcio Kowarik, e A
produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial, organizado por Ermínia Maricato.

111
Direito à cidade: crises e alternativas em torno de um conceito

Colocada no âmbito das lutas sociais, o processo de espoliação


urbana entendido como uma forma de extorquir as camadas populares
do acesso aos serviços de consumo coletivo, assume seu pleno sentido:
extorsão significa impedir ou tirar de alguém algo a que, por alguma razão
de caráter social, tem direito. Assim como a cidadania supõe exercício de
direitos tanto econômicos como políticos e civis, cada vez mais parece
ser possível falar num conjunto de prerrogativas que dizem respeito aos
benefícios propriamente urbanos (KOWARICK, 1979, p. 73 – 74).
A espoliação urbana, então, se agravava pelo não reconhecimento
de direitos das camadas mais pobres. As periferias, favelas e outras áreas
habitacionais mais pobres eram consideradas ilegais e, por isso, não
recebiam infraestrutura e serviços públicos por parte do Estado. Os projetos
ou planejamento urbano eram seletivos, a fim de atender o mercado
imobiliário direcionado para as camadas médias e altas. Ao mesmo tempo,
essa segregação estava inserida num crescimento urbanístico, cujo modelo
atendia a “lógica da desordem” (KOWARICK, 1979). Segundo esse campo
teórico-discursivo, a informalidade ou ilegalidade desses espaços, não são
acasos, mas produtos ou parte de uma estrutura capitalista periférica, que
segrega a classe trabalhadora, deixando-a no lugar de uma não-cidade
(BALDEZ apud BASSUL, 2005, p. 38), ou podemos pensar de um não-
direito.
A mobilização em torno da reforma urbana buscava, então, por
justiça e democratização do espaço urbano e da política urbana. Tais
questões foram redirecionadas para o processo constituinte, momento em
que os movimentos sociais buscaram constitucionalizar suas demandas.
Nesse contexto, o MNRU articulou os princípios de gestão democrática da
cidade, da função social da propriedade e do direito à cidade na proposta
de Emenda Popular de Reforma Urbana para a Constituição de 1988.
Através da formulação de um planejamento urbano participativo e de
mecanismos de limitações no direito de propriedade, se pensava a partir
do plano normativo propiciar uma cidade mais democrática e menos
desigual. O direito à cidade expressava o direito ao acesso aos serviços e
equipamentos urbanos, como também o direito de acessar e participar
dos espaços políticos e sociais da cidade, sem restrições discriminatórias
(ROLNIK, 2011).
Nos anos subsequentes, a mobilização continuou para a inserção da
mesma tônica em outros dispositivos legais (COSTA, 2012,). Quase como
um sucessor do MNRU, o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU),

112
Clarissa Naback

composto por técnicos e ONGs da área do urbanismo, atuou de forma


prioritária no campo jurídico-institucional, disputando, pelo “ideário da
reforma urbana”, o conteúdo das Constituições Estaduais, Leis Orgânicas
Municipais, Planos Diretores e a regulamentação constitucional da política
urbana, que veio a se realizar com a aprovação do Estatuto da Cidade, em
2001170.
Para Ermínia Maricato o FNRU conseguiu algumas conquistas no
plano institucional, principalmente a partir do primeiro governo Lula.
Houve o desenvolvimento do Ministério das Cidades e a criação dos
Conselhos das Cidades, órgão consultivo do ministério com representantes
da sociedade. Mesmo com algumas limitações orçamentárias do
ministério171, nos primeiros anos do governo Lula, foram realizadas
Conferências das Cidades (2003, 2005, 2007 e 2010) e a campanha pelo
Plano Diretor Participativo em 2006. Nota-se que a ideia do Plano Diretor
retoma aqui com outra roupagem, sob o viés da participação que conferiria
um caráter mais democrático ao planejamento urbano.
No plano normativo, somente após a aprovação do Estatuto da
Cidade, em 2001, é que se consolidou o caráter participativo do Plano
Diretor (art. 40). A Constituição já o estabelecia como instrumento
principal da política urbana, tornando-o obrigatório em cidades com
mais de 20 mil habitantes, além de principal diretriz para o cumprimento
da função social da propriedade (BASSUL, 2005). Foi também a partir
do estatuto que o direito à cidade foi expresso como direito à cidade
sustentável, entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer (art. 2º, I). A cidade engloba, aqui, diferentes funções e
estruturas, sendo o direito à cidade o direito a ter acesso a tais elementos.
170
A tese elaborada por Fátima Tardin Costa retoma, por meio de entrevistas e pesquisa bibliográfica,
o desenvolvimento das mobilizações que giraram em torno da Reforma Urbana, o contexto de
disputa e os motivos políticos. A autora tece, ao final, fortes críticas ao FNRU - “A intenção nesta
seção é contribuir para a construção de uma contra-argumentação à noção, apresentada pelo
FNRU como incontestável, de que há avanços na luta por reforma urbana. Defendemos nesta
tese que tal argumento se sustenta pela despolitização na mediação das relações no âmbito da
institucionalidade e profissionalização no campo político-intelectual da reforma urbana no Brasil.
Esse ambiente despolitizado, um sintoma deste tempo e não só desse campo, tem como resultado a
quase eliminação da capacidade crítica de fazer oposição à barbárie desta forma social e, também, a
quase eliminação da capacidade social em negar, criativamente, a luta conformista e reprodutora do
sistema que marginaliza os ditos excluídos” (COSTA, 2012, p. 271).
171
Maricato aponta que havia restrições orçamentárias por conta das exorbitantes taxas e juros, dos
ajustes e cortes determinados pelo Ministério da Fazenda, além de compromissos de contratos de
obras inconclusos, provenientes do governo de Fernando Henrique (MARICATO, 2012, p. 53).

113
Direito à cidade: crises e alternativas em torno de um conceito

Podemos pensar em três eixos que formularam o processo normativo


da implementação da reforma urbana: a produção normativa de direitos
concernentes à vida urbana, o acesso universal aos serviços e urbanização
pública e a previsão de instâncias participativas de representantes da
sociedade civil e movimentos sociais na elaboração das políticas urbanas.
Nessa linha, o direito à cidade se configura como o acesso aos direitos
urbanísticos, o acesso às políticas públicas urbanas e o acesso aos espaços
políticos de decisão.

Impasses sobre a reforma urbana –


o esvaziamento do direito à cidade?
Em “Impasse da política urbana no Brasil” (2011), Ermínia Maricato
reflete sobre a trajetória e certo esgotamento no pensamento e políticas
urbanas desde a renovação democrática pós-88. A urbanista que participou
das mobilizações por Reforma Urbana, chegou a ser secretária da Secretaria
de Habitação e Desenvolvimento Urbano do governo municipal de Luiza
Erundina (1989-1992) e a participar do Ministério das Cidades de Olívio
Dutra, aponta que as políticas urbanas hoje se encontram em um impasse:
o avanço no marco regulatório e no desenho institucional sobre cidades
não significou na diminuição das desigualdades urbanas.
Apesar das inúmeras conquistas no campo jurídico-institucional de
uma gestão democrática da cidade, como o Plano Diretor Participativo,
Maricato observa que frente aos interesses econômicos é muito difícil a
implementação das políticas sociais. A urbanista adiciona ainda como
problema a institucionalização dos movimentos sociais urbanos junto às
instâncias estatais – incluindo o próprio fórum172 – e o caráter “jurisdicionista”
que se restringiram suas pautas participativas (MARICATO, 2012, p. 95).
A primeira pista para entender o impasse está no próprio deslocamento
do planejamento urbano que ocorre no fim dos anos 70, a partir das
reformulações neoliberais nos governos. As mudanças na produção
capitalista, pautadas antes em uma estrutura industrial fordista rígida,
se direcionaram para arranjos flexíveis e descentralizados, com ênfase
cada vez maior nos fluxos financeiros globais. A inflexão promove uma
reorganização geoeconômica elevando a importância dos processos locais
de investimento (HARVEY, 2006).
A crítica à institucionalização de movimentos pode ser vista também em recente trabalho
172

de tese como de Fátima Tardin Costa (2012) de Carlos Frederico Largo Burnett (2009).

114
Clarissa Naback

Já na década de 70, Henri Lefebvre (1999) observara uma “crise”, uma zona
crítica no planejamento funcionalista. A cidade industrial dava lugar à outra
relação espacial. Tratado como um campo cego por Lefebvre, o urbano seria
essa outra coisa que surgiria no contexto pós-industrial, em que as diferenças
produzidas no encontro e na simultaneidade das cidades são reconhecidas
e levadas em consideração – de um lado por movimentos que atuaram em
direção a reapropriação da cidade, da cultura e da arte (mobilizações da década
de 1960 e 1970); do outro, pela crítica neoliberal que colocou a competição
livre das empresas em contraposição a um dirigismo estatal.
Nesse contexto, Lefebvre observa ainda que a produção se torna cada
vez mais social, extensa e intensa, não se limitando a fabricação e circulação
de objetos – “a realidade urbana torna-se força produtiva” (2008, p. 140).
Podemos, então, dizer que o cotidiano e o urbano, ou os espaços de
reprodução, são inseridos cada vez mais no circuito da produção – o valor
de troca gerado a partir da vida urbana (o valor de uso).

Ultimamente, o próprio espaço é comprado e vendido. Não se trata mais


da terra, do solo, mas do espaço social como tal, produzido como tal, ou seja,
com esse objetivo, com essa finalidade (como se diz). O espaço não é mais
simplesmente o meio indiferente, a soma dos lugares onde a mais-valia se
forma, se realiza e se distribui. Ele se torna um produto do trabalho social,
isto é, objeto muito geral da produção, e, por conseguinte da formação da
mais-valia. É assim, e por esse caminho, que a produção torna-se social nos
próprios marcos do neocapitalismo. Caminho imprevisto e imprevisível há
algumas dezenas de anos, quando se vislumbrava a produção e o caráter
social da produção somente a partir das empresas e do trabalho produtivo
nas empresas, isto é, das forças produtivas, transparece na produção social
do espaço (LEFEBVRE, 2008, p. 140).

Observa-se que na nova governança neoliberal os projetos políticos


e a própria gestão urbana se deslocam do urbanismo “planificado” para
uma “gestão” cada vez mais estratégica, flexível e menos vertical. A
governamentalidade neoliberal atua no ambiente social, nos próprios
parâmetros da economia de mercado, que não se restringem apenas à
velha forma terra-capital-trabalho, mas se direcionam para outras esferas e
atividades da vida, considerados antes fora do mercado (saúde, educação,
transporte, cultura etc.) (FOUCAULT, 2008). O urbano se torna, então,
um campo privilegiado para os circuitos de produção, e o espaço social um
elemento tão importante quanto a terra na produção de renda – o valor da
troca gerado a partir da vida urbana (LEFEBVRE, 2008).

115
Direito à cidade: crises e alternativas em torno de um conceito

Nesse contexto, o direito à cidade enfrenta um “impasse”, ou


uma crise: pensá-lo a partir do paradigma do planejamento urbano
participativo esbarra, de um lado, com a burocratização institucional do
discurso da reforma urbana (MARICATO, 2012); de outro, esbarra com
uma governança que não se localiza apenas em figuras estatais, ou agentes
econômicos, mas atua em redes locais e globais (FOUCAULT, 2008;
NEGRI, 2010).
Vale destacar que, no próprio plano normativo, subsiste uma estrutura
que permite uma “elasticidade” nas formulações de políticas urbanas, que
podem abranger diretrizes distintas. A periferia ou a favela já não são mais
considerados espaços ilegais, como ocorrera até a década de 70 (SOARES,
2013). No entanto, outros aspectos como risco ou proteção ambiental
passam a ser sustentados contra a permanência desses espaços. Ao mesmo
tempo, o direito à moradia e a função social da propriedade podem ser
confrontadas ou mesmo atravessadas por outras medidas urbanísticas, que
se utilizam dos instrumentos de Operação Urbana Consorciada (Estatuto
da Cidade) e das Parcerias Público-Privada (Lei 11079/2004), permitindo
que demandas urbano-sociais se reconfigurem nos contornos de relações
empresariais e financeiras, redimensionando a relação entre o Estado e o
mercado.
Além disso, o próprio discurso neoliberal incorpora a ideia de
participação nas gestões públicas e empresariais – ou mesmo nas próprias
operações urbanas consorciadas (BASSUL, 2005, p. 147). O discurso
neoliberal entende que para se desenvolver empregos e rendas, e melhorar
a vida dos citadinos, é necessário que a cidade tenha a capacidade de atrair
negócios e gerar recursos suficientes para atender as demandas sociais e de
infraestrutura. Para tornar uma cidade mais “competitiva”, a administração
local deve mobilizar ideias, capacidades e recursos. Nesse viés, a participação
de outros atores como comunidades, empresários e organizações civis seria
importante para fomentar o desenvolvimento desses “capitais” (FREIRE,
2011).
A participação neoliberal se daria principalmente via “Terceiro
Setor”, que atuaria a partir de uma lógica representativa da sociedade civil
(ROLNIK, 2011). Um interessante exemplo é a proposta da a economista
neoliberal Eduarda La Roque que presidiu em 2012 o Instituto Pereira
Passos, de reformular a participação da sociedade civil através de ONGs,
não mais mediante o patrocínio público, mas no centro da relação entre
Estado e mercado: empresas e proprietários poderiam investir em fundos

116
Clarissa Naback

socioambientais, proporcionando um sistema de rating entre as ONGs,


garantindo um controle do potencial dos projetos pelos investidores – “Ela
tenta introjetar a ideia de gestão, profissionalização e concorrência entre as
ONGs, que se tornariam verdadeiros “players” em busca de financiamento
em um mercado de ativos sociais e ambientais” (MENDES, 2014, p. 242).
O impasse se acentua quando nos deparamos com os protestos de
2013, que colocam em questão, não só a parca participação, mas o próprio
caráter desigual das atuais políticas. Nas manifestações, a discussão sobre
cidade se deu não pelos espaços institucionais construídos, mas nas ruas
e na composição de novas pautas, formas de resistências e subjetividades.
Não estavam mais em protagonismos os movimentos urbanos tradicionais,
ou mesmo o Fórum Nacional da Reforma Urbana, mas uma proliferação de
diferentes sujeitos e pautas, concomitantes ou não, que se contrapunham
a forma política predominante de atuação, entre governos e empresas na
gestão de bens e serviços públicos173. Essas resistências não se iniciaram em
2013, mas podemos pensar junho como um acontecimento que pôs em
evidência a vida urbana e a democracia, em que corpos ocuparam redes e
ruas para reivindicar outro fazer político e se reapropriar da cidade.

Repensando o Direito à cidade – impressões


iniciais
O direito à cidade, formulado pela reforma urbana no Brasil, atingiu
dois níveis: primeiro, sua positivação no atual ordenamento jurídico,
abrangendo também o reconhecimento de outros direitos correlacionados;
segundo, o nível do próprio planejamento urbano, da elaboração de
políticas urbanas com caráter participativo. Observando, porém, os
impasses mencionados, podemos concluir em um primeiro momento uma
ineficácia ou uma relativa efetividade desse direito.
Se voltarmos à Lefebvre, o direito à cidade nunca foi pensado a partir
de uma forma jurídica, mas como um movimento ou uma prática que não
se restringe a participar da obra que constitui a cidade, mas envolve também
uma atividade criadora, de fabricação do próprio urbano (LEFEBVRE,
2001). A centralidade urbana, para o autor francês não significa o acesso
a um urbanismo do Estado ou do mercado, ao contrário, estes aparecem
como elementos que produzem um espaço abstrato e impõem certa
173
Ver os livros Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil
(2013) e O amanhã vai ser maior (2013).

117
Direito à cidade: crises e alternativas em torno de um conceito

homogeneização e coerência (normalizavam o espaço), que excluem não


só a classe trabalhadora, mas também as diferenças. A forma urbana se
caracteriza pela simultaneidade, pela convergência, e pela sua poli(multi)
centralidade, ou seja, a concentração e dispersão de multidão, objetos e
situações. O direito à cidade trata, então, do direito a essas centralidades e
da possibilidade de poiesis e da construção de heterotopias em que consiste
a vida urbana – trata-se aqui do direito à vida urbana.
Essa perspectiva lefebvriana difere bastante de uma visão do direito
à cidade como acesso. O teórico traz uma dimensão produtiva para esse
direito, que serve como reivindicação não apenas tomar parte da obra que
consiste a cidade, mas também a possibilidade de criar a cidade e se criar
nela. Um termo, por ele utilizado, que expressa esse movimento de poiesis
consiste na apropriação: a ocupação, o uso pleno e recondução dos espaços-
tempos urbanos pelos próprios trabalhadores urbanos (LEFEBVRE, 2001).
Carlos Nelson Ferreira dos Santos ao analisar os movimentos de
moradores da década de 80 observa que, nas mobilizações e nos esforços
pelos direitos à urbanização, eles estão a “a-prender” a cidade e suas regras
– “tentam se apropiar dos lugares, tornando-os apropriados para seus fins,
fazendo-os próprios (p. 18). O direito e a cidade não aparecem aqui como
elementos estáticos ou abstratos, que estão aí; ao contrário, são dinâmicos
e elásticos, usados e apropriados por entre as relações e conflitos urbanos.
As manifestações de 2013, as ocupações de praças, escolas e outros
espaços públicos seguem essa dinâmica: mais do que reivindicar um direito
negado, trata-se também de um campo imanente em que se põe como
questão a apropriação da cidade – a produção de outra cidade. Esse caráter
constituinte colocaria o direito a cidade em uma zona cinzenta, entre uma
reivindicação política ou uma pretensão jurídica? Trata-se de uma questão
menor. O direito à cidade, se entendido pela ideia de apropriação, acaba
por ser performativo: ele é produzido desde já pelos corpos que resistem e
se apropriam dos espaços urbanos e afirmam reiteradamente seus direitos
à vida urbana.
Não se quer nessa pesquisa buscar um purismo conceitual original nem
mesmo refutar ou abandonar as noções construídas pela reforma urbana.
Mas o impasse nos coloca o desafio de confrontar ideias estabelecidas.
Notemos que a “espoliação” já não ocorre nos mesmos termos anteriores:
não estamos mais diante de um Brasil industrial, nem numa arquitetura
jurídica fundada numa rígida estrutura da propriedade. Ao contrário,
nos damos conta, cada vez, mais da expropriação dos espaços sociais

118
Clarissa Naback

urbanos. Trata-se de tentar requalificar o direito à cidade que transborde


as fronteiras jurídicas e do Estado, que não seja entendido a partir de
cima, a partir do Direito, mas pelas engrenagens das resistências. E nessas
condições conseguimos entender os impasses não como uma questão de
ineficácia, mas como tensões ocorridas no terreno dos discursos e das
práticas produzidos sobre a cidade.

Referências bibliográficas
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Senado Federal, Subsecretaria de Edições técnicas, 2005.
COCCO, G; CAVA, B. Amanhã vai ser maior: o levante da multidão no ano que não
terminou. São Paulo: Annaglume, 2014.
COCCO, Giuseppe. Korpobraz: por uma política dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2014.
CORTÉS, José Miguel G. Política do Espaço: arquitetura gênero e controle social.
Tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
COSTA, Maria de Fátima Tardin. Ideologia e utopia no ocaso da Reforma Urbana. 320f.
Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2012.
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolítica. Tradução Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
FREIRE, Mila. Administrando cidades no século XXI – novos desafios para a capacitação.
Revista de Administração Municipal. n. 232. nov. de 2011. Disponível em: < https://
goo.gl/DWUtuS>. Acesso em 30 de outubro de 2016.
HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. Tradução de Carlos Szlak. São
Paulo: Annablume, 2006.
____________. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo:
Martins Fontes, 2014;
KOWARIK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Tradução de Sergio Martins. Belo Horizonte:
Ed. UGMG, 1999.
____________. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias São Paulo:
Centauro, 2001.
MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil
industrial. São Paulo: ALFA-OMEGA, 1979.
____________. O impasse da política urbana no Brasil. 2ª ed. Petrópoies: Vozes, 2012.
MENDES, Alexandre. Entre choques e finanças: a “pacificação” e a “integração” da favela
à cidade do Rio de Janeiro. O Social em Questão – Ano XVIII – nº 31 – 2014.
NEGRI, Antonio. Dispositivo Metrópole. A Multidão e a Metrópole. In: Lugar
Comum, n. 25-26. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010, p. 201-2018.

119
Direito à cidade: crises e alternativas em torno de um conceito

OLIEIRA, Francisco. Crítica a razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,


2003. Disponível em: < goo.gl/YpOEit >. Acesso em 08 de agosto de 2016
ROLNIK, Raquel (1990). Cidade: Planejamento urbano – Morar, atuar e viver. Teoria e
Debate, ed. 09, publicado em 05 de abril de 2006 pelo site Perseu Abramos. Disponível
em: <goo.gl/qE6Oo4>. Acesso em: 20 de abril de 2016.
____________. 10 anos de Estatuto da Cidade: das lutas pela reforma urbana às
cidades da Copa do Mundo. [2011?]. Disponível em: < goo.gl/PYkQ1X>. Acesso em 3
de setembro de 2016.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. A cidade como jogo de cartas. Niterói: EDUFF,
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SILVA, Eder; SILVA, Ricardo S. (2005) Origens e matrizes da reforma urbana. Revista
Espaço & Debates. São Paulo. v.25.n.46. pp. 144-156.
SOARES GONÇALVES, R. Favelas do Rio de Janeiro. História e Direito. Rio de
Janeiro, PUC, 201

120
As Prostitutas do “Prédio da Caixa”
em Niterói e a Operação Urbana
Consorciada: que diversidade o
planejamento estratégico inclui?
Ana Carolina Brito Brandão174

Introdução
No segundo semestre de 2013, o então prefeito de Niterói
apresentou à Câmara Municipal o projeto da Operação Urbana
Consorciada (OUC), que abrangeria o Centro de Niterói, bem como as
regiões São Domingos, Ponto D´Areia, São Lourenço, Morro do Estado,
Ingá, uma parte do Gragoatá e de Boa Viagem, a ser implementado nos
próximos 20 anos. A mensagem executiva apresentada aos vereadores
teve pedido expresso de urgência na tramitação175. Conforme a página
da Prefeitura de Niterói na internet, a lei que estabeleceu a OUC foi
sancionada em dezembro de 2013176 e visa à “requalificação do espaço
urbano”, para “a defesa do interesse público, do fortalecimento de
Niterói, da retomada da força e do prestígio da cidade”177. O prognóstico
do Relatório de Impacto de Vizinhança (RIV) afirma que esta proposta
se insere no contexto de grandes projetos e eventos que estão em curso
no estado do Rio de Janeiro, buscando dinamizar a economia através
da “modernização” que potencialize a vocação da região para o turismo,
o comércio e a habitação.
174
Doutoranda em direito no programa de pós-graduação de Teoria do Estado e Direito
Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
175
Mensagem Executiva n. 21/2013/2013 do Prefeito de Niterói à Câmara Municipal, do dia
27 de agosto de 2013, para apresentação do Projeto de Lei n. 193/2013. P. 3
176
http://www.niteroi.rj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1953:pr
efeito-de-niteroi-sanciona-lei-que-institui-a-operacao-urbana-consorciada-para-revitalizacao-
do-centro-da-cidade Último acesso: 15/04/2014 Trata-se da lei n. 3061/2013 publicada em:
http://www.ofluminense.com.br/sites/default/files/04_11.pdf  Ultimo acesso: 15/04/2014
177
Idem.
As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana Consorciada: ...

