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Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana

Curso de Especialização em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana

A VIDA POR UM FIO NO HEROÍSMO DE CADA DIA:

UM ESTUDO SOBRE O PROCESSO DE TRABALHO DOS PROFISSIONAIS QUE

ATUAM EM ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR MÓVEL

Claudia Marques Comaru


Priscilla Santos Vitorio

Rio de Janeiro
Julho de 2008
CLAUDIA MARQUES COMARU

PRISCILLA SANTOS VITORIO

A VIDA POR UM FIO NO HEROÍSMO DE CADA DIA:

UM ESTUDO SOBRE O PROCESSO DE TRABALHO DOS PROFISSIONAIS QUE ATUAM

EM ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR MÓVEL

Monografia apresentada com vistas à


obtenção do título de Especialista em
Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana
sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Navarro Stotz.

RIO DE JANEIRO
JULHO DE 2008
Aos profissionais que atuam em atendimento pré-hospitalar móvel,
Pelo amor de salvar vidas.
Que, mesmo sem saber, são aqui lembrados.

Ao mestre Eduardo Stotz,


Por acreditar no poder do ensinamento.
Vendo nas discípulas, futuras mestras.
RESUMO

O objetivo deste trabalho é conhecer os aspectos do processo de trabalho dos

profissionais que atuam em atendimento pré-hospitalar móvel, em sua relação com o

processo saúde-doença. Visamos com isso elucidar como o processo saúde-doença

permeia todos os meandros da atividade do socorrista, figura síntese de todo esse

processo dialético. Estes profissionais enfrentam no dia-a-dia de seu trabalho situações

que os impelem a reagir e permanecer em alerta constante. A constância e intensidade

das ocorrências podem se tornar prejudiciais na medida em que o estresse, em casos

extremos, é estendido e acionado diariamente a cada ocorrência. Estudos sobre o

trabalho destes profissionais apontam que podem ser acometidos por estresse pós-

traumático e distúrbios psíquicos menores, decorrentes tanto do estado de alerta

constante quanto da natureza das ocorrências. Além de gerenciar o manejo das

ocorrências, o profissional necessita lidar com suas próprias reações frente às situações

que surgem. Os mecanismos que o profissional utiliza para suportar e conseguir realizar

seu trabalho podem enrijecer a maneira como ele se coloca em seu trabalho, acarretando

problemas relacionais e sofrimento psíquico. Os aspectos da organização do trabalho

citados na monografia foram elucidados por três reportagens da Revista Emergência,

somados à experiência profissional de uma das autoras.

Palavras-chave: Atendimento pré-hospitalar, Processo de Trabalho, Estresse,

Subjetividade, Saúde do Trabalhador.


ABSTRACT

The objective of this study is to understand the aspects of the ambulance personnel's

work process in its relation with the health-disease process. This analysis should help us

better understand how the opposing influences (health vs. disease) permeate all work

aspects of the ambulance personnel, which represent the synthesis of this dialectic

process. The ambulance personnel is exposed daily to situations requiring quick

response and a high alertness level. The frequency and intensity with which emergency

calls occur may have a cumulative and potentiating effect on their stress levels. In

addition to managing emergency calls, the ambulance personnel must be in control of

their own reactions to the ever-changing emergency environment. The strategy devised

by the emergency care professional to efficiently handle and perform emergency

services may be itself a cause for desensitization at work, leading to social and

psychological problems as post-traumatic stress disorder and minor psychiatric

disturbance. The organizational aspects of the job discussed in this paper have been

elucidated by three reports in “Revista Emergência” and based on one of the authors'

personal accounts.

Key words: Ambulance personnel, Work Process, Stress, Subjectivity, Worker’s Health
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1

CAPÍTULO 1 – REVISÃO DA LITERATURA EM SAÚDE E TRABALHO .......... 3


1.1 – Organização / Processo de trabalho ...................................................................... 5
1.2 – Carga de trabalho .................................................................................................. 7
1.2.1 – Estresse ............................................................................................................. 10
1.2.2 – Sofrimento psíquico e mecanismos de defesa................................................... 12

CAPÍTULO 2 – DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO .......................................... 14


2.1 - Análise dos dados ................................................................................................ 15

CAPÍTULO 3 – ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO DOS


PROFISSIONAIS DE ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR MÓVEL................... 16
3.1 – Aspectos históricos do socorro .......................................................................... 16
3.2 – Organização e processo de trabalho de duas instituições de atendimento pré-
hospitalar: Bombeiros e SAMU .................................................................................. 18
3.2.1 – Uma breve história do GSE ............................................................................. 18
3.2.2 – Uma breve história do SAMU.......................................................................... 21
3.3 – A regulação médica das urgências e emergências .............................................. 23
3.3.1 – Atendimento pré-hospitalar móvel ................................................................... 25
3.3.2 – Equipe Profissional .......................................................................................... 26
3.3.3 – Ambulâncias .................................................................................................... 27
3.3.4 – Transferências e transporte inter-hospitalar ..................................................... 29
3.4 – Discurso do Sujeito Coletivo: análise de reportagens da Revista Emergência.... 30
3.4.1 – Organização do trabalho .................................................................................. 32
3.4.2 – Processo de trabalho ........................................................................................ 35
3.4.3 – Carga de trabalho ............................................................................................. 39
3.4.4 – Produção de subjetividade................................................................................ 48

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 56


REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 59
ANEXOS ..................................................................................................................... 63
LISTA DE QUADROS

Quadros

Quadro 1 – Classificação das ambulâncias


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

APC – Auto Posto Comando

ASEa – Auto Socorro de Emergência Avançado

ASEb – Auto Socorro de Emergência Básica

ASES – Auto Socorro de Salvamento

CBMERJ – Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro

CEPAP – Centro de Educação Profissional em Atendimento Pré-Hospitalar

CESTEH – Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana

COCB – Centro de Operações do Corpo de Bombeiros

DSC – Discurso do Sujeito Coletivo

ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz

GSE – Grupamento de Socorro de Emergência

SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência

SUS – Sistema Único de Saúde

TEM - Técnicos em emergência


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa da Revista Emergência .................................................................... 14

Figura 2 – Ambulância e suas partes esboçadas por Dr. Larrey ................................ 17

Figura 3 – Ambulâncias dos Bombeiros e SAMU para atendimento pré-hospitalar.. 27

Figura 4 – Interior de uma ambulância do SAMU...................................................... 28

Figura 5 – Ocorrência em que atua uma enfermeira do SAMU................................. 44

Figura 6 – Imagem de um profissional de emergência por propaganda de empresa de


botas de proteção.. 52
ANEXO 1
ANEXO 2
ANEXO 3
ANEXO 4
INTRODUÇÃO

No decorrer do curso de especialização, conhecemos aspectos relevantes da

saúde no trabalho e de diferentes processos de trabalho. Partimos da experiência de uma

das autoras como profissional dos Bombeiros e SAMU que expressou a demanda de

aprofundar seus conhecimentos na categoria profissional em que trabalha. Dada a

escassez de estudos na área, nos dedicamos ao estudo desta categoria visando contribuir

para o conhecimento no que concerne às relações saúde e trabalho.

Estudaremos os aspectos da organização do trabalho que afetam a saúde dos

profissionais de duas instituições de atendimento pré-hospitalar.

Os profissionais de enfermagem que atuam nas viaturas de auto socorro de

emergência básica são responsáveis pelo atendimento, com atividades que envolvem

somente material de imobilização e de ventilação não-invasiva.

O objetivo geral desta pesquisa de conclusão do Curso de Especialização em

Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana é compreender quais os aspectos da

organização do trabalho que podem afetar a saúde dos trabalhadores. Pretendemos

descrever seu processo de trabalho e cruzar as informações disponíveis em publicação

específica da área de emergência com estudos acadêmicos sobre a experiência da

profissional que atua no atendimento pré-hospitalar móvel, autora desta monografia.

Com isso, esperamos contribuir para a área de conhecimento no qual este estudo se

insere.

Acreditamos que este trabalho tem relevância para a saúde dos trabalhadores

porque focaliza profissionais que reagem aos eventos situacionais inesperados, além de

ser uma contribuição para outros estudos a fim de melhorar sua qualidade de vida e

1
trabalho.

Apesar da carência de pesquisas disponíveis pela Internet e de obras voltadas

para este assunto, bem como do prazo exíguo para a realização da pesquisa, esperamos,

ainda que de forma singela, disponibilizar para futuros estudos realizados por esta

instituição mais uma fonte de consulta.

O foco do presente estudo é a relação entre trabalho, saúde e adoecimento na

população dos trabalhadores de emergência pertencentes a duas instituições de

atendimento pré-hospitalar.

A monografia está organizada em três capítulos. No primeiro capítulo,

apresentamos as concepções de organização e processo de trabalho de autores que

discutem a relação entre o trabalho e a saúde dos trabalhadores.

No segundo capítulo apresentamos a metodologia do Discurso do Sujeito

Coletivo. A partir dessa metodologia analisamos três reportagens da “Revista

Emergência” que tratam sobre aspectos da organização do trabalho dos profissionais de

atendimento pré-hospitalar de duas grandes instituições do Brasil (Bombeiros e

SAMU).

No terceiro capítulo apresentamos aspectos da história, regulação, organização

e processo de trabalho das instituições citadas, além de discutirmos as reportagens da

Revista.

2
CAPÍTULO 1 - REVISÃO DA LITERATURA EM SAÚDE E TRABALHO

As discussões acerca do binômio saúde-trabalho permearam todas as épocas1.

Apresentam um panorama geral desta realidade no sistema capitalista. Inicialmente, as

discussões saúde-trabalho pautavam-se no Modelo Médico, em que a explicação da

doença baseava-se na compreensão de seus agentes específicos. Em anos recentes,

porém, outro grupo de reflexão se formaria e tomaria força: o campo da Saúde Coletiva

– em que a Saúde do Trabalhador se insere. Difundida principalmente na América

Latina, tem como cerne a relação trabalho/saúde pelo viés do social, diferencial desta

corrente. O processo de trabalho seria, então, social e biopsíquico.

Seligmann-Silva procura conhecer o “que o trabalho representa para o

trabalhador, isto é, qual o seu significado face aos valores, expectativas e trajetória
2
existencial de cada um” (p. 57). Falaremos dos profissionais especializados em

atendimento pré-hospitalar móvel, que devem estar sempre em alerta, em altos níveis

tensionais, na espera de um toque para que todo o efetivo se desloque para o sinistro,

trabalhadores que a população aprova em quase sua totalidade, visto que são igualados a

heróis.

No meio da tensão existente entre o exercício do trabalho e a manutenção de

sua saúde estão os profissionais do atendimento pré-hospitalar móvel. Esses

trabalhadores vivem em constantes situações complexas, inesperadas, que exigem alto

grau de atenção e a necessidade da tomada de decisões rápidas que fazem com que

evidenciem já de início sintomas como agitação, sudorese e ansiedade que aparecem e

desaparecem tornando-se algo corriqueiro. Os profissionais, na maioria das vezes,

negam as evidências de associação entre sintomas, riscos e processo de trabalho.

3
O trabalho, conforme a situação, “tanto poderá fortalecer a saúde mental quanto

levar a distúrbios que se expressarão coletivamente em termos psicossociais, individuais

ou em manifestações psicossomáticas ou psiquiátricas” 2 (p.46).

A Organização Mundial de Saúde descreveu em 1947 a saúde como ”o estado de

mais completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de

enfermidade”. No entanto, logo nos deparamos com uma concepção utópica, distante da

realidade que vivenciamos.


3, 4, 5
Alguns autores questionam o status de “estado” conferido à saúde . Esta

seria uma ilusão, um ideal que todos nós buscamos. E defende que, especificamente

com relação ao trabalho, o que há de mais nobre à saúde é sua variedade. Anormal seria

não podermos nos recuperar e ter alguém que possa fazer nosso trabalho enquanto nos

recuperamos 3.

Caponi 6 expõe que o conceito “saudável” no entendimento dos profissionais de

saúde se aproximaria do padrão de normalidade, ignorando os desvios e variações

inerentes à espécie humana. A autora resgata o pensamento de Canguilhem trazendo à

luz sua concepção de corpo subjetivo, uma vez que ao falarmos de saúde, falamos

também de nossas experiências de prazer ou dor.


5
Canguilhem reforça que mais do que nos voltarmos à saúde ou doença, é ao

indivíduo que nossa atenção deve estar voltada; este deve ser nosso ponto de referência.

