Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
21 de março de 1902
Querida Kathlee, peço que perdoe minha demora a escrever-lhe, os céus sabem a saudade que
sinto da minha tão amada Finlândia, das baixas colinas com o som das águas dos rios a passar, do
clima moderado e aconchegante, das vozes dos tretazes soltos nos verdes campos, dos maravilhosos
passeios ao longo do Pielinen vendo os casais de cisnes flutuarem por todo aquele imenso lago azul,
dos altos pinheiros se perdendo no horizonte e, acima de tudo, sinto falta da sua doce voz e de nossas
longas conversas, minha amada. Oro para que esta carta chegue em suas mãos e alivie um pouco de
sua possível dor..
Não sou ninguém para pedir que acredites nos eventos que passarei a narrar a partir de
agora, nem eu mesmo acreditaria se alguém me contasse tais histórias a poucos meses atrás. No
entanto apelo para que atentes aos dados históricos e geográficos que darei. Se tal coisa não for
suficiente, suplico-lhe que confie em minhas palavras, por terem sido proferidas pelo seu pobre
amado, que jurou aos céus nunca mentir para você, e que nunca o fará.
Como bem sabes, parti em minha aventura no dia 7 de novembro de 1901, viajei até a cidade
de Turku no sudoeste da Finlândia e de lá peguei uma embarcação que seguia para Dinamarca.
Levei seis dias para chegar à terra dos vikings. Dormi apenas uma noite em um pequeno vilarejo de
pescadores e depois peguei carona com um comerciante francês que estava indo vender mercadorias na
Grã-Bretanha, aproveitei a chance para treinar um pouco do idioma. Devido ao mau tempo levamos
14 sofridos dias para cruzar o mar do norte e chegamos ao porto de Dover, na Inglaterra, na noite
do dia 28 do dito mês. Chegando lá passei dois dias conhecendo a cidade e logo viajei para o
condado de Oxford, o verdadeiro destino da minha viagem.
Todo o meu tempo passado estudando em Oxford fora registrado em meu diário que lhe
mostrarei assim que lhe ver e por isso não me prolongarei nessa parte da história. A única coisa que
importa saber por ora é que passei todo o mês de dezembro em Oxford. Lamentei o fato deste ter
sido o primeiro ano em muitos em que comemorei o nascimento no nosso Senhor longe da sua tão
agradável presença. No fim do mês de Janeiro a escola entrou no período de férias. Sem saber ao
certo o que fazer, optei por aproveitar esse período com minhas viagens. Wallace, um típico escocês a
quem tive o prazer de chamar de amigo, que Deus o tenha, disse que voltaria para sua terra natal
nessas férias e perguntou-me se eu gostaria de ir com ele e mais dois amigos visitar a Escócia.
Aceitei de imediato o convite e na semana seguinte estávamos na maravilhosa cidade de Glasgow..
Ainda me recordo do som da gaita e das estranhas vestimentas dos escoceses.
Passamos algumas divertidas semanas na cidade. Devo registrar aqui minha completa
fascinação com a Escócia, terra de homens e mulheres virtuosos, honrados e que anseiam acima de
tudo pela tão sonhada liberdade. No dia 13 de fevereiro, Wallace propôs que fossemos conhecer as
hébridas interiores, um arquipélago situado a noroeste da escócia. Alugamos um barco e viajamos até
o arquipélago. Foi a partir daí que as coisas começaram a piorar.
No dia 24 do mesmo mês viajamos para a ilha de Ulva. No meio da noite uma forte
tempestade preocupou o capitão de nossa embarcação, fizemos de tudo para continuarmos navegando,
mas as forças da natureza foram mais fortes e acabaram por afundar nosso barco. Não consigo dizer
com precisão quanto tempo passei desfalecido, boiando sem rumo pelos terríveis mares do norte da
Escócia.
Fui acordado pelos gritos e tapas de Wallace; eu e ele aparentemente fomos os únicos
sobreviventes daquele terrível desastre e estávamos agora num pequeno rochedo a não mais que
duzentos metros de distância de uma ilha. Nós dois trememos diante uma pavorosa melodia que se
fazia presente no ar, parecia um antigo canto gregoriano recitado por monges nalguma catedral
gótica. Concluímos que o som se dava pelo bater das ondas nas rochas da ilha e resolvemos nadar
até lá para esperar que alguma embarcação enviada pelos céus nos resgatasse.
Ao chegarmos na ilha o sol já estava se pondo e caminhamos pela praia na esperança de
achar algum lugar para passarmos a noite. Para nossa infelicidade após a praia da ilha se erguia
uma imensa parede feita com estranhos pilares hexagonais que impossibilitaram a nossa saída da
praia, a verdadeira ilha estava lá em cima, e nós estávamos em baixo, entre o mar da escócia e a
estranha parede. Por algum tempo fiquei maravilhado e aterrorizado com a arquitetura, se eu assim
a posso chamar, daquela parede. Toda natureza esculpiu suas maravilhas de um jeito único,
organizado, poético, variável e mutável; nada comparado aquela estrutura neolítica: eram grossos
pilares rudimentares, secos, friamente simétricos uns em relação aos outros, não parecia fazer parte
da criação. Estranhos desenhos estavam esculpidos em alguns dos pilares e representavam
aparentemente constelações desconhecidas pela humanidade. Alguns pilares ainda possuíam
caracteres de um idioma coliforme e antigo, que parece datar de uma época anterior aos egípcios.
