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Originalmente publicado em: (Outubro 2008) Actas do 7.º Encontro Nacional (5.

º Internacional) de Investigação em
Leitura, Literatura Infantil e Ilustração. Braga: Universidade do Minho.

Texto e Imagem: Um mais Um igual a Outro


Adriana Baptista*

Resumo Abstract

Os contextos multimédia contemporâneos desenvolveram The contemporary multimedia contexts of information


estratégias específicas para a transmissão de informações developed specific strategies for the exchange of all kinds
e emoções, que exigem competências de processamento of information and emotions and new visual and cognitive
visual e cognitivo não só dos diferentes sistemas processing skills are necessary to decode the different
representativos, mas também das suas interacções semiotic systems and to understand their multiple dialectic
dialécticas. É, por isso, cada vez mais urgente discutir interactions. It is thus urgent to discuss the cognitive
a dimensão da multimodalidade, quanto ao próprio processing changes that arise from the use of multimedia
processamento. systems.
Perceber a forma como o homem se apropria das But to understand the process by which men cognitively
características intrínsecas dos diferentes sistemas semióticos master the intrinsic characteristics of different semiotic
para cumprir de forma multimodal determinados objectivos systems in order to achieve multiple interpretative goals
pode, no entanto, não ser suficiente para perceber as in a multimodal way may not be sufficient to understand
vantagens da utilização articulada de material verbal e the advantages of articulate uses of verbal and pictorial
pictural em determinados contextos. materials in specific contexts.
A Literatura Infantil, numa fase em que se cruzam a Using Children’s Literature (with multiple kinds of
aquisição e o desenvolvimento de diferentes literacias, illustrated texts) during the period when the acquisition
inclui a vantagem de usar de um modo intenso e elaborado and development of different kinds of literacy emerge,
processos retóricos capazes de promover de forma consolidate and influence each other, may allow children to
interdependente, entre outras, competências estéticas e contact intensively with complex rhetoric processes capable
pragmáticas úteis para a leitura e para a compreensão do of promoting in an interconnected way the comprehension
mundo e deve, por isso, ser entendida como um caso muito of plural kinds of information and to become able to read
particular de promoção das competências multimodais. denotative and connotative text characteristics along
with aesthetical information. Those skills useful for text
reading, but also for the understanding of the world,
should be enough to consider children illustrated books a
very particular case of promotion of multimodal reading
competences.

Não podemos hoje voltar as costas ao facto de os canais de difusão massiva de


informação utilizarem sistematicamente o sistema verbal (oral e escrito), apoiado por
outros sistemas. A alfabetização verbal e o desenvolvimento das diferentes literacias
verbais não são já suficientes para a compreensão cabal de certos conteúdos. As imagens
invadiram o nosso quotidiano e estão obviamente disponíveis para a fruição estética, mas
também para utilizações pragmaticamente determinadas. Porém, estaríamos errados se

* Escola Superior de Educação – I. P. Porto (adrianabaptista@ese.ipp.pt).