Aponta que “a doença é ainda uma norma de vida, mas é uma norma inferior, no sentido

que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida, por ser incapaz de se

transformar em outra norma. Estar doente, para o autor, é não poder responder às

adversidades do meio que o impele a ser normativo. A doença passa, então, a ser uma

outra dimensão constitutiva da vida com suas duas faces, privação e reformulação.

O autor também considera a importância do contexto para o estabelecimento dos

4
conceitos de saúde e doença na medida em que a convivência com outros seres estimula

a mudança das leis impostas pelo indivíduo. Portanto, “estar em boa saúde é poder cair

doente e se recuperar; é um luxo biológico” 5 (p.160).

Optamos por estudar o processo de trabalho e saúde dos profissionais de

atendimento pré-hospitalar móvel sob as categorias específicas, a saber: organização do

trabalho, processo de trabalho, e carga de trabalho.

1.1 - Organização do trabalho / Processo de trabalho

Percebemos que os dois conceitos mantêm-se ligados entre suas definições,

sendo difícil separá-los. Por isso, colocaremos as concepções dos autores acerca dos

dois conceitos para, por fim, elaborarmos a nossa própria concepção a partir da análise

do trabalho que aqui se propõe.

A organização do trabalho refere-se à “divisão de tarefas” e “divisão dos

homens” 3 (p.10). Englobaria as tarefas prescritas, ritmo e pausas no trabalho, a relação

dos trabalhadores com a hierarquia, sociabilidade, doenças mentais e físicas.


7
Beato acredita que a relação do indivíduo com a organização do trabalho

encontra-se na área do intersubjetivo. Através do contrato de trabalho, coordenação e

normas de funcionamento no processo de trabalho, o trabalhador é capaz de produzir

significações imaginárias. Intervenções que visem mudanças na organização do trabalho

devem prever a peculiaridade das relações neste campo, como relações permeadas por

“tensão permanente” (p. 197). Ao citar Kaës, o autor concebe que o trabalho envolve

formações e processos heterogêneos de origem social, político-cultural, econômico e

psíquico.

Por vias de uma leitura marxista entende-se processo de trabalho pelo meio de

produção, ou seja, tem-se que o processo de trabalho contempla a divisão do trabalho,

5
inicialmente idealizado nas fábricas. Processo este milimetricamente esmiuçado a

movimentos e ritmos impostos ao modo de produção. Não só as características físicas

do trabalho devem ser levadas em conta como os aspectos relacionais, chamada de luta

de classes, em que o espaço e autonomia dos trabalhadores era demarcado e defendido 1.

Para Marx 8, no processo de trabalho o homem realiza atividade mediante a um

meio, tendo sempre a transformação do objeto num resultado final no qual tinha um

objetivo desde o início, ou seja, a matéria sofre uma adaptação às necessidades humanas

mediante a transformação da mesma pelas mãos do trabalhador.

De modo a retificar a visão global tomada pelos marxistas acerca do processo


9
de trabalho Cohn & Marsiglia citam Braverman que defende o processo de trabalho

para além dos meios de produção, constituindo-se como produto das relações sociais

historicamente produzidas nas sociedades.

No sistema capitalista, o taylorismo e o fordismo formam estratégias de

organização do trabalho adotadas pelas gerências das empresas para retirar o controle do

trabalhador sobre os meios de trabalho e o ritmo do processo de trabalho. Ao seguir a

máxima da acumulação de capital, o controle do processo de trabalho pelos gestores

ganha maior relevância e justificativa, separando as tarefas da elaboração das mesmas,

destituindo o trabalhador da sua capacidade de “saber fazer” (Freyssenet citado por

Cohn & Marsiglia 9).

Nas sociedades atuais isso acontece quando se subordina a atividade humana –

trabalho num dado processo / sistema de produção. No decorrer desse processo são

geradas condições e situações em que estão presentes os elementos patógenos (agentes,

cargas forças, entre outros) que constituem risco e perigo para a saúde dos trabalhadores

e de outros grupos populacionais que são a eles expostos 10.

Um reflexo da sociedade contemporânea que incide diretamente sobre o

6
atendimento pré-hospitalar, é a necessidade de haver trabalhos que durem 24 horas. A

sociedade 24 horas demanda aos profissionais uma extensão de sua jornada de trabalho,

solucionada pela criação do trabalho em turnos. Assim, foi possível manter a produção

por um período maior de tempo com a existência de vários grupos de trabalhadores que

se sucedem nos postos de trabalho. Os turnos variam nas instituições de acordo com as

necessidades do empregador 11.

1.2 - Carga de Trabalho

Representa o conjunto de esforços desenvolvido para atender as exigências das

tarefas. Esses conceitos abrangem os esforços físicos, os cognitivos e os psicoafetivos

(emocionais). Além disso, podemos perceber que o reconhecimento social pelo trabalho

desenvolvido não é adequadamente remunerado, tornando extremamente poderosa a

necessidade de ter outro emprego para manter sua sobrevivência 2.

Acreditamos que o conceito de risco no caso dos profissionais de atendimento

pré-hospitalar móvel encontra-se atrelado à carga. De acordo com o ponto de vista da

epidemiologia, é definido como a probabilidade de que as pessoas expostas a

determinado fator ou elenco de fatores sofram danos em sua saúde. Podemos, portanto,

ter situações de trabalho que configurem alto ou baixo risco para a saúde mental. O

ambiente de trabalho, mesmo com os diferentes modelos gerenciais de organização,

possui riscos inerentes aos processos. Algumas das situações mais comuns de risco são:

os físicos (ruídos excessivos) e psicossociais (relações e organização do trabalho não

favoráveis ao trabalhador) 10.

A carga de trabalho deve ser analisada para cada tipo de trabalho e definida

segundo a identificação e distribuição entre os trabalhadores, em função das suas

respectivas tarefas dentro do processo de trabalho. A carga de trabalho pode ser

7
considerada dentre as categorias utilizadas para analisar os impactos construídos no

processo de trabalho, tanto no objeto da tecnologia do trabalho como da sua

organização e divisão. Através da compreensão destas cargas podemos entender melhor

como os elementos do processo geral do trabalho conseguem consumir a força de

trabalho, desgastando as capacidades vitais do trabalhador 12.

É importante entender as articulações do processo de trabalho, pois esses

implicam na existência de um conjunto de cargas nos quais os trabalhadores estão

expostos diariamente.

Podemos considerar então que carga de trabalho é uma categoria mediadora do

processo de trabalho e do desgaste biopsicológico.


12
As considerações a seguir serão descritas de acordo com Rigotto . Segundo a

autora, as cargas podem ser divididas em:

I) Cargas físicas: são derivadas das exigências técnicas para a transformação do


12
objeto de trabalho, caracterizando um determinado ambiente de trabalho (Rigotto ao

citar Facchini).

Temperatura, umidade, ventilação, ruído (provocada pela sirene das

ambulâncias), vibração e iluminação são exemplos de cargas físicas presentes no

processo de trabalho dos profissionais de atendimento pré-hospitalar móvel.

II) Cargas químicas: são derivadas principalmente do objeto de trabalho e os

meios envolvidos em sua transformação, também caracterizando o ambiente diário de


12
trabalho (Rigotto ao citar Facchini). Neste grupo encontram-se todas as substâncias

químicas presentes num determinado tipo de processo de trabalho como poeira, fumaça,

gases, líquidos, vapores, pastas.

III) Cargas mecânicas: são derivadas da tecnologia do trabalho, seja devido a

8
sua operação ou manutenção, aos materiais soltos no ambiente, às condições de

instalação e manutenção dos meios de produção. Essas cargas representam exigências e

certos riscos, podendo causar danos a sua integridade biopsicossocial (Facchini citado
12
por Rigotto ). São elementos que podem causar traumatismo, indicando deficiências

na segurança do trabalho.

IV) Cargas fisiológicas: derivadas das diversas maneiras de realizar a tarefa,

como esforço físico, posições incômodas, levantamento e transporte de peso, esforço

visual, deslocamento e movimentos exigidos pela tarefa, espaço de trabalho dentre

outros.

V) Cargas psíquicas: são decorrentes da organização, divisão do trabalho e

constituída por elementos do processo de trabalho que são geradores de estresse.

Podemos então considerar que estas cargas estão relacionadas com a atenção e

responsabilidade que exige a tarefa, o grau de controle e iniciativa em sua execução, a

consciência do risco, estabelecendo ligação com todas as demais cargas de trabalho.

VI) Cargas biológicas: Aqui estão inseridos os microrganismos patogênicos a

que os profissionais da área de Saúde estão mais expostos. A exposição, dentre outras

situações, pode se dar através de pacientes contaminados ou materiais perfuro cortantes.

Porém, as principais fontes de estressores estão interligadas na organização e

divisão do trabalho. Estas são divididas em sobrecarga quantitativa psíquica e subcarga

qualitativa de trabalho 2, 12, como descrito abaixo:

“A carga quantitativa diz respeito ao volume de

trabalho mental exigido dentro de determinada

unidade de tempo. A carga qualitativa refere-se ao

nível de complexidade do trabalho e à possibilidade

de aplicação, ao mesmo, dos interesses

9
significativos, experiências, capacidade e potenciais

do trabalhador (...). Num mesmo posto de trabalho,

a pessoa pode estar, simultaneamente, submetida a

exigências que determinam diferentes combinações.

Por exemplo, sobrecarga quantitativa – numa

atividade que exige atenção concentrada e contínua

– associado à subcarga qualitativa -, se as tarefas são

fragmentadas e repetitivas” 2 (p.59).

Com isso, vemos o surgimento de outro conceito que é o desgaste, que de


12
acordo com Rigotto é concebido como transformação negativa, originada pela

interação dinâmica das cargas nos processos biopsíquicos humanos: danos à saúde

como doenças, acidentes, mal-estar, manifestações psicossociais, sinais e sintomas.

Destacamos três aspectos da carga de trabalho psíquica, a saber: estresse,

sofrimento psíquico e mecanismos de defesa. O profissional que atua em atendimento

pré-hospitalar móvel convive diariamente com o estresse devido à imprevisibilidade

inerente às ocorrências, como também com situações extremas que demandam respostas

rápidas e imparciais. De modo a conseguir responder a tais situações, o profissional

elabora mecanismos de defesa para garantir o exercício pleno de seu trabalho.

Podemos perceber que o trabalho destes profissionais enquadra-se em todas as

categorias específicas de carga de trabalho aqui apresentadas.

1.2.1 – Estresse
13
Segundo dados de pesquisadores portugueses citados por Marcelino (Allison,

Whitley, Revicki & Landis; Amaral & Perreira; Frade & Frasquilho), os profissionais

10
de atendimento pré-hospitalar estão entre as profissões com maiores níveis de estresse.

Dados de Rodgers, citado por Alexander & Klein 14, mostraram altos índices de

afastamento por motivos de saúde mental e física dos profissionais de atendimento pré-

hospitalar móvel do Reino Unido quando comparado a outros segmentos profissionais

da saúde. Os profissionais de emergência pré-hospitalar experimentam situações de

enorme complexidade que acarretam grande desgaste físico e emocional citado também

por Alexander & Klein 14 (Serra; Wagner, Heinrichs e Ehlert).

As ocorrências que os profissionais de atendimento pré-hospitalar têm que

atender constituem fonte de grande estresse. O conceito de “incidente crítico” (critical

incidents), refere-se a um incidente que perturba e ameaça o arsenal do indivíduo de

lidar com as situações 14. Nas ocorrências, inúmeros fatores podem aumentar o nível de

estresse do indivíduo, como o atendimento de crianças feridas, o envolvimento com a

família da vítima, pacientes que morrem no trajeto interhospitalar, etc.

Além da exposição às cargas psíquicas, estes profissionais lidam também com

cargas biológicas, como exposição a sangue contaminado e privação de sono por escala

noturna de trabalho ou ciclos longos de trabalho-descanso. Há consenso na literatura de

que a privação de sono, quando recorrente, pode vir a eclodir episódios de fadiga,

irritabilidade e diminuição dos níveis de alerta 15.

Em uma revisão da literatura a respeito de assuntos vinculados ao estresse no

trabalho, Selligman-Silva 2 cita uma lista de estressores elaborada por Kalino (1987) :

- Estressores relacionados às exigências para a realização das tarefas: essa

categoria compreende os vários aspectos que determinam a carga de trabalho.

- Organização e gerenciamento: falta da possibilidade de tomar decisões

(burocracia, autoritarismo e gerência inadequada).

11
- Horário de trabalho inconveniente: destaque para o regime de trabalho em

turnos alternados.

- Pouca segurança no trabalho.