A necessidade de atender às demandas dos megaeventos como


a Copa do Mundo, que foi sediada em junho de 2014 no Brasil, e os
Jogos Olímpicos e Paraolímpicos em 2016, na cidade do Rio de Janeiro,
é um das razões elencadas pela Prefeitura para justificar a “urgência”
de implementação da OUC. Desde o início das preparações, diversos
estudos apontaram que esses megaeventos reconfiguraram os “estados de
exceção” nas cidades brasileiras, uma vez que em nome da preservação
dos acordos internacionais, os direitos e garantias fundamentais ocupam
uma “zona de indiferenciação” e o acesso às informações sobre os projetos
são extremamente obstruídos178. Importante observar que outros grandes
projetos urbanísticos justificados a partir das demandas geradas por esses
acontecimentos foram propostos e realizados pelas mesmas empresas
que encabeçam a Operação Urbana Consorciada de Niterói, que são a
Odebrecht, a OAS e a Andrade Gutierrez. A título de exemplo podemos
lembrar que a Odebrecht e a OAS compuseram os consórcios das duas
etapas do Porto Maravilha179 e que o consórcio do Parque Olímpico é foi
formado pela Odebrecht, a Andrade Guiterrez e Carvalho Hosken180.
A mensagem executiva também apresenta como razão técnica para
a necessidade de aprovação do projeto o fato de a área central “encontra-
se degradada, subutilizada e desconectada das demais áreas da cidade,
necessitando se revitalizar e sofrer melhorias e intervenções, a fim de se
possibilitar uma melhoria significativa da ambiência urbana para área”181.
No entanto, deve-se destacar que o Plano Diretor de Niterói, no qual
se deve basear a lei da OUC, não é atualizado desde 1992. No lugar de
realizar a revisão do Plano antes de aprovar a Operação Urbana, de modo
a ter a verdadeira medida dos níveis de ocupação do solo e adensamento
da região, para poder a partir daí julgar se há “subutilização” ou não, a
Prefeitura só convocou a primeira audiência pública para debater a revisão
178
Ver: http://portal.aprendiz.uol.com.br/arquivo/2014/04/15/rolnik-megaeventos-trazem-
estado-de-excecao-as-cidades-brasileiras/ Último acesso: 14/11/2014; AGAMBEN, Giorgio.
Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
179
Ver: BRANDÃO, Ana Carolina.Porto Maravilha: uma análise da requalificação do espaço através
do direito à cidade a partir das contribuições de Henri Lefebvre. Monografia de Graduação em
Ciências Jurídicas e Sociais orientada pela professora Cecilia Caballero. UFRJ, 2012, mimeo.
180
MEDEIROS, Mariana Gomes Peixoto.   Megaeventos e direito à moradia: como opera o
empreendedorismo urbano no contexto do neodesenvolvimentismo. O caso do Parque Olímpico no
Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Direito da Cidade) - Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, 2014, p.44. Orientadora: Angela Moulin Simões Penalva Santos.
181
Mensagem Executiva n. 21/2013/2013, do dia 27 de agosto de 2013, para apresentação do
Projeto de Lei n. 193/2013. P. 1

122
Ana Carolina Brito Brandão

quase um ano depois da aprovação da OUC (como foi visto, a lei foi
sancionada em dezembro de 2013), no dia 02 de novembro de 2014182.
Imagina-se razoável pensar que de 1992 para cá houve muitas mudanças
quanto às taxas de aproveitamento do solo. Segundo o jornal eletrônico “O
Globo”183, o censo do IBGE de 2010 constatou um crescimento de 11, 7%
da população niteroense, que à época já tinha 487.562 habitantes.
A OUC184 da área central de Niterói, instituída pela lei n. 3061/2013,
é um instrumento da política urbana que tem previsão legal nos arts. 32 a 34
do Estatuto da Cidade. Trata-se de um conjunto de intervenções e medidas
coordenadas pelo poder público municipal, em associação com a iniciativa
privada, que buscam “transformações urbanísticas estruturais, melhorias
sociais e valorização ambiental” (art. 32, § 1º) sobre um determinado
território delimitado pela Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU).
Ela precisa ser aprovada por lei municipal baseada no Plano Diretor (art. 32)
e pode modificar índices e características de parcelamento, uso e ocupação
do solo e subsolo, bem como alterar normas edilícias, considerando o
impacto ambiental dela decorrente, além de regularizar construções,
reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação em
vigência (art. 32,§2º). Criou-se a empresa de economia mista denominada
“Companhia de Desenvolvimento Urbano de Niterói (NIT-URB)”, cujo
papel é promover a reestruturação da AEIU através do gerenciamento dos
ativos patrimoniais, a coordenação e execução das concessões e parcerias,
dentre outros atributos185.
O artigo 33 do Estatuto da Cidade exige o cumprimento de alguns
requisitos que devem estar contidos na lei específica que aprovar a OUC,
dentre eles, o “programa básico de atendimento econômico e social para
a população diretamente afetada pela operação” e a “forma de controle da
operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da sociedade
civil”. De acordo com os artigos 14 e seguintes da lei 3061/2013, esse
controle é feito pelo Conselho Consultivo da OUC da Área Central que
182
Ver: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/audiencia-publica-vai-discutir-novo-plano-
diretor-para-cidade-14432072 Último acesso: 11/11/2014
183
Idem.
184
Em trabalho de conclusão de curso chamado “Porto Maravilha: uma análise da requalificação
do espaço através do direito à cidade a partir das contribuições de Henri Lefebvre” já fiz uma
breve investigação desse instrumento. Portanto, para mais informações, ver: BRANDÃO, Ana
Carolina. Porto Maravilha: uma análise da requalificação do espaço através do direito à cidade a
partir das contribuições de Henri Lefebvre. Monografia de Graduação em Ciências Jurídicas e
Sociais orientada pela professora Cecilia Caballero. UFRJ, 2012, mimeo.
185
http://www.ofluminense.com.br/sites/default/files/14_14.pdf Último acesso: 14/11/2014

123
As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana Consorciada: ...

deve emitir parecer sobre o relatório trimestral realizado pela Prefeitura ou


à entidade da administração indireta do município que ficar responsável
pelo desenvolvimento da operação.  O Conselho é composto por um
representante do Chefe do Poder ou da entidade da administração indireta,
que ficará responsável pela coordenação do Conselho; três membros do
Município, selecionados pelo chefe do poder executivo e dois representantes
da sociedade civil, escolhidos pelos outros integrantes do Conselho.
Ainda, é possível a emissão de certificados de potencial adicional
de construção, que possibilitam a edificação acima do coeficiente básico
até o limite previsto na lei que aprovou a operação (art. 34) e podem
ser negociados livremente. Somente o certificado pode ser aceito como
pagamento para aumento da área edificável (art. 34, § § 1º e 2º). A
emissão dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs)
já foi aprovada pela Prefeitura de Niterói. Reveste- se de um título que
os investidores do capital imobiliário compram e aplicam no mercado
financeiro, aguardando a valorização da área, com a expectativa de
ampliação da infraestrutura, para negociar o chamado “ativo de renda
variável”. Entende-se que se trata de uma forma de captação de recurso
rápida e dinâmica. No final de maio de 2014, foi aprovada a mensagem
executiva n. 11 que alterou a lei n.3061 para ampliar o número de CEPACs
para chegar até 3.321.000 (três milhões, trezentos e vinte um mil) títulos
que serão emitidos pela Prefeitura de Niterói. A alteração foi feita, segundo
a Secretaria de Urbanismo e Mobilidade, para se adaptar à retirada de
algumas áreas que eram inicialmente abrangidas pelo projeto que, assim,
reduziu o número de bairros afetados de sete para cinco, bem como a
quantidade de pessoas atraídas para o local que passa de 31 para 25 mil186.
No começo de 2014, alguns jornais noticiaram o adiantamento do valor
dos títulos imobiliários pela Caixa Econômica à Prefeitura de Niterói187, o
que destoa da própria finalidade do instrumento urbanístico, cujo o intuito
seria a captação de recursos privados. Esta inversão também ocorreu no
projeto “Porto Maravilha” no Rio de Janeiro: os CEPACs foram leiloados
e arrematados de uma vez só para o Fundo de Investimento Imobiliário do
Porto Maravilha da Caixa Econômica Federal (CEF) com os recursos do

186
http://camaraniteroi.rj.gov.br/2014/05/28/aprovada-mensagem-aumentando-numero-de-
cepacs-para-o-centro/ Último acesso: 11/11/2014
187
http://www.ofluminense.com.br/editorias/cidades/centro-mais-perto-da-revitalizacao
http://oglobo.globo.com/rio/bairros/revitalizacao-do-centro-de-niteroi-pode-ficar-sem-
terrenos-11887093 Último acesso:14/11/2014

124
Ana Carolina Brito Brandão

Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)188, ou seja, com a renda


obtida pela contribuição previdenciária do cidadão comum. Para que a
venda desses títulos tenha êxito perante as construtoras, a sua valorização
dependerá da capacidade do poder público de realizar obras que garantem
a rentabilidade. Em outras palavras, observa-se, nessas etapas, a alocação de
recursos públicos orientados para uma lógica de mercado sem que estejam
vinculados ao atendimento das necessidades e dos interesses da população
que vive o referido território. Ao contrário, o próprio Relatório de Impacto
de Vizinhança anexado à lei que aprova a OUC prevê o aumento de custo
de vida:

As comunidades de baixa renda que habitam esses bairros serão as


principais afetadas com o aumento do custo de vida da região e com a
especulação imobiliária. Destacam-se, dentre as principais comunidades a
serem afetadas pela OUC, os dois núcleos de pescadores situados no bairro
Centro, a comunidade Via 100 no Gragoatá e também os moradores do
Morro do Estado, dentre outras189.

O relatório explica que a OUC prevê o encarecimento do custo do


solo que reflete no preço dos alugueis comerciais e residenciais. Em razão
do aumento do preço ser repassado para as mercadorias e serviços dos
estabelecimentos, espera-se que um novo público seja atraído para a área
que tenha mais poder aquisitivo. Assim, o poder executivo já espera que
a população pobre, que hoje representa uma parte significativa de quem
habita a área central, migre para outros bairros, de modo a reproduzir
aquilo que é chamado de “remoção branca”, caracterizada por ser uma
expulsão indireta porque é induzida:

Com isso, a população mais carente tenderá a deixar esses bairros em


busca de outros locais de moradia, onde o custo de vida seja compatível
com seu rendimento mensal. A segregação social acaba se reproduzindo
dentro no tecido urbano da cidade, impedindo a reprodução social
das camadas mais pobres da população nos bairros que sofrerão as
intervenções190.

188
Relatório de Violações de Direitos e Reivindicações do Fórum Comunitário do Porto.
24/05/11 Disponível em: http://forumcomunitariodoporto.files.wordpress.com/2011/12/
relatc3b3rio-mpf-fcp.pdf, p. 8.
189
Anexo II da Lei 193/ 2013. Relatório de Impacto de Vizinhança, 2013, p. 108.
190
Idem.

125
As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana Consorciada: ...

O mesmo relatório reconhece que 30% dos que moram na área de


vizinhança da OUC tem renda de até dois salários-mínimos por pessoa e,
ainda, afirma que o centro é “ocupado por uma população pobre e de classe
média baixa”191. No relatório anterior, havia se afirmado que se chegava a
40% ou mais a população atual que recebe até dois salários-mínimos na
região afetada. Observa-se que as medidas mitigadoras, previstas no RIV,
para tamanho impacto social são extremamente vagas, como, por exemplo,
criar formas de desenvolvimento da renda nas comunidades e criar taxas
sociais, quando possível.
No dia 2 de abril de 2014, diversos noticiários192 veicularam o protesto
realizado por prostitutas que alugavam apartamentos no Edifício Nossa
Senhora da Conceição, na Avenida Ernani Amaral Peixoto, n. 327, no
centro de Niterói, conhecido como “Prédio da Caixa”. A página eletrônica
do jornal “O Dia”, relatou uma manifestação irreverente, com dança e
humor:

A maioria delas estava com o rosto coberto por um lençol ou uma fronha.
Vários carros tentaram furar o bloqueio, mas as mulheres dançavam na
frente dos veículos. Com gritos de “Prostituição não é crime”, “Libera as
primas” e “Eu, eu, eu, eu só dou o que é meu”, elas pediam a legalização
da profissão193.

Segundo alguns veículos de comunicação eletrônica, a manifestação


foi marcada pela presença de cerca de 50 profissionais194 que repudiavam a
detenção de cerca de 20 colegas de trabalho e a efetiva prisão de duas delas,
que foram levadas ao Complexo Penitenciário de Bangu. Além disso, essas
mulheres afirmavam que eram vítimas de perseguições e reivindicavam o
191
Anexo II da Lei 193/ 2013. Relatório de Impacto de Vizinhança, 2013,p. 84.
192
Podemos citar como referências as seguintes reportagens: http://oglobo.globo.com/rio/
grupo-de-prostitutas-realiza-manifestacao-no-centro-de-niteroi-12071408 Último acesso:
20/10/2014 http://odia.ig.com.br/odia24horas/2014-04-02/prostitutas-param-o transito-por-
uma-hora-na-avenida-amaral-peixoto-em-niteroi.htm Último acesso: 20/10/2014
http://www.ofluminense.com.br/editorias/cidades/prostitutas-realizam-manifestacao-
no-centro-de-niteroi Último acesso: 20/10/2014 http://oglobo.globo.com/rio/grupo-de-
prostitutas-realiza-manifestacao-no-centro-de-niteroi-12071408 Último acesso: 20/10/2014
193
http://odia.ig.com.br/odia24horas/2014-04-02/prostitutas-param-o-transito-por-uma-hora-
na-avenida-amaral-peixoto-em-niteroi.htm Último acesso: 14/05/2014
194
O número de pessoas presentes é controverso. Enquanto encontramos reportagens que
afirmam entre 30 a 50 prostitutas presentes, as notícias do jornal “O Globo” dizem duzentas.
No entanto, em entrevista podemos confirmar que essa manifestação foi a menor das que a
seguirem, então podemos supor que o número apresentado pelos outros jornais é mais preciso.

126
Ana Carolina Brito Brandão

direito de trabalhar e ocupar os apartamentos que alugavam no imóvel.


Em entrevista concedida ao jornal “O Dia”, Gláucio Paz, o delegado da
76ª DP, afirmou, no dia 2 de abril, que foram 11 trabalhadoras presas
ao longo das quatro semanas anteriores. Elas foram tipificadas pelo artigo
229 do Código Penal que diz que “Manter, por conta própria ou de
terceiros, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não,
intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente”. O que as
trabalhadoras alegavam, contudo, é que não havia exploração sexual porque
realizam a atividade de maneira autônoma195. No entanto, os veículos de
comunicação, e algumas falas do próprio delegado, entrecruzaram este
fato com a informação que este prédio estaria em condições insalubres.
Destaca-se a fala do delegado:
Não tenho nada contra as meninas, mas ali naquele prédio vai
acontecer uma tragédia. Não tem água tratada, não tem luz e tem quase
uma caixa d’água por apartamento. Isso é um absurdo!”, contou ele196.
No dia 15 de abril, um novo protesto foi realizado197, dessa vez com
mais apoiadores e prostitutas presentes, chegando a cerca de trezentos
manifestantes. Na ocasião, as trabalhadoras sexuais foram até a porta
da delegacia, e depois da Câmara dos Vereadores, para abrir um canal
de diálogo, mas não conseguiram. Já havia saído o alvará de soltura das
mulheres que foram presas e elas puderam estar presentes para acompanhar
o ato. Conforme relato de uma pessoa presente, no final da manifestação,
as pessoas se reuniram no hall do prédio 327 e uma prostituta que havia
sido presa mostrou o seu agradecimento:

195
Para o jornal “O Dia”, uma das mulheres que trabalham no edifício da caixa, Gaby, de 24
anos, que foi presa na terça-feira junto com sua colega de quarto disse: “A polícia chegou do nada
e nos levaram sob alegação de estarmos cometendo exploração sexual. Não é exploração porque
é consentido. Eu alugo o apartamento com a minha amiga e me prostituo no local. A profissão
tem que ser legalizada”, explicou. Fonte: http://odia.ig.com.br/odia24horas/2014-04-02/
prostitutas-param-o-transito-por-uma-hora-na-avenida-amaral-peixoto-em-niteroi.html
Último acesso: 14/05/2014
196
Idem.
197
Algumas dos noticiários que veicularam o ato:
http://www.ofluminense.com.br/editorias/cidades/prostitutas-fazem-novo-protesto-
no-centro-de-niteroi Último acesso: 20/10/2014
http: //w w w. j o r n a lo sa o go n c a lo. c o m.br/ s i t e/ geral/ 2014/ 4/ 19/ 60433/
prostitutas+fazem+novo+protesto+em+niter%C3%B3i Último acesso: 20/10/2014
http://www.soumaisniteroi.com.br/noticias/39-cidade/62606-prostitutas-fazem-
novo-protesto-no-centro-de-niteroi.html Último acesso: 20/10/2014
h t t p : / / w w w. c i d a d e d e i t a b o r a i . c o m . b r / 9 - n o t i c i a s - d a - c i d a d e - d e -
itabora%C3%AD/3590-prostitutas-fazem-novo-protesto.html Último acesso: 20/10/2014

127
As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana Consorciada: ...

Em seguida, a bela Gabriela, batalhante do 327 que havia sido levada para
o presídio de Bangu, manifestou sua imensa alegria com a mobilização das
colegas e o apoio recebido pelos simpatizantes ativistas desse movimento198.

A partir do dia 21 de maio, as prostitutas do prédio da Caixa voltaram a


receber constrangimentos, desta vez sendo intimadas nos apartamentos para
comparecer à DEAM, com mandados em branco, que eram preenchidos
no momento da intimação a qualquer uma que era encontrada, ou seja,
de maneira aleatória. Além disso, os mandados de intimação tinham um
diminuto conteúdo explicativo, apenas “investigação em andamento”
como motivação, sem especificação do crime. Em razão da paralisação da
polícia civil199, a Delegacia estava fechada e não puderam receber qualquer
tipo de esclarecimento naquela quarta-feira.
Na sexta-feira (23 de maio), então, seus apartamentos foram invadidos
por policiais da 76ª, com apoio de mais treze delegacias do Estado do Rio
de Janeiro que levaram cerca de duzentas mulheres para a Delegacia em
quatro ônibus. Houve diversos relatos de agressões físicas e verbais, estupro
e roubo por parte dos oficiais. Em carta aberta à Secretaria do Estado de
Assistência Social de Direito Humanos (SEADH), o Observatório da
Prostituição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) narrou
a violência e a arbitrariedade policial: “Um policial afirmou que ‘a juíza
do inquérito mandou não levar ninguém pra DP, mas a gente trouxe’ –
reconhecendo assim que não tinha sequer autorização judicial para esse tipo
de ação”200. Salienta-se que o mandado direcionava-se a bens, documentos
ou coisas relacionadas ao crime, não falando em cerceamento da liberdade
de pessoas. Também disseram que os advogados foram impedidos de entrar
para conversar com suas clientes e que os depoimentos foram colhidos sem
presença deles, configurando violação das suas prerrogativas. Além disso,
a denúncia à Secretaria de Direitos Humanos enfatiza que o inspetor da
delegacia ainda se dirigiu ao advogado para dizer que “não procurasse briga
que não era a sua”201. Em contrapartida, a mídia pôde entrar e acompanhar
o procedimento antes dos representantes legais.

198
http://www.umbeijoparagabriela.com/?p=3200 Último acesso: 20/10/2014
199
Ver: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/05/policiais-civis-decidem-fazer-paralisacao-
na-quarta-feira-no-rio.html Último acesso: 21/10/2014
200
Carta à Secretaria do Estado de Assistência Social de Direito Humanos (SEADH) realizada
pelo Observatório da Prostituição da Universidade Federal do Rio de Janeiro. P. 3 Disponível em:
https://observatoriodaprostituicao.wordpress.com/documentos/ Último acesso: 19/05/2015
201
Carta à Secretaria do Estado de Assistência Social de Direito Humanos (SEADH) realizada
pelo Observatório da Prostituição da Universidade Federal do Rio de Janeiro. P. 3 está disponível
em: https://observatoriodaprostituicao.wordpress.com/documentos/ Último acesso: 19/05/2015

128
Ana Carolina Brito Brandão

Depois disso, o prédio foi parcialmente interditado202 abrangendo


apenas os quatro andares ocupados pelas prostitutas e por outros comércios
(havia salão de cabeleireiro, venda de quentinhas, loja de roupa, depósito
etc). Segundo o edital, a justificativa é “o péssimo estado de conservação
das instalações e a confirmação de utilização do local de forma reiterada
para prática de crime, bem como a necessidade de garantir a vistoria e
a perícia (...)”. No entanto, mesmo após a perícia, os apartamentos
continuaram interditados. A carta à Secretaria do Estado de Assistência
Social de Direitos Humanos problematiza as afirmações com a própria
necessidade de ainda ter de se produzir provas, além de afirmar que a
operação foi realizada, mais uma vez, de forma genérica, com o registro
dos apartamentos somente no próprio ato e ter tido como alvo apenas os
andares onde têm prostituição.
No dia 31 de maio (sábado), foi realizado o evento “Puta Dei” no
Prédio da Caixa, um desfile da Daspu (marca de roupa e lingerie da Ong
Davida) que ocorre todo ano em vários estados do Brasil para lembrar o
Dia Internacional da Prostituta (2 de junho), cujo objetivo era dar apoio
e visibilidade às prostitutas contra a violenta ação arbitrária da polícia que
ocorreu no dia 23 de maio. Foi uma manifestação bem-humorada que
chamou muito a atenção de quem circulava pela área. As mulheres estavam
com blusas verde e amarelo – fazendo referência à Copa do Mundo –
escrito “Sou torcedor, como todo mundo”, “Eu jogo pelada”, “Zona padrão
Fifa”, etc. Em seguida, o protesto caminhou até a 76ª DP para denunciar
as perseguições e os abusos sofridos por parte da polícia. Depois o ato
terminou com uma “pelada” em frente à Câmara dos Vereadores, onde as
mulheres jogaram futebol de maneira divertida e ousada, com um time
vestindo as camisas customizadas pela Daspu e o outro sem blusa. Alguns
policiais ficaram em frente ao ato, registrando o momento nas câmeras dos
seus celulares, mas não se aproximaram e não houve conflito.
No dia 4 de junho de 2014, houve uma audiência pública na
Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro cuja iniciativa serviu
para ouvir os depoimentos relativos às violações de direitos no Prédio da
Caixa. Alguns dias depois dessa audiência, a prostituta que fez a denúncia
na Audiência Pública sofreu um sequestro relâmpago em que foi agredida
física e psicologicamente, ouvindo ameaças que colocaram sua vida e de
202
Encontram-se fotos do edital de interdição no seguinte endereço eletrônico: https://www.facebook.
com/daspu.real/media_set?set=a.1518065341754550.1073741833.100006532951351&type=3
Último acesso: 19/02/2015

129
As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana Consorciada: ...

sua família em risco203. Esta ocorrência, somada à proibição de entrada


das prostitutas no Prédio da Caixa, afetou de sobremaneira a organização
dessas mulheres, que por medo de novas retaliações e por necessidade de
procurar trabalho em outro local, dispersaram-se e não organizaram novos
protestos.

II
O “Plano de Desenvolvimento” continuou a seguir as etapas de
implementação da Operação Urbana Consorciada. A Prefeitura de Niterói
e o Movimento Brasil Competitivo – “uma associação civil de direito
privado, sem fins lucrativos ou econômicos, de interesse público”204,
lançaram a campanha “Niterói Que Queremos”205que afirma perseguir o
objetivo de ouvir diversos segmentos da sociedade civil para elaborar críticas
e propostas de melhorias para a cidade. Na página eletrônica, afirma-se que
a gestão municipal está empenhada em promover um debate “inclusivo
e pluralista” que traga resultados para toda a sociedade niteroiense. No
entanto, diante dos acontecimentos narrados na cidade, tendo em vista
principalmente o caso das mulheres trabalhadoras sexuais do prédio da
Caixa, é necessário problematizar que sujeitos que de fato integram esse
debate e que estão sendo interpelados pelo governo municipal.
De acordo com a socióloga Leticia Sabsay, o discurso da tolerância
à diversidade é característicos das chamadas democracias avançadas,
cujo horizonte contemporâneo evidencia um cenário multicultural com
relações desiguais crescentes, promovido pela globalização206. Para ela,
atualmente vivemos uma conjuntura política em que convivem o “rechaço
mais conservador à diferença” e a “consagração da diversidade cultural”
através do discurso da tolerância:
203
http://www.vice.com/pt_br/read/esta-prostituta-foi-roubada-estuprada-e-despejada-por-
policiais-em-niteroi Último acesso: 23/10/2014
204
Informação encontrada no site do Movimento Brasil Competitivo: http://www.mbc.org.br/
No site do Movimento Brasil Competitivo, encontramos um número enorme de empresas e
empreiteiras listadas entre os associados mantenedores como Andrade Gutierrez, Camargo Correa,
Banco Votorantim, Adidas, Eletrobras, Embraer, IBM, Microsoft, Natura, Odebrecht, OAS,
Souza Cruz, Petrobrás, Unimed, IBM, Ford, dentre outras. Na lista de associados institucionais,
também podemos citar, a título de exemplo, entidades como a CUT, CONTAG e UGT, bem
como a UNICAMP, A Embrapa, o Instituto de Engenharia, etc. Último acesso: 16/01/2015
205
Pode-se acompanhar no site: http://www.niteroiquequeremos.com.br/ Ultimo acesso:
15/04/2014
206
SABSAY, Leticia. Fronteras Sexuales: espacio urbano, cuerpos y ciudadanía. Buenos Aires:
Paidós, 2011, p. 68.

130
Ana Carolina Brito Brandão

A tolerância define hoje o caráter do democrático, mas o que não fica claro
é desde que ponto de referência se define o que é que se pode e o que se
não pode tolerar. (…) o discurso da tolerância tende a fixar e reproduzir a
diferença em termos de uma identidade clausurada e totalizadora, própria
de um pluralismo que replica a figura do indivíduo liberal207.