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pensássemos que as capacidades de literacia visual, acrescidas às nossas capacidades de
literacia verbal, preencheriam todas as nossas necessidades na descodificação dos vários
tipos de informação.
Sabemos que a anexação de textos e imagens é cada vez mais capaz da produção
de mensagens retoricamente muito elaboradas em que a informação a transmitir só se
esgota em leituras cruzadas de texto e imagem e que a aprendizagem desta dimensão
retórica precisa de tempo e de competências intra e extra-textuais que, como todas
as mensagens retoricamente elaboradas, exigem competências muito para além das
capacidades de identificação dos conteúdos representados.
Podemos perguntar-nos: quantas vezes, nestas situações multimédia, confundimos
ver e saber? Quantas vezes é a nossa leitura dos textos que narram o mundo de forma
mais isomórfica comandada por informações obtidas antes da percepção desses mesmos
textos? Quantas vezes são as nossas expectativas sobre os textos alteradas em função
dos conteúdos percepcionados? Quantas vezes a compreensão depende da decifração?
Quantas vezes a decifração da compreensão? Ou seja, se eu vir uma barra cronológica,
por exemplo, que expectativas tenho de que o ano 2000 se encontre à direita do ano
2008? Por que razão a representação gráfica da flecha do tempo se organiza sempre da
esquerda para a direita, ou seja, o passado à esquerda e o futuro à direita, sendo o presente
um ponto x indeterminado entre o passado e o presente? Corresponderá o presente a
uma imagem mental antropomórfica de mim mesmo, metaforicamente caminhante em
direcção ao futuro e, por isso, voltado de frente para a direita e será o passado sempre o
percurso percorrido até ao momento presente e, por isso, representado como aquele que
corre (ou que se move) na perseguição do presente? Até que ponto é esta informação
(a de que o tempo se representa da esquerda para a direita, e a de que o presente ganha
dimensões antropomórficas emprestadas ao eu que vê e, por isso, o rosto se vira para o
futuro) anterior à observação de qualquer representação, condicionante da compreensão
da própria representação? Se sim, como poderemos uniformizar as competências culturais
que a interpretação das imagens sempre convoca partindo do princípio de que raramente
a interpretação das mesmas depende da sua dimensão isomórfica?
Por outro lado, poderão os textos verbais suportar a leitura dos textos picturais?
E os picturais trazer luz à própria decifração verbal? Quantas vezes se atrapalham?
Quantas vezes cada um deles apagará o outro? De que forma desconfiamos das imagens?
De que forma nos deixamos manipular por elas? Como pode um texto definir/informar
sobre o que a imagem representa? De que forma podem as imagens ser manipuladas
pelos textos?
A informação de que o processamento de informações verbais e visuais dependia
de hemisférios cerebrais diferentes conduziu a que se pensasse que existiam pessoas mais
criativas em termos visuais (nas quais o processamento da informação era mais orientado
para o hemisfério direito e, por isso mesmo, mais capazes em termos espaciais) e pessoas
mais criativas em termos verbais (nas quais o processamento da informação, mais criativo
em termos analíticos, se faria preferencialmente no hemisfério esquerdo, responsável
pela linguagem verbal). Apesar de a lateralização cerebral ser de facto responsável por
alguma especialização, aquilo que parecia ser um dado adquirido transformou-se hoje
numa evidência muito mais complexa, e as informações disponíveis (cf. Hellige, 1993)
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parecem indicar que o mais importante para o processamento criativo da informação
não é a dominância cerebral, mas a capacidade para promover a interacção entre os
vários subsistemas neurológicos. Não é ainda possível avaliar o quanto esta capacidade
decorre da familiaridade com textos bimodais, nas sociedades contemporâneas, mas
parece certo que a permanente integração de informações verbais e visuais exige um
funcionamento interdependente de, pelo menos, dois subsistemas neurológicos para
processar e interpretar rapidamente as informações veiculadas através de dois sistemas
semióticos.
A descodificação e a interpretação deste tipo de informação pressupõem
inevitavelmente vários tipos de alfabetização e o domínio de diferentes literacias,
também elas diferentemente potenciadas pelos diversos contextos socioculturais; mas o
facto de os sistemas utilizados serem ambos visuais pode levar falaciosamente a crer que,
ainda que eventualmente processado de forma diferente, o material verbal e pictural dos
textos bimodais possa ser lido de forma idêntica. Provavelmente, não pode.

Quadro I – Literacia e leitura de textos bimodais.

A utilização do termo literacia para a selecção, interpretação e manuseamento


de informações não exclusivamente verbais adjudicou o termo leitura a outros tipos de
textos, nomeadamente aos picturais. Mas «leitura» foi e continua sendo, no contexto da
percepção e interpretação de imagens, uma designação controversa.
Goldsmith (1984: 2) refere que o termo «leitura» (reading), usado para os textos
verbais, tem sempre duas acepções. Uma delas pode apenas pressupor uma actividade de
decifração (readability), já que é possível ler um texto sem compreender o seu conteúdo;
a outra pressupõe obrigatoriamente decifração e compreensão, já que não é possível
compreender um texto sem o decifrar.
Ora, a ser usado para as imagens, e uma vez que não faz sentido distinguir
decifração de compreensão, mas percepção de compreensão, o termo leitura deveria
ser entendido sempre no sentido da compreensão (understanding) e esta seria uma das
razões por que a designação leitura, quando associada a textos visuais não verbais, pode
ganhar alguma ambiguidade.
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Quadro II – Decifração e compreensão.