Passamos um bom tempo tentando decifrar onde estávamos. Para Wallace, e essa era a
teoria mais óbvia, nós nos encontrávamos nalguma ilha das Hébridas que nunca fora explorada pelo
ser humano e que fora lar de uma tribo antiga, talvez os ancestrais dos celtas. Acontece que o'que
parece óbvio é apenas a ilusão mais atraente que nós, pobres tolos, escolhemos acreditar. Ah minha
doce Kathlee, quantas coisas terríveis eu poderia ter evitado se soubesse disso naquele momento, a
mente humana está sempre querendo um universo lógico e que faça sentido, mas minha aventura
ensinou-me que o verdadeiro universo supera em muito a lógica.
O cavaleiro do dia já havia permitido que a princesa da noite reinasse absoluta na
companhia de suas eternas dançarinas quando encontramos um lugar para repousar. Era uma
pequena caverna entre alguns pilares, sua entrada parecia ter sido esculpida a mão. Acendemos uma
fogueira com o meu isqueiro que milagrosamente ainda funcionava mesmo depois do naufrágio e
inclinamos nossas cabeças para dormir. Enquanto eu dormia sonhei que me via na parte superior da
ilha, com estranhos tentáculos que pareciam brotar do chão a me perseguir;, tudo ficava com um tom
roxo doentio e eu estava de repente sendo sugado para dentro da terra pelos tentáculos.
Acordei-me com um grito e percebi que Wallace estava em pé, andando de um lado para o
outro com uma expressão perturbada. Chamei ele para conversar e ele, assustado, me contou o mesmo
sonho. Ao que tudo indicava, algo mais havia naquela ilha. Decidimos sair da caverna para tomar
um ar e logo pudemos notar uma neblina que parecia envolver toda a ilha. Depois de um tempo
voltamos para a caverna e tentamos dormir mais uma vez. Graças aos céus a única coisa que sonhei
foi com nossas idas a Igreja Luterana, aquilo aquietou-me a alma.
Ao amanhecer continuamos nossa caminhada pela ilha, nesse tempo eu e Wallace
conversamos sobre quase tudo, desde nosso posicionamento religioso até o quão forte era a saudade
que sentíamos de casa. Depois de muito andar encontramos entre os dois maiores pilares que até
então tínhamos visto uma espécie de gigantesca escada natural que levava para a parte superior da
ilha. Debatemos se devíamos ou não subir e por fim chegamos a conclusão que aquele debate era
inútil. Estávamos perdidos numa ilha aparentemente deserta, famintos e feridos pelo naufrágio.
Subir era a única opção se quiséssemos continuar sobrevivendo e independente do que encontrássemos
lá em cima, não seria muito pior do que a situação que estávamos. Ao que parece toda nossa
tentativa de mudar o destino é apenas um atalho para que ele se concretize. Aprendi que não cabe ao
homem decidir aonde vai estar, cabe apenas decidir o que fazer estando aonde ele está.
Levamos cerca de vinte minutos para subir a “escada”. Ao longo da subida notamos que o
cenário estava mudando e que partes da vegetação da ilha começaram a aparecer. A cor da vegetação
era de um verde musgoso e eu nunca tinha visto aquelas plantas em toda minha vida, era pequena
como a grama mas ela dava várias voltas em torno de si, parecendo diversos espirais.
Ao fim de nossa subida, eu e Wallace ficamos terrivelmente assustados e maravilhados.
Todo o chão da parte superior da ilha era composto por essa vegetação musgosa, as folhas das
árvores também tinham o formato em espiral, mas sua cor era uma espécie de vermelho. Nada
naquele lugar lembrava o nosso mundo, até a luz do sol pareceu mudar e trocar o azul do céu por
um tom alaranjado. Estávamos em um campo aberto e a uns 800 metros de distância pudemos ver
uma floresta de folhas espirais e completamente escarlates.
Ficamos parados pensando se deveríamos continuar nossa exploração. Não foi preciso pensar muito.