A autora investigou os intensos debates públicos em torno do


estatuto jurídico da prostituição de rua em Bueno Aires, no final da
década de 90, em contexto de “abertura política”. A edição de um Código
de Convivência Urbana tinha por finalidade a defesa da democracia por
meio do reconhecimento das liberdades individuais dos cidadãos e da
garantia da segurança no espaço urbano. Neste momento, houve intensos
debates sobre a estratégia legal adequada para regular o trabalho sexual, da
despenalização à proibição, culminando na criação de uma zona vermelha
oficial, que delimitava um lugar no espaço urbano onde se poderia praticar
o trabalho sexual. No prefácio do livro, Judith Butler comenta que o
exercício de Sabsay foi expor os limites dos principais pressupostos que
sustentam o liberalismo político legitimador do capitalismo urbano:

Se a “democracia” implica articulação do liberalismo político no interior


do espaço urbano, esta se verá obrigada a cultivar o individualismo e
reduzir o poder democrático às políticas da democracia representativa.
Para lográ-lo deverá trabalhar com uma figura – senão um fantasma – do
indivíduo, fornecer uma norma e uma medida para o sujeito da política, e
encontrar uma maneira de produzir sujeitos conforme esta norma. Sabsay
sustenta que esta articulação do novo sujeito da política se dá através da
institucionalização de normas sexuais (nas leis, nos meios de comunicação
e, em geral, no debate público)208.

Segundo Sabsay, os questionamentos sobre a prostituição resultaram


em debates públicos sobre a questão de quem pode aparecer no espaço
público, e como, criando formas normativas de se construir a própria
cidadania. Ela afirma que o que estava em jogo no debate sobre o estatuto
legal que deveria ter o trabalho sexual, era a construção do sujeito político
que poderia participar e se apropriar do espaço urbano. Para a autora, a
ameaça da despenalização do trabalho sexual consistia – apesar dos diversos
207
SABSAY, Leticia. Fronteras Sexuales: espacio urbano, cuerpos y ciudadanía. Op. Cit., p. 36.
208
BUTLER, Judith. Prólogo. In SABSAY, Leticia. Fronteras Sexuales: espacio urbano, cuerpos y
ciudadanía Op. Cit. p.11

131
As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana Consorciada: ...

mecanismos argumentativos – em visibilizar gêneros e sexualidades fora


da normativa de gênero hegemônica no espaço social, o que deixaria em
evidência a fragilidade do gênero dominante:
O esforço legal para excluir ou isolar as minorias sexuais resulta ser
uma cena da luta discursiva por quais figuras sexuais – e que normas sexuais
– definiram as noções emergentes de cidadão209.
Para Leticia Sabsay, a semiclandestinidade do trabalho sexual não
é uma simples falha do sistema repressivo; seu repúdio e exclusão do
campo visual do espaço urbano é um marcador “do que é digno de ser
público”, auxiliando na produção dos valores e símbolos da comunidade e,
consequentemente, definindo noções de quem e como se pode pertencer
e se apropriar da cidade210. Dessa forma, ela acredita que o trabalho sexual
(e outras sexualidades repudiadas e semiclandestinas) é uma prática-
cultural chave para a constituição do espaço urbano, pois por meio de sua
abjeção211 são normalizados “modos de ser” que estabilizam parâmetros
morais para elaborar a cidadania em relação aos direitos sobre os usos
da cidade. O estudo de Sabsay é focado na prostituição de rua, porém
podemos fazer um paralelo com a situação do Prédio da Caixa, pois por
tudo que foi relatado, este não passava despercebido pelos diversos atores
da cidade, provocando os mais diversos tipos de sentimentos e reações.
Assim, havia uma presença pública notável, fazendo parte da produção
do espaço212.
Interessante observar como a questão da estrutura do prédio,
que supostamente trazia risco a todos que moram ali, acompanhava as
209
BUTLER, Judith. Prólogo. In: SABSAY, Leticia. Fronteras Sexuales: espacio urbano, cuerpos
y ciudadanía. Buenos Aires: Paidós, 2011, p.11.
210
SABSAY, Leticia. (2010). “Las zonas rojas del espacio público. El caso de buenos aires
y la regulación urbana del trabajo sexual”. Apresentado no Congresso: Ciudad, territorio y
paisaje: una mirada multidisciplinar. Disponível em: dialnet.unirioja.es/servlet/fichero_
articulo?codigo=3262720 Ultimo acesso: 22/07/2016
211
Segundo Judith Butler, produção de sujeitos através da incorporação de normas regulatórias
depende de uma produção simultânea de “seres abjetos”. Existe um exterior constitutivo do
“eu” que serve para afirmar a própria coerência e estabilidade do sujeito. Esse exterior não é um
exterior absoluto, pois ele só pode existir em relação ao próprio discurso que o exclui. Trata-se
da delimitação de uma fronteira com uma zona “inóspita” povoada por seres que não habitam
a circunscrição do sujeito. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do
sexo. In: LOURO, G.L. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001, p.153.
212
Aqui se deve remeter a produção do espaço no sentido de Henri Lefebvre apresentado
no primeiro capítulo. O autor pensa a produção do espaço através de uma relação dialética
tridimensional: a prática espacial, o espaço de representação e a representação do espaço.

132
Ana Carolina Brito Brandão

narrativas sobre o conflito em torno da ocupação das trabalhadoras sexuais,


como se as causas e os efeitos ligassem necessariamente um fato ao outro.
Percebe-se certo esforço, tanto da mídia como também do Ministério
Público e da Polícia Civil, de associar a atividade realizada pelas mulheres
que prestavam serviço sexual a um ambiente ao mesmo tempo insalubre
e degradante, como também criminoso e perigoso. Duas falas, uma da
autoridade policial, Marcelo Fernandes, e outra do presidente do Conselho
de Segurança de Niterói, Leandro Santiago, ilustram isso:

Nosso objetivo é trazer dignidade aos moradores deste local, que convivem
com este tipo de situação. Existem aqui moradores idosos e crianças”,
declarou o delegado.
O presidente do Conselho de Segurança de Niterói, Leandro Santiago,
comemorou a ação. “Os moradores que ali residem são intimidados com
o ambiente e muitas vezes não denunciam os casos. O crime se aproveita
disso e acaba agindo neste silêncio”213. 

Como se pode perceber, construíram-se dois personagens nessa


história que são colocados em oposição entre si, o “morador” e a “prostituta”.
Na reportagem da página da “Rádio Globo”, há uma fala de uma das
trabalhadoras sexuais, Bruna, que afirma que elas moram ali e pagam o
aluguel em dia, “coisa que muitos moradores não fazem”214. Em seguida,
expõe-se a opinião de uma única moradora, Vera, que diz ao repórter:
“Sou contra a maneira de trabalho. Se elas e os clientes entrassem e saíssem
mudos, tudo bem. Não consigo ler um livro sem me incomodar”215. Sem
desejar entrar no mérito da validade das alegações, pode-se fazer um
paralelo desta contraposição feita pelo jornal com o que a socióloga Leticia
Sabsay observou na sua pesquisa sobre as disputas em torno do estatuto
jurídico das e dos profissionais do sexo na cidade de Buenos Aires e o
direito de elas e eles poderem ocupar o espaço público. No caso, havia uma
construção de fronteiras identitárias associadas à ocupação do espaço que
conferia a imagem do “vizinho”, e seus correlatos, o status de uma figura
universal que parecia ser o legítimo ocupante do bairro:
213
http://www.cidadedeitaborai.com.br/9-noticias-da-cidade-de-itabora%C3%AD/1740-
pris%C3%B5es-no-predio-da-caixa-de-niter%C3%B3i.html Essas falas ocorreram na
ocasião das operações policiais de 2013. Último acesso: 15/04/2014
214
http://radioglobo.globoradio.globo.com/manha-da-globo-rj/2014/04/03/PROSTITUTAS-DE-
NITEROI-PROMETEM-PROTESTO-USANDO-APENAS-BIQUINI.htm. Essa afirmação
está contida na fala de Bruna. Último acesso: 15/04/2014
215
Idem.

133
As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana Consorciada: ...

O vizinho é aquele que pertence ao bairro, à cidade e o bairro e a cidade


são marcadores territoriais que especializam a pertença imaginária à
comunidade. Aqui a noção de pertença (especializada) é central. Mas
além de tudo, a pertença nos indica a presença de uma fronteira – entre
os que pertencem ao bairro/à comunidade e os que não –. Claro está
que a fronteira se ativa então quando o construto social “os vizinhos”
funciona em direta confrontação com o seu outro, “as travestis” e “as
prostitutas”216

Para a autora, a figura do “vizinho” é um significante político que


dá a expressão espacial do que é o cidadão ideal. Da mesma forma que
observamos o papel do “morador” – e também seus correlatos idosos e
crianças, que estão incluídos na família nuclear heterossexual – como o
sujeito que deve ser protegido e garantido o direito de permanecer naquele
espaço, e a presença dele necessariamente exclui a possibilidade da presença
das “prostitutas”. Assim, estabelece-se uma fronteira moral ativada pela
ideal de “morador”, que é aquele que materializa os valores implícitos do
cidadão ideal, e por isso é quem tem o direito à “dignidade”. Observa-
se que a violência percebida pelos jornais e pelo Estado é apenas aquela
que supostamente sofrem as figuras que preenchem o imaginário dos
valores morais – a “criança”, o “idoso” e o “morador” –, pela proximidade
que estão da atividade sexual remunerada. No entanto, a violência que
sofrem por não terem o direito a ocupar um espaço e trabalhar de modo
a prover o sustento a si mesmo e à família, além de outros diversos tipos
de discriminação, não é reconhecida como um problema. Há aqui uma
distribuição desigual da vulnerabilidade.
Segundo Leticia Sabsay, existe uma negociação da (in)visibilidade da
violência, que julga determinada situação violenta ou não, dependendo
contra quem se exerce, se tal ser é reconhecido como sujeito humano. Nesse
ponto, ela remete ao conceito de “corpos abjetos” de Butler, demonstrando
que a cidadania não depende só do acesso a um conjunto de direitos, mas
também da definição do sujeito de direito.
A luta corajosa das mulheres trabalhadoras sexuais do Prédio da
Caixa produziu antagonismos no interior de um projeto para a cidade de
Niterói, que se veiculou como sendo consensual e inclusivo dos diversos
segmentos da sociedade, mas que revelou nesse caso seu caráter violento
216
SABSAY, Leticia. Fronteras Sexuales: Espacio urbano, cuerpos y ciudadanía. Buenos Aires:
Paidós, 2011, p. 150. Tradução livre da autora.

134
Ana Carolina Brito Brandão

e segregador. Através das manifestações, expuseram-se as contradições


do plano estratégico, que apresenta as intervenções urbanísticas na área
central como forma de atender às demandas de melhoria das condições
de vida dos seus habitantes e usuários, mas que na realidade prioriza os
interesses do capital globalizado

Referências bibliográficas
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Disponível em: https://observatoriodaprostituicao.wordpress.com/documentos/
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____________. Anexo II da Lei 193/ 2013. Relatório de Impacto de Vizinhança, 2013.
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135
As Prostitutas do “Prédio da Caixa” em Niterói e a Operação Urbana Consorciada: ...

Notícias e Sites Consultados:


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http://www.ofluminense.com.br/sites/default/files/04_11.pdf
http://portal.aprendiz.uol.com.br/arquivo/2014/04/15/rolnik-megaeventos-trazem-
estado-de-excecao-as-cidades-brasileiras/
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para-cidade-14432072
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http://www.ofluminense.com.br/editorias/cidades/centro-mais-perto-da-revitalizacao
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http://oglobo.globo.com/rio/grupo-de-prostitutas-realiza-manifestacao-no-centro-de-
niteroi-12071408
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hora-na-avenida-amaral-peixoto-em-niteroi.htm
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centro-de-niteroi
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centro-de-niteroi
h t t p : / / w w w. j o r n a l o s a o g o n c a l o . c o m . b r / s i t e / g e r a l / 2 0 1 4 / 4 / 1 9 / 6 0 4 3 3 /
prostitutas+fazem+novo+protesto+em+niter%C3%B3i
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protesto-no-centro-de-niteroi.html
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prostitutas-fazem-novo-protesto.html
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https://observatoriodaprostituicao.wordpress.com/documentos/
http://www.vice.com/pt_br/read/esta-prostituta-foi-roubada-estuprada-e-despejada-por-
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http://radioglobo.globoradio.globo.com/manha-da-globo-rj/2014/04/03/
PROSTITUTAS-DE-NITEROI-PROMETEM-PROTESTO-USANDO-APENAS-
BIQUINI.ht

136
A Comunidade Vila Autódromo na fala
de seus moradores: um relato atípico de
fatos, temas e questões sociopolíticos
Ricardo Nery Falbo217

Introdução
Este trabalho é o resultado da realização de entrevistas e conversas
conduzidas de modo aleatório com moradores da Vila Autódromo,
localizada na Baixada de Jacarepaguá, na Cidade do Rio de Janeiro, no dia 12
de março de 2010, no contexto da atuação do Núcleo de Terras e Habitação
(NUTH) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) junto
ao referido assentamento urbano, aqui denominado de “comunidade”. O
caráter aleatório dessa etapa do trabalho de campo pressupôs a ausência
da estruturação formal das perguntas, bem como a ausência da definição
do universo populacional a ser investigado, de acordo com a tradição das
ciências sociais. De natureza aberta, as perguntas procuraram conhecer a
dinâmica do cotidiano dos moradores, bem como a visão que eles possuíam
da comunidade em que moram. O número de moradores entrevistados
somou o total de 12 pessoas, cuja seleção não foi orientada por nenhum
critério específico, senão pela intermediação feita por integrantes do NUTH.
O objetivo dessa etapa da investigação empírica foi o da criação das
condições para a realização de um trabalho etnográfico na comunidade,
com o propósito de produzir a descrição das práticas e das visões dos
moradores da comunidade por meio da imersão em suas atividades e
situações cotidianas e assim desenhar uma agenda de pesquisa mais
tradicional estruturada segundo a relação que articula problemas e hipóteses,
tanto práticos quanto teóricos. Neste sentido, a investigação empírica
fora inicialmente concebida para ser conduzida segundo os princípios e

Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


217

(UERJ).
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

práticas do trabalho de campo e da análise da conversação e das práticas


da linguagem de acordo com os trabalhos de etnometodologia de Harold
Garfinkel (1974). Com fundamento na análise de natureza psicossocial, a
etnometodologia opera no campo das ações dos indivíduos com o objetivo
de conhecer as explicações das ações coletivas e dos atores sociais. Assim
procedendo, ela garante a investigação dos movimentos sociais através de
seus membros e de suas realizações práticas na vida cotidiana.
Com ênfase na linguagem cotidiana e no senso comum prático de
um grupo, a etnometodologia entende que as descrições da realidade
social feitas por seus membros, no momento mesmo em que elas são
manifestadas, constituem dimensões que integram a própria realidade
social que é descrita. Esta abordagem teórico-metodológica na investigação
da comunidade Vila Autódromo possui a vantagem da superação das
dicotomias tradicionais que oporiam a comunidade em questão ao restante
da cidade – ou que operariam segundo a polarização extrema entre cidade
legal e cidade ilegal – e assim a afirmação da percepção segundo a qual a
Vila Autódromo faz parte da cidade na qual ela existe com protagonismo e
agência. A perspectiva dos trabalhos de Garfinkel instaura ainda a condição
de possibilidade de reconciliação da teoria com a prática, do pesquisador
enquanto um “eu” encarnado com seu objeto de investigação enquanto
um “tu” também encarnado, além de garantir a participação do “tu” na
condução do trabalho do “eu”.
No entanto, a atividade desenvolvida pelo autor deste trabalho
na Vila Autódromo e com seus moradores ficou limitada às entrevistas
e conversas realizadas no dia 12 de março de 2010. São os resultados
destas entrevistas e conversas que constituem aqui o objeto empírico ou
fenômeno observado e que foram considerados como discursos, no sentido
de “forma de ação” (CHARAUDEAU, MAINGUENEAU, 2004). Tais
discursos – aqui denominados de “falas” – não foram, porém, tratados
segundo os princípios e métodos que caracterizam a Análise de Discurso,
que supõem principalmente a problematização e a interação dos mesmos
com outros discursos e seus contextos. Neste sentido, as falas dos moradores
da comunidade Vila Autódromo não foram associadas a outras falas ou a
outras fontes que permitissem melhor completar os conhecimentos dos
fatos que elas descreviam ou mesmo identificar outras representações
sobre a referida comunidade. Não obstante isto, com o cuidado para que
as referidas falas não fossem consideradas como “o espelho da realidade”
da comunidade, elas garantiram supor referências a relações e conflitos

138
Ricardo Nery Falbo

no mundo político e social e a temas e problemas no mundo teórico e


acadêmico quanto a esta área da vida social que é a habitação. Daí o caráter
atípico do relato que comunica este trabalho.
Partindo da ideia segundo a qual sem nome, sem designação, o
morador se encontra em situação de ruptura com o grupo ao qual pertence
e que, assim desumanizado, ele descaracteriza o mundo que habita como
expressão de configuração histórica e social específica, todos os moradores
entrevistados foram identificados e concordaram o com o processo de
identificação. Designar o morador, não apenas por seu nome, constitui
condição fundamental de sua compreensão segundo suas necessidades e
produtos capazes de satisfazer estas necessidades. Assim, contra o anonimato
generalizado, todos os moradores entrevistados foram identificados.

A Vila Autódromo através do mutirão


“A comunidade foi feita com mutirão de todos”. Esta afirmação de
um dos moradores da Vila Autódromo, depois identificado apenas pelo
nome de José Ribamar, permite pensar a distinção entre países capitalistas
“centrais” e “periféricos” quanto ao problema dos custos da habitação
(FELICÍSSIMO, 1976). Na França, a habitação popular é produzida ou
financiada pelo Estado. Nos Estados Unidos, considerando o poder de
compra do salário da classe trabalhadora, o acesso à habitação é feito através
das leis do mercado imobiliário. Em países como o Brasil, caracterizado
historicamente pela ausência de políticas públicas de produção de habitação
voltadas para as camadas populares, cujos salários são insuficientes para
satisfazer os custos da habitação de acordo com as determinações do
mercado imobiliário, o mutirão tem sido uma das estratégias da classe
trabalhadora para enfrentar suas necessidades de habitação.
Hermínia Maricato denomina esta estratégia de sobrevivência no
meio urbano de “solidariedade forçada” (1979:71), que a autora distingue
da “autoconstrução”, caracterizada pelo trabalho coletivo ou não. Esta ideia
– que mostra que a “saída” para o problema da habitação é procurada pela
própria classe trabalhadora – pode ainda ser confirmada pelo ceticismo de
Jose Ribamar quanto à eficácia dos programas sociais de governo na área da
habitação: “Como eu posso mudar para uma casa que é dada pelo governo
para quem ganha salário mínimo? (...). [Além disto], casas dadas pelo
governo têm sempre problemas, nunca estão acabadas. É melhor investir
aqui”. Esta fala esconde o caráter problemático do mutirão enquanto

139
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

alternativa universalizável para solucionar o problema da habitação no


País. Afinal, nas sociedades capitalistas, tal como afirmou Engels (1957),
“a crise da moradia não é um acaso, é uma instituição necessária; ela não
pode ser eliminada, bem como suas repercussões sobre a saúde, etc., a
não ser que a ordem social por inteiro, de onde ela decorre, transforme-se
completamente” (p.49).
Enquanto prática tradicional de origem rural relacionada
principalmente ao trabalho de plantação e de colheita (CASCUDO, s/d), o
mutirão vinculado sobretudo à construção de casas pela classe trabalhadora –
e para ela – no espaço urbano (MARICATO, 1979) apresenta características
que podem ser identificadas na visão de comunidade que possuem os
moradores da Vila Autódromo. “Na comunidade, todos se conhecem e se
apoiam”, afirma Terezinha Barbosa, que mora com o filho na comunidade,
em casa própria, desde 1990, quando saiu da comunidade na Taquara, em
Jacarepaguá. A ideia de que todos se conhecem e se apoiam mutuamente
permite definir a solidariedade como característica fundamental do mutirão.
Esta visão da Vila Autódromo pode ser confirmada pela fala de Albertina
de Souza, moradora numa casa de alvenaria na comunidade desde 1986,
quando deixou o bairro de Cascadura, na zona norte da cidade, após separar-
se de seu marido, e revelar outras características da prática do mutirão.
“Todos são solidários. Fazemos lista para ajudar no enterro de quem não tem
dinheiro. Se uma criança está doente ou cai e se machuca, e não estamos por
perto, os vizinhos socorrem, levam para o hospital”. Necessidades específicas
– para além da construção de casas – constituem virtudes e definem assim a
solidariedade em sua relação com a espontaneidade e a cooperação entre os
moradores na construção da Comunidade. “O material para a construção
da Capela São José Operário foi comprado pelos moradores”, afirma Luiz
Claudio, responsável pela realização da obra da referida capela. Essa mesma
solidariedade e cooperação constituíram condição fundamental para a
construção de outros lugares de convivência, tais como o campo de futebol
e a sede a Associação de Moradores da Comunidade, e para a urbanização
da Vila Autódromo como um todo, com a pavimentação de calçadas e
ruas e com a construção de escolas e creches. Neste sentido, a relação entre
comunidade e mutirão constitui a negação do estado de anomia como
característica da Vila Autódromo.
Assim, em sua relação fundamental na construção da comunidade,
o mutirão pode ser compreendido quanto à função que R. K. Merton
(1963) atribui aos cerimoniais: “ele pode cumprir a função latente de

140
Ricardo Nery Falbo

reforçar a identidade do grupo ao proporcionar ocasiões periódicas em


que seus membros dispersos se reúnem para realizar atividades comuns”
(pp. 64-65). De fato, as características do mutirão permitem questionar
esta prática social como sendo trabalho capitalista. No entanto, o que é
fundamental é o questionamento do caráter “natural” do mutirão como
prática supostamente ligada à cultura de subsistência dos trabalhadores
rurais do País. Afinal, os moradores da Vila Autódromo não são migrantes
do campo que reproduzem no espaço urbano da capital fluminense
práticas tradicionais de produção da habitação típicas das zonas rurais.
Se eles mantêm práticas de subsistência é porque não lhes resta outra
alternativa como meio para ter acesso a bens como a própria casa ou
serviços como água e esgoto, “seja pelo baixo poder aquisitivo dos
salários, seja porque as políticas oficiais estatais tratam a infraestrutura e
equipamento urbano, coletivos ou não, como mercadorias a exemplo dos
setores privados, ou quando não, e mais frequentemente, combinadas a
eles” (MARICATO, 1979: 74).
No entanto, se o mutirão constitui a base de produção do espaço
urbano da Vila Autódromo como comunidade, a interpretação do mesmo
segundo a velha tradição ocidental das classificações antitéticas das
formas sociais é no mínimo problemática. Sua apropriação pelos estudos
de sociologia pode exigir a distinção necessária e fundamental entre os
diferentes tipos de organização social e assim criar a escala ou classificação
com o objetivo de compreender formas intermediárias e de transição da vida
social. Porém, considerar o mutirão como processo de produção do comum
em oposição ao processo de produção do social significa a ideologização
ou a dogmatização das dicotomias clássicas. No estudo comparativo dos
fenômenos sociais, é a ideia de “continuum” presente no pensamento de
Ferdinand Tönnies (2002) e de Antonio Gramsci (2000) que garante a
superação das respectivas polarizações extremas “comunidade-sociedade”
e “Estado-Sociedade Civil” enquanto entidades ontológicas presentes em
teorias sociológicas tradicionais.
“Construí minha casa com a ajuda de meus filhos”. Esta afirmação
de Antonio Jesus, morador numa casa de alvenaria na comunidade desde
1988, e ex-presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo218
218
A Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo (AMPAVA) foi criada em
1987, data a partir da qual a Vila Autódromo passou a existir como comunidade formalmente
organizada. Informação obtida junto ao site https://vivaavilaautodromo.org/historia_de_luta/,
em 02 de outubro de 2016.

141
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

por quatro vezes, mostra como o contato direto do produtor (morador) com
o produto (habitação), bem como o uso de sua própria força de trabalho,
em sua relação com a sobrevivência da comunidade e de seus moradores,
caracteriza o mutirão como processo de produção da habitação de modo
artesanal, isto é, sem a rígida divisão do trabalho capitalista, ou até mesmo
se distinguindo do trabalho, como define Claus Offe (1994), como “o
fato social principal” (p.167) das tradições clássica e marxista da sociedade
burguesa. No entanto, como reconheceu Francisco de Oliveira (2003),
“a habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não
pago, isto é, supertrabalho. (...). Assim, uma operação que é, na aparência,
uma sobrevivência de práticas de ‘economia natural’ dentro das cidades,
casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que
tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de
trabalho” (p.59).
Por outro lado, a afirmação de Antonio revela também o caráter
não alienante do mutirão. Afinal, esta prática supõe a visão integral e
integrada do morador (produtor) quanto ao processo de produção de sua
habitação (produto). Aqui, o morador pode ser definido pelo que Walter
Benjamin (1970) chamou de “autor como produtor” ou definido pela
“cognoscitividade” com a qual Anthony Giddens caracteriza os atores
sociais: “Tudo o que os atores sabem (creem) acerca das circunstâncias
de sua ação e da de outros, apoiados na produção e reprodução dessa
ação, incluindo tanto o conhecimento tácito quanto o discursivamente
disponível” (p. 301).