Se consideramos que não é totalmente correcto importarmos o termo decifração


para a leitura de imagens, o que se entende, então, por «compreender uma imagem»?
O certo é que a compreensão de uma imagem pressupõe mais do que um nível de análise
e, para a sua leitura (se entendermos leitura como compreensão), a identificação da
dimensão representativa, apesar de implicar a identificação/compreensão de algumas
características estruturais, não é suficiente. A compreensão da mensagem de uma
imagem implica, a par da identificação dos objectivos da sua reprodução, a detecção de
características sémicas decorrentes da organização retórica dos seus elementos.
Os contextos em que os sistemas semióticos verbais e picturais aparecem hoje
interligados são múltiplos e difíceis de distinguir. Entre eles, encontramos, sem dúvida
nenhuma como alguns dos mais produtivos, a publicidade, a arte e a ilustração nas obras
de literatura para a infância.
Nestes múltiplos contextos, as duas instâncias textuais podem evidenciar graus
diferentes de interpenetração. Esta pode ir de um grau mínimo, quando a anexação
gera o que designamos textos mistos (aqueles que evidenciam apenas uma parceria
de instâncias textuais, eventualmente com consequências no processamento visual e
cognitivo, mas em que nenhuma das instâncias textuais afecta significativamente a outra,
ou seja, em que é possível detectar alguma independência na informação transmitida e
nas estratégias para a sua transmissão).
Mas a anexação de dois tipos de texto pode evidenciar um grau significativo de
interdependência das duas instâncias e gerar o que designamos textos híbridos. Estes
textos partiriam de uma concepção dinâmica de texto1, e seriam capazes de gerar um
produto factorial das duas instâncias textuais, activando eventualmente formas de
processamento bimodal, e estabelecendo entre si fortes relações deícticas. Nos textos

1
Nesta concepção dinâmica, proposta em Scherner (2000), poderíamos concluir que a própria percepção visual se
orientaria com base em conhecimentos empírica e culturalmente adquiridos sobre a forma como cada uma das instâncias
textuais se suportam para a construção de sentidos.
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híbridos, os mecanismos de referência poderiam remeter para dentro de cada um dos
textos (desencadeando as relações deícticas in praesentia) ou poderiam exigir que
elementos exteriores à imagem e/ou ao texto fossem convocados para a construção de
sentidos (desencadeando as relações deícticas in absentia); nestes textos qualquer uma
das instâncias podia afectar a compreensão da outra.
Neste caso particular dos textos híbridos, as expectativas geradas pelo leitor
evoluiriam dinamicamente entre o texto pictural e o texto verbal, sendo progressivamente
validadas ou invalidadas, determinando assim o modo como a leitura e a compreensão
se processam. Com estes casos seria fácil constatar que o processo de construção de
expectativas sobre o que vai ser lido e visto, depende fortemente do modo como se
desenvolve, de uma forma eventualmente também híbrida, o próprio processamento da
leitura das duas instâncias, verbal e visual.

Quadro III – Tipologia de textos bimodais.