- Riscos físicos e químicos.

1.2.2 - Sofrimento psíquico e mecanismos de defesa

A noção de sofrimento é central. Ao processo de trabalho, apresenta-se

atrelado a outro conceito: a organização do trabalho. Quando esta entra em conflito com

o funcionamento psíquico dos homens - anulados os recursos para a adaptação ao

processo de trabalho - emergeria então um sofrimento patogênico 3.

O sofrimento mental é concebido em sua dupla potencialidade: poderá

conduzir à doença ou à criatividade. Neste último caso, a identidade e a saúde serão

beneficiadas 2.

Em situações em que o rearranjo da organização do trabalho não é possível,

quando a relação do trabalhador com a organização é bloqueada, o sofrimento começa,

pois sua energia não é descarregada no exercício do trabalho, sendo “acumulada” no

aparelho psíquico, ocasionando um sentimento de sofrimento e medo. A evolução deste

processo, portanto, pode ocasionar distúrbios de ordem física e psíquica do trabalhador,

caracterizada, muitas vezes, sob a forma de doenças psicossomáticas 16.

No caso do atendimento pré-hospitalar móvel, o cotidiano da profissão exige dos

profissionais um permanente estado de alerta, visto que a qualquer momento um

chamado pode convocá-los para novo atendimento. Estudos apontam, entretanto, para

os riscos inerentes ao prolongamento deste na vida do profissional, o chamado estado de

alerta permanente. Daí a identificação da enfermagem com o papel do profissional de

atendimento pré-hospitalar, em que “ambos desenvolvem atividades submetidos a

12
eventos inesperados, nos quais a carga física e psíquica exigida vai ao encontro do

estado de alerta (...)” 17 (p. 371).

O contexto altamente tenso que estes profissionais vivenciam pode levar a

morbidades mais rapidamente que aos profissionais de hospitais (Maia, Fernandes,

Moreira, citado por Marcelino13). Perante o mesmo acontecimento, os indivíduos são

afetados de forma diferente, conforme suas características intrínsecas e extrínsecas.

Estão também relacionados com o sofrimento mental: a idade, os anos de serviço de

ambulância, a organização hierárquica do trabalho e a carga excessiva de trabalho.

Quais seriam, portanto, os mecanismos utilizados pelo trabalhador para sustentá-

lo em condições adversas, nas quais o desgaste seria elemento intrínseco do processo de


18
trabalho? Guivant cita autores como Douglas e Dejours, que esclarecem os

mecanismos utilizados pelo trabalhador para se defender dos riscos. Douglas apresenta

o conceito de “imunidade subjetiva” em que há a minimização de possíveis

conseqüências negativas do trabalho. Ocorre por meio deste mecanismo uma adaptação

às possíveis condições de risco presentes no processo de trabalho.


18
Dejours, citado por Guivant , descreve ainda a presença da “ideologia

ocupacional defensiva”, mecanismo em que o trabalhador tem conhecimento da

exposição ao risco, porém permanece no ofício do trabalho. Caso contrário, não

suportaria realizá-lo pela alta carga de ansiedade gerada.

13
CAPÍTULO 2 – DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO

A pesquisa consistirá em estudo qualitativo através da metodologia do Discurso


19
do Sujeito Coletivo (DSC), concebido por Lefrévre , a partir de três reportagens da

Revista Emergência (Figura 1).

A Revista Emergência foi criada em 2006 pela MPF Publicações Ltda no Rio de

Grande do Sul, e possui tiragem bimestral. Voltada para os profissionais das

emergências, as reportagens abordam temas da organização e processo de trabalho dos

diversos âmbitos da emergência (atendimento pré-hospitalar, resgate, salvamento e

emergência química).

Figura 1
Capa da Revista Emergência
______________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Fonte: Revista Emergência (Julho de 2006)

14
2.1 - Análise dos dados

As etapas da Metodologia do DSC que seguimos para análise das reportagens

consistem em:

1) Seleção das expressões-chave de cada discurso particular: esta fase inclui a

análise do conteúdo das reportagens destacando as expressões-chave, ou seja, as partes

mais importantes do discurso dos indivíduos.

2) Classificação da idéia central de cada expressão-chave: esta fase consiste em

nomear as expressões-chave com um título (idéia central) que resumisse o conteúdo

expresso pelo discurso.

3) Identificação das idéias centrais semelhantes ou complementares: nesta fase,

realiza-se uma conferência de todas as idéias centrais atentando para as idéias

semelhantes e/ou complementares.

4) Reunião das expressões-chave referentes às idéias centrais semelhantes ou

complementares: nesta fase, realiza-se o agrupamento das idéias centrais comuns a fim

de facilitar a posterior análise dos discursos.

As etapas do trabalho de pesquisa monográfica foram as seguintes:

1) Definição das categorias a serem trabalhadas na monografia:

organização do trabalho, processo de trabalho e carga de trabalho.

2) Classificação das reportagens nas categorias previamente definidas

através da idéia central.

3) Emergência da categoria “produção de subjetividade”.

15
CAPÍTULO 3 - ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO DOS

PROFISSIONAIS DE ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR MÓVEL

Anterior aos relatos sobre o processo de trabalho dos profissionais de

atendimento pré-hospitalar móvel de duas grandes instituições, devemos introduzir

informações acerca da história do socorro no Brasil. Posteriormente, comentaremos a

norma que regulamenta as urgências: a Regulação Médica, com suas definições acerca

dos diversos aspectos do trabalho. Por fim, realizaremos a análise dos discursos de

profissionais e técnicos da área do socorro extraídos da Revista Emergência.

3.1 – Aspectos históricos do socorro

Os primeiros dados sobre atendimento médico pré-hospitalar têm origem muito

remota, e é difícil saber precisamente quando começou. Verificamos que a primeira

tentativa de organização no atendimento médico de urgência foi colocada em prática em

1792 por Dominique Larrey, cirurgião e chefe militar, que praticava cuidados iniciais

aos pacientes vitimados nas guerras no período napoleônico.

Dominique Jean Larrey apresentou grandes contribuições para os serviços

Médicos de Urgência atuais. Amigo e solidário dos soldados feridos, Larrey foi

solicitado por Napoleão a prestar atendimento imediato aos militares feridos, ou seja, o

corpo de saúde deveria recolher as vítimas no próprio fronte de batalha e não mais após

a interrupção do conflito. Larrey elaborou o primeiro modelo de ambulância (da raiz

francesa “ambulant” que significa aquele que deambula ou caminha) com técnicas e

equipamentos de hemostasia (controle da hemorragia) composto por carroças com

condições de atendimento imediato e veloz. Perfilando dois cavalos, diminuindo as

16
rodas, curvando o telhado para evitar acúmulo de água e peso, abrindo janelas para

ventilação, acoplando maca retrátil e kit de primeiros socorros, Dr. Larrey pôde

realmente colocar em prática seu invento móvel que foi batizado de “Ambulância

Voadora” 20 (Figura 2).

Figura 2
Ambulância e suas partes esboçadas por Dr. Larrey
______________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Fonte: página sobre Medicina Intensiva na Internet


http://www.medicinaintensiva.com.br/larrey.htm

17
Não seria exagero dizer que Larrey foi o criador do SAMU (Serviço de

Atendimento Móvel de Urgência) francês, hoje referência no mundo.

O conceito do atendimento de emergência nasceu por volta de 1940, com o

Corpo de Bombeiros iniciando os primeiros cuidados enquanto o doente era

trasladado20.

3.2 - Organização e processo de trabalho de duas instituições de atendimento pré-

hospitalar: Bombeiros e SAMU

3.2.1 - Uma breve história do GSE

O Grupamento de Socorro em Emergência – GSE – surgiu no seio do Corpo de

Bombeiros no ano de 1986 para fazer Atendimento Pré-Hospitalar (APH) médico às

urgências e emergências em vias e logradouros públicos à população do estado do Rio

de Janeiro. Sendo pioneiro no Brasil neste tipo de atividade, surgiram com novas

rotinas, doutrinas e conceitos, com uma frase que é usada até hoje “Não mexe não, que

a ambulância do bombeiro está chegando” (GSE).

Todas as informações apresentadas a seguir foram extraídas da página do

CBMERJ/RJ na Internet 21.

No ano de 2006, o atendimento nas operações do socorro de emergência foram

as maiores dentre as operações da Corporação, com 81.221 atendimentos e 1539

transportes inter-hospitalar, totalizando 82.760 operações no ano.

Ao ligar 193, o atendimento pré-hospitalar é solicitado ao Centro de Operações

do Corpo de Bombeiros (COCB) ou a uma unidade da Corporação. Após analisada a

solicitação, o recurso mais adequado ao atendimento é escolhido e enviado. O

atendimento é então, iniciado no próprio local do evento e se completa com o transporte

18
da(s) vítima(s) a um hospital de referência. Os atendimentos são monitorados pelos

coordenadores médicos de plantão no COCB, sendo enviados recursos complementares

conforme a complexidade do evento. Posteriormente, as informações ligadas às

ocorrências são coletadas, armazenadas e analisadas para gerenciamento do sistema,

emissão de documentos, relatórios e planejamento estratégico.

A operação é estruturada em um sistema medicalizado, operando com

ambulâncias configuradas com suporte básico e avançado de vida, reguladas por

profissionais médicos e de enfermagem durante 24 horas por dia, em uma Central

(COCB). O atendimento é implementado também com outras viaturas como aeronaves,

ambulancha, viaturas de transporte inter-hospitalar (TIH), transporte de neonatos (UTI-

NEO) e recentemente a criação das viaturas para atendimento de pacientes

extremamente graves e pacientes obesos.

Hoje, o GSE é composto por cerca de 725 profissionais da área de saúde como

médicos, enfermeiros, farmacêuticos, técnicos e auxiliares de enfermagem. Todas as

equipes antes de incorporarem no serviço são treinadas pelo Centro de Educação

Profissional em Atendimento Pré-Hospitalar (CEPAP), empregando manequins para

simulação e técnicas baseadas em protocolos de atendimento voltados para emergência

pré-hospitalar em nível de suporte básico e avançado de vida com uso do desfibrilador

semi-automático. Todos esses profissionais estão empregados em partes administrativas

e guarnecendo cerca de 68 postos com ambulâncias, uma base com helicóptero e uma

central de coordenação, distribuído pela região metropolitana do Rio de Janeiro e

municípios do interior do Estado de forma que o evento com risco de vida tenha tempo-

resposta que não ultrapasse a 5 minutos.

A escala segue da seguinte forma: 24 horas semanais de serviço prestado para

profissionais médicos; 24 horas de serviço por 72 horas de descanso para motoristas,

19
técnicos e auxiliares de enfermagem; das 8 às 17 horas (dia sim, dia não) para os demais

funcionários administrativos. O GSE também é preparado para medicina de desastres

através de uma seção que atua na coordenação em acidentes com múltiplas vítimas

utilizando viaturas especiais e hospitais de campanha. A distribuição de ambulâncias é

baseada nas informações técnicas obtidas pela Seção de Estatística Operacional, que

também interage com outros órgãos públicos e instituições universitárias com relatórios

epidemiológicos de atendimento em via pública.

Foi criada também uma gerência executada por médicos e enfermeiros,

organizada com uma estrutura típica de serviço médico com Comissão de Controle de

Infecções, Central de Reprocessamento de Material, Comissão de Revisão de Registros

de Atendimento, Arquivo Médico, Farmácia e Comissão Pré-Hospitalar Pós-Exposição

a Material Biológico.

A frota operacional chave é a ASEa – Auto Socorro de Emergência Avançado –

que é guarnecida por um motorista, um médico e um técnico ou auxiliar de

enfermagem. As ambulâncias são adaptadas funcionalmente para configuração de

suporte avançado de vida (ASEa), contendo medicações diversas e material para suporte

invasivo de vias aéreas. As ASEb - Suporte Básico de Vida – são tripuladas por um

TEM (técnico em emergência) e um motorista contendo somente material de

imobilização e de ventilação não invasiva. Da frota da Corporação, há cerca de 37 ASEa

e 35 ASEb. Existem outras viaturas como os ASES ou Viaturas “Híbridas”, que são

configuradas para desencarceramento de vitimas em ferragens, funcionando como um

misto de ambulância e viatura de resgate; aeronaves (helicópteros) com equipe de

suporte avançado de vida; motocicletas configuradas para suporte básico de vida e

equipada com desfibrilador automático com o objetivo de chegar ao local do evento

antes dos ASEs e iniciar os procedimentos de Suporte Básico de Vida (SBV); Auto

20
Posto Comando (APC) que é uma viatura utilizada em eventos que envolva múltiplas

vítimas - funciona como um posto de planejamento de ações no local do evento e é

equipado com materiais médicos e de suporte operacional para eventos de grandes

proporções.