A Vila Autódromo através do trabalho


“Os primeiros moradores da comunidade eram os próprios operários
que trabalhavam na construção do Autódromo”. Esta afirmação de
Lourival da Silva, que mora numa casa de alvenaria e que assim como
seu irmão Luiz da Silva deixou a comunidade da Rocinha em razão da
violência, remonta à história da formação da comunidade. Ao escrever
sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra ainda na primeira
década do século XIX, Engels (1985) já havia reconhecido a natureza da
relação que articula trabalhador e habitação: “o grande estabelecimento
industrial exige numerosos operários trabalhando juntos num mesmo
edifício; eles têm de habitar juntos: para uma fábrica média já constituem
uma vila” (p.32). Em relação a seu lugar no conjunto do sistema

142
Ricardo Nery Falbo

econômico, “a moradia é um dos elementos essenciais da reprodução


da força de trabalho” (CASTELLS, 1983: 187). É neste sentido que ela
“acompanha” os movimentos dos trabalhadores (concentração, dispersão
e distribuição).
A afirmação de Lourival da Silva revela como a Vila Autódromo,
originalmente uma vila de pescadores, tornou-se, a partir dos anos 70,
“uma oportunidade para a moradia de centenas de migrantes operários
e trabalhadores informais que chegaram à região [e à Cidade do Rio
de Janeiro] para a construção do autódromo de Jacarepaguá, do metrô
e dos novos empreendimentos imobiliários que despontavam no local”,
reconhece Alexandre Mendes219.
Já tendo vivido da pesca, Dalva de Oliveira – que morava em
apartamento alugado na Taquara (Jacarepaguá) e teve de mudar-se para
a Vila Autódromo quando se separou de seu marido – agora trabalha na
Escola Pública Estadual Roberto Burle Max, em Guaratiba, no Rio de
Janeiro, a trinta quilômetros aproximadamente de sua residência. Luiz
Claudio é professor de Educação Física, formado pela Universidade Santa
Úrsula, no Rio de Janeiro. Trabalhador terceirizado na Secretaria Estadual
de Trabalho e Renda (SETRAB) no centro do Rio de Janeiro, Lourival
da Silva é segurança noturno. Como característica da relação de trabalho
constituída pelo contrato de trabalho, a formalidade pode ainda ser
reconhecida na fala dos seguintes moradores. “Eu tenho oitenta e um anos
e não trabalho mais. Sou militar reformado da Artilharia do Exército”, disse
Antonio Jesus. “Moro na Comunidade desde 1988 e estou aposentada”,
afirmou Angelita Soares, que mora numa casa de madeira situada num
lote com oito famílias (seus dez netos e onze bisnetos nasceram na Vila
Autódromo).
No entanto, nem todos os moradores da Vila Autódromo são
trabalhadores “com carteira assinada” ou possuem vínculo de trabalho
com órgãos públicos. Muitos trabalham sem contrato de trabalho ou por
conta própria na Comunidade ou fora dela. Esta é a situação Terezinha
Barbosa, moradora na Vila Autódromo desde 1990. Aposentada, ela
trabalha como costureira de modo informal. Não tendo revelado o valor de
sua aposentadoria, ela afirmou, no entanto, não possuir rendimento fixo
quanto à sua atividade. Paulo Roberto, morador na mesma comunidade
desde 1996, quando deixou o bairro de Vila Valqueire, pertencente à
219
Autor de “Olimpíadas para todos, sem remoção!” em http://www.universidadenomade.
org.br/.

143
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

região de Jacarepaguá, também é trabalhador informal. Ele é pescador e


possui também uma pequena plantação de quiabo, manjericão e pimenta
em sua casa. A renda mensal de sua família chega a ser de até três salários
mínimos. A informalidade também caracteriza a atividade de mecânico
que realiza Geraldo Correia na Comunidade, onde mora desde 1990,
quando chegou de Campina Grande, Paraíba. “Eu não tinha outra opção
de moradia”, afirma Geraldo. Paulo Roberto também se encontra na
informalidade
Por outro lado, há moradores que enfatizaram a condição de
“proprietários do próprio negócio”. Já tendo trabalhado antes em casa de
família, sem carteira assinada, Albertina de Souza agora afirma: “Tenho
meu próprio comércio”, que ela designa também de “uma porta”, espécie
de pensão onde ela serve almoço e jantar. Natural do Paraná, que deixou
para trabalhar no Rio de Janeiro, e moradora numa casa de alvenaria na
Comunidade desde 1987, quando deixou a comunidade Cardoso Fontes,
em Jacarepaguá, Tereza Duzzi, que já trabalhou como passadeira e lavadeira
em Jacarepaguá, afirma: “Agora, sou proprietária de um bar. Consegui
juntar dinheiro, e pouco a pouco fui reformando minha casa e transformei
num bar. Vivo do comércio há 12 anos. Aqui é meu ganha-pão”.
Além de participarem juntamente com os demais moradores da
construção contínua e continuada da Vila Autódromo através da prática
do mutirão, estes trabalhadores – formais, informais e proprietários –,
puderam ser percebidos como constituindo uma rede tão distinta quanto
diversa de mão de obra e de prestadores de serviços para o restante da
cidade220. Neste sentido, é possível afirmar que a cidade é construída
também pela comunidade.
O processo de construção do espaço urbano através do trabalho
cotidiano, múltiplo e diverso, dos moradores da Vila Autódromo, que
constroem por sua vez seus próprios processos comunitários de reprodução
de sua força de trabalho, questiona a concepção que identifica a partição
da cidade entre cidade legal e cidade ilegal através da pergunta “Cidade
desigual ou cidade partida?”, formulada por Ribeiro (2000), bem como
a realidade do trabalho formal no Brasil, segundo análise realizada por
Silva (2002).

220
Durante a realização do trabalho de campo, foram comuns as referências que fizeram os
entrevistados ao trabalho de seus vizinhos e amigos, como sendo eletricistas, bombeiros,
porteiros, pedreiros.

144
Ricardo Nery Falbo

A Vila Autódromo através da remoção


“Tenho medo de fazer melhorias em minha casa por causa das ameaças
de remoção. A ameaça de remoção sempre existiu, inclusive já estiveram
máquinas da Prefeitura aqui. Minha casa foi marcada [pela Secretaria
Municipal da Habitação]”, afirmou Geraldo Correia. O medo da remoção
é também sentido e expresso por Terezinha Barbosa e Tereza Duzzi. Disse
a primeira: “Desde que cheguei aqui, eu sempre ouvi comentários de
remoção. Eu tenho medo e já parei diversas vezes as obras de minha casa”.
Afirmou a segunda: “Sempre ouvi boatos sobre a remoção, mas nunca
recebi uma notificação oficial”. Ao sentimento de medo é acrescentado o
de incredulidade quanto à concretização das ameaças de remoção. Estas
ameaças são tão constantes na vida dos moradores da Vila Autódromo
que muitos nem mais acreditam que elas venham a ser efetivadas:
“Não levo muito a sério os boatos de remoção. Desde que cheguei aqui
ocorrem ameaças”, afirmou Paulo Roberto. Por outro lado, Luiz Claudio,
encarregado das obras da capela local, viveu a experiência da confirmação
dos “boatos da remoção”: “Em 2006, a viatura da Guarda Municipal esteve
na comunidade. Na primeira vez, deram ordem para parar a obra da Capela
São José Operário. Na segunda vez, ameaçaram de demolição a capela”.
O medo da remoção pode ser explicado por razões diferentes pelos
moradores da Vila Autódromo. “Não tenho como pagar aluguel”, afirmou
Esteliano Francisco, que reconheceu “a vantagem de não pagar aluguel”
como um dos motivos para sair da comunidade onde morava na Cidade
de Deus, em Jacarepaguá. Afinal, ele é aposentado – sua renda familiar
varia entre 0 e 3 salários mínimos – e não recebe qualquer tipo auxílio
do poder público. A esta explicação de natureza material e objetiva, ele
apresentou motivos de origem mais pessoal e subjetiva que podem revelar
seu sentimento de pertencimento à comunidade: “Não consigo ver minha
vida fora da comunidade da Vila Autódromo; é o melhor lugar do mundo”.
Por outro lado, a comunidade é também para Esteliano a vida com a
sua família. Se ele deixou sua família (pais e irmãos) em Pernambuco na
década de 60 para vir morar no Rio de Janeiro, agora ele mora com a filha,
o genro e os sete netos. A fala de Esteliano é confirmada pelo depoimento
de outros moradores da Vila Autódromo. “Moro com meus 3 filhos e um
neto. Prefiro ficar na comunidade. Moro aqui há anos e me sinto em casa.
Conheço todos os meus vizinhos”, afirmou Geraldo Correia. “Morar aqui
é morar no paraíso”, sentenciou Albertina de Souza. A visão de “paraíso”

145
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

na definição da Vila Autódromo – também reconhecida por Luiz Cláudio


como sendo “um pedacinho do céu” – pode ser interpretada segundo o
depoimento de Lourival da Silva: “A comunidade é “tranquila, sem milícia,
sem traficante”. Foi precisamente a ausência de tranquilidade e a existência
de milícias e traficantes que fizeram com que Lourival deixassem a
comunidade da Rocinha para se instalar na Vila Autódromo e afirmasse que
“não saio da comunidade por nada”. Angelita Soares também confirmou
a ideia de tranquilidade e segurança da comunidade nos seguintes termos:
“Gosto de morar aqui, não quero sair. Aqui é seguro, não tem fumo nem
tiroteio”. Estas falas – que podem ser interpretadas como discurso de
resistência a toda tentativa de remoção da comunidade – podem ecoar
muitas outras vozes de moradores da Vila Autódromo que caracterizaram
a comunidade como sendo “segura” e “tranquila”. Antes de mais nada, elas
servem de ilustração à concepção de comunidade proposta por BAUMAN
(2003), a qual reúne todos os sentidos acima: “Comunidade (...) é sempre
uma coisa boa” (p.7), ainda que ela implique a restrição de liberdade de
seus membros.
No entanto, motivos e razões para permanecer na comunidade podem
ser encontrados fora dela: “Minhas netas estudam nas proximidades da
comunidade”, afirmou Dalva de Oliveira. Afirmação não muito diferente foi
feita por Paulo Roberto: “Minhas filhas estudam nas proximidades da Vila
Autódromo”. Duas são as escolas situadas próximas da comunidade, a uma
distância não superior a cinco quilômetros, e nas quais estão matriculadas
crianças que moram na comunidade: a Escola Municipal Hemeterio dos
Santos e a Escola Estadual Desembargador Ney Palmeira, ambas situadas
em Jacarepaguá. Os netos de Lourival da Silva também frequentam as
referidas escolas. “Eu prefiro continuar morando na comunidade que
morar longe, na Baixada [Fluminense]”, disse Tereza Duzzi, que, em razão
de seus problemas de saúde, reconheceu ter acesso mais fácil a laboratórios
e hospitais existentes “nas proximidades” da comunidade. Por outro lado,
descreveu sua dificuldade de encontrar trabalho fora da comunidade: “Sair
daqui para trabalhar onde e fazendo o quê?”. Já Luiz Claudio, que disse
nunca ter recebido qualquer notificação da Prefeitura e que só sabe da
remoção da comunidade através das mídias, afirmou: “Se eu for removido,
eu não sei para onde ir”.
O medo ocasionado pela ameaça permanente de remoção por parte
da Prefeitura do Rio de Janeiro está relacionado, provável ou certamente,
ao sentimento de injustiça – ou mesmo de revolta – quanto à perda das

146
Ricardo Nery Falbo

economias dos trabalhadores consumidas na construção e na melhoria


de suas casas ou mesmo na aquisição das mesmas mediante relação de
compra e venda. Considerando a situação de Terezinha, Geraldo e Tereza,
estes moradores possuem em comum o fato de terem o título de posse
de seus imóveis e de pagarem tributos tais como o Imposto Predial e
Territorial Urbano (IPTU) e a taxa de incêndio. Situação semelhante é
a de Lourival da Silva, de Luiz Claudio e de Antonio Jesus. O primeiro
fez a seguinte alegação: “Eu comprei minha casa. Ela foi anunciada no
jornal. Eu tenho título, mas nunca recebi IPTU para pagar”. O segundo
afirmou o seguinte: “Eu comprei meu terreno. Eu construí minha casa.
Não recebo IPTU”. O terceiro declarou: “Tenho título dado pelo Iterj, da
época do Brizola221”. A remoção involuntária é assim percebida por estes
moradores como manifestação do uso da força por parte da Prefeitura do
Rio de Janeiro. Esta interpretação tem seu sentido explicitado na fala de
Terezinha Barbosa: “Não saio da comunidade, mesmo que eles me dão
uma casa ou que me paguem”.
As opções de reassentamento e de indenização propostas eventualmente
pelo poder público local mais parecem contrariar os valores e interesses
comunitários dos moradores da Vila Autódromo. Afinal, a construção
da comunidade se confunde com as relações que seus moradores têm
historicamente estabelecido com o território da Vila Autódromo. Além
das diferentes formas de trabalho e dos diferentes tipos de serviço, a
comunidade já consolidou espaços de convivência para jovens e adultos, já
criou relações de amizade entre vizinhos, já garantiu acesso à rede de ensino e
hospitais nas redondezas, já instaurou relações de confiança e solidariedade
entre seus moradores. As “produções” da comunidade são “produtos” que
pertencem a seus moradores. A despeito da existência de conflitos que
possam existir na comunidade para além do problema referente às ameaças
de remoção, a Vila Autódromo é a expressão do funcionamento de uma
221
Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (Iterj). Esta fala de Antonio
permite recuperar elementos históricos no processo de formalização da comunidade. Em 1989,
diversas famílias oriundas da Comunidade Cardoso Fontes, Jacarepaguá, foram assentadas
na Vila Autódromo. Em 1994, mais de sessenta famílias foram legalmente assentadas na
comunidade pela antiga Secretaria da Habitação e Assuntos Fundiários do Rio de Janeiro. Em
1997, o Governo do Estado do Rio de Janeiro concedeu a titulação a cento e quatro famílias
da Vila Autódromo. Em 1998, a antiga Secretaria da Habitação e Assuntos Fundiários do Rio
de Janeiro reconheceu aos moradores da faixa marginal da Lagoa a Concessão de Uso Real por
noventa e nove anos da publicada. Em 2005, a Câmara Municipal do Município do Rio de
Janeiro decretou parte da comunidade Área de Especial de Interesse Social. Informações obtidas
junto ao site https://vivaavilaautodromo.org/historia_de_luta/ , em 02 de outubro de 2016.

147
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

ordem interna que seja a comunidade caracterizada pelo caos, desordem


ou anomia. É a ameaça – ou a percepção da ameaça – a esses produtos ou
produções que está na origem do medo sentido pela comunidade.
Considerando que o direito pode ser definido como coisa-devida
(MACHADO, 1972), os moradores da Vila Autódromo – ainda que não
tenham usado a linguagem “direito” em seus depoimentos – possuem a
percepção clara da ameaça a todas as suas produções diante da possibilidade
de remoção forçada ou de reassentamento involuntário. Afinal, permanecer
na Vila Autódromo significa para seus moradores condição fundamental
de preservação de suas produções. Tomando de Lefebvre (1969) a definição
de “direito à cidade” como sendo “direito à vida urbana, transformada,
renovada” (p.108), é possível afirmar a definição do “direito à comunidade”
como sendo o direito à vida urbana construída e renovada no cotidiano e
na rotina pelos moradores da Vila Autódromo em sua relação com a cidade
do Rio de Janeiro. Aqui, a vida urbana pode ser compreendida através
da fala desta moradora que fora apenas identificada pelo nome de Maria:
“Meu filho”, disse a senhora que aparentava ter mais de sessenta anos de
idade, “minha casa é isto aqui”, momento em que, com os braços abertos,
ela apontava para as paredes de um dos dois cômodos de uma modesta
residência; “elas têm muitas histórias”. Por fim, acrescentou de forma
enfática: “minha casa é esta comunidade”. É a destruição destas ou de
outras paredes ou a ameaça de demolição ou de remoção desta comunidade
que fundamenta a resistência dos moradores da Vila Autódromo.

A Vila Autódromo através da gestão da cidade


Albertina de Souza, que não tem título de posse – e que assim não
paga nem IPTU nem taxa de incêndio -, comentou as razões possíveis
da remoção da Vila Autódromo: “Antes da realização dos Jogos Pan-
Americanos, ouvi falar da remoção da comunidade, considerada como
poluição visual e ambiental”. Escolhida em 2002 para sediar os Jogos
Pan-Americanos de 2007, a cidade do Rio de Janeiro preparou-se para a
realização deste evento multiesportivo com a reforma ou a construção de
diversos locais de competição. No entanto, a definição da comunidade
como causadora de “‘dano estético e ambiental’ à Lagoa de Jacarepaguá
e seu entorno” ocorreu em 1993, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro,
sob tal alegação, ajuizou ação judicial no Tribunal do Estado do Rio de

148
Ricardo Nery Falbo

Janeiro e requereu a remoção de toda a comunidade222. A fala de Albertina


de Souza revela detalhes mais concretos quanto ao processo da eventual,
possível e futura remoção da comunidade no contexto da preparação da
cidade para a realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007 e como forma
de erradicação da alegada causa de dano estético e ambiental: “Em 2003
ou 2004, todas as casas da comunidade foram marcadas com a sigla SMH.
Falaram que era um cadastro para urbanizar e sanear, mas, na verdade, era
para remover. Perguntavam se a gente tinha eletrodoméstico e quantos.
Achamos estranho”.
A estranheza dos moradores pode estar referida às consequências do
modelo de urbanização e da concepção de cidade adotados e seguidos desde
o governo do prefeito Cesar Maia em 1993. Do ponto de vista econômico,
o processo de urbanização do Rio de Janeiro está vinculado ao processo
de modernização do capitalismo (COMPANS, 2004). Historicamente,
avançando de forma global, a modernização do capitalismo tem produzido
efeitos locais nos espaços das grandes cidades e revelado o protagonismo
das cidades na ordem econômica global (HARVEY, 1994). Por outro lado,
ele tem permitido pensar o modelo específico de gestão urbana que tem
sido adotado pelos representantes do poder executivo local, o chamado
“empreendedorismo competitivo” (BORJA, CASTELLS, 1996), sendo
uma de suas consequências, além da competição interurbana, o aumento
das disparidades entre riqueza e renda e, ainda, o aumento da pobreza
urbana.
José Ribamar ouviu falar que a remoção da Vila Autódromo tinha
por motivo o fato de que a comunidade era área risco. Em tom tanto de
indignação como de ironia, ele retrucou: “Aqui é área para rico, isto aqui é
uma mina de dinheiro. Nunca recebi proposta de indenização. Prefiro ficar
aqui, mesmo sem urbanização”. O problema da ausência de urbanização
pode ser identificado na fala de Antonio Jesus – “A Cedae não está presente
na comunidade”- e na de Albertina de Souza – “Quando cheguei aqui, não
tinha gás, nem ônibus, nem iluminação”. Mas, afirmou Tereza Duzzi, que
paga Iptu: “A coleta de lixo é realizada regularmente na comunidade”. A
este respeito, disse Luiz Claudio, que reconheceu a realização dos serviços
prestados pelos Correios, pela Light, pela Telemar e pela Comlurb: “A
coleta de lixo é realizada, mas o mato que cresce nas ruas não é cortado. Na
falta de pagamento da conta, a luz é cortada, mas nem sempre”.
222
Informação obtida junto ao site https://vivaavilaautodromo.org/historia_de_luta/ , em 02
de outubro de 2016.

149
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

No entanto, o quadro precário ou negativo quanto à infraestrutura


urbana da comunidade não é percebido pelos moradores como justificativa
para a remoção da Vila Autódromo. Ao contrário, para Luiz Claudio, “a
comunidade é de fácil urbanização. Ela não tem escada; ela é plana e sem
inundação”. Ele faz referência à Rocinha, de onde se mudou para morar na
Vila Autódromo. “A Rocinha é comunidade de difícil acesso e locomoção”,
acrescentou. Segundo Luiz Claudio, “existem mais de 400 famílias e 900
casas na Vila Autódromo”. Para ele, é preciso “urbanizar para socializar
a comunidade”. Ele disse ainda não entender a remoção da comunidade
sob a alegação de que ela seria fonte de poluição e de risco: “a poluição da
Lagoa é causada pelos centros comerciais e condomínios de luxo [existentes
na região]”. Ele revelou tampouco entender a ausência de urbanização
pela Prefeitura em razão de nem todos os moradores pagarem o IPTU:
“Eu comprei o terreno onde construí minha casa; não recebo IPTU, mas
pago outros impostos quando compro diversas mercadorias”. Por outro
lado, como autor do Projeto Retidão, criado e implementado em 2003
(mas suspenso em 2008), com o objetivo principal de ocupar o tempo
ocioso de crianças e adolescentes da comunidade, através da realização
de atividades desportivas e recreativas diversas (“jogar futebol, andar de
bicicleta, jogar pingue-pongue, visitas a lugares turísticos da cidade como
Pão de Açúcar, Maracanã, Pedra Branca, festa para comemorar o dia das
crianças com torneios e festas”), Luiz Cláudio revelou nos seguintes termos
o modo como a Vila Autódromo se relaciona com seu entorno: “crianças
de condomínios vizinhos e também de outras comunidades participavam
das atividades”.
“Na República Federal [da Alemanha], encontramo-nos – esta é a
minha tese –, pelo menos desde os anos setenta, no início dessa transição.
[...] Ainda não vivemos numa sociedade de risco, mas tampouco somente em
meio a conflitos distributivos das sociedades da escassez” (BECK, 2011:
25). Presente no capítulo primeiro do livro Sociedade de Risco (“Sobre a
lógica da distribuição da riqueza e da distribuição do risco”), esta citação
permite menos pensar a realidade da transitoriedade entre dois tipos
de sociedade que caracterizaria eventualmente o Brasil segundo certos
parâmetros do que a realidade dos conflitos distributivos de bens e serviços
no País e, de modo específico, os processos de exclusão da moradia e as
dinâmicas da resistência a este fenômeno. Do ponto de vista histórico, a
Vila Autódromo se constituiu e se desenvolve como forma de resistência
aos processos de exclusão produzidos pela modernização do capitalismo.

150
Ricardo Nery Falbo

A fala de Antonio de Jesus traduz o caráter legítimo do medo


da remoção da Vila Autódromo diante dos meios utilizados pelo
representante do poder executivo local de o início dos anos 90: “O
Eduardo Paes, quando era ‘prefeitinho’, mandou caminhões, trator e
escavadeira para derrubar tudo”. Ela é confirmada pelo depoimento
de José Ribamar: “O Eduardo Paes, quando trabalhava para o Cesar
Maia, já mandou trator para tirar a gente daqui”. Mas a resposta
à atuação de tratores, caminhões e escavadeiras do ‘prefeitinho’
Eduardo Paes veio na fala de Albertina de Souza: “Fizemos barreira”.
Esta fala remete ao modo como os moradores da comunidade Vila
Autódromo reagiram à atuação da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Ele pode ser pensado segundo a concepção de “repertórios de ação
coletiva” de Charles Tilly (1995): “(...) eles designam não atuações
individuais, e sim meios de interação entre pares de grandes conjuntos
de atores” (p.27). A ideia de “barreira” pensar permite pensar que “as
pessoas num dado tempo e lugar aprendem a executar um número
limitado de rotinas de ação coletiva alternativas, adaptando cada uma
a circunstâncias imediatas e às reações de antagonistas, autoridades,
aliados, observadores, objetos da ação, e outras pessoas de alguma
maneira envolvidas na luta (Tilly, 1995: 27). Por outro lado, o conflito
entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e a comunidade Vila Autódromo
permite pensar, tal como Lojkine (1981) já havia afirmado ao tratar
da relação entre o papel das políticas de Estado e os processos de
produção da segregação urbana, que a urbanização é um componente-
chave e um momento de análise do poder público, e não um campo
apenas de aplicação de políticas públicas.