No caso mais profundo de anexação das duas instâncias que considerámos, o


texto fusional (de facto, já não podemos falar apenas de uma anexação), a fusão seria
entendida a partir da própria concepção híbrida de texto e geraria inequivocamente um
produto factorial das duas instâncias, não permitindo separação dos meios apresentativos
e representativos que as constituíam. Nestes casos, a própria leitura, como diz Sabine
Gross (1997), transformar-se-ia num jogo dinâmico, com consequências detectáveis no
processamento de textos. A um nível micro, a leitura obrigaria a que o leitor optasse, em
cada momento, por um aparato de leitura icónica ou arbitrária e soubesse interpretar a sua
dimensão conotativa. Estes textos, de que a poesia concreta é um exemplo significativo,
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inverteriam o processo de aprendizagem da leitura, dado que aprender a ler implica
deixar de entender as letras como imagens e que, para compreender estes textos, em
alguns momentos do processo de leitura, é preciso impedirmo-nos de ver o grafema,
para ver a representação icónica que o seu conjunto produz. E, por isso mesmo, é esta
leitura um desafio, uma aposta, um campo sempre infindável, que a investigação do
processamento verbal e visual terá de abordar.
Nesta concepção tripartida, não há qualquer intuito gradativo no que diz
respeito à complexidade dos textos, ou seja, os textos mistos não são, nem poderiam
ser, por exemplo, menos conotativos do que os textos híbridos, nem os híbridos menos
elaborados do que os fusionais. De facto, cada um deles actualiza estratégias de atracção
diferentes e socorre-se, em graus diferentes, da redundância intersistemas. Todos exigem
atenção perceptiva e esforço interpretativo, e seria errado pensar, por exemplo, que os
textos mistos usam mais o desenho realista e os fusionais mais a dimensão abstracta das
mensagens visuais.
Textos e imagens podem distinguir-se através de múltiplas e variadas características.
Uma dessas características, que nos parece mais operativa para o que queremos demonstrar,
é o facto de as palavras se referirem ao mundo estabelecendo com ele uma relação em
que a arbitrariedade é uma dimensão operativa e produtiva de sentidos, e de as imagens
se referirem ao mundo estabelecendo com ele uma relação motivada, eventualmente
isomórfica.
Não devemos, todavia, esquecer que a representação pictural do mundo – mesmo
a que se socorre de estratégias de mimetismo – exibe sempre um desvio em face da
realidade, e que as palavras, apesar de na sua grande maioria serem imotivadas, são
capazes de se adequar ao mundo de tal forma que, quando as ouvimos, as tomamos
frequentemente pelo próprio mundo. Temos, pois, de ter presente que não é nunca
possível dizer que a representação é igual à realidade. Toda a representação é um desvio,
e são exactamente o grau e a qualidade desse desvio que conferem à representação
a sua capacidade de nos surpreender. Por isso mesmo, teremos sempre de aprender a
interpretar imagens, ou seja, precisamos de interpretar como elas se desviam do mundo
para o mostrar.
Para além disso, todos sabemos que não é o facto de as imagens exibirem relações
de semelhança com os objectos representados que faz aumentar a nossa capacidade para
confiar nelas ou tão-só para as compreender. Identificar os objectos representados na
imagem não é suficiente para percebermos a razão por que aparecem representados
naquele determinado contexto. Nenhuma representação, como vimos, figura o real, mas
sempre um ponto de vista sobre o real e, para ficarmos conscientes dos objectivos de
representação do mundo real ou ficcional, necessitamos muitas vezes que esses objectivos
sejam identificados através da asserção verbal. O texto é, assim, frequentemente,
apesar da sua dimensão arbitrária, aquele que é capaz de desvendar os objectivos de
representação da imagem, e a relação dialéctica entre as duas instâncias textuais é aquela
que é capaz de desencadear as operações retóricas mais significativas. Compreender,
por isso, um texto bimodal implica sempre compreender a sua dimensão retórica.
A investigação sobre o processamento visual na leitura deixou a nu uma série de
particularidades, e sabemos hoje que as formas como os olhos se organizam para obter
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informação de um texto visual verbal e de um texto visual pictural são profundamente
diferentes.
Por um lado, na leitura de textos verbais, é evidente que a linha de texto é um
elemento estruturador da percepção e que os olhos distribuem os seus dois movimentos
fundamentais (fixações e sacadas) ao longo dessa mesma linha, fazendo várias fixações
de duração média semelhante (250 milissegundos) e sacadas relativamente regulares
intercaladas; quando a linha se interrompe, no limite direito da página, ocorrem longas
excursões do olho para sensivelmente o início da linha seguinte.
Esta regularidade não acontece nos textos picturais, nos quais o que comanda
a sequência das fixações está longe de ser uma orientação horizontal. Nos textos
visuais picturais, os olhos fazem fixações em zonas muito distantes entre si dentro da
área de percepção, as sacadas evidenciam uma grande irregularidade e, apesar de a
sua amplitude média rondar os quatro graus, podem ser muito inferiores a um grau.
De facto, observando os scanpaths dos textos visuais picturais, tudo neles suscita em nós
a curiosidade de perceber o que comanda cada uma das sacadas e o que determina a
duração de cada fixação.
Ora, uma vez identificadas as diferenças no processamento visual de textos verbais
e picturais, não podemos deixar de nos interrogar sobre como se efectua o processamento
de textos bimodais. Poderemos esperar que este processamento combine as estratégias
do verbal e do visual ou teremos que contar com um verdadeiro processamento bimodal?
É desde há muito evidente (cf. Buswell, 1936; Yarbus, 1967) que olhamos
diferentemente para as imagens quando sobre elas temos instruções de processamento,
ou seja, quando nos pedem que as olhemos à procura de qualquer coisa. Olhamo-las
de um modo particular, e é mais fácil encontrar regularidades no movimento dos olhos
de diferentes sujeitos quando lhes é dada uma certa instrução. É, hoje, também uma
realidade que o processamento simultâneo de textos e imagens permite combinar de
forma verdadeiramente dialéctica os dois processamentos, e suspeitamos de que todos
os textos verbais na periferia de uma imagem podem funcionar como instruções de
processamento.
Para além da publicidade, é a literatura para crianças (e os textos para crianças
em geral) uma das mais produtivas dimensões de anexação de textos visuais e verbais.
E, dado que as crianças contactam com estas obras em idades em que a aquisição da
literacia verbal e visual está em franco desenvolvimento, parece-nos que merecem
verdadeiramente a nossa atenção, pois vão certamente constituir-se como um dos pólos
promotores da literacia visual.
E, aqui, gostaríamos de frisar o seguinte:

1.º - Quando nos referimos a textos bimodais na literatura para crianças,


não estamos apenas a referir-nos a textos em que a instância visual actualiza
unicamente as funções decorativa, de complemento, ou de acrescento (naqueles
casos em que a imagem é redundante face ao texto e apenas lhe acrescenta a
mais valia da representação num outro sistema semiótico). Estamos a falar de
textos que actualizam funções interpretativas, organizativas, transformadoras
e sobretudo funções dialécticas, pelas quais toda a acção retórica se organiza e
desenvolve (cf. Calado, 1994).
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2.º- Quando nos referimos a textos bimodais visuais e verbais na literatura para
crianças, não estamos unicamente a referir-nos a textos em que a instância
verbal se associa, se confunde, se funde com os desenhos, mas em textos em que
todo o tipo de informações visuais se organizam para funcionar produtivamente
com a instância verbal.

Por isso mesmo, talvez seja oportuno, antes de analisar algumas situações
concretas de bimodalidade, revisitar a tipologia da informação nominal, numenal e
fenomenal (verbais e visuais) de Doblin (1985) para tentarmos perceber como e quais são
os cruzamentos possíveis.

Quadro IV – Mensagens verbais, visuais e numéricas (cf. J. Doblin, 1980).

Actualmente, mais do que listar cada uma destas categorias de mensagens, interessa
perceber como se articulam para transmitir informações, mas, no caso da literatura para
crianças, interessa perceber também como se articulam para transmitir emoções. Como se
interligam, como dependem umas das outras, como se indexam umas às outras, de modo
a que sejamos capazes de organizar um fio condutor quando as olhamos e de gerar com
elas sentidos ainda para além daqueles que os textos nos proporcionam.
Se atentarmos no facto de que estas mensagens se organizam do mais abstracto
para o mais realista, perceberemos rapidamente que se assim fosse, a dimensão mais
abstracta, lexical, se combinaria frequentemente com a mais realista, visual. De facto, o
que sucede é que a ilustração, na literatura para crianças, presa ao imenso universo da
fantasia, se ocupa a representar o real imaginado ou, melhor ainda, a realizar o irreal e,
por isso, os desenhos são muitas vezes menos realistas e as palavras mais reais, ficando
assim definitivamente misturados os sistemas semióticos, as suas capacidades para
representar o mundo e as nossas capacidades para sobre eles organizar previsibilidades.
E teremos ainda de perceber se, como diz Calvino (1998), esta abundância de
imagens que rodopia com os textos e quase os soterra vai apagando a luz da imaginação
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ou se, bem ao contrário, cada imagem que vemos interfere nas nossas representações
do mundo e nas nossas imagens mentais, complexificando-as e tornando-nos aptos para
gerir segundos sentidos em dois sistemas semióticos e, por isso mesmo, hábeis para gerir,
na ausência da representação gráfica, um património de imagens mentais ainda mais
rico2.