3.2.2 - Uma breve história do SAMU

O Serviço de Atendimento Móvel às Urgências (SAMU) responde à Política

Nacional de Atenção às Urgências do Ministério da Saúde instituída pela Portaria GM

N° 1.863, de 29 de setembro de 2003, publicada em 2004, que prediz o aumento da rede

de atendimento do SAMU para 68 milhões de brasileiros. O SAMU atende a 1163

municípios, e a 100.166.195 milhões de pessoas 22.

O SAMU teve início através de um acordo bilateral assinado entre o Brasil e a

França. Por uma solicitação do Ministério da Saúde, que optou pelo modelo francês de

atendimento, as viaturas de suporte avançado possuem obrigatoriamente a presença do

médico, diferente dos moldes americanos em que as atividades de resgate são exercidas

primariamente por profissionais paramédicos, profissão inexistente no Brasil. O SAMU

teve início na década de 80, no Rio de Janeiro, onde começou chefiado pelo Ministério

da Saúde. Atualmente está sob a atuação da Secretaria Estadual de Saúde, Secretaria de

Defesa Civil e Corpo de Bombeiros, chefiado por um Coronel Médico, com o objetivo

de fazer atendimento pré-hospitalar em residências 22, 23.

O SAMU encontra-se orientado principalmente pela Regulação Médica e suas

respectivas equipes e o Serviço de Atendimento Pré-Hospitalar com suas equipes de

suporte avançado e básico de vida.

Como dito anteriormente, o SAMU está subordinado ao Corpo de Bombeiros e,

para tanto, mantém seus dois serviços - a Central de Regulação Médica e o Serviço de

21
Atendimento Pré-Hospitalar coeso e interligado, organizado e supervisionado pelo

coordenador Coronel do Corpo de Bombeiros. Desta forma, quando não há viatura do

CBMERJ disponível para fazer atendimento em via pública, uma viatura do SAMU é

acionada. Subordinados ao coordenador estão o diretor médico e o diretor de

enfermagem.

A equipe de suporte avançado é constituída por uma tripulação exclusiva

formada por um médico, um enfermeiro e um motorista. A equipe de suporte básico é

composta por um técnico de enfermagem e um motorista. As viaturas básicas e

avançadas somente são enviadas para atendimento mediante autorização do médico

regulador ou do coordenador direto do SAMU, não respondendo a outras solicitações

que não tenham sido reguladas pelos profissionais pertinentes. Competirá, portanto, ao

médico regulador a determinação da existência ou inexistência de risco imediato à vida

para a liberação de determinada viatura para determinada solicitação. Ou seja, na

presença de risco imediato à vida o atendimento competirá à viatura de suporte

avançado; na ausência de risco imediato à vida o atendimento competirá à viatura de

suporte básico. Existem exceções, como no caso de todas as viaturas de suporte

avançado não estarem disponíveis para o atendimento emergencial, devendo este ser

realizado pela equipe de suporte básico. Neste caso especial, a equipe enviada será

orientada a prestar o atendimento no local e aguardar a equipe de suporte avançado para

completar o atendimento já iniciado 24.

22
3.3 - A regulação médica das urgências e emergências

Segundo a Portaria 2048/02 do Ministério da Saúde24, as Centrais de Regulação

organizam a relação entre os vários serviços, qualificando o fluxo dos pacientes no

Sistema e gerando uma porta de comunicação aberta ao público em geral, através da

qual os pedidos de socorro são recebidos, avaliados e hierarquizados.

As necessidades imediatas da população - ou necessidades agudas ou de

urgência - são pontos de pressão por respostas rápidas. O Sistema, portanto, deve ser

capaz de acolher a clientela, prestando-lhe atendimento e redirecionando-a para os

locais adequados à continuidade do tratamento, através do trabalho integrado das

Centrais de Regulação Médica de Urgências com: outras Centrais de Regulação de

leitos hospitalares, procedimentos de alta complexidade, exames complementares,

internações e atendimentos domiciliares, consultas especializadas, consultas na rede

básica de saúde, assistência social, transporte sanitário não urgente, outros serviços e

instituições como, por exemplo, as Polícias Militares e a Defesa Civil.

Essas Centrais, obrigatoriamente interligadas entre si, constituem um verdadeiro

complexo regulador da assistência, ordenador dos fluxos gerais de necessidade/resposta,

que garante ao usuário do SUS a multiplicidade de respostas necessárias à satisfação de

suas necessidades.

Ao médico regulador devem ser oferecidos os meios necessários para o bom

exercício de sua função, incluída toda a gama de respostas pré-hospitalares e portas de

entrada de urgências com hierarquia resolutiva previamente definida e pactuada, com

atribuição formal de responsabilidades.

Ao médico regulador também competem funções gestoras – tomar a decisão

gestora sobre os meios disponíveis, devendo possuir delegação direta dos gestores

23
municipais e estaduais para acionar tais meios, de acordo com seu julgamento. Assim, o

médico regulador deve decidir os destinos hospitalares, não aceitando a inexistência de

leitos vagos como argumento para não direcionar os pacientes para a melhor hierarquia

disponível em termos de serviços de atenção de urgências, ou seja, garantir o

atendimento nas urgências, mesmo nas situações em que inexistam leitos vagos para a

internação de pacientes (a chamada “vaga zero” para internação). Deverá decidir o

destino do paciente baseado na planilha de hierarquias pactuada e disponível para a

região e nas informações periodicamente atualizadas sobre as condições de atendimento

nos serviços de urgência, exercendo as prerrogativas de sua autoridade para alocar os

pacientes dentro do sistema regional, comunicando sua decisão aos médicos assistentes

das portas de urgência.

A regulação médica prevê que o setor privado de atendimento pré-hospitalar das

urgências e emergências (incluídas as concessionárias de rodovias) deve contar,

obrigatoriamente, com Centrais de Regulação Médica, médicos reguladores e de

intervenção, equipe de enfermagem e assistência técnica farmacêutica (para os casos de

serviços de atendimentos clínicos). Estas Centrais de Regulação privadas devem ser

submetidas à regulação pública, sempre que suas ações ultrapassarem os limites estritos

das instituições particulares não-conveniadas ao Sistema Único de Saúde - SUS,

inclusive nos casos de medicalização de assistência domiciliar não-urgente.

Por fim, as demais entidades, corporações e organizações, como o Corpo de

Bombeiros Militar (incluídas as corporações de bombeiros independentes e as

vinculadas às Polícias Militar), as Polícias Rodoviárias e outras organizações da Área de

Segurança Pública, deverão seguir os critérios e os fluxos definidos pela regulação

médica das urgências do SUS, conforme os termos deste.

24
3.3.1 - Atendimento pré-hospitalar móvel

24
Considera-se como nível pré-hospitalar móvel na área de urgência, o

atendimento que procura chegar precocemente à vítima, após ter ocorrido um agravo à

sua saúde (de natureza clínica, cirúrgica, traumática, inclusive as psiquiátricas), que

possa levar a sofrimento, seqüelas ou mesmo à morte, sendo necessário, portanto,

prestar-lhe atendimento e/ou transporte adequado a um serviço de saúde devidamente

hierarquizado e integrado ao Sistema Único de Saúde. Podemos chamá-lo de

atendimento pré-hospitalar móvel primário quando o pedido de socorro for oriundo de

um cidadão ou de atendimento pré-hospitalar móvel secundário quando a solicitação

partir de um serviço de saúde, no qual o paciente já tenha recebido o primeiro

atendimento necessário à estabilização do quadro de urgência apresentado, mas

necessite ser conduzido a outro serviço de maior complexidade para a continuidade do

tratamento. Deve ser entendido como uma atribuição da área da saúde e ser vinculado a

uma Central de Regulação, com equipe e frota de veículos compatíveis com as

necessidades de saúde da população de um município ou uma região, podendo,

portanto, extrapolar os limites municipais.

Para um adequado atendimento pré-hospitalar móvel, este deve estar vinculado a

uma Central de Regulação de Urgências e Emergências. A central deve ser de fácil

acesso ao público, por via telefônica, em sistema gratuito (192 ou 193), onde o médico

regulador, após julgar cada caso, define a resposta mais adequada, seja um conselho

médico, o envio de uma equipe de atendimento ao local da ocorrência ou ainda o

acionamento de múltiplos meios. O número de acesso da saúde para socorros de

urgência deve ser amplamente divulgado junto à comunidade. Todos os pedidos de

socorro médico que derem entrada por meio de outras centrais, como a da Polícia

Militar (190) e quaisquer outras existentes, devem ser imediatamente retransmitidos à

25
Central de Regulação, por intermédio do sistema de comunicação, para que possam ser

adequadamente regulados e atendidos.

O atendimento no local é monitorado via rádio pelo médico regulador que

orienta a equipe de intervenção quanto aos procedimentos necessários à condução do

caso. Deve existir uma rede de comunicação entre a Central, as ambulâncias e todos os

serviços que recebem os pacientes.

3.3.2 - Equipe Profissional

As equipes de atendimento pré-hospitalar devem contar com profissionais


24
oriundos da área da saúde . Considerando-se que as urgências não se constituem em

especialidade médica ou de enfermagem, e que nos cursos de graduação a atenção dada

à área ainda é bastante insuficiente, entende-se que os profissionais que venham a atuar

nos serviços de atendimento pré-hospitalar móvel (oriundos e não oriundos da área de

saúde) devam ser habilitados pelos Núcleos de Educação em Urgências, cuja criação é

indicada pelo Regulamento.

As responsabilidades técnicas poderão ser assumidas por profissionais da equipe

de intervenção, sempre que a demanda ou o porte do serviço assim o permitirem. Além

desta equipe de saúde, em situações de atendimento às urgências relacionadas às causas

externas ou de pacientes em locais de difícil acesso, deverá haver uma ação pactuada,

complementar e integrada de outros profissionais não oriundos da saúde – bombeiros

militares, policiais militares e rodoviários e outros. Estes profissionais devem ser

formalmente reconhecidos pelo gestor público para o desempenho das ações de

segurança, socorro público e salvamento, tais como: sinalização do local, estabilização

de veículos acidentados, reconhecimento e gerenciamento de riscos potenciais,

26
(incêndio, materiais energizados, produtos perigosos) obtenção de acesso ao paciente e

suporte básico de vida.

3.3.3 – Ambulâncias

Define-se ambulância como um veículo (terrestre, aéreo ou aquaviário) que se


destine exclusivamente ao transporte de enfermos 24 (Figuras 3 e 4).

Figura 3
Ambulâncias dos Bombeiros e SAMU para atendimento pré-hospitalar
______________________________________________________________________

____________________________________________________________________________________

Fonte: Revista Emergência

27
Figura 4
Interior de uma ambulância do SAMU
______________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Fonte: página do SAMU-Campinas na Internet


http://www.campinas.sp.gov.br/saude/unidades/samu/noticias/

Segue abaixo o quadro com as referentes classificações das ambulâncias

conforme finalidade.

Quadro 1

Classificação das ambulâncias

Ambulâncias

TIPO A - Ambulância de Transporte: veículo destinado ao transporte em


decúbito horizontal de pacientes que não apresentam risco de vida, para
remoções simples e de caráter eletivo.

28
TIPO B - Ambulância de Suporte Básico: veículo destinado ao transporte
interhospitalar de pacientes com risco de vida conhecido e ao atendimento pré-
hospitalar de pacientes com risco de vida desconhecido, não classificado com
potencial de necessitar de intervenção médica no local e/ou durante transporte
até o serviço de destino.

TIPO C - Ambulância de Resgate: veículo de atendimento de urgências pré-


hospitalares de pacientes vítimas de acidentes ou pacientes em locais de difícil
acesso, com equipamentos de salvamento (terrestre, aquático e em alturas).

TIPO D - Ambulância de Suporte Avançado: veículo destinado ao atendimento


e transporte de pacientes de alto risco em emergências pré-hospitalares e/ou de
transporte inter-hospitalar que necessitam de cuidados médicos intensivos.
Deve contar com os equipamentos médicos necessários para esta função.