Primeiro ouvimos um grito que pensamos ser de algum animal, o grito era agudo e aterrorizante e,
quando menos esperávamos, tivemos a infeliz oportunidade de ver uma criatura gigantesca sair da
floresta e se locomover em nossa direção. Minha amada princesa, não consigo descrever exatamente
como era a criatura, imagine um polvo gigantesco, completamente colorido por um roxo doentio, com
seus olhos demonstrando ódio e desprezo, usando seus arrepiantes tentáculos cheios de ventosas para
se locomover por aquela vegetação musgosa e vir em nossa direção. Eu e Wallace ficamos sem
expressão diante daquela visão, pensei ter ficado louco e tudo aquilo ser apenas fruto da minha
imaginação, ou quem sabe eu teria morrido no naufrágio e aquilo era o pós-vida? Ignorei tais
pensamentos por um instante me lembrando da minha fé, louco talvez, mas eu com certeza estava
vivo. Embora duvidando de minha própria sanidade, tentei correr e pedi que Wallace me
acompanhasse. Eu e ele começamos a correr sem olhar para trás, para a terrível criatura tentacular
que nos perseguia, começamos a descer a escada quando a criatura cravou um de seus tentáculos no
chão musgoso e de repente tentáculos prenderam o meu pé e o de Wallace, fazendo com que
caíssemos no úmido solo da parte superior da ilha. A criatura começou a puxar seus tentáculos e nós
dois acabamos sendo puxados juntos.. De repente enquanto estávamos sendo puxados ouvimos um
estrondoso barulho como um trovão e um raio incandescente desceu do céu alaranjado, cortando os
tentáculos que nos prendiam. Levamos algum tempo para nos livrar das pegajosas ventosas que nos
prendiam. Continuamos a correr e eu por curiosidade olhei para o céu, para ver de onde teria vindo o
raio que nos libertou. O que vi foi a coisa mais terrivelmente maravilhosa que nunca mais verei.
Havia uma espécie de “corte” no céu alaranjado daquele lugar, como se o próprio tecido da realidade
tivesse sido cortado, como quando quem pega uma faca e faz um corte num tecido de roupa. Por trás
desse corte pude contemplar algo como o infinito, estrelas, nebulosas e galáxias inteiras se perdiam
para além daquela fissura. Uma gigantesca criatura bípede com feições de aves estava ao lado da
fissura, apontando uma espécie de lança, se eu assim a posso chamar, na direção da coisa hedionda
que me perseguia. Irei continuar a escrever-lhe, embora nesse momento lágrimas escoram pelos meus
olhos.
Enquanto corríamos a criatura alada lançava diversos raios incandescentes na direção do
monstro tentacular. Cada vez que um dos raios o atingia, um maligno e terrível grito se fazia ouvir.
Eu, que enquanto corria para atingir a escada olhava constantemente para trás, vi que o monstro
tentacular lançou uma espécie de jato negro na direção da criatura que nos salvará. Ouvi dizer que
os polvos do nosso mundo também conseguem fazer isso. Por um momento os raios cessaram e nesse
pequeno intervalo de tempo, um dos tentáculos capturou Wallace. Ele gritava de desespero e eu
tentei resgatá-lo, mas era tarde demais, o monstro que já estava bem mais próximo de nós, puxou ele
e, abrindo uma enorme boca repleta de dentes afiados como navalha, o engoliu. Assim morreu meu
querido amigo. Horrorizado e tomado por raiva e terror, decidi que a morte que Wallace não seria
em vão e tentei, com todas as minhas forças, correr na direção da escada. O monstro lançou um dos
seus tentáculos na minha direção mas a criatura alada, que já estava livre do jato, lançou mais um
raio desintegrando o tentáculo. Finalmente cheguei a escada e comecei a descer, lembro-me de ter
olhado para trás mas, devido ao ângulo da descida, eu já não vira mais o monstro. Um grande clarão
e um estrondo preencheram toda a ilha, e eu fui lançado aos ares. A única coisa que seguem esses
eventos que me lembro é de ter acordado em um leito do hospital público de Glasgow.
As enfermeiras disseram-me que eu fora trazido por um pescador que disse ter me
encontrado na costa oeste da Escócia. Segundo a enfermeira eu havia passado dezessete dias em
coma, falando poucas vezes sobre uma ilha musgosa. A lembrança da ilha trouxe de volta para mim
todos aqueles terríveis momentos, e passei um bom tempo assustado e entristecido. No dia dezoito de
março tive alta e viajei para Londres, onde estou atualmente. Daqui espero pegar uma embarcação
que me leve para Finlândia. Essa é a história que tenho para lhe contar, minha amada, gostaria de
lhe dar boas notícias mas devo sempre professar a verdade, estou bem, mas ainda fico triste e
pensativo na imensidão do universo, e no quão pequeninos e insignificantes nós somos. As conversas
dos seres humanos perderam sentido para mim, não consigo mais achar graça em meros assuntos, eu
que já contemplei a imensidão do infinito. Espero chegar logo em casa e correr para o seu caloroso
abraço, pois a única coisa que tenho certeza no momento, é que lhe amo. Às vezes ainda acordo à
noite assustado com sonhos sobre ilhas, musgos, naufrágios e batalhas titânicas entre criaturas que
perturbam o imaginário humano. Me assusto ainda mais quando tenho a impressão de nefastos
tentáculos acariciando o meu pé à noite. Por agora é só, espero chegar bem.
Do seu esposo que tanto lhe ama, Richard.