Fig.1 – O Meu Avô, Manuela Bacelar (texto e ilustração), Edições Afrontamento, Porto, 1990.

Texto misto. Todavia, ainda que em páginas distintas, a adição de tipos diferentes
de informação é notória. Informação prosaica e isogramática, mas também diagramática
e aritmética. O texto verbal afirma, o visual, apoiado em medidas, demonstra. «Como
é alto o avô!» vê o neto. E se olharmos para os olhos mais expressivos desta imagem,
nada mais nos resta para fazer senão rodarmos também a cabeça e, com eles, olharmos
bem para o alto da página até vermos o que todos podem ver: a diferença. No entanto,
a escala é enganosa. Mas isso pouco se vê. Afinal, a imagem demonstra o texto. Os dois
corpos, de tão próximos, estalam sobre a página essa verdade do texto.
Se eu me esticar e olhar para o alto, pareço maior? As riscas horizontais da camisola
do neto ficam abaixo da cintura do avô e os suspensórios do avô esticam-se até à cabeça,
escondendo o pescoço, como os carris do olhar. Sabe este avô que o neto o está a medir,
medindo-se?

2
Durante a conferência, de que este texto é a versão escrita, foi apresentada e analisada uma longa sequência de
imagens. Dessa sequência, por razões de espaço, apresentamos, aqui, uma selecção, com a qual tentaremos ilustrar o que
de mais importante foi, então, dito e mostrado.
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Fig. 2 - Avô, Conta Outra Vez, José Jorge Letria (texto), André Letria (ilustração), Porto: Ambar, 2008.

Também misto, este texto autoriza a instância textual verbal a sobreviver


polissemicamente associada à sinestesia do paladar de cada palavra nova. Na doçura do
ritmo e da rima. E, lado a lado, o creme de cada bombom é um sabor inviolado e disponível.
Aqui, diferença e igualdade confundem o olhar. Nenhum bombom foi escolhido; todos
têm por isso, se I = log2 1/p, a mesma informação.
Em cada quadrícula da caixa, uma tonalidade de chocolate, um desenho, uma
cobertura e, como em cada entrada de dicionário, um paladar a descobrir. Como escolher?
Qual o primeiro a degustar?
Os olhos caem sobre o bombom branco, porque anódino, mas nada nele é bizarro
e, por isso, os olhos distraem-se em múltiplas fixações, à procura da diferença e do mais
doce. Que os olhos também são bons a descobrir a doçura...

Fig. 3 – Uma Noiva Bela, Belíssima, Beatrice Massini (texto), Anna Laura Cantone (ilustração),
Lisboa: Livros Horizonte, 2002.
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Aqui, estamos já no meio de uma narrativa, dentro da velocidade estonteante de
uma história surpreendente. Vai a noiva a caminho do altar. A noiva modista, especializada
em vestidos de noiva, dedicada ao seu vestido e esquecida de noivar. A noiva nuvem.
Lemos o texto. A imagem segue de perto a descrição. Tão de perto que não podemos
ver aqui um texto híbrido e, no entanto, o nosso olhar é estimulado por esta imensa
mancha branca que se prepara para entrar na igreja, onde, adivinhamos, nada vai correr
bem. E o texto que lemos nunca mais será o mesmo. E o véu, que não é vela, de todo,
desfralda-se, enorme, aos nossos olhos, como a vela ao vento. Onde está a Anita? Que
faz ela no alto deste escorregão de cabelos que firmam a antítese entre preto e branco?
É este preto o balanço necessário para que a mancha branca pareça ainda mais imensa?
É a gestão desta paleta de cores apenas uma brincadeira entre verosímil e inverosímil?
Quão grandes são os cabelos sempre desmesurados, nesta personagem que já conhecemos
de outras páginas? Como os vemos bem, agora, penteados para o dia D, quase soltos, eles
próprios o vento que agita as nossas expectativas! Como brilha esta cabeleira de italiana
morfologia, na sintaxe visual deste texto gráfico, símbolo de uma sensualidade posta
para trás das costas? Que pergunta desenha nas nossas emoções? O que é o amor?
O texto, zangado com o seu corpo reduzido, foge para dentro da imagem e torna-
-se sua propriedade intrínseca, para que tentemos lê-lo enquanto vemos, assim deliciados
no pormenor das rendas e no contraste da disforme montanha de branco, de onde
espreitam dois minúsculos sapatos.
E, zás! Neles, quase invisíveis, comandado pelo texto, se crava rapidamente o
nosso olhar.