Conclusão
A Vila Autódromo é comunidade constituída pela diversidade. Esta
é a primeira conclusão deste trabalho. Esta diversidade diz respeito não
apenas a seus moradores e suas trajetórias de vida, segundo seus papéis
sociais e suas ambições e interesses individuais ou coletivos. Ela está referida
também aos diferentes usos dos espaços e das construções que fazem os
moradores, bem como ao modo como se constituem e se consolidam as
relações de cooperação e de amizade, de trabalho e de família.
A Vila Autódromo é comunidade de tipo híbrido. Esta é outra
conclusão deste trabalho. Ela reúne diversas características que

151
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

autorizariam a definir tipos distintos e diversos de comunidade. Ela pode


ser classificada segundo a topografia e a arquitetura das casas, de acordo
com sua inscrição social na cidade e suas relações com o poder público
local e ainda em função do processo de sua produção comunitária e de
sua atuação política através da sua luta histórica coletiva pelo direito à
moradia e contra a remoção da comunidade. Desta forma, a realidade
da diversidade da Vila Autódromo escapa aos esquemas classificatórios
tradicionais de tipo-ideal, cujos limites são revelados pela diversidade
que a constitui.
A Vila Autódromo é comunidade integrada à cidade. Esta é a
terceira conclusão deste trabalho. Ela está na cidade e dela faz parte. Ela
não é absolutamente contrária à urbanização. Ela almeja e espera até
mesmo ser beneficiada pelas mudanças que atingem a cidade como um
todo através da realização de obras públicas. Seu processo de reprodução
é apenas relativamente autônomo em relação ao restante da cidade. Ele
diz respeito à manutenção da comunidade a despeito da urbanização
da cidade. É apenas contra a urbanização excludente que se insurge a
comunidade. “Fazer barreira” a toda tentativa de remoção constitui para
a Vila Autódromo a ação coletiva que visa à preservação de sua vida em
comunidade.
A Vila Autódromo é comunidade que assume a forma do protótipo
da realização do nível micro da vida social caracterizada pela solidariedade
e pela desalienação na produção e manutenção dos processos sociais
fundamentais à reprodução da força de trabalho das classes populares.
Esta é a última conclusão deste trabalho. Sem que esta conclusão atribua
à comunidade Vila Autódromo a condição de “processo clássico” capaz
de explicar, à semelhança de um paradigma, os processos sociais de
luta pelo direito à moradia popular no País, ela traduz a existência de
elementos políticos e sociais permanentes e invariáveis na constituição e
desenvolvimento históricos da referida comunidade.
Estas conclusões – de natureza estruturante – permitem definir duas
hipóteses de investigação quanto à configuração histórica e social da Vila
Autódromo. Primeira: a Vila Autódromo constitui um problema social.
Segunda: a Vila Autódromo constitui um lugar de emancipação. Assim
formuladas, estas hipóteses definem percepções que constituem esta
comunidade como problema de fronteira entre processos sociais tanto de
manutenção como de transformação do espaço urbano capitalista.

152
Ricardo Nery Falbo

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153
A Comunidade Vila Autódromo na fala de seus moradores: um relato atípico de fatos, ...

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TÖNNIES, Ferdinand. Community and Society. Dover Publications, Inc: Mineola,
New York, 2002

154
“Memória não se remove”: a luta dos
moradores da Vila Autódromo para
continuar (re)existindo
Alexandre Magalhães223
Diana Bogado224

Introdução
A cidade do Rio de Janeiro vem passando por mudanças consideráveis
nos últimos anos. Tais “transformações”, assim como classificado pelo
discurso oficial, vêm implicando alterações significativas nos usos e fluxos
dos espaços e lugares da cidade. Há muitas décadas não se observavam
intervenções de tal magnitude. Seria possível afirmar que, na dimensão
em que ocorrem, apenas é comparável às reformas urbanas empreendidas
pelo prefeito Pereira Passos no inicio do século XX. Não à toa, o atual
prefeito, Eduardo Paes, costuma reivindicar esta herança para caracterizar
seu governo. Neste compasso, a conjuntura específica atual permitiria a
configuração das condições de possibilidade para retomada de uma ação
estatal que se considerava, até então, superada politicamente: a remoção
de favelas225.
Esta conjuntura favorável às remoções contaria com a contribuição
do programa federal de habitação “Minha Casa Minha Vida”226. Este
223
Alexandre Magalhães é mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro (IUPERJ) e doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos
(IESP). Atualmente é pós-doutorando em Antropologia no Museu Nacional/UFRJ
224
Diana Bogado é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense,
doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade de Sevilha, Espanha e é professora
da Universidade Anhanguera
225
Segundo a própria prefeitura, entre 2009 e o inicio de 2014, 20,3 mil famílias foram
removidas. Dessas, 9,3 mil estão em imóveis do Minha Casa, Minha Vida, 5 mil recebem
aluguel social e 6 mil foram indenizadas. Cf. “Mais de 20 mil famílias foram removidas nos
últimos quatro anos no Rio”, Agência Brasil, 16 maio 2014. Sobre a retomada da política de
remoções, ver Magalhães (2013).
226
Programa lançado em 2009, inicialmente como resposta do governo federal aos efeitos locais da
“Memória não se remove”: a luta dos moradores da Vila Autódromo para continuar (re)existindo

seria largamente utilizado pela prefeitura do Rio de Janeiro para levar a


cabo as propostas de “desadensamento” e “reassentamento”, articulando-
se de maneira decisiva às intervenções em curso no município em
relação às favelas no que se refere à possibilidade de reincorporação da
via da erradicação como forma de o Estado atuar nestes territórios. Neste
compasso, a administração municipal aumentaria o escopo e alteraria
consideravelmente a natureza das intervenções de seu programa de
urbanização, agora com o programa Morar Carioca, que elencaria um
conjunto de 123 favelas (aproximadamente 13 mil famílias) que deveriam
ser completamente removidas até o final de 2012, objetivo que havia sido
definido no final de 2009, embora este número viesse a se alterar com o
levantamento feito após as “chuvas de abril”, que apontaria um número
perto de 18 mil famílias a serem realocadas.
Em outro nível, seria possível situar as remoções de favelas no contexto
da proliferação de dispositivos de exceção que alteraram consideravelmente
os parâmetros a partir dos quais se estabeleciam as relações entre o Estado
e suas margens no Brasil. Nesse sentido, houve um alargamento, nos
últimos anos, de mecanismos de controle e administração das populações
em detrimento da política e seus protocolos de negociação, discussão
e participação. No caso do Rio de Janeiro (mas é possível afirmar, sem
incorrer em erro, no Brasil como um todo), simultaneamente às remoções,
atualizam-se outros tantos mecanismos de controle populacional, como é
o caso das Unidades de Polícia Pacificadora227 e a internação compulsória
de usuários de drogas em situação de rua.
crise econômica federal, cujo objetivo era construir 1 milhão de novas moradias, embora esta meta
nunca tenha sido alcançada. Para mais informações sobre o impacto desta política, especialmente
nos processos de segregação sócio-espacial nas cidades brasileiras, ver: Cardoso, Adauto Lúcio et
alli (2010). Além disso, em entrevista concedida aos pesquisadores Adauto Lucio Cardoso, Irene
de Queiroz e Mello e Samuel Thomas Jaenisch, do Observatório das Metrópoles, a gerente de
trabalho social do referido programa na Secretaria Municipal de Habitação (SMH) afirmou que
entre 2009 e 2012 foram inaugurados 49 conjuntos habitacionais, sendo que 36 deles foram
utilizados para reassentamentos. Corrobora a definição dos autores: “esses dados indicam que
a Prefeitura do Rio de Janeiro tem usado massivamente o PMCMV para o deslocamento de
famílias removidas de forma involuntária de seus locais originais de moradia”.
227
Ação do governo do estado do Rio de Janeiro implementada a partir de 2008. Consiste
basicamente na ocupação policial de determinadas favelas cuja principal justificativa seria
acabar com o controle exercido pelos grupos de traficantes. Entretanto, tem implicando em
um controle policialesco das condutas e da vida política e cultural local, renovando, desta
forma, o quadro das violências historicamente constatadas da polícia nestas localidades.
Um exemplo desta situação pode ser observado no seguinte sítio da internet: http://
www.youtube.com/watch?v=6QJcXjOVtas&list=UU7G7saR0vFSMh-SdEyF3Utg (Jovem é
eletrocutado por PMs e população se levanta contra a UPP).

156
Alexandre Magalhães e Diana Bogado

Além disso, assim como se verificam em outras regiões do país, os


grandes empreendimentos econômicos, tratados como fundamentais
ao atual modelo de desenvolvimento (ao menos até o momento de sua
débâcle recente), ocorrem ao passo de profundas violações de direitos
humanos, implicando em deslocamentos populacionais sem igual na
história recente do país. Basta ver os casos das hidrelétricas e seus impactos
sobre as populações ribeirinhas e as indígenas. Observe-se também os
empreendimentos ligados à industria química, petroquímica e de minério
(entre outras) que, além de provocarem consideráveis impactos (todos
negativos) no meio-ambiente, têm levado à expulsão de populações locais
e/ou originárias.
As formas de intervenção urbana da atualidade, que têm o
turismo e o consumo como focos principais, direcionadas a atender os
interesses do mercado internacional, não alteram somente o aspecto
físico dos lugares, mas também o social e o simbólico. Concentram-se,
principalmente, na execução de projetos pontuais de revitalização de
áreas consideradas “degradadas”, pensadas para funcionar como alavanca
de transformação de demais áreas da cidade. Os novos espaços criados
por meio de Grandes Projetos Urbanos (GPUs), ou megaprojetos são
imaginados para induzir um padrão determinado de comportamento
social.
Viabilizados por coalizões entre o mercado e a administração
pública, no bojo da globalização da economia, Baltmore, Boston, Nova
York, Barcelona, Buenos Aires, Londres, Rio de Janeiro, entre outros,
são exemplos deste modelo que se multiplica pelo mundo e constroem
espaços fragmentados na cidade neoliberal. Tais espaços desconectados
dos modos de produção do entorno, destituídos de caráter “público”,
desencadeadores de processos remocionistas e gentrificadores, com viés
inconstitucional, acarretam inúmeras violações antes, durante e após sua
execução, principalmente no tocante aos direitos de moradia, conforme
descrito no informe da Relatoria Especial da ONU228 sobre o Rio de
Janeiro.
228
O informe elaborado pela Relatora Especial em exercício na ocasião Raquel Rolnik trata
do direito à moradia adequada, mas inclui questões sobre os efeitos positivos e negativos das
transformações urbanas, marco de direitos humanos aplicáveis aos megaeventos, procedimentos
e regulamentações dos megaeventos, licitação de obras, e recomendações para os Estados e os
organismos responsáveis pelos eventos o COI e a FIFA.

157
“Memória não se remove”: a luta dos moradores da Vila Autódromo para continuar (re)existindo

Importante ressaltar que no contexto global de adequação das cidades


às necessidades de reprodução do capital – na atualidade o imobiliário229 –
os megaeventos apresentam-se como uma ação governamental catalisadora
para viabilizar acordos comerciais em tempo recorde e de modo
discricionário230 e estabelecem-se por uma espécie de “estado de exceção
contínuo” (Agamben, 2005). Não à toa, à escusa da Copa do Mundo e das
Olimpíadas 2016, efetivaram-se as duas Parcerias Público-Privadas, PPP´s,
mais importantes do cenário urbano nacional, Porto Maravilha e Parque
Olímpico.
Destacam-se nestas duas negociações; além das alterações na
legislação urbana no que se refere às áreas abarcadas pelas mesmas, e além
dos procedimentos suspeitos dos processos licitatórios, tanto no que se
refere aos concorrentes, quanto às respectivas contrapartidas estatais e
privadas231; os prazos recordes dos negócios, a inexistência de estudos
de impactos (ambientais, de vizinhança...) exigidos pelo Plano Diretor
e a participação de instituições internacionais tanto na concepção,
quanto na implementação dos projetos. Consolidando, desta forma, um
cenário específico e novo das administrações locais, com nova estrutura,
composta por novos atores hegemônicos em articulação com atores
antigos incumbidos de operacionalizar as gestões municipais, agora
mundializadas.
Portanto, os megaeventos possibilitam a entrada de atores mundiais em
esferas locais e viabilizam interesses dominantes do mercado internacional
na condução das gestões das cidades. A versão espetacular dos megaeventos,
no século XXI, marca a convergência entre a produção do espetáculo e a
produção da cidade (OLIVEIRA, 2016). No Rio de Janeiro, e em todo o
mundo, a realização dos megaeventos foram responsáveis por desencadear
229
As principais reformas (e obras) urbanas realizadas na cidade do Rio de Janeiro, ao longo
da história, relacionaram-se com os interesses capitalistas, durante o século XIX ligadas ao
capital industrial, e do século XX em diante ao mercado imobiliário, sempre viabilizados
pelo apoio estatal. Ou seja, as alianças estabelecidas entre setores públicos e o mercado são
decisivas para a realização das principais obras urbanas realizadas na cidade, fato que explica a
conjuntura desigual especializada no território da cidade, mas que pela proposta dada não cabe
aprofundamento neste artigo.
230
A intervenção no território da forma como é feita, no contexto de realização dos megaeventos
esportivos, caracteriza-se pelo autoritarismo e pela reprodução da exclusão, onde a tomada
de decisões ocorre sem consulta popular e a decisão por projetos acontece sem informações
adequadas e completas à população.
231
Demonstrando o grande benefício do setor privado nos acordos, ultrapassando, inclusive,
as esferas da ética pública, conforme o caso do Parque Olímpico. Para maior aprofundamento
ver MEDEIROS (2016).

158
Alexandre Magalhães e Diana Bogado

processos excludentes, ressaltando as remoções de favelas e de outras áreas


populares. No caso da Vila Autódromo, a partir da realização dos Jogos
Pan-Americanos de 2007, as pressões tornaram-se consideravelmente
maiores, mas foi às vésperas da Copa do Mundo 2014 que as remoções
efetivaram-se de forma intensa, e, posteriormente, de maneira decisiva, na
preparação das Olimpíadas 2016.
No caso das remoções realizadas no Rio de Janeiro, impera toda
sorte de dispositivos de exceção. Entre os inúmeros mecanismos
mobilizados pelos agentes públicos para lidar com as pessoas nestas
situações de erradicação, destacam-se as práticas de pressões diárias, tais
como aquelas feitas por estes agentes quando dizem aos moradores: “ou
você aceita a ´proposta` ou vai ficar sem nada”, “se não aceitar, vai para
a rua”, “não adianta chamar ninguém para ajudar, a gente virá derrubar
de qualquer maneira”; há um imenso esforço de fazer com que os
próprios moradores entrem em conflito entre si, através da manipulação
da informação sobre a situação local, limitando, em alguns casos, sua
articulação contra o despejo; a emissão de autos de interdição (alegando
risco) sem especificação e exigindo saída imediata, sem alternativa;
a falta de identificação, por parte dos moradores, dos agentes com os
quais são obrigados a lidar nestas situações; espalhar, a partir de contatos
individualizados, que a prefeitura conseguiu liminares e que a qualquer
momento pode ocorrer a remoção, o que leva a um estado de constante
ansiedade; para evitar resistências, agentes do Estado afirmam que irão
resolver a situação particular de cada um, solução esta que nunca chega,
postergando o resolução ao máximo, levando ao extremo a agonia dos
moradores; falta de acesso aos projetos a partir dos quais as remoções
são justificadas; demolições sem compensação financeira; a destruição de
casas geminadas como forma de pressão (haja vista que o morador ao lado
fica apreensivo quanto ao que pode lhe acontecer com a desestabilização
da casa vizinha); cortar ou limitar o acesso à serviços públicos, como
água e eletricidade (compreendidas pelos moradores como uma forma de
pressão); desqualificação moral de quem critica a situação.
Os exemplos destas práticas seriam muitos. Elas se renovam e se
atualizam a partir de cada nova situação de despejo. Podemos compreendê-
las como se caracterizando por uma dinâmica que as localizam entre o
formal e o informal, entre a lei e a sua exceção. Neste sentido, não poderiam
ser compreendidas apenas como desrespeitando as leis vigentes, mas como
que as contornando a cada situação específica.

159
“Memória não se remove”: a luta dos moradores da Vila Autódromo para continuar (re)existindo

Sendo assim, estas práticas estariam a serviço da consolidação do


controle estatal sobre estas populações e, no caso do Rio de Janeiro,
alterando não somente a circulação e localização destas no espaço
da cidade, mas também incrementando a acumulação de capital
imobiliário. Se estas situações, por um lado, podem nos esclarecer
os pontos de incidência dos mecanismos de poder, sua construção
e reconstrução cotidiana, por outro, também nos apresentam a
possibilidade de verificar como se elaboram diversificadas estratégias de
resistência à sua efetivação.

A construção do Museu das Remoções


A Vila Autódromo, de 1993 a 2016, resistiu às inúmeras pressões
por parte da administração pública que, durante este período, e a partir
da mobilização de diferentes justificativas, buscou remover a totalidade de
seus habitantes. A realização das Olimpíadas intensificou, e literalmente
efetivou, o estrangulamento da localidade, que à medida que tinha suas
casas subtraídas era cercada pelos tapumes do Parque Olímpico, tendo
seu diâmetro reduzido gradativamente com o avanço das obras e com as
demolições das casas. Entretanto, as formas de resistência dos movimentos
sociais foram diversificadas232, na tentativa de denunciar para a população
da cidade, do país e do mundo as violências e violações do direito à moradia,
do à informação e de ir e vir cometidas contra os moradores.
Após as variadas formas de destruição intentadas da localidade e
da tentativa de reconstrução arbitrária de uma nova espacialidade pelo
aparato estatal, os moradores se organizaram e, em mais uma experiência
de resistência, buscaram trazer para seu local de moradia as marcas dos
variados tempos vividos pelos moradores da Vila, que formaram sua história
coletiva e a subjetividade de cada um.
Neste momento já eram comuns a realização de diversas formas de
resistência e luta contra a remoção: o festival “Ocupa”, as campanhas
difundidas na internet, como #Urbanizajá e a AssociaçãoSouEu, além
da articulação dos moradores com universidades, como UFF, UFRJ e
Anhanguera, através da elaboração de projetos e intervenções arquitetônicas
e urbanísticas participativas. Uma das intervenções urbanísticas executadas
foi a requalificação do parquinho, realizada através da disciplina de Projeto
Sobre a diversidade das estratégias de resistência dos novos movimentos sociais, ver
232

BOGADO (2011).

160
Alexandre Magalhães e Diana Bogado

de Extensão a Comunidade do curso de Arquitetura e Urbanismo da


Universidade Anhanguera233.
Entretanto, as remoções das casas prosseguiam234, incluindo a
remoção do parquinho requalificado, da Associação de Moradores da Vila
Autódromo e da casa de uma das principais lideranças locais. Surge, então,
a partir da destruição da espacialidade e das referências socioculturais
locais, a ideia de construção de um museu participativo que fosse capaz de
reunir fragmentos desta memória e de construir uma narrativa diferente da
retórica oficial de urbanização que apresentava-se arbitrariamente; de um
museu que fosse capaz de refazer laços e reconectar histórias comuns das
vidas removidas.
O Museu das Remoções surge a partir de um anseio de comunicar
a realidade da vida comum existente antes do processo de apagamento
produzido pela remoção, da necessidade coletiva de apoiadores e moradores
de registrar as práticas sociais da Vila Autódromo e reconstruir a relação
entre o espaço e a memória da comunidade.
Sua ideia se originou em uma das muitas mobilizações contra as
remoções realizadas na comunidade em 2016. Havia um sentimento
compartilhado coletivamente de que seria necessário que todos estes
acontecimentos não se perdessem na poeira dos escombros e do tempo, tal
como gostariam os gestores da cidade.
Seu objetivo, portanto, é registrar a história de violências, mas
também de lutas, que se deram neste território nos últimos anos. Tal
experiência surge da necessidade de enfrentar o duplo processo de
apagamento buscado pelas práticas estatais: tanto do espaço físico
quanto das redes de relações (afetivas, morais, políticas e econômicas)
que formaram historicamente a comunidade. Por fim, é possível
afirmar que este museu é mais um ato de resistência dos moradores
233
A requalificação do parquinho da Vila Autódromo foi produto da disciplina de Projeto de
extensão a comunidade do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Anhanguera,
orientada pela arquiteta e urbanista Diana Bogado, professora da disciplina em questão e co-
autora deste artigo. Após a requalificação, o parquinho tornou-se símbolo de resistência sediando
importantes eventos e incentivando a requalificação de outros espaços na comunidade, como
as ocorridas no espaço “Ocupa” que também tiveram a participação dos alunos de arquitetura
e urbanismo da Universidade Anhanguera. O parquinho requalificado foi local de realização de
vários eventos como a apresentação do Plano Popular elaborado pela UFF, UFRJ e comunidade,
o lançamento do livro da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, o debate com o geógrafo David
Harvey, entre outros.
234
Os moradores ou foram transferidos para o conjunto habitacional Parque Carioca, construído
através do Programa Minha Casa Minha Vida, ou receberam indenizações.

161
“Memória não se remove”: a luta dos moradores da Vila Autódromo para continuar (re)existindo

da Vila, e também de outras favelas, contra um modelo de gestão da


cidade que reproduz e amplia os processos históricos de segregação
socioespacial.
A amplitude da destruição provocada pela política de remoções
não se limita ao espaço da cidade destruída ou ao rompimento dos
laços comunitários existentes no lugar. A aniquilação do lugar, o
desaparecimento de suas estruturas espaciais e a dispersão populacional
da localidade removida carrega consigo a desapropriação territorial, a
desintegração social e o apagamento da história local, uma vez que a
construção do lugar é dada pelas relações das pessoas entre si e delas com
o espaço ao longo da história. Desta forma, o Museu das Remoções se
apresenta como um esforço coletivo de preservação da memória coletiva
em contraposição à dinâmica de esquecimento empreendida pelas
práticas das remoções.
O ato de trazer à tona a prática social da favela removida, contida
nos relatos e objetos expostos no museu, reconstrói também a relação
entre o espaço e a memória do lugar que se desintegrou gradativamente
com o avanço das demolições das casas, levadas a cabo pela condução da
política urbana fundamentada no “processo global de des-civilização”235
(GARNIER, 2014). O Museu das Remoções, em suas funções de
preservação, comunicação e pesquisa/investigação pretende transmitir
a prática social anterior às remoções e contrapor-se à dinâmica de
esquecimento e apagamento praticada pelas remoções.
A dinâmica de resgate de memória articulou-se à prática pedagógica
através das atividades acadêmicas que já ocorriam na Vila Autódromo.
A construção coletiva do museu ocorreu de forma participativa, com
moradores, apoiadores e alunos da disciplina Projeto de Extensão à
Comunidade da graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Anhanguera236.
As atividades de construção do Museu das Remoções ocorreram em
três etapas:
235
Expressão de Garnier (2014). GARNIER, J.P. Marsella 2013: el urbanismo como arma de
destrucción masiva. GeocritiQ. 10 de enero de 2014, nº 24.
236
A mesma disciplina que havia realizado a requalificação do parquinho no semestre anterior.
Assim como na experiência do parquinho, as escolhas que determinaram a construção do Museu
das Remoções foram consensuadas desde o tema do projeto. Entendemos que a participação
é uma ferramenta de empoderamento que deve ser praticada conscientemente, tanto pelos
sujeitos comunitários quanto pelos futuros planejadores, os quais devem apropriar-se do direito
de participar da vida dos lugares, como parte do processo de concepção projetual, que deve ser
estabelecido no bojo da reprodução socioespacial.

162
Alexandre Magalhães e Diana Bogado

1) Na primeira, idealizou-se o desenho da proposta do Museu, com


reuniões entre apoiadores e moradores para concepção da ideia do Museu
das Remoções;
2) Na segunda etapa, desenvolveram-se dinâmicas de diálogo e oficinas
de resgate de memória, realizadas por alunos de arquitetura, ex-moradores
e vizinhos, conduzidas por apoiadores. As dinâmicas pretendiam trazer a
tona o cotidiano e a história da comunidade que existia antes do processo
de remoção.
Também foi realizada oficina de conhecimento do lugar, com devir
pela localidade – abrangendo a área atual e parte da área removida e
incorporada ao Parque Olímpico – na qual se realizou o recolhimento de
restos de equipamentos urbanos e edificações demolidos, cujo objetivo é
que se transformem objetos a serem incorporados ao acervo do museu;
participaram desta oficina apoiadores, alunos, ex-moradores e moradores
de outras comunidades, a oficina foi conduzida pelos moradores da Vila
Autódromo.
Desta segunda etapa obtiveram-se registros orais, fotográficos,
audiovisuais, gráficos, além da elaboração de um mapa da comunidade
pelos alunos a partir dos relatos dos moradores, de suas vivências e
memória, e arrecadação de material para construção e acervo do Museu
das Remoções.
3) A terceira etapa consistiu em intervenção participativa no espaço da
Vila Autódromo com a construção do Museu das Remoções a céu aberto,
marcando o espaço dos lotes que tiveram suas edificações demolidas com
estruturas artísticas criadas a partir de reaproveitamento dos escombros e
de elementos gráficos representativos de lugares e personagens resgatados
da memória comunitária.
O Museu foi aberto oficialmente no dia 18 de maio de 2016, Dia
Internacional dos Museus, com a presença de moradores, apoiadores e
da imprensa independente. Na ocasião, o público conheceu em detalhes
as sete esculturas, “Vila de Todos os Santos”, “Penha de muitas faces”,
“Suporte dos males”, “A luz que não se apaga”, “Doce infância”, “Espaço
Ocupa e Casa da Dona Conceição”, “A Associação sou eu”. realizadas pelos
alunos.
O Museu das Remoções tem sido um instrumento fundamental dos
moradores em diferentes espaços para fazer ecoar sua história de resistência,
mas também de violência. Além dos programas e eventos realizados na
própria favela, o museu vem realizando atividades em diversas partes do

163
“Memória não se remove”: a luta dos moradores da Vila Autódromo para continuar (re)existindo

Brasil e no exterior, como rodas de leitura, intervenções artísticas, relatos


da sua experiência, intervenções no espaço público, ações em outras
comunidades e ações conjuntas com movimentos sociais na luta pelo
direito à cidade, como foi o caso da Jornada de Lutas organizadas pelo
Comitê Popular Copa e Olimpíada em agosto de 2016 no Rio de Janeiro.
O museu se apresenta como um agenciamento fundamental no
enfrentamento de uma prática institucional caracterizada pelo duplo
apagamento situado no início deste texto. Busca, sobretudo, ser um
espaço (no amplo sentido do termo) onde, a partir do qual, seja possível
denunciar a política de remoção recente, além de um local em que se possa
reconstituir os laços dilacerados e a história local, através de atividades
afetivas, como contação de história, festas, gincanas e intervenções que
trazem à tona e comunicam a história da Vila Autódromo.
A perda das casas, da espacialidade do bairro, de amigos destroem
laços e referências destas pessoas. A construção do Museu das Remoções
possibilita o reencontro de elementos e a reconstituição de histórias que
foram deixadas em um passado expropriado pela destruição do lugar.
O museu não pretende apagar e nem esquecer a violência sofrida pelos
moradores, muito menos estetizar o processo de dilaceramento ocorrido
na Vila Autódromo. Ao contrário, a referida ferramenta de denúncia
pretende-se processo de combate à reprodução da violência estatal no que
diz respeito à violação do direito à moradia e da narrativa do espetáculo
erigida a despeito da dor.
Espera afirmar-se como vida ativa, com exposições de histórias de
vidas que incitam questionamentos às práticas do Estado, apresentar-se
como acolhimento aos indivíduos removidos pela Copa do Mundo 2014,
pelas Olimpíadas 2016 e pela ação dos grandes empreendimentos e eventos
em todo o mundo, como uma comunidade que vive, resiste, existe, re-
existe e permanece Vila Autódromo.