Fonte: Regulação Médica das Urgências e Emergências

3.3.4 - Transferências e transporte inter-hospitalar

Refere-se à transferência de pacientes entre unidades não-hospitalares ou

hospitalares de atendimento às urgências e emergências, unidades de diagnóstico,

terapêutica ou outras unidades de saúde que funcionem como bases de estabilização


24
para pacientes graves, de caráter público ou privado . Possui como principais

finalidades:

A) A transferência de pacientes de serviços de saúde de menor complexidade

para serviços de referência de maior complexidade, seja para elucidação diagnóstica,

internação clínica, cirúrgica ou em unidade de terapia intensiva - sempre que as

condições locais de atendimento combinadas à avaliação clínica de cada paciente assim

29
exigirem;

B) A transferência de pacientes de centros de referência de maior complexidade

para unidades de menor complexidade, seja para elucidação diagnóstica, internação

clínica, cirúrgica ou em unidade de terapia intensiva, seja em seus municípios de

residência ou não, para conclusão do tratamento - sempre que a condição clínica do

paciente e a estrutura da unidade de menor complexidade assim o permitirem, com o

objetivo de agilizar a utilização dos recursos especializados na assistência aos pacientes

mais graves e/ou complexos.

3.4 - Discurso do Sujeito Coletivo: análise de reportagens da Revista Emergência

Analisaremos três entrevistas sob a ótica das categorias escolhidas para a

análise: organização do trabalho, processo de trabalho e carga de trabalho. No decorrer

da análise das reportagens adotamos uma quarta categoria, a produção de subjetividade,

visto que percebemos sua importância no discurso dos profissionais de atendimento pré-

hospitalar móvel e do psicólogo.

O primeiro material a ser analisado é a reportagem “A vida por um fio”,

realizada por Cristiane Reimberg25, jornalista da Revista Emergência (Anexo 1). A

matéria contém uma descrição feita pela jornalista da atividade cotidiana da enfermeira

Michelle, de 26 anos, que trabalha há oito meses no atendimento de emergência do

SAMU de Campinas, São Paulo. Além de trabalhar no SAMU, ela trabalha em um

pronto socorro do hospital da Universidade da UNICAMP. Na reportagem, a jornalista

descreve o dia de trabalho da enfermeira, suas tarefas profissionais durante o dia e as

situações inusitadas que podem ocorrer durante a realização do seu trabalho. No final da

reportagem, a enfermeira é entrevistada pela jornalista.

30
O segundo material a ser analisado é a reportagem “Ajudando pessoas” realizada

por Cristiane Reimberg26, jornalista da Revista Emergência (Anexo 2). A matéria

contém uma descrição do cotidiano de trabalho do sargento Fernando, 35 anos, do

Corpo de Bombeiros do Posto Sé, em São Paulo. O profissional atua 12 horas na viatura

de resgate e nas outras horas em outra viatura. Ele também costuma atuar nas motos que

fazem atendimento de emergência. Na reportagem, a jornalista descreve o dia de

trabalho do sargento, que inclui as obrigações militares, assim como descreve com

detalhes as ocorrências atendidas em um dia de trabalho. No final da reportagem, o

sargento é entrevistado pela jornalista.

O terceiro material consiste em uma entrevista realizada por Paula Barcellos27,

jornalista da Revista Emergência (Anexo 3). Na matéria, é entrevistado o Tenente-

Coronel Ib Martins Ribeiro, da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo,

psicólogo e consultor em psicologia de emergências. Atualmente, o psicólogo oferece

cursos e treinamento teórico-prático envolvendo a questão do estresse, estresse pós-

traumático e suicídio. Na reportagem, Ib atenta para os problemas emocionais que os

profissionais de Emergência podem desenvolver a partir do seu trabalho.

A apresentação dos discursos será, portanto, dividida nas categorias de análise

(Organização de trabalho, Processo de Trabalho, Carga de Trabalho e Produção de

Subjetividade). Em cada categoria, apresentaremos a definição utilizada como

referência, e os quadros contendo os discursos dos sujeitos (jornalista, psicólogo e/ou

profissional de atendimento pré-hospitalar móvel) referentes à categoria. Os quadros

contêm a idéia central e o discurso dos sujeitos. Nos casos em que houver mais de um

discurso acerca da mesma idéia central, destacaremos a diferença pela instituição do

profissional (Bombeiros e SAMU).

À apresentação dos aspectos da organização do trabalho e processo de trabalho

31
dos profissionais de atendimento pré-hospitalar móvel, apontamos dispositivos de

discussão com os trabalhadores entrevistados pela Revista à luz de resultados de

pesquisas acerca da temática do socorro.

Questões como o estado de alerta, a escala, natureza das ocorrências, alarmes

falsos, carga de trabalho, dentre outras, foram levantadas a partir das reportagens da

Revista e serão trazidas para a discussão.

3.4.1 - Organização do trabalho

Para definir organização do trabalho nos apoiamos na definição que a concebe como

o conjunto das questões referentes às relações dos trabalhadores com a hierarquia, ao

controle da empresa, aos ritmos e pausas no trabalho, sociabilidade, doenças mentais e

físicas.

Apresentamos a seguir os discursos da jornalista e do psicólogo acerca de questões

da organização do trabalho do profissional de atendimento pré-hospitalar móvel.

 Discurso da jornalista

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL
BOMBEIROS
Ele trabalha 24h na Corporação e folga 48h. Nessas 24h, ele tem que
estar sempre pronto para ajudar quem precisa e pede socorro ao 193. Ao
receber uma chamada, o bombeiro tem que sair para atendê-la em 45
segundos. Já à noite, se não houver ocorrência, ele pode deitar às 22h.
Escala Mas o sono sempre é interrompido por algum chamado.
SAMU
No SAMU, a enfermeira trabalha 12h e folga 36h, atuando em viaturas
de suporte avançado. Essas viaturas estão preparadas para as ocorrências
que necessitam de UTI e, além de diversos equipamentos, contam com
uma equipe completa: um médico, um enfermeiro, um técnico de
enfermagem e o motorista.

32
BOMBEIROS
Como seu trabalho inicia às 7h30 da manhã, durante esse tempo vago, o
sargento aproveita para se trocar e tomar seu café da manhã, que
costuma ocorrer às 7h. Exatamente às 7h30 da manhã é feita a passagem
do serviço e há a troca de profissionais. Antes de iniciarem os trabalhos,
os bombeiros, que assumem os postos, fazem o hasteamento da bandeira
brasileira. Depois, o comandante da prontidão especifica quem vai fazer
cada função e em qual guarnição. Vinte minutos depois, o sargento já
está checando a viatura. Primeiro avalia a água, óleo e iluminação do
veículo. Ele também leva EPIs como bota, capacete e capa para a
viatura, além de verificar vários equipamentos de resgate como a maca.
No cilindro de ar respirável para entrar em local com fumaça, avalia as
condições, a pressão e a máscara. Se houver apenas metade da carga, é
Protocolo feita a troca. Outro equipamento verificado é o ked, que serve para
retirar a vítima de trauma do veículo. Na mochila de primeiros socorros,
ele repõe os materiais faltantes.
SAMU
Após bater o ponto, a enfermeira checa o quadro com as escalas do dia.
Lá, ela irá saber em que viatura e com que equipe ela irá atuar. Também
verifica a ordem de saída das viaturas e vê se todos os enfermeiros estão
no local. Depois vai para a ambulância e checa se tudo está em ordem.
Todos os equipamentos são verificados. Observa se há oxigênio, checa
o respirador, o desfibrilador, deixa os eletrodos prontos para monitorar o
paciente. Esses procedimentos são importantes para que tudo ocorra de
forma rápida e prática durante o atendimento. Após a checagem dos
equipamentos, a enfermeira costuma tomar seu café da manhã. Mas isso
nem sempre acontece. Após checar os equipamentos, ela foi convocada
para uma reunião com o Conselho Gestor, na qual a coordenação
discute com os funcionários os problemas enfrentados e tenta resolvê-
los.

 Discurso do psicólogo

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL
SAMU
O profissional de emergência é aquele que socorre as pessoas em
Definição do situações críticas, catástrofes e no risco de vida, pois se ele não tomar
profissional de uma medida imediata, rápida e eficiente, as pessoas morrem.
emergência

Observamos que a escala difere nos Estados, de acordo com o regulamento

local. Porém, a carga horária é respeitada pelas horas de descanso. Podemos ver alguns

horários como 12/60hs, 24/48hs, 24/72hs e 24 por uma semana (neste caso para os

médicos). No SAMU, a escala é de 12/36, ou seja, os profissionais podem descansar em

sua residência nas 12 horas restantes do dia. Por outro lado, a existência de um segundo

33
emprego inviabilizaria o descanso. No caso da profissional do SAMU, ela possui outro

emprego em um Pronto Socorro. Nas diferentes instituições, o descanso deve ser visto

sob a ótica da escala. Uma tendência adotada nos Estados Unidos, Europa e Canadá

prevê a realização de 12 horas semanais de trabalho seguidos de três a quatro dias de

descanso. Desta forma, o trabalhador pode dispor de mais dias de folga. No entanto, o

desgaste pela extensa jornada de trabalho pode ser maior do que na jornada de oito

horas 11.

O protocolo que os profissionais devem cumprir respeita a natureza da

instituição. Nos Bombeiros, as obrigações militares (hasteamento da bandeira,

instrução, formatura e, em alguns quartéis, educação física) estão presentes ao lado dos

procedimentos técnicos de checagem da ambulância. No caso dos profissionais do

SAMU, o protocolo inclui além da checagem das ambulâncias, as reuniões com o

Conselho Gestor, similares às instruções recebidas pelos profissionais dos Bombeiros.

Temos que a definição do profissional de emergência referida pelo psicólogo,

como: “aquele que socorre as pessoas em situações críticas, catástrofes e no risco de

vida, pois se ele não tomar uma medida imediata, rápida e eficiente, as pessoas

morrem”. O profissional de atendimento pré-hospitalar móvel seria aquele a ser

chamado para atender situações extremas em um prazo de tempo mínimo. Muitos

estudiosos denominaram como Estado de Alerta o estado que o profissional deve

manter de forma a responder às demandas inesperadas que o trabalho apresenta.

Aprofundaremos esta temática na categoria “Carga de Trabalho”.

Podemos vislumbrar que tanto na organização de trabalho do SAMU quanto dos

Bombeiros, estes profissionais exercem constantemente tarefas em conjunto e seguem

rotinas diárias repetitivas como, por exemplo, a conferência dos materiais, além de

seguirem a uma hierarquia, tanto no seu local de trabalho quanto de uma regulação

34
médica.

3.4.2 - Processo de trabalho

Para definir processo de trabalho, consideramos na divisão do trabalho o

controle dos movimentos e ritmos impostos pela organização gerencial. No entanto, o

processo de trabalho inclui além das características físicas do trabalho, os aspectos

relacionais entre os trabalhadores, em que seu espaço e autonomia são demarcados e

defendidos.

Apresentamos a seguir os discursos da jornalista e da profissional do SAMU

acerca de aspectos do processo de trabalho do atendimento pré-hospitalar móvel.

 Discurso da jornalista

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL
BOMBEIROS
O sargento sai na viatura básica de emergência dos bombeiros para sua
primeira ocorrência do dia. Nela, socorre uma mulher de 25 anos que
caiu na Praça da Sé, torcendo o tornozelo e tendo uma contusão no
joelho. Ela foi levada ao Pronto Socorro Bandeirantes, que fica nas
imediações.
SAMU
A enfermeira sai da reunião e tem o seu café da manhã adiado mais
uma vez. A sirene toca avisando que a primeira viatura de suporte
Trabalho em conjunto avançado da escala deve partir para atender uma ocorrência. A
enfermeira rapidamente se posiciona na ambulância e no caminho já se
prepara para o atendimento, enquanto recebe mais detalhes da
ocorrência. A enfermeira e o médico olham se é possível retirá-lo (o
acidentado) do local. A técnica em Enfermagem entra embaixo do
ônibus para verificar se a vítima não está presa. Dessa forma, os três,
auxiliados pelo motorista da ambulância, colocam o homem na maca.
A enfermeira tenta tranqüilizá-lo, apesar de já perceber que a situação
é grave. (...) O que não impede que a equipe trabalhe em conjunto, da
melhor forma possível. A enfermeira procura a máscara para colocar
no homem. O soro é montado. Ele perdeu muito sangue. A enfemeira
pede ao motorista que dê a ela os equipamentos que necessita.

35
BOMBEIROS
Ao retornar para o Posto do Corpo de Bombeiros, o sargento liga para
a Central 193 de São Paulo, para fazer o fechamento da ocorrência.
Isso é feito por telefone e ele passa dados como o nome da vítima, o
que ocorreu com ela e para onde foi levada. O próximo passo é
preencher o talão da ocorrência, que é um documento oficial que pode
ser requerido pela vítima e dá todos os detalhes do ocorrido.