Fig. 4 – Princesas Esquecidas ou Desconhecidas, Philippe Lechermeier (texto), Rébecca Dautremer (ilustração),
Porto: Editorial Educação Nacional, 2007.

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Mais uma princesa no extenso catálogo das princesas esquecidas: a Fragosa.
Imensa, e paradoxalmente tão pequenina, cospe palavras como palavrões, dos quais os
seus súbditos se defendem, neste texto híbrido, com escudos, rechaçando-as com lanças
em que se espetam as letras, como se abafassem o som dos gritos, ao atravessar as
palavras. E vemo-las regressar, as palavras, a quem as profere, ao contrário do que foram
ditas, incompreensíveis, com acontece às palavras que viajam disparadas (disparatadas)
das nossas bocas.
Para que são úteis estas palavras? Quem ataca? Quem se defende? Quem é o
exército? De que lado está a força? Que campo de batalha é este? Contra quem é a
guerra?
Como se desvenda o enigma da princesa Fragosa? De que história se perdeu? Que
memórias evoca? Porque grita, para quem, esta princesa insuportável, em tempo de paz?
Afinal, que guerra é esta? Em que país é o coração o próprio brasão? O que
defendem estes escudos, se assim trazem, estes soldados, o coração tão exposto?
Qual a força deste desenho? Como entra o som dentro desta imagem? Aos ouvidos
de quem grita este megafone, nesta paleta de cores tão saturada como se a trovoada da
voz tapasse a claridade do raciocínio?

Fig. 5 – Princesas Esquecidas ou Desconhecidas, Philippe Lechermeier (texto), Rébecca Dautremer (ilustração),
Porto: Editorial Educação Nacional, 2007.

Como é credível a seriedade desta tabela! Como nos sentimos impelidos a fazer
todos os cruzamentos possíveis! Beijo normal num príncipe alegre: sapo; beijo molhado
num sapo: moscardo. E, de súbito, o quadro síntese das transformações por beijos recebe
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o estatuto de informação diagramática, como qualquer tabela periódica, de seriedade
indubitável. No entanto, o texto que o precede alerta-nos para o seu eventual carácter
lúdico. Atente-se nas definições de beijo, e a diversidade diafásica fará com certeza de
nós leitores atentos à ironia.
Tantos os pormenores que é preciso ler! Quais os tipos de beijos? Normal, molhado,
borboleta...? Piscadela...? Afinal os olhos também beijam príncipes e princesas?
Como resistir a inventar outra tabela: nas abcissas as rainhas, nas ordenadas as
princesas. E o resultado? O fosso de gerações, nas suas infinitas variações. Uma tabela
de desenhos, por desenhos, que produzem desenhos, nos seus próprios cruzamentos.
A aprendizagem de uma estratégia em que a complexidade da sugestão é ainda maior.

Fig. 6 – Princesas Esquecidas ou Desconhecidas, Philippe Lechermeier (texto), Rébecca Dautremer (ilustração),
Porto: Editorial Educação Nacional, 2007.