Referências bibliográficas
AGAMBEN, G. Homo Sacer. Sovereign Power and Bare Life. Stanford: University press,
2005.
BOGADO. Diana. Movimento Okupa: Resistência e autonomia na ocupação de imóveis
nas áreas urbanas centrais. Dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2011
CARDOSO, Adauto Lúcio et alli. Habitação de Interesse Social: política ou mercado?
Reflexos sobre a construção do espaço metropolitano. In: XIV Encontro da Associação

164
Alexandre Magalhães e Diana Bogado

Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Rio de


Janeiro, 2011.
CARDOSO, Adauto Lúcio; MELLO, Irene de Queiroz; e JAENISCH, Samuel Thomas.
“A implementação do Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana do
Rio de Janeiro: agentes, processos e contradições”. In: Minha casa... e a cidade? avaliação
do programa minha casa minha vida em seis estados brasileiros / organização Caio Santo
Amore, Lúcia Zanin Shimbo, Maria Beatriz Cruz Rufino. Rio de Janeiro, Letra Capital,
2015.
GARNIER, J.P. Marsella 2013: el urbanismo como arma de destrucción
masiva. GeocritiQ. 10 de enero de 2014, nº 24.
MAGALHÃES, Alexandre. Transformações no “problema favela” e reatualização
da “remoção” no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013.
MEDEIROS, Mariana. Parque Olímpico 2016: irregularidades no processo de concessão
administrativa. In: Os megaeventos e a cidade, perspectivas críticas. Rio de Janeiro:
Letra Capital, 2016.
OLIVEIRA, Nelma Gusmão de. Os megaeventos esportivos e a retórica do legado:
Uma operação contábil que se converte em discurso. In: Os megaeventos e a cidade,
perspectivas críticas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.

165
Porto Maravilha: entre a financeirização, o
biocapitalismo e a flexibilização do Direito
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa237

Introdução
Ao longo dos últimos anos, as políticas públicas implementadas
por dentro da lógica do Estado de Bem-Estar social não têm encontrado
mais lugar. Mundialmente, principalmente a partir da década de 1990,
como veremos, os novos impulsos para investimentos em quaisquer áreas,
públicas e privadas, adviriam das formas de financeirização e de garantias
que repousariam no papel central exercido pelo mercado de capitais.
Formas que cada vez mais individualizariam os investimentos e os riscos,
operacionalizando-se através de uma ótica de securitização a ser assumida
pelos sujeitos nas suas escolhas no mercado.
E, da mesma forma, as políticas públicas urbanas, de transformações
das cidades e das habitações sociais, seguem esses fluxos. Conforme
Raquel Rolnik afirma, “através da atuação dos mercados fundiários e da
regulação urbanística, a economia política da habitação implicou também
uma economia política da urbanização, reestruturando a cidade (...), com
impactos profundos no redesenho das cidades e na vida dos cidadãos”
(2015. p. 29). Formas novas de lidar com a previsão e o exercício dos
direitos, não mais a serem demandados diante do Estado providência, mas
a serem organizados através das garantias e dos mecanismos creditícios dos
mercados financeiros.
Nesse cenário, a proposta do presente artigo é entender essas
transformações mais gerais e também da economia política urbana através
de uma breve análise de um caso concreto: o projeto do Porto Maravilha. A
questão que se colocaria frente a esse desafio seria a tentativa de compreender
237
Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro –
UERJ. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. E-mail:
lftdps@gmail.com. Participante da rede Universidade Nômade. Telefones: (21) 994930767 /
(21) 998878733.
Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a flexibilização do Direito

como a financeirização atravessa o empreendimento e a gestão dos sujeitos


no território. Deve-se ressaltar que já existem análises que se propuseram
explorar o papel das finanças, mas talvez ainda seja necessário aprofundar
um pouco mais na direção das tendências do capitalismo contemporâneo
por dentro da chave do biocapitalismo. As análises já realizadas, muito
ricas e estruturadas, baseiam-se principalmente no papel do Estado
que, contrariamente à propaganda difusa acerca do neoliberalismo, não
possuiria nada de mínimo, e que os recursos nos projetos urbanos estariam
vindo em última instância do dinheiro público. Também, toda a faceta
autoritária/antidemocrática do projeto, não se voltando para quaisquer
preocupações com a população da região, que, combinada com as finanças,
mercantilizariam a cidade com vistas a inserir a cidade em um movimento
global de valorização.
Contudo, apesar de todos os acertos dessas análises, há certos pontos
que poderiam ser aclarados se partíssemos de outros pressupostos. Essa
mudança de perspectiva, na mesma medida em que permitiriam enxergar
os mesmos processos abertos e exploratórios do capital, aprofundariam
em adição as novas particularidades que acabam sendo deixadas de lado
quando não são atravessadas por uma posição teórica que as revele. Nesse
sentido, proporemos entender a financeirização enquanto processo que
se insere na dinâmica daquilo que Negri e Hardt, bem como Andrea
Fumagalli, Christian Marazzi, Sandro Mezzadra, entre outros, entendem
como biocapitalismo, como a captura e comando atual sobre uma nova
composição da produção e do trabalho.

Estrutura jurídico-política do projeto do Porto


Maravilha
Menos de um mês após o anúncio da vitória do Rio de Janeiro
para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, foram enviados para a Câmara
Municipal três projetos de lei contendo a previsão da realização da maior
Operação Urbana Consorciada (OUC) do Brasil (OLIVEIRA. 2012,
p. 239). Esses projetos, que foram votados em regime de urgência sob a
justificativa de atender aos compromissos da candidatura para sediar os
Jogos (Ibid. 240)238 e que resultaram nas Leis Complementares 101/09,
238
A relação dos Jogos Olímpicos com o Porto Maravilha foi fundamental para justificar a
saída do projeto do papel, mas logo foi revista como uma parte do projeto olímpico. Conforme
Álvaro Pereira afirma: “nos documentos que subsidiaram a candidatura do Rio de Janeiro para

168
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa

102/09 e LC 5.128/09, tratariam da instituição do Porto Maravilha. Um


empreendimento urbano da região central do Rio de Janeiro, em especial
da área portuária, historicamente relegada na distribuição de políticas
públicas direcionadas. Circunscrevendo uma Área de Especial Interesse
Urbanístico (AEIU), o empreendimento envolveria cinco milhões de
metros quadrados, vinculando direta ou indiretamente seis bairros do
município: Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Centro, São Cristóvão e Cidade
Nova.
A estrutura jurídica desse empreendimento estaria atrelada ao
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), principalmente quanto ao seu
instrumento da OUC. Trata-se de um instrumento que surgiu pela
primeira vez em âmbito federal com o Estatuto239, sendo o seu objetivo
principal a participação de diferentes atores em uma reelaboração espacial
e política, com “transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais
e a valorização ambiental” (art. 32, §1º do Estatuto da Cidade) de um
espaço urbano definido (AEIU). Apesar de englobar a participação virtual
de todos os atingidos na área, a sua realização seria normalmente atrelada à
constituição de parcerias público-privadas e através de processos licitatórios
(Lei 8.666/1993), com o estabelecimento de uma empresa ou consórcio a
ser responsável pelas obras e pela conservação do espaço.
Além disso, para viabilizar a realização da OUC, em termos das
necessidades quanto aos recursos a serem desprendidos, o Estatuto da
Cidade também possuiria a previsão para esse instrumento da emissão de

os Jogos Olímpicos de 2016, a região portuária não estava incluída entre as localidades que
receberiam instalações relacionadas ao evento. Num momento posterior, entretanto, o prefeito
Eduardo Paes propôs às autoridades olímpicas que se transferisse para a região portuária a
construção da vila dos árbitros e da mídia, estruturas que inicialmente seriam implantadas na
mesma área onde se concentraram as principais instalações relacionadas aos jogos, na região
da Barra da Tijuca. Com essa alteração, o prefeito buscava reforçar a associação entre os Jogos
Olímpicos e o projeto de revitalização da zona portuária. Por um lado, o Porto Maravilha
passava a figurar como parte do “legado” dos jogos para a cidade. Por outro lado, aproveitava-
se o contexto dos jogos e a obrigação assumida de construir as instalações que abrigariam os
participantes do evento para impulsionar a promoção de empreendimentos imobiliários na
região portuária” (2015. p. 249-50).
239
Contudo, o instrumento da OUC já tinha as suas discussões e as propostas de longa data.
Inclusive, é possível datar a sua previsão em alguns Planos Diretores durante a década de 1990.
Ermínia Maricato e João Ferreira mostram que havia uma variação acerca da nomenclatura,
mas o instrumento já tinha inclusive sido implementado em algumas operações na cidade
de São Paulo (2002, p. 1), como nas fracassadas Operação Urbana Anhangabaú e Operação
Urbana Centro, ou nas que tiveram sucesso, como a da Faria Lima (OUCFL) e na da Água
Espraiada (OUCAE). Para mais sobre esses casos em São Paulo, conferir: PEREIRA (2015); e,
MARICATO, FERREIRA (2002).

169
Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a flexibilização do Direito

Certificados de Potencial Adicional Construtivo (CEPACs). Eles seriam


direitos de construção além da previsão na legislação urbanística que
seriam transformados em títulos financeiros a serem emitidos pelo poder
público municipal para serem comercializados na bolsa de valores. Um
mecanismo que funciona com o intuito de permitir uma flexibilização
das exigências construtivas da legislação urbana com a contrapartida de
capitalizar e possibilitar a realização do empreendimento sem o dispêndio
direto de verbas públicas (art. 34 do Estatuto da Cidade). É nesse sentido
que os CEPACs são reconhecidos como “terrenos virtuais”, comercializados
enquanto direito em potencial que seriam transformados em títulos.
É dessa forma que Pereira identifica e aprofunda:

O potencial construtivo é regulado a partir do estabelecimento de


coeficientes de aproveitamento básico e máximo. Permite-se edificar
até o limite do potencial construtivo básico, definido em função do
produto entre a área do terreno e o coeficiente de aproveitamento básico,
gratuitamente. Para se edificar além deste limite, exige-se o pagamento de
uma contrapartida pela outorga de direitos construtivos adicionais, o que é
feito por meio da aquisição de CEPACs (...). O proponente de um projeto
paga pelos direitos construtivos adicionais na proporção da diferença entre
a área edificada prevista e o potencial construtivo básico do terreno. Os
recursos auferidos são usados para custear as intervenções previstas na
operação urbana, cujas diretrizes gerais são estabelecidas na lei que a cria.
Essa norma define também fatores como o tempo de duração da operação
urbana, as regras de governança, a quantidade de CEPACs que podem
ser emitidos, o estoque total de potencial adicional de construção, as
fórmulas de cálculo para a conversão de CEPACs em direitos construtivos,
a distribuição do estoque de potencial adicional em diferentes segmentos
da área de abrangência da operação urbana, entre outros aspectos. (2015,
p. 137-8)

Quanto ao caso específico na implementação do Porto Maravilha,


empreendimento em curso até 2026, instituiu-se a Companhia de
Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro
(CDURP). Seria uma companhia de economia mista, criada através da
LC 102/2009, e que seria responsável por coordenar o empreendimento
urbano240. Desde a sua criação, ela é coordenada pelo município e acabou
se tornando responsável por assumir também todos os serviços públicos
240
De acordo com o art. 3º, §2º da LC 102/2009, a CDURP também poderia abrir o capital
a qualquer momento, transformando-se assim em mais um campo aberto de valorização no
mercado de capitais.

170
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa

municipais na região (art. 1º, PU, LC 102/2009), como iluminação, coleta


de resíduos, paisagismo etc., durante o período da duração do projeto
(Dec. 32.576/2010).
Contudo, como parte da inovação quanto ao instrumento da OUC
do Porto Maravilha, não somente a previsão de realização da obra em sua
integralidade, mas os serviços públicos e a manutenção urbana foram também
delegados ao serviço privado, não restando mais sob a responsabilidade
da CDURP, que seria indiretamente controlada pelo município. Na
modalidade de concessão administrativa, as responsabilidades quanto
ao empreendimento foram transferidas para a vencedora da licitação,
a Consórcio Porto Novo S.A., um consórcio formado pelas empresas
Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia. A particularidade dessa concessão
reside justamente nas novas facetas dos serviços municipais delegados, bem
como na integralidade das obras de grande porte241, desde a construção
de museus, a trechos de túneis, rede cicloviária, destruição de viadutos
(Perimetral) etc. Por isso mesmo, a integralidade da remuneração devida
ao consórcio pelo período das obras ficou previsto em quase R$ 8 bilhões,
ao menos nos valores calculados em 2010.
No sentido da capitalização para a realização do projeto, optou-se
pela comercialização de CEPACs, que foram lançados em 2011 em lote
único, diferentemente das outras OUC já implementadas, com o custo
de aporte previsto de R$ 3,5 bilhões. O lote, que foi constituído por um
pouco mais de 6,4 milhões de CEPACs, foi arrematado pelo Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)242. A justificativa para a aquisição
por parte do FGTS se deu no sentido de afirmar a viabilidade e o potencial
de retorno do projeto, na medida em que os valores dos títulos ainda
viriam a ser revendidos na bolsa de valores, ou seja, no mercado secundário,
podendo retornar com juros sobre cada ponto extraído da valorização do
empreendimento.
Não obstante, para garantir a viabilidade do empreendimento, havia
também a necessidade de comercializar os terrenos públicos existentes na
241
Não mais o parcelamento da construção e das licitações via obras parciais, conforme foi feito
nas outras OUC em São Paulo (PEREIRA. 2015, p. 192).
242
O FGTS adquiriu os CEPACs através da criação de um Fundo de Investimento Imobiliário
(FII). A utilização desse instrumento por parte do FGTS nunca havia sido feita, o que exigiu
mudanças nos seus termos regulatórios para a sua permissão. O Conselho Curador (CCFGTS),
através de mudanças sucessivas por Resoluções (nº 578/08, 591/09 e 681/13), permitiu esse
mecanismo e desde então abriu o horizonte para esses tipos de investimentos urbanos mais
especulativos e menos sociais.

171
Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a flexibilização do Direito

região. Compreendendo até 70% da área do projeto (PEREIRA. 2015, p.


215), esses terrenos pertenciam a entes federais, estaduais e municipais.
Assim, houve a realização de diferentes leilões para a aquisição desses por
parte da CDURP. A importância desse leilão residia no risco dos estoques
de CEPACs ficarem encalhados pela falta dos terrenos para serem aplicados.
Dessa forma, construiu-se uma transposição e aquisição pela CDURP dos
terrenos, que os adquiriu a preços mais baixos que os de mercado243, se
analisados a partir do investimento em potencial do Porto Maravilha,
assumindo e ficando responsável pela sua futura venda. Essa revenda
futura somada ao aporte dos valores auferidos pelas CEPACs resultariam
no retorno e a amortização dos valores globais do empreendimento – que,
como vimos, na avaliação realizada em 2010, chegavam a cerca de R$ 8
bilhões.
Por fim, além das vantagens concedidas na aquisição dos CEPACs
pelo FGTS e da venda de terrenos públicos por fora dos preços de mercado,
instituiu-se também uma grande flexibilização tributária. Como mais uma
forma de incentivo para a região e para atrair os empreendimentos urbanos
nacionais e internacionais para o espaço, o poder público municipal
criou um pacote de isenção de seus tributos (ITBI, IPTU e ISS) para
os empreendimentos lançados na região nos primeiros anos da operação
urbana (Lei Municipal n° 5.128/ 2009).
Portanto, analisando brevemente o projeto do Porto Maravilha, pode-
se perceber a junção dos instrumentos jurídicos, políticos e financeiros
para o projeto de revitalização de uma área que por décadas não recebeu
atenção dos investimentos do poder público. Articula-se uma ampla
mobilização dos mecanismos do Estado e seus recursos para viabilizar
o empreendimento de revitalização da área, ao mesmo tempo em que
garante todos os subsídios para o mercado, minimizando os custos e riscos,
socializando os possíveis prejuízos da falência do projeto.

Finanças e biocapitalismo
A partir do quadro jurídico-político do Porto Maravilha, a questão que
ainda remanesceria aberta no seu horizonte seria justamente a identificação
do papel das finanças. Uma questão que para ser respondida demandaria
243
Conforme Pereira aponta, a possibilidade da comercialização desses terrenos a preços baixos
estava atrelada ao contexto favorável de alinhamento entre as três esferas de governo: as coalizões
políticas entre a presidência, o governo estadual e a prefeitura (2015, p. 214).

172
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa

a compreensão das razões para o atravessamento entre a gestão do


empreendimento e do território e a sua inserção no fluxo global de capitais
na figura dos CEPACs. E, uma questão que não poderia simplesmente se
restringir a atribuir um papel fictício às finanças. Então, para começarmos
a destrinchar os caminhos da resposta, talvez seja interessante resgatar
qual seria o papel das finanças por dentro do capitalismo contemporâneo,
reconhecendo-o no seu movimento de captura da vida (bio).
Nessas trilhas, e reconhecendo os aportes de Christian Marazzi,
podemos iniciar com a identificação de que, apesar da existência e do
papel das finanças no capitalismo não ser um fenômeno recente244, a
sua centralidade e seu grau de impacto no mundo atual é um dos novos
fatores do capitalismo. Como Marazzi mostra, a atual particularidade desse
mercado reside na sua ampla difusão e extensão sobre a vida cotidiana,
“espalhando-se ao longo de todo o ciclo econômico” (2011. p. 35). Os
seus circuitos se fariam presentes desde os mecanismos do comércio de
capitais na bolsa de valores, até os de crédito dos cartões nas “compras
no supermercado” e das relações creditícias na “indústria automobilística”
(Ibid., p. 36).
Destrinchando as razões históricas e concretas para tal difusão das
finanças, Marazzi aponta primeiramente o fenômeno da multiplicação
dos seus atores e investidores. Desde certas transformações sedimentadas
ao longo das décadas de 1980 e 1990, consolidou-se um aumento no
número de fontes, adensando o montante de crédito a ser investido na
financeirização. Insere-se nessa crescente fatores como: os lucros industriais
não reinvestidos mais em capital material e salários, na medida da “queda do
lucro industrial em torno de 50% entre os anos sessenta e setenta” (Ibid., p.
31); os lucros dos juros dos empréstimos aos países em desenvolvimento; os
ganhos de capital derivados das matérias-primas; a rápida difusão do online
trading245, com o desvio das reservas privadas, das famílias e de investidores
para o mercado de capitais (Ibid., p. 37), dentre outros. Nesse sentido,
podemos identificar com Marazzi a intensificação da transferência dos
244
Sandro Mezzadra, ao perseguir os caminhos deixados por Giovanni Arrighi (O Longo Século
XX), mostra que as finanças existiam desde o surgimento e da consolidação do capitalismo,
nos séculos XIV e XV, em Florença (FUMAGALLI; MEZZADRA. 2011, p. 13). Não por
menos, Karl Marx também analisou a sua existência (Livro III de O Capital), no momento de
seus estudos acerca da externalidade do “capital portador de juros” em referência ao “capital de
comércio de dinheiro”.
245
Fenômeno de difusão da comercialização de instrumentos financeiros pela internet,
principalmente pela conexão direta das pessoas físicas por sites de corretagem com o mercado
de capitais através do pregão eletrônico.

173
Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a flexibilização do Direito

valores da economia mundial para os grandes processos de financeirização


e do mercado de capitais.
Ademais, também por dentro do processo de inclusão nas finanças
e como novidade no capitalismo, uma parte especial de atores também
foi envolvida: os trabalhadores. Na mesma direção de Marazzi, Andrea
Fumagalli aponta que, tendo iniciado de maneira “silenciosa”, esse
fenômeno de envolvimento dos trabalhadores surgiu com a “revolução
dos fundos de pensão” (2010, p. 57): a utilização das divisas acumuladas
pelos trabalhadores para investimentos nos mercados de capitais246. Essa
inclusão dos trabalhadores teria sido crucial para presente formação do
quadro central das finanças: “eliminar a separação entre capital e trabalho
implícita na relação salarial fordista, através da vinculação das poupanças
dos trabalhadores aos processos de transformação/restruturação capitalista”
(MARAZZI. 2008, p. 37). Assim, tratou-se de um grande processo de
inclusão de todos direta ou indiretamente nos mercados financeiros,
atrelando os ganhos dos trabalhadores ao futuro do mercado das bolsas e
dos diferentes investimentos financeiros.
Dentro dessa inclusão, reconhece-se também a transformação como
um todo dos salários, dos direitos sociais e aposentadorias em ativos
financeiros sob responsabilidade dos bancos, fundos de pensão e de
investimento. Nesses movimentos, o principal a ser realçado para Marazzi
e Fumagalli seria a vinculação do trabalhador como um interessado na
valorização financeira para ter acesso a sua renda e aos seus direitos. Esses
autores identificam a passagem do antigo papel securitário do Estado para
as finanças e o mercado de capitais, que individualizariam os investimentos
até então sociais e vinculariam o crescimento de todos ao seu bem-
estar. A renda social que antes era assumida pelo Estado passaria para as
finanças, que garantiriam da sua forma a distribuição e o acesso aos bens,
principalmente através do comprometimento de todos via empréstimos e
crédito. Uma expansão e distribuição caracterizada pelo endividamento247.
246
O primeiro caso da utilização dos fundos públicos que Fumagalli aponta seria o da sua
utilização durante a crise fiscal de Nova York que se instaurou na década de 1970. A saída da
crise se deu pelo comprometimento do fundo dos trabalhadores com os títulos municipais da
cidade. Para mais, conferir: FUMAGALLI. 2010, p. 56.
247
Maurizio Lazzarato nos mostra que essa faceta do endividamento foi a resultante da crise
financeira de 2008: crise dos subprimes. A lógica mascarada dessa expansão do crédito seria a
formação de uma nova figura do homo oeconomicus: homo debitor (2013). A crise que explodiu
em 2008 e que se agravou em 2010, na crise dos papéis soberanos, seria para Lazzarato
justamente o ponto de ruptura da lógica expansionista da exploração do biocapitalismo e da
governamentalidade neoliberal. Dessa forma, a figura do endividado seria a chantagem de um