SAMU
Responsabilidade O SAMU chega ao hospital. A equipe do hospital observa a vítima. A
individual enfermeira preenche a ficha com os dados do senhor atropelado,
relatando o que ocorreu. Ela também entrega os pertences encontrados
com a vítima: dinheiro e alguns documentos. A equipe sai do hospital
e chega na unidade do SAMU. Só agora Michele pode sentar e tomar
seu café da manhã. Alimentada, Michele vai repor o material na
ambulância, que já foi higienizada pela equipe responsável pela
limpeza. Sem uma nova chamada, Michele vai almoçar no refeitório
do SAMU. A enfermeira aproveita para fazer a escala de serviço, que
designa quem vai ficar em cada viatura durante o mês. Depois disso,
passa a escala do dia seguinte para o quadro.
BOMBEIROS

O resgate do Corpo de Bombeiros do Posto Sé foi chamado para


socorrer um homem de cerca de 70 anos que teve uma queda e um
corte na cabeça. A viatura corre agilmente pelas ruas de São Paulo.
Altera momentos de trânsito livre com tráfego pesado, chegando ao
local 15 minutos depois do chamado. No entanto, a vítima não está
mais no local. Não quis esperar o socorro e foi embora. O sargento
pega as informações com a pessoa que acionou o resgate. Também faz
parte do cotidiano dos bombeiros alarmes falsos e ocorrências leves.
Alarmes falsos
Como o habitual, o horário do almoço foi interrompido. Os bombeiros
foram chamados para socorrer uma pessoa que passava mal (...), mas
quando chegaram ao local, ela já tinha ido para o hospital de táxi.
Ainda andando pelas ruas da cidade, o resgate foi chamado para
ocorrer uma pessoa na Praça Júlio Mesquita. Chegando ao local, não
se tratava de uma pessoa que havia passado mal ou sofrido um
acidente. Era uma pessoa em situação de rua que havia bebido muito e
estava xingando pessoas do comércio local. Em casos como esse, não
cabe aos bombeiros tomar nenhuma atitude. No entanto, é comum
serem chamados para ocorrências como essa, já que quem liga para o
193 não fala a real situação do que acontece.

36
 Discurso da profissional do SAMU

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL

Adaptação ao atendimento pré-hospitalar


SAMU
A adaptação do atendimento pré-hospitalar é um pouco difícil. Uma
coisa é você atender o paciente no hospital, outra, na rua, onde tem
Ocorrências
contato direto com a população. Nós temos mais dificuldades nas ruas,
pois há mais variáveis que podem estar influenciando no momento. A
via pode ser escura e você ter que tirar o paciente do local onde ele
está. É preciso fazer os procedimentos em locais inadequados.

No tocante ao processo de trabalho, nas duas instituições existem tarefas

individuais e coletivas. Devemos ressaltar o grau de responsabilidade que pode

desembocar em alta carga para o trabalhador. Em uma ocorrência qualquer, o técnico de

ambulâncias básicas responde sozinho pelo atendimento e deslocamento da vítima. No


21
resgate, várias viaturas estão mobilizadas. Em uma colisão são disponibilizadas : a)

ASE - viatura responsável pelo atendimento médico, b) ABS - viatura responsável pela

retirada da vítima das ferragens com equipamentos especializados e c) ABT - viatura

que leva água para a necessidade de explosões no local. Todos os profissionais são

empenhados no socorro, porém a decisão médica só pode ser tomada por ele próprio.

Na verdade, em várias ocasiões desta pesquisa nos deparamos com a dificuldade de

separar e definir as categorias de tarefa individual e coletiva, visto que têm pauta de

ação comum conforme normas, regulação e procedimentos semelhantes.

Somado à alta carga que o trabalho exige, o trabalhador ainda vivencia os

chamados “alarmes falsos”, ou seja, ocorrências com poucas informações ou

ocorrências falsas em que o solicitante omite ou mente na tentativa de "apressar" as

37
viaturas. Ao chegar ao local do atendimento, o trabalhador pode se deparar com uma

situação que não compete ao socorro. As pessoas podem confundir o papel dos

Bombeiros e SAMU, solicitando os mesmos para ocorrências que não são emergenciais;

muitas vezes as ocorrências são casos sociais ou que não necessitam de viaturas. Em

outras ocasiões, a equipe ao chegar ao local do incidente pode não encontrar mais a

vítima, que foi encaminhada para o hospital por ‘meios próprios’ - como no caso de

trauma narrado pela jornalista na matéria sobre os Bombeiros: “O resgate do Corpo de

Bombeiros do Posto Sé foi chamado para socorrer um homem de cerca de 70 anos que

teve uma queda e um corte na cabeça. A viatura corre agilmente pelas ruas de São

Paulo. Altera momentos de trânsito livre com tráfego pesado, chegando ao local 15

minutos depois do chamado. No entanto, a vítima não está mais no local. Não quis

esperar o socorro e foi embora. O sargento pega as informações com a pessoa que

acionou o resgate. Também faz parte do cotidiano dos bombeiros alarmes falsos e

ocorrências leves”.

Nestes casos, a conduta correta seria o paciente permanecer no local imóvel a

fim de evitar lesão secundária, como o trauma raquimedular. Isto justifica o primeiro

procedimento realizado pelas equipes ao chegar ao local da ocorrência: estabilizar a

coluna cervical. Além disso, os profissionais especializados em atendimento pré-

hospitalar móvel são habilitados para o resgate.

Outra fonte de alta carga física e psíquica no trabalho destes profissionais é o

trote, muitas vezes aplicado por crianças 28. A reportagem apresenta que, no Estado de

Alagoas, 80% das ligações destinadas ao SAMU são trotes; a maioria delas feita por

crianças. Ao mesmo tempo em que uma vítima pode ter seu atendimento atrasado, os

profissionais de atendimento pré-hospitalar móvel podem despender um esforço

desnecessário deslocando-se até o local do suposto acidente. As ocorrências oneram o

38
trabalho destes profissionais que saem para o que chamam ‘bobeira’, podendo

desencadear elevados níveis de estresse no trabalho.

Na organização do trabalho observamos a questão da hierarquia. No processo de

trabalho observamos uma pequena diferença entre o trabalho real e o prescrito. A

narrativa dos profissionais quanto às ocorrências que atendem reforça o caráter novo do

processo de trabalho a cada jornada. As ocorrências na rua trazem a necessidade de se

adaptar à rotina criando artifícios para realizar o trabalho da melhor forma possível.

3.4.3 - Carga de trabalho

Como carga de trabalho entendemos o conjunto de esforços desenvolvidos para

atender as exigências das tarefas. A carga de trabalho abrange os esforços físicos, os

cognitivos e os psicoafetivos (emocionais) despendidos pelos profissionais.

Apresentaremos a seguir os discursos da jornalista, dos profissionais do

atendimento pré-hospitalar móvel e do psicólogo acerca de aspectos que convergem

para o aumento da carga de trabalho.

 Discurso da jornalista

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL

Morte
SAMU
É preciso agilidade para atender a vítima. Dentro da viatura de
emergência é possível ver a tensão no rosto dos profissionais. O
momento ainda é tenso, visto que o estado do paciente ainda é grave.
Porém, mesmo com todo o empenho empregado pela equipe, o
paciente vem a falecer. A equipe serena observa a vítima com a
certeza de que deram o máximo de si para salvá-lo.
Ocorrências
Em outra ocorrência, a enfermeira se depara com mais uma situação
triste: um rapaz de 22 anos se suicidou com um tiro na cabeça dentro
de casa. Quando chegou no local, a equipe não podia fazer mais nada,

39
a não ser consolar a família.

Recebidos pela família da vítima


BOMBEIROS
Ainda andando pelas ruas da cidade, são chamados para um novo
atendimento. Vão até um apartamento na Bela Vista socorrer uma
mulher de 62 anos que teve parada cardíaco-respiratória. Ao chegarem
ao local, o sargento e os outros bombeiros do resgate foram recebidos
pela família da vítima. Ela já se encontrava sem freqüência cardíaca e
respiratória. O primeiro passo é consultar o 193 para saber se levam a
vítima ao hospital ou aguardam uma viatura de suporte avançado.
Depois, o sargento pede que a família se retire do quarto, pois eles
farão uma massagem cardíaco-respiratória na mulher. Precisam ser
rápidos e nesses momentos, a presença da família, que está abalada,
pode atrapalhar o andamento do trabalho. Tentam por oito minutos,
mas já é tarde. Só resta esperar que a unidade avançada do SAMU
chegue para a médica constatar a morte da mulher que sofria de câncer
na garganta.
Ocorrências
(Continuação) Aumento das ocorrências
BOMBEIROS
Com a chegada da noite, o atendimento a acidentes de trânsito
aumentou. Às 18h30, o resgate foi atender um acidente entre uma
moto e um carro no cruzamento da Rebouças com a Avenida Brasil. O
rapaz, com suspeita de fratura no membro inferior direito foi levado ao
Hospital das Clínicas. Quando estavam saindo do hospital, às 20h, o
sargento e seus companheiros de trabalho são chamados para uma
nova ocorrência nas proximidades. Dessa vez, uma batida entre uma
moto e uma caminhonete. O motoqueiro, de 22 anos, foi levado ao HC
com suspeita de fratura na patela.

BOMBEIROS
Para cumprir a meta de sair em um minuto, prazo estipulado durante a
madrugada, os bombeiros dormem fardados. Ao ouvir a sirene e o
chamado, basta calçar as botas e descer pelo cano, que dá acesso ao
local onde está a viatura para, rapidamente, atender a ocorrência.
Estado de alerta
Já é meio-dia quando o sargento retorna ao Corpo de Bombeiros. Às
12h15 vai ao refeitório almoçar. O almoço vai das 12h às 14h, mas se
houver uma ocorrência, o bombeiro tem que deixar o que está fazendo
e partir para o atendimento. Esse procedimento também serve para o
jantar, que ocorre das 18h às 20h, e para o banho. O prazo para sair é
de 45 segundos, o que mostra que o bombeiro deve sempre estar
atento e pronto para agir.

40
 Discurso dos profissionais (dos Bombeiros e SAMU)

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL

Ocorrências mais marcantes

BOMBEIROS
Uma ocorrência (triste foi) de pessoas presas em ferragem, na qual fiz
atendimento. Faleceram os pais, duas crianças, e só uma sobreviveu.
Então, é uma coisa muito triste, que marca e fica na memória da
criança. Na hora é aquele desespero, “minha mãe, meu pai, meus
irmãos”, é muito triste isso.

Foi um parto. Eu estava trabalhando no Capão Redondo, há uns seis


meses. Nós chegamos lá e realizamos o parto. É muito gratificante, é
uma sensação muito boa. Outras ocorrências marcantes são as de
tentativa de suicídio, graças a Deus, das 13 que atendi até hoje, todas
foram resolvidas com sucesso.

SAMU
As ocorrências mais marcantes são as que o paciente apresenta trauma,
agonizando no local, em que o paciente morre. E em outra, atendi
Ocorrências vítimas de um capotamento. Vi as pessoas agonizando. Você sempre
quer fazer mais, mas há um limite. Ocorrências com crianças também
chocam muito.

Variáveis da ocorrência

BOMBEIROS
Bom, a atuação é intensa em São Paulo. É uma área em que se corre
muito, têm muitos acidentes, principalmente, de trânsito, motocicleta,
incêndio. A carga é grande, mas é possível levar.

SAMU
O atendimento pré-hospitalar é bem diferente do atendimento no
hospital, pois há inúmeras variáveis que influenciam no momento da
ocorrência, como: a via pode estar escura e ter que tirar o paciente de
lá, os procedimentos são feitos em lugares inadequados.

“Dar o máximo de si”


SAMU
Em um trauma ou uma parada tem que dar o máximo de si, e quando o
paciente sobrevive é muito gratificante.

41
 Discurso do psicólogo

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL

No momento da situação critica da ocorrência que o profissional de


emergência entra naquele processo de culpa, “o que eu fiz de errado”.
Acaba tendo uma pressão muito grande em cima disto. Além disso,
quando existe uma situação que envolve cadáver e sangue, o
organismo reage de imediato e pensa: “Meu Deus, eu sou o próximo a
morrer!”. Então gera todo o processo de estresse que é defender a
sobrevivência do organismo.
Estresse
O estresse é um resquício para manter o corpo vivo. Quando o corpo
percebe um sinal de perigo, ele se prepara para lutar ou para fugir.
Podemos perceber isso quando tem um tiroteio ou um incêndio nos
quais as pessoas saem correndo. Já o bombeiro e o policial, não, eles
vão pra cima. Com isso, o profissional começa a ir contra o próprio
organismo, indo contra o instinto natural. É aí que começa o desgaste
muito maior, além do desgaste natural do corpo que se prepara para o
estresse numa situação crítica que exige a fuga. Ele aprende a
gerenciar tudo isso. Ele começa a gastar uma energia absurda para
manter isto funcionando, pois o coração bate mais forte, a respiração
mais forte, o raciocínio mais rápido, etc.