Como se organiza este cacho de brasões, ele próprio aparentado com um rosto?
O rosto da nobreza esquecida, mas orgulhosa das suas características, o rosto que se
pretende identificado pela diferença. De que retrato físico e psicológico saíram todas
estas características que, assim topicalizadas na imagem, afirmam a sua quase função
substitutiva e apenas exigem uma instância textual designativa, parecida com uma
legenda? E como é certo que cada brasão, na sua forma de escudo, se confie aos nossos
olhos, num primeiro relance, como verosímil!
Como de tantos ícones se isola o símbolo? Com a ajuda da descrição que o
texto organizara já, em outras páginas, em rebeldes linhas em que a personalidade de
cada princesa se foi construindo aos nossos olhos, para que agora fosse fácil a todas
conhecer e identificar, através de um único elemento simbólico. Ainda que cada «arma»
cause estranheza, todas se justificam, no conhecimento prosaico que possuímos já das
características de cada uma das princesas.

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Como competem, assim, texto e imagem para a descrição das princesas, isolando
a característica que as distingue no grande grupo real de princesas esquecidas? Tudo
se passa como se cada brasão, usando a sua função de símbolo, resumisse a descrição,
eliminasse o supérfluo, topicalizasse o essencial.

Fig. 7 – Princesas Esquecidas ou Desconhecidas, Philippe Lechermeier (texto), Rébecca Dautremer (ilustração),
Porto: Editorial Educação Nacional, 2007.

Um mapa. Percursos. Viagens. Como entrar no jogo e conhecer todos os locais por
onde foram viajando as princesas? Como gerir tanta informação lexical e isogramática?
De onde partir? Voltando às páginas de texto que descreviam vida e pormenores destas
princesas à volta do mundo? Como confirmar? Como não se perder? Talvez usando o
dedo que procura e segue a linha do percurso, como fazem os que estão a ser iniciados
na leitura. Um dedo que descanse e boceje de x em x passos, como a princesa Preguiçosa,
ou que faça uma sesta a cada círculo. Um dedo que transmita segurança aos olhos, os
conduza, neste emaranhado de continentes (quiçá também esquecidos ou desaparecidos)
de onde se ausentou a cor e os referenciais para os oceanos, mas onde designações
conhecidas nos confundem, ao longo de percursos imaginários. Onde começam? Onde
acabam? Por onde passam? Onde se perdem?
E como voltar uma e outra vez à legenda sem se perder, como localizar o espaço,
como apreender as relações entre uma e outro? O deserto do Sara perto da China? Como
descobrir que há legendas para locais que não existem? Um mapa desperta sempre o
nosso olhar, mas neste, disponível para múltiplas leituras, repousam traçados que evocam
viagens das princesas que o texto encontrou para nós e, assim, híbrido de informações e
de histórias, não é apenas representação do espaço, mas das vidas.

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Fig. 8 – Letras e Letrias, José Jorge Letria (texto) & André Letria (ilustração), Lisboa: D. Quixote, 2005.

Como juntar as duas páginas desta doce gregueria, tão à moda de Ramon de la
Serna, senão na sugestão híbrida do disco de vinil que não toca as músicas do seu pássaro
cantor, representado no próprio disco, perante o espanto deste por não as ouvir? E porque
não toca o próprio disco? Porque emudeceu perante a beleza do som. Como definir então
o silêncio, senão como a única resposta possível à audição? Onde ir buscar a representação
para uma ausência senão à presença, assim presas ambas numa circularidade infinita, na
qual é fácil descobrir que os dois conceitos definitivamente não são antónimos?

Fig. 9 – Mateo, Paula Carfalleira (texto), Peixe (ilustração), Pontevedra: Kalandraka, 1999.

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Este grito é fusional. É o grito em que o texto gráfico se apropria da imagem e
se transforma ele próprio na insistência aguda do medo. É o grito longo que chama,
confundido no meio de tantas pernas, com este Mateo perdido para sempre, neste
espaço urbano que evoca os bosques das antigas histórias, que simbolizavam o medo do
desconhecido, de todos os desconhecidos.
Este grito, silvo, apito estende-se. Ouvir-se-á? Chegará ele aos ouvidos de alguém?
Sairá desta imagem? Ganhará som?
Esperemos que todas estas imagens, assim alinhavadas na ordem das palavras que
as interrogam, fiquem a ouvir-se longamente na memória de quem as viu.

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