174
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa

Também, por dentro dessa centralidade das finanças que passa


pela completa incorporação de todos no mercado de capitais, Marazzi
reconhece o fenômeno do “comunismo do capital” (2010). Comunismo
por ser justamente o ponto de união, de condensação entre os investidores,
no “capital financeiro, enquanto capital cotado em bolsa” (Ibid. 2008, p.
16). E, é nesse fenômeno que a financeirização se apresentaria como a
esfera pública do capital contemporâneo (Ibid. 2010, p. 58): o Estado
e os atores privados, os trabalhadores e a vida de todos se encontrariam
indistintamente diluídos no mercado de capitais. Diferentemente dos
horizontes do Estado de Bem-Estar social, da cidadania keynesiana e
do aparato social envolvido na relação salarial fordista, com as políticas
sociais e a representação política atreladas ao pacto fabril entre o capital e o
trabalho, o capitalismo passaria a orientar o seu controle e dominação com
a vinculação de todos no mercado financeiro e de capitais.
Contudo, quanto a essas razões da grande transformação no mercado
financeiro, podemos aprofundar ainda mais ao resgatar as grandes
contribuições de Antonio Negri (2009; 2015) e Michael Hardt (2005;
2009; 2014), Fumagalli (2010) e Sandro Mezzadra (2011), Giuseppe
Cocco (1999; 2009; 2015) e do próprio Marazzi (2008; 2009; 2010;
2011). Segundo esses autores, para se compreender a incorporação dos
trabalhadores e de todos sobre o regime das finanças seria preciso analisar
também uma mudança no próprio regime produtivo do capitalismo.
Uma transformação que diria respeito não somente à passagem do regime
fabril e disciplinar da sociedade fordista para a pós-fordista, da produção
flexível e de todas as mudanças na divisão social e global do trabalho, mas
principalmente das características do trabalho e da constituição do valor.
Uma transformação que passaria a desenvolver e explorar o bios, a vida
social, naquilo que esses autores apontam como biocapitalismo.
Fumagalli afirma que a transformação da produção no capitalismo
se orienta ao menos desde as crises deflagradas na década de 1970
(2010, p. 148). Crises que estariam inseridas em um espectro: desde as
objetivas, como o choque do petróleo e o fim do Bretton Woods248; até às
sistema que não conseguiria mais se sustentar sobre as mesmas bases da acumulação do bios.
Contudo, isso não quer dizer que o sistema deixe de explorar e continuar o seu controle sobre
a vida, mas apenas que o seu cenário é de uma crise permanente.
248
O Bretton Woods foi um compilado de acordos que estabeleceu o padrão ouro e a sua
paridade com o dólar, como a única moeda com lastro em relação às outras existentes no
mundo. Seria um mecanismo de “afirmação da hegemonia global dos EUA”, de “acordo de
estabilização entre os EUA e os outros países capitalistas avançados e o “estabelecimento de
uma relação imperialista dos EUA com relação aos países subdesenvolvidos” (NEGRI. 2004,

175
Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a flexibilização do Direito

subjetivas, com os diferentes movimentos sociais organizados em revolta


contra a reprodução social do capital baseada na produção fabril, como a
multiplicação das reivindicações operárias e estudantis de 1968, passando
pelas lutas feministas e dos negros, como também da antibelicista nos
EUA, no interregno das décadas de 1960 até 1980.
O biocapitalismo teria surgido por dentro desse processo de
desestabilização das grandes chaves do taylorismo na produção, do
fordismo no planejamento político, e do keynesianismo no planejamento
econômico (NEGRI. 1988, p. 205). Como Fumagalli aponta, a contestação
do regime baseado na fábrica e do seu pacto social e estatal que o sustentava
impôs um desafio ao capitalismo. A solução encontrada teria se dado
pelo deslocamento para o modelo pós-fordista: transformação na divisão
internacional do trabalho, com o processo de outsourcing da produção
– expansão e terceirização mundial da produção fabril pelo mundo,
principalmente para a Ásia e, mais atualmente, para a África; mudanças da
lógica valorativa para os fatores de externalidade das empresas e negócios;
desmantelamento do Estado de Bem-Estar, com todos os seus direitos e
garantias; decomposição e fragmentação do mercado de trabalho, com o
progressivo fim do contrato estável e dos seus direitos, em direção a uma
instabilidade por contratos em tempo parcial e através da pejotização;
e, liberalização do mercado de capitais (2010, p. 148-9). Além disso,
inicialmente dentro dos grandes centros, mas depois no mundo como um
todo, haveria também a passagem da predominância do emprego no setor
secundário, fabril, para o setor terciário ou de serviços.
Por dentro dessas transformações mais objetivas do cenário produtivo,
Negri e Hardt (2014) identificariam que, juntamente com Marazzi (2009)
e os outros autores destacados acima, o cenário de fundo central seria o
desenvolvimento da exploração sobre a imaterialidade da produção. Um
processo que teria se instaurado principalmente desde a década de 1990
no cenário do trabalho, passando a envolver aquilo que extravasou das
paredes da fábrica e que reordenou as suas coordenadas: as redes sociais, as
diferentes formas de cooperação, a criatividade, a comunicação dentro das
novas tecnologias (NTICs249), como também os afetos e os bens culturais
p. 145). Conforme Fumagalli aponta (FUMAGALLI. 2011, p. 46), deu-se início com esses
acordos ao processo de “desmaterialização da moeda”, que foi efetivamente completo com o
seu fim, com a perda total de lastro material do dólar e a nova configuração de um regime de
câmbios flexíveis (Ibid., p. 48).
249
As NTICs (Novas Tecnologias de Informação e Comunicação) foram tecnologias
informáticas que transformaram os modos de relacionamento e a configuração da atividade

176
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa

produzidos difusamente pelo tecido social. Assim, envolveria muito mais


a produção de conhecimentos, de informação e de relações sociais do que
somente o trabalho-máquina das fábricas250.
E, é em torno dessa mutação nas qualidades do trabalho socializado
que se colocaria uma séria e grande questão para o capital: a busca por
formas de explorar e de controlar essa produção. Uma busca por rearticular
o controle e a extração do valor quando a produção não estaria mais sob
as suas mãos, sobre a sua orientação por dentro das paredes da fábrica,
que resumiam antes todo o principal ciclo produtivo. Como única saída,
a exploração teria então que acompanhar a produção, que saía do chão da
fábrica e se dispersava sobre o território, sobre as cidades e metrópoles251.
É dessa forma que Negri e Hardt afirmariam a diferença entre os
dois momentos produtivos: o fordismo que buscava criar os meios da vida
social, em contraponto ao pós-fordismo, que precisaria envolver e investir
sobre a própria vida social, a própria bios (2005). A bioprodução que
seria justamente a produção da vida pela vida, “do homem pelo homem”,
ou seja, uma antropogenética (MARAZZI. 2009). Um trabalho como
geração de vida (COCCO. 2014, p. 83) que o capital estrategicamente
reconheceria como o sangue que pulsa na produção. Reconhecendo na
mesma medida em que se colocaria artificialmente como o seu “coração
pulsante” (FUMAGALLI. 2010, p. 19), inserindo-se para determinar a sua
laborativa da sociedade. A formação de redes virtuais conferiam uma outra temporalidade às
trocas e às interações, em movimentos cada vez mais rápidos, ultrapassando as meras interações
físicas. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, o fluxo interativo e informacional se tornava
cada vez mais intenso, espalhando-se para toda a metrópole e para o mundo. E, é dentro dessa
mudança comunicacional que a fábrica tentaria incorporar essa comunicação em antecipação
do consumo que se formava fora.
250
Deve-se salientar, contudo, que, quando se afirma a existência e a importância de algo como
o trabalho imaterial, não se quer aduzir que esse trabalho não resulte em um desgaste físico ou
que aquele trabalho a que figurativamente se opõe a esse, o material, tenha desaparecido. Em
verdade, como Negri e Hardt apontam (2014, 148-150), o trabalho material industrial ainda
é predominante, ao menos quantitativamente, em grande parte do mundo. Sustenta- se, pelo
contrário, que, assim como progressivamente o trabalho na fábrica ao longo do séc. XIX foi
se tornando hegemônico quantitativa e qualitativamente em relação ao da agricultura (no teor
da tendência capturada por Marx), houve uma nova transformação que ditou o deslocamento
em direção à hegemonia do trabalho imaterial, que se apresenta hoje ainda qualitativamente.
Uma realidade que tenderia a progressivamente a mudar, haja vista a mudança qualitativa já
apresentada quanto ao valor das empresas e dos seus produtos.
251
É nesse sentido que Negri e Hardt sustentam: “a cidade, com certeza, não é somente um
local constituído por prédios, ruas, metrôs, parques, sistemas de coleta de lixo e de cabos
de comunicação, mas também representa uma dinâmica viva de práticas culturais, circuitos
intelectuais, redes afetivas e instituições sociais” (2009, p. 154). A metrópole é para os autores
o centro produtivo por excelência.

177
Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a flexibilização do Direito

valorização ao mesmo tempo em que baseia a sua extração252. E, esse órgão


vital seria justamente as finanças, com a sua expansão e dispersão por toda
a faceta produtiva, ligada aos grandes mecanismos reguladores dos índices
do mercado de capitais que determinariam a identificação das fontes de
valor e a sua subsequente extração.
Nesse horizonte, o mercado de capitais e a financeirização seriam
o controle sobre o bios, como um governo biopolítico sobre essa
produção que escapou do controle direto do capital; e, o biocapitalismo
se apresentaria como o marco do reconhecimento da produção que
o capital explora, ou seja, a vida social e afetiva dos sujeitos: “que já
investiu a totalidade da sociedade (...), isto é, o conjunto da vida humana
individual e social que é posta, enquanto tal, a trabalhar. (NEGRI. 2015,
p. 57-58). O governo das finanças passaria então a ser entendido como
a saída encontrada para retomar o comando sobre a produção e a sua
consecutiva exploração.
Portanto, pensando o Porto Maravilha com base na estrutura que as
finanças assumem a partir do reconhecimento do biocapitalismo, podemos
articular uma aproximação do controle sobre a vida em produção com a
lógica de valorização que estaria atrelada ao empreendimento. Na medida
em que os processos abertos da financeirização seriam formas de restaurar
o controle do capital, agora sobre a vida, pode-se reconhecer que, para se
extrair o valor produtivo sobre a região portuária da cidade do Rio de Janeiro,
introduziu-se um projeto total sobre o território, buscando valorizá-lo e
controlá-lo sem grandes despesas diretas para capital imobiliário, através do
comprometimento do FGTS como uma socialização dos riscos existentes
no projeto, e construí-lo como um espaço a ser ocupado produtivamente
pelos sujeitos.
É no sentido dessa incorporação da produção que se apostou e
ainda se aposta, na medida em que o projeto ainda está aberto, na
252
Essa é a lógica por trás, por exemplo, da crise hipotecária nos EUA. A lógica da renegociação
das hipotecas e dos empréstimos concedidos para pessoas de baixa renda, envolvendo assim
também os pobres, dinamizava a economia e dava um contorno à crise anterior da new economy,
reconhecida no estouro da bolha da internet. Essa saída resultou na expansão do crédito via
empréstimos, restando ao Estado apenas a figura de regulador nessas operações. Um regulador
que, como a crise de 2008 mostra, estava ausente, perto dos diferentes instrumentos criados
para a realização dessa engenharia. A securitização dos empréstimos e das hipotecas se formou
como uma pirâmide que permitiu contornar as possíveis dificuldades de acesso ao crédito às
populações de baixa renda, com a negociação desses ativos de alto risco através de instrumentos
de condensação de títulos com diferentes graus de risco. Para mais, conferir: FUMAGALLI,
MEZZADRA. 2011.

178
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa

valorização da região da cidade dentro do ponto de articulação com


grandes investimentos globais, para a atração de grandes empresas e
empreendimentos – como as construções na região portuária das
Trump Towers Brazil, da sede do YouTube Spaces e de dois custosos
museus (Museu de Arte do Rio e Museu do Amanhã), sendo um deles
desenvolvido por um arquiteto global, o Santiago Calatrava (Museu
do Amanhã). O cenário se concentra na confiança, figura central da
moeda e das fianças, que repousaria na capacidade de tornar a região
um espaço produtivo nos termos mais claros da produção mundial
imaterial e de vida, tornando a área do centro e do porto um espaço
competitivo e “hiperconectado” com o resto da cidade produtiva e
com o globo. O horizonte aberto seria o de um futuro de uma região
altamente ocupada e produtiva.
Dentro desse horizonte, para garantir o futuro do projeto, a área
delimitada (AEIU) seria um nó dentro de uma grande estrutura de
flexibilização: do direito, com a revisão das regulações urbanísticas,
dando surgimento a um direito potencial de construção, e a subsequente
transformação desse direito em ativo financeiro (CEPACs); tributária,
com os incentivos para as construções a serem realizadas no local; e, da
gestão governamental, com a transferência direta dos serviços públicos
municipais para empresas privadas, ou melhor, para o Consórcio. Um
nó que representaria o comprometimento vinculado ao projeto até o
prazo de 2026. Ou seja, um fechamento das possibilidades de realização
democrática e alternativa, tendo em vista o futuro do projeto que não
poderia ser modificado – inserindo-se aqui todo o processo de remoções
da região (tanto no Morro da Providência, como nos imóveis mais
próximos do eixo principal do porto253), bem como o fechamento das
formas culturais e históricas das ligações dos moradores e dos atores com
o território (principalmente do movimento de resgate da cultura negra,
da história do tráfico negreiro na região e das práticas artísticas e de lazer
ligadas ao território).
253
As ocupações eram bastante presentes na região central do Rio de Janeiro, tanto articuladas
em movimentos políticos mais concretos, como autônomas. Durante todo o processo realizado
pelo Estado para rearticulação dessa área, inúmeros movimentos de resistência se consolidaram
para resistir, tais como: Ocupação Quilombo das Guerreiras, Ocupação Machado de Assis,
as formações comunitárias do Morro da Providência, a Ocupação Casarão Azul e a Zumbi
dos Palmares, dentre outras. Para mais sobre esses processos desencadeados antes, durante e
depois do Porto Maravilha, conferir: TRAMONTANI. 2012, p. 349; COMITÊ POPULAR
RIO DA COPA E DAS OLIMPÍADAS. 2013, p. 29-32; e, CONTAGEM REGRESSIVA –
EPISÓDIO 3 (ZONA PORTUÁRIA). 2016.

179
Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a flexibilização do Direito

Haveria a transformação do direito de construir em um ativo


financeiro, desvinculando o direito e o terreno, assumindo uma forma
abstrata do valor econômico do potencial construtivo, ou seja, um lastro
econômico no direito de construir. Nesse cenário, o papel das finanças e do
mercado de capitais se tornam fundamentais. As CEPACs permitem pensar
a transversalidade do regime de controle do mercado financeiro sobre a
realização e implementação do projeto, na medida em que a viabilidade
e o prosseguimento do empreendimento urbanístico dependeriam das
finanças, do seu reconhecimento e das garantias a serem conferidas pelo
mercado, através da bolsa de valores. A esfera pública do mercado restaria
como o ponto de análise crucial do projeto. Todas as exigências voltadas
para a CDURP (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do
Porto), como os sistemas de governança corporativa, de transparência e de
garantias do projeto, estipuladas em lei e presentes nos discursos dos seus
próprios gestores (XAVIER. 2012, p. 115), articular-se-iam nesse sentido
do governo direto do mercado.
A produção que escapou seria gestada dentro da capacidade do
empreendimento de fechá-la nas suas demarcações e conseguir explorar
depois. Dependeria assim da capacidade de criar um ambiente produtivo
em espiral, tornando o local um ponto produtivo no Rio de Janeiro, no
Brasil e, principalmente, no mundo. A financeirização seria justamente o
governo da avaliação da produção, o coração que permitiria controlar essa
produção dispersa, dando o subsídio e explorando ao mesmo tempo. Ao
Estado, diante das flexibilizações, restaria a responsabilidade do controle
sobre a produção que escapa, ou seja, que se produz em outros horizontes
que não os delimitados no projeto: repressão e controle sobre as brechas de
democracia e de descontentamento.
Assim, o que as finanças e o projeto sobre o qual ela recai encerram é
o futuro, a capacidade de, a partir do presente, encapsular o futuro dentro
do crédito e da sua exploração dilatada no tempo. Portanto, não é de se
estranhar o comprometimento de bilhões do FGTS com o empreendimento,
uma adesão que coloca os trabalhadores como diretamente interessados
no projeto ao mesmo tempo em que socializa os riscos de sua possível
falência. Também, não é de se estranhar que as CEPACs sejam lançadas
como títulos, ou seja, o direito construtivo adicional seja desvinculado
do território e se torne um ativo. A justificativa de atrair e permitir uma
captação de recursos antes da sua materialização, ou seja, encerrar o futuro,
coaduna com a eliminação de quaisquer controvérsias sobre o projeto.

180
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa

O lado democrático nem seria posto em questão, na medida em que a


avaliação do projeto dependeria do pleno controle sobre a produção de
uma vida para a valorização.

Conclusão
Sendo assim, o Porto Maravilha, desde a sua concepção, teria
funcionado como um marco de um projeto para reestruturar uma
determinada região dentro de um controle sobre os fluxos produtivos. Um
controle que submeteria a vida como um todo para colocá-la para produzir
em determinados horizontes, encerrando um futuro predeterminado e
orientado pela confiança da sua implementação e pela socialização de seus
custos em caso de insucesso. A avaliação desse futuro caberia às finanças e
ao mercado de capitais, que na inflexão biocapitalista seria a esfera pública
que recairia sobre o empreendimento urbano.
Contudo, esse grande projeto, a maior operação urbana (OUC) já
realizada no Brasil, ainda remanesce aberto e em disputa. Em disputa
justamente pelas resistências em luta pelo direito à cidade, à construção
democrática da cidade. Lutas que resultaram no estancamento, mesmo
que parcial, dos processos de remoção (principalmente no Morro da
Providência) e na inclusão no projeto da construção de moradias sociais
– que resultou, ainda que criticado e insuficiente, no Plano de Habitação
de Interesse Social (PHIS-Porto). E também, lutas que ainda persistem no
cotidiano dos moradores da região, por melhores condições e por garantias
de permanência através de freios ao claro processo de gentrificação
(CONTAGEM REGRESSIVA – EPISÓDIO 3, ZONA PORTUÁRIA.
2016)
Além disso, esse projeto também se encontraria aberto pela sua real
possibilidade de falência. Uma parte das CEPACs, depois de adquiridas
pelo FGTS, foi colocada no mercado novamente em 2012, para retornar o
investimento e também para permitir as construções acima dos requisitos
urbanísticos. Foram ofertados 100 mil títulos ao dobro do preço de
aquisição inicial e, nesse negócio, apenas 26% foi adquirido pelo mercado.
Atualmente, apenas 10,8% das CEPACs foram efetivamente realizadas
como direito de construção adicional.
Essas dificuldades para a realização do investimento se justificam em
grande parte pela confiança sob a qual o projeto se baseava. Confiança que
hoje se encontraria em crise: pela desaceleração do mercado imobiliário,

181
Porto Maravilha: entre a financeirização, o biocapitalismo e a flexibilização do Direito

para não afirmar a sua bolha; pelo Brasil em termos da falência do projeto
desenvolvimentista sob o qual se uniam as três esferas de governo estatal
(municipal, estatal e federal); do porto e de seus serviços comerciais navais,
no desaquecimento da economia e também da Petrobrás, que no Rio de
Janeiro adquire um papel fundamental; e, pelas próprias empreiteiras, que
estariam envoltas nos processos decisivos da operação judicial e investigativa
da Lava Jato.
Entretanto, apesar da crise nacional e local, da ausência de confiança
na moeda do instrumento e do futuro que estaria atrelado ao projeto da
região portuária, outro grande projeto urbano está sendo gestado nos
mesmos moldes do Porto Maravilha no Rio de Janeiro. Trata-se da nova
fronteira da região das Vargens na Zona Oeste (engloba Vargem Grande,
Pequena, Camorim e parte da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá), que
corresponderia a 25% do território do município. Apesar desse projeto não
ser recente, apenas no ano passado o seu Plano de Estruturação Urbana foi
concebido e enviado à Câmara do Rio com a previsão de uma OUC, como
consta através do Projeto de Lei Complementar 140/15. Trata-se de uma
área cerca de dez vezes maior do que a área do Porto Maravilha. E, mesmo
já existindo toda uma mobilização das resistências em vida no território
para frear o projeto, além de todo o cenário da crise, o projeto continua e
persiste como uma ameaça em aberto quanto a sua implementação, visto
que as audiências públicas na Câmara Municipal do Rio de Janeiro já
foram conduzidas no primeiro semestre do presente ano de 2016.
Dessa forma, tanto no projeto que hoje é implementado do Porto
Maravilha, ou mesmo no futuro ainda a ser construído das Vargens, as
questões se concentram sobre todas as coordenadas do biocapitalismo, da
financeirização, da gestão do território como controle sobre a produção e
da socialização dos riscos sobre as políticas públicas. Sob a crise instaurada
e o futuro do comprometimento do FGTS, que assumiu o valor total
do empreendimento (R$ 8 bilhões), não há certezas. Podemos apenas
reconhecer que as tendências atuais apontam para mais uma tentativa de
controle e de gestão que se articulou com um futuro mercantilizável e que
não mais encontra as bases, não consegue mantê-las para a valorização/
exploração.
Contudo, nesse cenário, reconhecer a crise e falência desse projeto – e
das Vargens, se realizado da mesma forma, com o comprometimento do
FGTS – significa também identificar a perda generalizada da sociedade
posta para trabalhar, da vida social produtiva. Pelos encargos forjados

182
Luiz Felipe Teves de Paiva Sousa

no compromisso assumido pelo fundo dos trabalhadores, isto é, pela


socialização do risco, amarrou-se o projeto a uma lógica de exploração
completa: ou se tem sucesso e a região se torna um ponto de exploração
sobre a vida dos sujeitos postos para trabalhar, ou há a sua falência e o
prejuízo é dissolvido entre os sujeitos que já foram postos para trabalhar e
que trabalhariam ainda na região. E, a lógica alternativa, se assim podemos
pensar, que não mais poderia se dar pela estrutura do Estado social, já
atrelada aos imperativos do mercado, não existirá sem ser através da própria
força e movimento das resistências: pela luta por uma democratização e
pela gestão comum do território e das políticas públicas.

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184
Urbanizações democráticas e remoções
autoritárias: buscando zonas cinzentas
entre dois arquétipos através da análise
do Projeto Rio
Caroline Rocha dos Santos254

Introdução
O presente artigo pretende contribuir para o debate sobre a
construção de estratégias emancipatórias no atual momento, caracterizado
pelo esgotamento de um ciclo que se expressou pela consolidação paulatina
desde 2002 do modelo econômico marcado por uma espécie de nacional
desenvolvimentismo às avessas (GONÇALVES, 2012) 255. No contexto
urbano, as medidas necessárias para a garantia deste modelo, com lastro
numa ideologia do progresso, converteram-se a partir de 2008, período de
crise aguda do capitalismo, no forte investimento direcionado à construção
em massa de moradias, através da criação, em 2009, do programa Minha
Casa Minha Vida (PMCMV) que se apresentava como uma medida
eficaz anticrise, viabilizando a absorção de excedentes de capital e trabalho
(BASTOS, 2012).
Esta saída, todavia, que em uma primeira observação pode se
apresentar vantajosa tanto para o capital, que encontra neste ramo
uma maneira de ampliar, quanto para o trabalhador que pode acessar
o mercado da casa própria, demonstrou, ao menos na cidade do Rio
254
Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PPGD/UERJ).
255
O termo é elaborado, de maneira crítica, por Reinaldo Gonçalves, para rebater as análises
que apontavam para uma mudança estrutural na matriz econômica no período lulista. Segundo
o autor, diametralmente oposto do que caracterizaria o nacional desenvolvimentismo, o modelo
econômico do governo Lula apresentaria as seguintes características: desindustrialização,
dessubstituição de importações, reprimarização das exportações, maior dependência tecnológica,
desnacionalização, perda de competitividade internacional, crescente vulnerabilidade externa
estrutural, maior concentração de capital e dominação financeira (GONÇALVES, 2012).
Urbanizações democráticas e remoções autoritárias: buscando zonas cinzentas entre dois ...

de Janeiro, que só poderia ser executada a base do aprofundamento do


processo de periferização da cidade, que se deu através do retorno voraz
da política de remoções dos espaços informais de moradia popular, em
especial as favelas256, acoplado à construção de novas moradias nas franjas
da cidade257.
Contudo, a utilização do investimento na construção em larga escala
de moradia para os mais pobres como medida anticíclica não pode ser
considerada um artifício utilizado de maneira inovadora pelos governos
mais recentes. Assim, remetemo-nos aos investimentos maciços feitos pelo
Banco Nacional de Habitação (BNH) na urbanização in loco das favelas, a
partir do final da década de 1970, modificando sua tradicional plataforma
explícita desde sua criação em 1964, que se constituía em apresentar
como única solução para elas a sua total erradicação com a concomitante
construção de unidades habitacionais nas áreas mais distantes da região
central da cidade258. É neste momento que em 1979 se apresenta o Projeto
Rio que visava à urbanização de algumas favelas da região metropolitana
do estado do Rio de janeiro e que irá executar uma intervenção urbanística
em larga escala na região da Maré, situada na zona norte da capital e que
abriga várias favelas.
256
Na cidade do Rio de Janeiro, este processo foi catalisado pelos megaeventos (em especial
Copa do Mundo e Olimpíadas) que por sua vez é também uma via encontrada pelo capital para
a sua valorização. Sobre a relação entre megaeventos e remoções e a consequente reatuzalização
do repertório das práticas e discursos que justificam e autorizam as mesmas, v. MAGALHAES,
Alexandre. O “legado” dos megaeventos esportivos: a reatualização da remoção de favelas no
Rio de Janeiro.
257
“Esse descompasso da prática com a norma também esteve presente na entrevista concedida
pela gerente do trabalho social do PMCMV da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) ao
relatar que de 2009 a 2012 foram inaugurados 49 condomínios dos quais 36 foram usados
para reassentamentos e apenas 13 para atender aos inscritos no cadastro para sorteio. Esses
dados indicam que a Prefeitura do Rio de Janeiro tem usado massivamente o PMCMV para o
deslocamento de famílias removidas de forma involuntária de seus locais originais de moradia,
atribuindo como justificativas os deslizamentos causados pelas chuvas de 2010, as obras para os
grandes eventos (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016, por exemplo) ou as obras de
urbanização de favelas” (CARDOSO, et al., 2015, pg. 77-78).
258
No caso do antigo estado da Guanabara, o repasse de recursos para as indústrias de
construção civil, juntamente com a especulação imobiliária, fizeram com que as remoções,
associadas com a construção de conjuntos habitacionais para a população de baixa renda,
tornassem-se um importante negócio a ser levado a cabo, exigindo inclusive a conjugação
de forças das esferas de governo estadual e federal refletida no pacto entre a Companhia de
Habitação Estadual da Guanabara (COHAB-GB), a Coordenação de Habitação de Interesse
Social da Área Metropolitana (CHISAM) e o BNH. Neste bojo, entre 1966 e 1971, foram
removidas 12.782 casas, compreendendo 63.910 habitantes e construídos em torno de 17.000
unidades habitacionais no mesmo período (VALLADARES, 1978).