Os profissionais de emergência vivem situações complexas, inesperadas, que

exigem alto grau de atenção e tomada de decisões rápidas. Por isso mesmo, os

profissionais tendem a negar as evidências de associação entre sintomas, riscos e

processo de trabalho por eles desenvolvidos. Existe, portanto, uma carga de trabalho

que representa o conjunto de esforços desenvolvidos para atender às exigências das

tarefas.

Quanto à carga quantitativa, que diz respeito à intensidade de trabalho mental

exigido dentro de determinada unidade de tempo, percebemos que o trabalho do

profissional de atendimento pré-hospitalar móvel exige atenção concentrada e contínua.

Segundo o discurso da jornalista, os profissionais de emergência dormem

fardados a fim de se mobilizarem o mais rápido possível (em aproximadamente 45

segundos). Em outro momento, a jornalista comenta que se houver uma ocorrência, o

42
profissional deve parar imediatamente para realizar o atendimento. Isto se aplica às

refeições, banho e sono. Neste último caso, o bombeiro deve dormir de farda de modo a

agilizar sua saída, caso necessário. A frase “o bombeiro deve sempre estar atento e

pronto para agir”, dita pelo psicólogo especialista em urgências, representa o estado

que o profissional deve permanecer durante seu horário de trabalho. Assim como

descreve a jornalista: “Nessas 24h, ele tem que estar sempre pronto para ajudar quem

precisa e pede socorro ao 193. Ao receber uma chamada, o bombeiro tem que sair para

atendê-la em 45 segundos. Já à noite, se não houver ocorrência, ele pode deitar às 22h.

Mas o sono sempre é interrompido por algum chamado”. Atentamos para a freqüência

e intensidade deste processo, visto que sua permanência pode acarretar problemas ao

profissional, como transtornos de sono, desgaste físico e mental, irritabilidade, etc 29.

A interrupção do sono e de outras necessidades fisiológicas, somados ao alto

volume da sirene para chamar os profissionais de emergência, eleva a tensão no

trabalho e produzem sintomas como taquicardia, sudorese, dentre outros. O sono dos

profissionais pode ser prejudicado pelo alto volume da sirene, levando o profissional a

descansar por meio de cochilos. Como apresenta o relato da jornalista: “Para cumprir a

meta de sair em um minuto, prazo estipulado durante a madrugada, os bombeiros

dormem fardados. Ao ouvir a sirene e o chamado, basta calçar as botas e descer pelo

cano, que dá acesso ao local onde está a viatura para, rapidamente, atender a

ocorrência”.

Estar em estado de alerta é fundamental para que a equipe de enfermagem de

unidades críticas verifique as alterações precoces, auxilie na recuperação dos pacientes

e até mesmo evite a morte. No entanto, é necessário que estes profissionais tenham

consciência deste processo, procurando alternativas que os auxiliem a viverem melhor,

convivendo com esta situação inevitável 29.

43
Em pesquisa realizada com bombeiros de um município do Rio Grande do Sul,

foi encontrado através de entrevistas que 91% dos entrevistados apontaram trabalhar em

estado de alerta. Um entrevistado citou que permanecem “sempre alerta 25 horas por
17
dia” (p.374). A autora aponta para a possível naturalização do estado de alerta, pois

reconhece que muitos profissionais permanecem em estado de alerta no exercício do seu

trabalho, no entanto não o percebem ou negam.

As ocorrências de um serviço móvel de urgência e emergência possuem caráter

de novidade (Figura 5).

Figura 5
Ocorrência em que atua uma enfermeira do SAMU.
______________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________________

Fonte: Revista Emergência

As ocorrências tornam o trabalho simultaneamente mais excitante e mais

desgastante no aspecto mental, como descrito pela profissional do SAMU: “Em um

trauma ou uma parada cardíaca, o profissional tem que dar o máximo de si, e quando o

44
paciente sobrevive é muito gratificante”. Além disso, a atenção deve ser redobrada

quanto à violência e o trânsito, como podemos ver no relato da profissional do SAMU a

seguir: “O atendimento pré-hospitalar é bem diferente do atendimento no hospital, pois

há inúmeras variáveis que influenciam no momento da ocorrência, como: a via pode

estar escura e ter que tirar o paciente de lá, os procedimentos são feitos em lugares

inadequados”.

Segundo relato dos profissionais, as ocorrências mais marcantes foram as de

parto e tentativas de suicídio. Situações tensas como traumas, vítimas presas em

ferragens e acidentes com crianças também foram cenas citadas pelo profissional dos

Bombeiros: “Uma ocorrência (triste foi) de pessoas presas em ferragem, na qual fiz

atendimento. Faleceram os pais, duas crianças, e só uma sobreviveu. Então, é uma

coisa muito triste, que marca e fica na memória da criança. Na hora é aquele

desespero, ’minha mãe, meu pai, meus irmãos’, é muito triste isso”.

Em pesquisa realizada com 617 profissionais dentre técnicos e paramédicos

(categoria inexistente no Brasil) no Reino Unido, as ocorrências mais perturbadoras

foram relacionadas às seguintes situações: quando a criança é a vítima, quando a vítima

é conhecida pela equipe, quando a equipe se sente inútil na cena da ocorrência, quando

os ferimentos são graves, quando não há suporte dos colegas, quando a equipe recebe
14
falsas informações sobre o local do acidente ou estado da vítima . No município do

Rio de Janeiro, podemos somar às situações citadas as ocorrências em locais de alto

risco que podem desencadear altos níveis de estresse por parte dos profissionais, visto

que seu trabalho abrange toda a área da cidade, independente das peculiaridades e níveis

de risco físico para estes profissionais. Como ainda citado pela profissional do SAMU:

“As ocorrências mais marcantes são as que o paciente apresenta trauma, agonizando

no local, em que o paciente morre. E em outra, atendi vítimas de um capotamento. Vi as

45
pessoas agonizando. Você sempre quer fazer mais, mas há um limite. Ocorrências com

crianças também chocam muito”.

Ainda na mesma pesquisa, 69% dos entrevistados relataram nunca terem tempo

suficiente para se recuperarem emocionalmente de um momento crítico. Relataram

também que a central não se mostra sensível ao enviar as equipes para a ocorrência,

correndo o risco de sair para a próxima ocorrência uma equipe que “correu” há pouco

tempo 14.

Quando a central contacta a equipe para fazer atendimento, persiste sempre a

dúvida em relação ao solicitante, visto que as ocorrências diferem constantemente; o

trabalho de emergência móvel nunca é monótono. Porém, quando o solicitante liga para

pedir socorro, podem surgir diversas alterações no trajeto da ocorrência como, por

exemplo, o quadro do paciente melhorar ou piorar.

Há também, como vimos no tópico Resultados, a questão do número de viaturas

avançadas e básicas. Neste caso, podemos observar que o número de viaturas de suporte

avançado é bem menor que o número de viaturas de suporte básico. Com isso, quando

há uma solicitação para o suporte avançado e não há viaturas disponíveis, a viatura de

suporte básico prossegue para fazer o atendimento e os primeiros socorros, enquanto

aguarda a chegada da viatura de suporte avançado (sendo todo o processo regulado pela

central médica). Mas a questão é saber como esses profissionais reagem frente a essas

situações, uma vez que estão diante do paciente e seus familiares. Não podem deixá-lo

morrer, mas não têm autonomia decisória para evitar tal desfecho.

O psicólogo Ib Martins Ribeiro esclarece que o estresse nada mais é que um

meio natural de defender a sobrevivência do organismo para preparar o indivíduo a lutar

ou fugir: “O estresse é um resquício para manter o corpo vivo. Quando o corpo

percebe um sinal de perigo, ele se prepara para lutar ou para fugir. Podemos perceber

46
isso quando tem um tiroteio ou um incêndio nos quais as pessoas saem correndo”.

Devemos destacar o ponto-chave descrito por ele em um momento de

emergência em que, enquanto a tendência natural seria a de fugir, estes profissionais

enfrentam o problema, “agredindo o próprio organismo, indo contra seu instinto

natural aumentando, portanto, o desgaste percebido”. Nos estudos sobre o estresse

existem dois processos que variam conforme o conteúdo e intensidade: o eustress e o

distress. No eustress, o indivíduo confronta-se com situações desafiantes e passa por

uma excitação natural. O contrário aconteceria no distress, em que o indivíduo extrapola

a capacidade que possui de lidar com as situações 30.

Podemos falar também do estresse pós-traumático relacionado diretamente às

ocorrências atendidas somadas ao estado de alerta constante que o profissional deve

permanecer. No momento da ocorrência, o profissional deve atender efetivamente a

vitima e ao mesmo tempo exercer o autocontrole do processo psíquico e físico a que

está submetido: cansaço, medo, raiva, tristeza, angústia, ansiedade, etc.

Temos através de outro estudo realizado por Marmar, citado por Clohessy &
31
Ehlers , que o grau de complexidade da ocorrência não está diretamente ligado ao

estresse profissional, o que aponta que mesmo as ocorrências corriqueiras podem ser tão

traumáticas e estressantes para estes profissionais quanto os desastres.

Assim, a forma do profissional perceber a situação que vivencia - como

ameaçadora - constitui-se fator importante na formação do estresse. O estresse

ocupacional pode ser concebido como situações ameaçadoras à saúde física e mental do

indivíduo, vivenciadas no seu ambiente de trabalho. A experiência ameaçadora pode

culminar na inabilidade do profissional em lidar com o trabalho, esgotando seus

recursos para enfrentar tais situações 30.

Como observamos, a carga de trabalho é um aspecto do trabalho marcante. Nas

47
reportagens, vemos que é a categoria que possui maior número de variáveis adversas ao

trabalhador. No trabalho dos profissionais de atendimento pré-hospitalar móvel, a carga

é pesada, pois ao lermos os discursos supracitados entendemos que estes profissionais

estão em contato diário com: paradoxo vida e morte, prazer e sofrimento, esforço

físico, grande número de ocorrências que não são prioridade, necessidade de um auto

controle frente às diversidades das ocorrências, tudo isso várias vezes ao dia e ao longo

de anos de trabalho.

3.4.4 – Produção de subjetividade

Como citado no item 3.4, a categoria produção de subjetividade emergiu no

decorrer das análises das reportagens. Frente às características do trabalho dos

profissionais da emergência, eles criam e se apropriam de meios de enfrentamento da

realidade de seu trabalho.

A definição de subjetividade que nos pautamos a define como o modo dos

indivíduos perceberem o mundo. Passível de fabricação e modelagem no âmbito

interpessoal, a subjetividade do trabalhador pode se submeter ao trabalho. A

subjetividade é atravessada por elementos internos e externos que modificam sua

estrutura. A subjetividade pode ser, então, produzida pelo atravessamento de diversas

origens, sociais, econômicas, tecnológicas, da mídia, dentre outros 32.

Apresentaremos a seguir os discursos do psicólogo e dos profissionais do

atendimento pré-hospitalar móvel no que diz respeito aos aspectos da produção da

subjetividade do profissional de emergência, além dos meios que estes utilizam para

lidar com o sofrimento no trabalho.

48
 Discurso do psicólogo

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL

Com o tempo, irão surgir problemas cardíacos, problemas


respiratórios, problemas de pele, problemas intestinais, problemas
Despersonalização estomacais, entre outros. Na parte emocional, para lutar e se defender,
o profissional tem que se tornar muito mais agressivo e incisivo, tanto
verbal quanto fisicamente. Desta forma, o profissional de emergência
vai se tornando mais agressivo e as outras pessoas que estão em volta
dele começam a ficar incomodadas.

A figura do herói é muito forte, mas a coisa ruim é você se considerar


herói, porque começa a buscar isso a qualquer preço. O bombeiro
Figura do herói costuma falar assim: “mas eu tenho que salvar nem que custe a minha
vida!”. Mas se ele morrer, ele não salva mais ninguém. Vemos isto,
principalmente, em profissionais muito jovens.