186
Caroline Rocha dos Santos

Não obstante seja necessária esta prévia contextualização para situar


o trabalho, elucidamos não ser seu objetivo a comparação entre políticas
públicas habitacionais anteriores e aquelas engendradas a partir dos últimos
anos da década de 2000, apesar de persistirem semelhanças. Temos como
meta, a partir do estudo de caso que olha para o plano de urbanização
ocorrido no âmbito do Projeto Rio no período ditatorial- militar, embora
denominado como de redemocratização, dissecar a maneira pela qual
a relação verticalizada entre Estado e favela se reproduz, ainda que em
projetos de urbanização voltados para a permanência das favelas e não para
sua erradicação. Tendo em vista um objetivo mais geral, podemos pensar,
através deste olhar para o passado, sobre a construção de resistências por
parte das populações subalternizadas.
Se vivemos o esgotamento político de um ciclo, um porvir que
abarque uma cidade mais democrática e popular não está dado, sendo a
sua construção, a um só tempo, processo e produto de uma tarefa coletiva
que exigirá de nós o domínio da conjuntura na qual estamos imersos, o
que demanda reflexões sobre experiências já realizadas, tanto no que tange
a ação estatal, quanto ao modo de organização e mobilização das classes
subalternas. O olhar para o passado, especialmente sobre a experiência
específica de um plano de urbanização voltado para favelas, implica em
considerar os limites e potencias existentes nas lutas populares, sempre
localizadas na linha tênue entre a captura pelo Estado e a emancipação
diante deste mesmo Estado.
Para cumprir este desiderato, o trabalho se estrutura em três partes:
a primeira terá como objetivo apresentar o Projeto Rio, descrevendo
sumariamente o contexto político e econômico que o tornou possível.
Na segunda seção discutiremos com mais profundidade a forma pela
qual o projeto se desenvolveu, rebatendo certos lugares comuns utilizados
para a sua justificação. Por fim, apresentaremos uma conclusão que não
terá o condão de trazer resultados definitivos, mas apenas realçar pontos
importantes do texto que porventura não puderam ser devidamente
explorados. Por fim, ressaltamos que o presente artigo utiliza de dados
recolhidos na pesquisa desenvolvida para a dissertação de mestrado
intitulada “Entre o reconhecimento e a estigmatização da favela: um estudo
de caso sobre a regularização Fundiária no Morro do Timbau” defendida
em 2015 no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (PPGD/UERJ).

187
Urbanizações democráticas e remoções autoritárias: buscando zonas cinzentas entre dois ...

O Projeto Rio
O Programa de Erradicação das Sub-habitações (Promorar), que se
destinava “à erradicação ou recuperação de favelas, palafitas ou mocambos,
através do saneamento e urbanização da área, seguido da construção de
moradias compatíveis, na área ocupada” (BNH, Relatório de atividades,
1982), é criado no contexto em que o BNH, a partir do final da década
de 1970, retoma o investimento na construção de moradias para a
população de baixa renda, devido à pressão das empresas produtoras de
material e equipamentos para a fabricação em massa de edificações que
começavam a contar com a forte participação do capital estrangeiro
(MARICATO, 1987). Ademais, havia uma preocupação dos organismos
internacionais, tais como Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) de se criar uma nova forma de
gestão dos bolsões de miséria, onde se buscava conhecê-los a fundo para
assim amenizar as condições de vida urbana através do financiamento de
projetos de melhoria nos serviços básicos e de medicina preventiva, feito
por convênios com governos locais (ABRANTES, 1986).
Conforme apontado anteriormente, o retorno dos investimentos
do BNH voltados para a produção de moradia destinada à população de
renda inferior no final dos anos 1970 estava ligado à necessidade de criação
de uma nova via para o escoamento do capital excedente, significando que
programas criados pelo banco com este intuito, tais como o Promorar,
apesar de um olhar mais atento a população mais pobre, não significaram,
evidentemente, a ruptura com o processo de acumulação do capital. A
fala de João Figueiredo, presidente à época, expressa que este momento
é de fato marcado pela reconciliação do Estado brasileiro com o setor da
indústria de construção que abarcava as empresas de edificação:

Sem chauvinismo, os senhores empresários têm toda razão de se orgulhar


da indústria da construção, pois é totalmente nacional, não só no capital
como na técnica. E o testemunho disso é fácil de se ver, as maiores barragens
e hidroelétricas do mundo, as estradas mais longas. Está também [...] na
construção de grandes edifícios e de conjuntos habitacionais, responsáveis
por uma vida mais digna de milhares de pessoas. Com cerca de 3 milhões
de pessoas é o maior empregador urbano, um setor que, além de ser
forçado a ter bom nível técnico, tem uma grande responsabilidade social
(Empresário valoriza promoção social na construção civil. Jornal do Brasil.
Rio de Janeiro, 15/08/1980. 1º Caderno, Cidade, pg. 5).

188
Caroline Rocha dos Santos

Se há fatores econômicos que dão algum sentido à brusca modificação


da maneira pela qual o Estado passa a lidar com espaços informais de
moradia popular, em especial as favelas, indo do paradigma da remoção para
o da permanência, eles estão longe de explicar isoladamente esta rotação. É
preciso dizer que a partir de meados dos anos 1970 há uma rearticulação
da mobilização política na cena urbana, com ênfase para aquela constituída
pelos favelados, que retomam veementemente a pauta da permanência das
favelas e sua urbanização em oposição à política das remoções.
É neste bojo que o Projeto Rio é então oficialmente anunciado como
uma iniciativa conjunta do Governo federal, através do ministério do
Interior, Governo do Estado e Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro,
firmado por um protocolo de intenções assinado em 15 de junho de 1979
(PINHEIRO & MAIA, 1984). Com finalidades grandiosas, o projeto
possuía como metas o saneamento ambiental e básico de áreas próximas a
Ilha do Fundão e do Governador (zona norte da cidade), a regularização
fundiária e urbanização das favelas deste entorno, incluída portanto, a
região da Maré, com a eliminação das palafitas, a construção de uma grande
faixa de aterro e de novas unidades habitacionais, o alinhamento das ruas, a
instalação de rede de esgotos e abastecimento de água, além da ampliação
das redes de energia elétrica. Previa ainda a construção de equipamentos
comunitários como creches, escolas e de postos para fornecimento e
financiamento de material de construção abaixo do custo bem como a
renovação do sistema viário carioca (Fundrem, 1980b).
Nesta toada, a partir da leitura dos planos que vão dar concretude aos
objetivos do Projeto Rio e também da produção acadêmica sobre o tema
realizada naquele período, percebemos que os pontos identificados como
diferenciadores do Projeto Rio em relação à política habitacional anterior
destinada às favelas eram a perspectiva não remocionista, a construção de
aterros visando à recuperação da Baía de Guanabara e a incorporação de um
planejamento participativo onde os moradores poderiam contribuir para
elaboração do projeto e sua execução. Na região da Maré, conforme afirma
Monarcha, tais elementos se refletem em três principais linhas de atuação:
a transferência de propriedade, a remoção de palafitas e a urbanização da
área remanescente (MONARCHA, 1985 apud SANTOS, C.R., 2016).
Pontuaremos a seguir alguns elementos que rompem com a ideia de
que o Projeto Rio havia superado, de maneira integral, o autoritarismo
característico do modus operandi estatal perante as favelas da cidade do Rio
de Janeiro.

189
Urbanizações democráticas e remoções autoritárias: buscando zonas cinzentas entre dois ...

Um casamento perfeito?
Como apontado anteriormente, a compreensão do sentido emitido
pelo Projeto Rio enquanto uma política pública supostamente paradigmática
em relação ao modelo anterior remocionista, perpassa pelo entendimento
de que havia uma conjuntura econômica, na qual medidas anticíclicas
eram realizadas via setor da construção civil, em especial aquele ligado
a edificação em massa de moradias, e uma conjuntura política marcada,
no contexto urbano carioca, pelo reavivamento das mobilizações do
movimento de favelas que voltam a lutar pela permanência das mesmas e,
portanto, contra as remoções.
É neste sentido que o Projeto Rio, ao viabilizar a permanência dos
favelados da Maré, sem o deslocamento para áreas mais distantes, ao
mesmo tempo em que propiciará a indústria de construção civil e ao
mercado imobiliário campos para ampliação do lucro, apresenta-se como
uma intervenção em que ambos, favelas e empresariado sairiam ganhando.
A possibilidade de construção de aterros ao longo da Baía de Guanabara
foi fundamental para a consolidação deste discurso, pois ao mesmo tempo
em que o capital ligado a construção civil se favorecia com a edificação das
novas unidades habitacionais e do próprio aterro, este também permitiria
que os favelados que residiam nas palafitas permanecessem na mesma
região da Maré, onde já habitavam.
Contudo o BNH não investia recursos aonde não se garantisse o
retorno do capital aplicado, ou seja, o projeto não poderia ser realizado
a custo zero. Assim, a viabilidade do Projeto Rio esteve garantida pela
destinação da maior parte do aterro não a construção de novas unidades
habitacionais, mas sim ao mercado imobiliário que, juntamente com o
setor da construção civil, será privilegiado neste processo ao ver na criação
dos aterros a possibilidade de liberação de novas áreas para a especulação259.
Os limites deste casamento, onde todos pareciam sair ganhando,
aparecerão em vários momentos ao longo da execução do Projeto Rio.
259
Os números trazidos pelo plano de detalhamento da área prioritária deixam claro a predileção
do projeto: no setor da Maré 25,2% de solo criado estaria destinado ao uso residencial, 33,3%
à construção de equipamentos regionais e 41,5% ao uso misto não residencial (Fundrem,
1980b). O relatório do grupo de trabalho instaurado no Instituto dos Arquitetos do Brasil,
departamento Rio de Janeiro (IAB/RJ) para analisar o Projeto Rio também apontava que o
aterro proposto para a região, consideradas as possibilidades de utilização para fins habitacionais
destes terrenos vazios, ultrapassava demasiadamente as necessidades impostas pela recuperação
das favelas, além do prejuízo ao eco- sistema da baía de Guanabara (IAB/RJ GT Projeto Rio-
Relatório, s/d apud Fundrem, 1981).

190
Caroline Rocha dos Santos

Podemos citar como exemplos a opção do projeto pela construção de


conjuntos habitacionais, quando os favelados reivindicavam o repasse de
lotes urbanizados das novas áreas aterradas aos moradores das palafitas que
seriam destruídas, sendo as próprias famílias responsáveis pela construção
de suas moradias; bem como o negligenciamento das obras de urbanização
da área consolidada em relação àquelas destinadas a construção do aterro
e das novas moradias que, pela rapidez empregada no processo produtivo,
tinham maior capacidade de retorno rápido do capital investido260.
Devemos lembrar ainda que o limite de comprometimento da renda
estabelecido pelo Projeto Rio para o financiamento da nova moradia, até
10% do salário mínimo (Fundrem, 1980b), não levava em conta os novos
gastos que os favelados deveriam desembolsar a partir da mudança para
a nova unidade habitacional que não apresentava qualidade e tamanho
adequado para as famílias:

“[...] Mas a maioria dos favelados da Maré, transferidos ontem para o Setor
Pinheiros do Projeto Rio acordaram repentinamente, ao entrar nas novas
moradias: são tão pequenas, que muitos não tiveram como colocar todos
os móveis dentro de casa. E nem todos vieram do lodo. Alguns saíram da
Baixa do Sapateiro e do Parque União onde moravam ate mesmo em casa
de alvenaria, como o operador de maquina Paulo Eliano Pereira. Removido
para a casa nº 14, da Travessa 4 ( Quadra 16). Paulo teve que deixar um
sofá e uma penteadeira do lado de fora: ‘ Essa casa é muito pequena. Não
dá pra nada. Muito menor que a minha antiga’’(Sonho de casa ampla no
Projeto Rio acaba no 1º dia. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15/12/83. 1º
Caderno, pg.22).

Não obstante o Projeto Rio se caracterizasse pelo seu aspecto não


remocionista havia, em suas práticas, a perpetuação da verticalidade
própria da relação entre Estado e favela, marcada pelo uso da violência.
Neste sentido, cabe lembrar que no episódio da realocação das famílias
que moravam nas palafitas para as novas unidades habitacionais do setor
Pinheiro (Vila do João) em dezembro de 1983, os técnicos responsáveis
pela transferência chegaram a contratar grupos armados locais para garantir
que a remoção ocorresse sem qualquer tipo de resistência261.
260
Das quatro metas a serem alcançadas para a área consolidada (implementação das redes de
água, de esgoto e de eletrificação, bem como a construção de equipamentos comunitários e de
escolas de 1º e 2 º grau) somente a eletrificação fora implantada pelo projeto (Valladares, 1984,
apud SILVA, C. 2006).
261
“Sem rótulos- Há dois meses toda a engrenagem que envolve o BNH, a STE, os estagiários,
os lideres de associações, os xerifes e a população foi movimentada com mais intensidade, para a

191
Urbanizações democráticas e remoções autoritárias: buscando zonas cinzentas entre dois ...

Outro elemento que inscreve o Projeto Rio dentro da trajetória


autoritária das políticas habitacionais que o antecederam é a maneira
pela qual se deu a participação dos favelados na elaboração dos projetos.
Apesar de algumas análises sobre o projeto apontarem para o avanço da
incorporação da escuta dos favelados para a criação dos planos que o
concretizariam, chamando atenção para o fato de que, no contexto ainda
ditatorial, isto de fato representava um avanço262, é importante pontuar
que o Projeto Rio quando é finalmente apresentado aos moradores já é um
plano pronto para ser implementado. Portanto, qualquer tipo de consenso
deve ser compreendido dentro de um projeto já elaborado sem qualquer
intervenção dos favelados.

Regularização Fundiária
O ultimo elemento que reservava ao Projeto Rio seu lugar no rol
de intervenções urbanísticas inovadoras era a titulação da posse em
áreas faveladas. Neste trabalho, gostaríamos de limitar o escopo de
análise para dar maior atenção à forma jurídica eleita pelo projeto para a
individualização dos lotes, o regime de condomínio horizontal, aspirando
assim à simplificação deste processo.
Contudo, queremos chamar atenção para o fato de que a adoção do
regime condominial em favelas, além de se justificar pela facilitação dos
processos de regularização fundiária e urbanística, relacionava-se com uma
necessidade de estandardização do comportamento dos favelados.
A história fornece alguns exemplos de processos de disciplinarização
e controle dos pobres por meio de políticas públicas de habitação, dentre
os quais se destaca a construção dos Parques Proletários nos anos 1940.
Pandolfi & Gryspan (2002) esclarecem que os Parques Proletários, ao
desejarem transformar o favelado, então percebido como vadio, em
trabalhador se inscrevia num projeto maior do Estado Novo de construir
o novo homem brasileiro.
grande operação que começou ontem as 4h da madrugada, ainda escuro. Os 30 xerifes, cada um
em sua área, bateram de porta em porta acordando os moradores. Às 4h30m, com supervisão
dos presidentes das associações a Cedae desligou o abastecimento de água, para evitar que
máquinas pesadas rompessem as tubulações. Usando walkie-talkers os xerifes passaram a
comandar as operações na área a ser removida. Quase todos portavam revolveres na cintura
ostensivamente” (Sonho de casa ampla no Projeto Rio acaba no primeiro dia. Jornal do Brasil.
Rio de Janeiro, 15/12/1983. 1º Caderno, pg.12).
262
É o caso de Monarcha (1984), Pinheiro & Maia (1984) e Pogguiese (1982).

192
Caroline Rocha dos Santos

A necessidade de domar as “classes perigosas”, principalmente no


contexto marcado pelo acirramento das contradições sociais, econômicas e
políticas a partir da década de 1960, faz com que a docilização dos corpos
através do controle da forma de morar (CONCEIÇÃO, 2013) também
fosse uma finalidade das investidas remocionistas realizadas no período
do governo de Carlos Lacerda na administração do antigo estado da
Guanabara, intensificadas posteriormente com a criação do BNH263.
Nos interstícios destas políticas públicas em matéria de habitação,
estava, portanto, a implementação de um processo “civilizatório” dos
favelados. A ideia de que a política habitacional poderia contribuir para o
reajuste da população pauperizada e, portanto, para a gestão dos conflitos
sociais, alcança os projetos tocados pelo BNH já na década de 1980264.
Todavia, se a mudança do meio no qual estava inserido o favelado era
condição sine qua non para a sua necessária padronização265, o Projeto Rio
possui a especificidade de conjugar a perpetuação da pecha civilizatória
presente nas outras políticas habitacionais destinadas as favelas, sem
removê-las. O regime condominial torna-se, portanto, uma forma de
reeducar os favelados, dentro do seu próprio “habitat”.
263
“A solução do problema pela casa própria tem esta particular atração de criar o estímulo de
poupança que, de outra forma, não existira, e contribui muito mais para a estabilidade social
do que o imóvel de aluguel. O proprietário de casa própria pensa duas vezes antes de se meter
em arruaças ou depredar propriedades alheias e torna-se um aliado da ordem” Depoimento de
Roberto Campos, ministro do Planejamento no governo de Castello Branco no Seminário sobre
o Plano Nacional de Habitação, São Paulo, 1966. Plano Nacional de Habitação, s.1, BNH,
1966, vol.2, p. 20-21 ( AZEVEDO & ANDRADE, 1982, pg. 597 apud GONÇALVES, 2013,
pg. 221).
264
A fala do presidente do BNH à época José Lopes Oliveira é cristalina neste sentido: [...]
talvez nenhum outro setor possa oferecer maiores oportunidades para a conjugação de esforços
de empresários privados e de homens de governo como o habitacional e o de serviços públicos
essenciais. Por outro lado, não existe maior inimigo para a prosperidade econômica,
objetivo das empresas privadas, do que o agravamento das tensões sociais e a redução
do nível de estabilidade econômica, social e política. O favorecimento das atividades
vinculadas à habitação popular e dos órgãos que as promovem serve a todos objetivos
(grifo nosso) (Seminário faz balanço de erros e acertos no setor da habitação. Interior. Brasília,
novembro-dezembro, 1980, Ano VI, n º.35, pg.33).
265
“Era preciso retirar as pessoas daquela realidade. É por isso que até hoje sou desconfiada em
relação aos projetos que pretendem cuidar das favelas mas que, pela vitoria esmagadora dessa
filosofia que se instalou, acham que as favelas devem continuar a existir e apenas devem ser
urbanizadas. Eu achava, e acho ainda, que não é a favela que tem que ser urbanizada. Quem
tem que ser urbanizado é o favelado. Uma das condições para um favelado se urbanizar, para
desfavelizar, é sair daquela paisagem e daquele entorno” Trecho de uma entrevista concedida por
Sandra Cavalcanti, sucessora de José Arthur Rios na Secretaria de Serviços Sociais da Cidade
(FREIRE & OLIVEIRA, 2002, pg. 88 apud GONÇALVES, 2013, pg. 217).

193
Urbanizações democráticas e remoções autoritárias: buscando zonas cinzentas entre dois ...

A ideia de que havia valores culturais inerentes à forma de morar


trazida pelos condomínios, ligados a um estilo de vida pertencente à
classe média será um discurso corrente tanto daqueles que advogavam
pela implantação deste regime jurídico nas favelas,266 tanto daqueles que
não defendiam sua implantação, alegando um possível confronto com os
valores culturais da população favelada267. Chama atenção o fato de que
a implantação dos condomínios exigiria não só um esforço individual de
padronização, mas também uma nova forma de se organizar coletivamente
(SANTOS, C.R., 2016).
Neste sentido, o Projeto Rio estabelece como um dos seus objetivos
o “estímulo à associação comunitária através de esquemas de apoio que
orientem a organização da população em condomínios, cooperativas,
associação de moradores etc.” (Fundrem, 1980b, pg. 1/6); e também cria
um anteprojeto de convenção de condomínio estabelecendo a organização
interna, as regras de convivência e as formas de tomada de decisão
(Fundrem, 1980b, pg. 4/36).
Assim, a implantação do regime de condomínios para a
regularização fundiária parece adotar uma concepção culturalista que
subordina a demanda por direitos, neste caso, a segurança da posse, à
aquisição de um passaporte cultural, “a ser obtido progressivamente pela
transformação de uma população vista como incivilizada em indivíduos
reeducados através do reaprendizado de uma boa identidade (FARIAS,
2007 apud BIRMAN, 2008, pg. 110)”.

266
“Os técnicos do Projeto Rio já encontraram a fórmula para regularizar a propriedade da
terra de quase 70 mil pessoas que vivem nas favelas da Maré: as casas serão agrupadas em
condomínios e cada família terá direito a uma fração ideal do terreno, como nos edifícios
de luxo. [...]O Secretário Estadual de Planejamento, Waldir Garcia, esclareceu que a formação
dos condomínios foi a solução jurídica encontrada para que os favelados pudessem se tornar
proprietários de seus terrenos e a partir daí, aumentar seu interesse pelo imóvel. A demarcação
dos lotes, nos moldes tradicionais era um trabalho que se estava tornando quase impossível
para os técnicos da FUNDREM [ grifo nosso] ( Projeto Rio divide terrenos entre as famílias da
Maré. Jornal do Brasil. Rio de janeiro, 31/10/1980. 1º Caderno, Cidade, pg. 7).
267
“[...] a administração de condomínios importa a utilização de complexas normas que
objetivam a harmonia das relações sociais correspondentes, bem como a adoção por todos
os condôminos de determinados padrões de comportamento compatíveis com o regular
funcionamento do condomínio. Estes padrões e normas, que se impõe, poderão ser
inadequados ao nível econômico e social e aos correspondentes valores culturais da
população favelada, beneficiária do programa, o que corresponderia, em ultima análise
a contrariar os próprios interesses dessas populações” [grifo nosso] (VACONCELOS,
1986, p.58).

194
Caroline Rocha dos Santos

Conclusão
O trabalho enfatiza que projetos que visavam à urbanização
de espaços favelados, ainda que não prevejam ações remocionistas
mais explícitas, não podem ser enxergados intrinsecamente como
democráticos. Assim, indicamos que a regularização fundiária e
urbanística, além de não ser capaz de romper com o processo de
estigmatização destes espaços, em certa medida ela confirma-o, por
ter como pressuposto o fato de que as favelas enquanto lugar do
desvio da lei, precisa se adequar a ela para garantir a permanência aos
seus moradores.
No caso específico do Projeto Rio, este mecanismo foi agudizado
pela própria forma como a intervenção urbanística e fundiária fora
implementada, através da instauração de condomínios horizontais,
que trazia consigo a necessidade de “civilizar” os favelados, do uso
explícito da violência para garantir a remoção dos favelados que
viviam nas palafitas para as novas unidades habitacionais, bem como
da ausência de canais efetivos de participação que desse voz aos
anseios e propostas dos favelados afetados pelo projeto. Percebemos
assim que os elementos que, a princípio, caracterizam o Projeto Rio
como uma ação estatal diferenciada, expressando a reinstauração da
democracia que já apontava no horizonte, quando olhados a partir da
maneira pela qual foram de fato implementados refletem a maneira
pela qual a repressão e o autoritarismo tornava-se uma experiência
real e cotidiana da vida dos favelados.
Contudo, pensar na criação de estratégias resilientes implica
no reconhecimento de que o Estado ao mesmo tempo em que se
apropria das lutas populares, como quando promove a regularização
fundiária de algumas favelas da Maré diante das mobilizações contra
as remoções, também é, evidentemente, um campo de disputas.
Logo, se inscreve também no cerne desta regularização urbanística
e fundiária efetivada pelo Projeto Rio as lutas históricas travadas por
aquela população para que pudesse ocupar aquele local enquanto
lugar de moradia digna.

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Urbanizações democráticas e remoções autoritárias: buscando zonas cinzentas entre dois ...

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