Segundo dados da PM de São Paulo que envolve bombeiros, polícia,


profissional de transito, no Estado, por exemplo, o número de
Suicídio suicídios dos profissionais de emergência é de 6 a 8 vezes maior que
da população geral. De 1994 até 2005 foram 290 profissionais da área
de emergência que se suicidaram.

O álcool é um antidepressivo barato, então você bebe para ficar alegre,


para relaxar. E quando se trabalha num grupo de emergência se vê que
Consumo de álcool muitos do grupo bebem para relaxar. E o profissional vai bebendo.
Bebe um golinho hoje, mas quando está numa depressão perde a
conta.

O não equilíbrio de um profissional de emergência pode resultar em


atendimento mal sucedido. No caso de um acidente de carro, por
exemplo, a equipe fica por horas tentando tirar a pessoa das ferragens,
segurando a mão e conversando para mantê-la acordada. Mas ela
Importância do acaba morrendo. Aí vem aquela sensação de impotência, de culpa.
equilíbrio do Mas se a vítima sobreviveu, ela vai ser socorrida, fica com algumas
seqüelas emocionais, só que a família leva num psicólogo para
profissional de
tratamento e, em pouco tempo, ela estará boa. E com o profissional de
emergência emergência? As seqüelas emocionais não foram cuidadas, tratadas.
Alguém vai tratar? Não. Ele segue atendendo outras ocorrências. Neste
sentido, o profissional de emergência é hoje uma espécie de vítima que
ninguém lembra.

49
 Discurso dos profissionais (dos Bombeiros e SAMU)

IDÉIA DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


CENTRAL
BOMBEIROS
Eu estou há oito anos no Corpo de Bombeiros. Me adaptei, me sinto
bem, amo o que eu faço. Me dedico a essa profissão de bombeiro e
ajudar qualquer ser humano é muito gratificante, tanto para quem está
recebendo a ajuda quanto para nós que estamos socorrendo.

Eu posso dizer que atendi uns 80% do que eu queria. A principal etapa
foi ser sargento do Corpo de Bombeiros. Gosto do que eu faço. Desde
Motivações quando eu entrei, tinha esse objetivo. A gama de informações que a
Corporação nos dá através de cursos é muito grande, são cursos
excelentes, de mergulho, resgate, salvamento em altura, salvamento
terrestre, produtos perigosos, salvamento aquático. É muito bom e não
há dinheiro que pague tudo isso.
SAMU
Quero continuar trabalhando com emergência. Quando tiver mais
prática na área, pretendo atuar na educação voltada para a emergência.
Para tanto, farei mestrado e doutorado. Mas acho que ainda não é a
hora. Quero ter mais experiência.

Todas as questões citadas até agora mobilizam a subjetividade do indivíduo

podendo levar, por vezes, a uma modificação da estrutura de sua personalidade a fim de

melhor enfrentar certas realidades. No decorrer do tempo de trabalho, os profissionais

de atendimento pré-hospitalar não percebem que estão mudando, como apresenta o

psicólogo especialista em urgências: “Com o tempo, irão surgir problemas cardíacos,

problemas respiratórios, problemas de pele, problemas intestinais, problemas

estomacais, entre outros. Na parte emocional, para lutar e se defender, o profissional

tem que se tornar muito mais agressivo e incisivo, tanto verbal quanto fisicamente.

Desta forma, o profissional de emergência vai se tornando mais agressivo e as outras

pessoas que estão em volta dele começam a ficar incomodadas”.


31
Clohessy & Ehlers citam outros dois estudos. O primeiro, de Taylor e Frazer,

aponta que os profissionais da emergência não são estudados como as vítimas primárias

50
dos desastres em que atuam. No segundo estudo citado, Thompson & Susuki estudaram

40 experiências de profissionais de atendimento pré-hospitalar móvel e concluíram que

60% deles apresentavam distúrbios psíquicos menores através da escala GHQ (General

Health Questionnaire) que avalia situações que variam da ansiedade até a depressão.

Como reafirma o psicólogo: “Mas se a vítima sobreviveu, ela vai ser socorrida, fica

com algumas seqüelas emocionais, só que a família leva num psicólogo para

tratamento e, em pouco tempo, ela estará boa. E com o profissional de emergência? As

seqüelas emocionais não foram cuidadas, tratadas. Alguém vai tratar? Não. Ele segue

atendendo outras ocorrências. Neste sentido, o profissional de emergência é hoje uma

espécie de vítima que ninguém lembra”.

Por outro lado, muitos dos profissionais negam a existência dos primeiros

sintomas que começam a surgir e, quando questionados, apresentam justificativas

contraditórias. A negação das dificuldades que estão vivendo é um mecanismo de

defesa que a mente utiliza para se proteger da ansiedade.

Como compensação frente às dificuldades impostas pela jornada, o profissional

de atendimento pré-hospitalar móvel, principalmente dos Bombeiros, carrega a imagem

de herói pela população que, ao contrário do que se costuma acreditar, lhe custa caro –

mais precisamente a sua saúde, como reitera o psicólogo: “A figura do herói é muito

forte, mas a coisa ruim é você se considerar herói, porque começa a buscar isso a

qualquer preço. O bombeiro costuma dizer isso: ‘Mas eu tenho que salvar nem que

custe a minha vida’. Mas se ele morrer, ele não salva mais ninguém. Vemos isso,

principalmente em profissionais muito jovens”.

Na necessidade de ‘dar o máximo de si’, expressa pela profissional do SAMU,

misturam-se a motivação do profissional pelo atendimento bem sucedido da vítima e a

imagem inabalável do heroísmo, o que segue à masculinização de todo o efetivo, seja de

51
homens ou mulheres, que os tornam mais endurecidos dos demais profissionais da

saúde (James & Wright citados por Alexander & Klein 14).

A imagem a seguir pertence a uma propaganda de botas na Revista pesquisada, e

a utilizamos como representação do ideal heróico do profissional de atendimento pré-

hospitalar móvel. Os traços da imagem são fortes, sua estatura, pernas e braços grandes

para atender e suportar qualquer ocorrência (Figura 6).

Figura 6
Imagem do profissional de emergência por propaganda de empresa de botas de
proteção
______________________________________________________________________

______________________________________________________________________
Fonte: Revista Emergência

Esta ideologia não é um efeito secundário do trabalho, mas como pretendíamos

52
mostrar, uma verdadeira necessidade para manter uma estrutura moral de orgulho,

indispensável para enfrentar as condições de trabalho. A qualidade da relação

motivação-satisfação e, particularmente, o prazer proveniente do conteúdo significativo

e simbólico do trabalho são absolutamente necessários à manutenção da performance

"ergonômica" e à atenuação do medo 16.

A adequação do homem no labor se faz através de uma adaptação do prazer

extraído do trabalho para permitir enfrentar a cada dia as condições particularmente

nocivas e a tolerar um medo que, embora seja de seu conhecimento, não pode ser

expresso por eles 16.

São muitas situações que norteiam a estrutura mental do profissional de

atendimento pré-hospitalar móvel, pois lidam constantemente com mortes, tragédias e

perigos de morte para a equipe. Nesse processo são desencadeados comportamentos de

auto-defesa que se acumulam, chegando ao ponto de anular suas estratégias de defesas.

Muitos procuram socorro no uso de drogas como o álcool, como aponta o psicólogo: “O

álcool é um antidepressivo barato, então você bebe para ficar alegre, para relaxar. E

quando se trabalha num grupo de emergência se vê que muitos do grupo bebem para

relaxar. E o profissional vai bebendo. Bebe um golinho hoje, mas quando está numa

depressão perde a conta”.

Estes profissionais possuem família, filhos e vivem muitas emoções no dia-a-dia

do trabalho estão entre a vida e a morte das pessoas e da própria equipe. Heróis quando

salvam uma vida, fracassados quando o contrário acontece. Esse paradoxo deve ser bem

equilibrado e ocultado a ponto de não influenciar no atendimento que as vítimas

necessitam.

No trabalho dos profissionais de emergência, o paradoxo constitui-se

elemento intrínseco à sua prática diária. Vida e morte, prazer e sofrimento lado a lado

53
em cada ocorrência; permeando todo o sentido do seu trabalho. O lado da vida traz

consigo a motivação, seja para continuar na profissão - como no caso dos dois

profissionais entrevistados pela Revista – seja pela gratidão em cada atendimento bem

sucedido – os partos gerando a vida e a evitação da morte.

Um meio trágico de lidar com este paradoxo é visto no suicídio, citado pelo
17
psicólogo em sua entrevista, como também por Gonzalez , ao referir que alguns

profissionais entrevistados em sua pesquisa relataram casos de suicídios como

conseqüência de depressão. França reconhece que indivíduos que possuem estilo de

vida estressante, por longo período de tempo, podem desenvolver episódios de

depressão consideráveis.
33
Dejours ainda discute a necessidade de profissões que vivem situações

arriscadas como bombeiros e polícia criarem mecanismos de coragem e virilidade.

Como o autor cita: “(...) quando existe uma pressão ou uma injunção para superar o

medo, os processos psíquicos individuais e coletivos apelam mais para a virilidade

defensiva do que para a coragem moral” 33 (p. 102). As considerações valem tanto para

situações de violência externa e possibilidade de enfrentar um inimigo, como por

ameaça imposta pelo ambiente de trabalho que condiz lidar com grandes incidentes.

A subjetividade é apreendida por mecanismos internos e externos, portanto, não

podemos negar a contribuição da área do trabalho com todas as divergências e

similaridades inerentes principalmente no que diz respeito às normas e prescrições.


34
Foucault descreve o mecanismo da disciplina imposta aos corpos em meados do

século XVII. O corpo, descoberto como instrumento de controle, passa a ser

manipulado conforme as intenções de aumento das forças convenientes à máquina do

trabalho. O sentido de docilidade recai sobre a capacidade de submissão de um objeto

como o corpo. O controle imposto sobre o corpo atua em cada parte, minuciosamente. O

54
acompanhamento e intervenção em cada processo são mais importantes que a atuação

sob o “produto final”.

Assim, as modalidades de coerção do corpo pela disciplina existiram durante a

História e se reproduzem até hoje impondo ao trabalhador a perda progressiva de sua


34
autonomia. A “disciplina do minúsculo” (p. 120) atuava nas instituições visando a

normatização do comportamento dos indivíduos. A importância da minúcia que incidia

nos regulamentos, inspeções, no controle do corpo e das atividades revelavam o modelo

de homem esperado.

Nos questionamos se, assim como o Corpo dos pilotos de caça descritos por
16
Dejours , os profissionais de emergência na sua “loucura” e submetidos à rigorosa

disciplina que podem leva-los ao sofrimento - seja pelo comando e/ou pela organização

do trabalho. Loucura esta gerada pela constante normatização aliada à ordem social que

igualmente reforça e perpetua o modelo de profissional em vigor.

55
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar o trabalho dos profissionais que fazem o atendimento pré-hospitalar a

princípio parecia algo simples. Como proposta inicial, realizaríamos entrevistas com os

profissionais de emergência do Corpo de Bombeiros. A partir do seu discurso,

recorreríamos aos conceitos de organização do trabalho, processo de trabalho e carga de

trabalho. Ao apresentarmos nossa proposta ao Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP,

fomos questionadas acerca da falta de autonomia dos profissionais militares no que diz

respeito ao sigilo absoluto das informações dentro da Corporação.

Em decorrência, ao descartar nossa idéia inicial, pensamos em realizar um

estudo bibliográfico sobre aspectos do trabalho do profissional de atendimento pré-

hospitalar móvel. Ao começar o levantamento bibliográfico envolvendo Corpo de

Bombeiros e SAMU, encontramos na Internet a versão on-line da Revista Emergência.

Decidimos, então, realizar um estudo qualitativo através da metodologia do Discurso do

Sujeito Coletivo (DSC) com as reportagens da Revista.

O processo de orientação foi enriquecedor, pois a cada encontro e a cada

discussão percebíamos que o trabalho de atendimento pré-hospitalar nas duas

instituições possuía características comuns: os profissionais descrevem as mesmas

alegrias e tristezas.

Na escrita da monografia aplicamos o cerne da prática em Saúde do

Trabalhador: o trabalho interdisciplinar. A integração dos conhecimentos de Psicologia

e Enfermagem permitiu ampliar nossa capacidade de reflexão sobre os aspectos do

trabalho destes profissionais. Assim, nos referimos ao ditado popular que diz:

56
“Quando um homem vem com um pão em sua mão

e troca com outro homem um outro pão, os dois

saem cada qual com um pão. Mas quando um

homem vem com uma idéia em sua mente e a troca

com outro homem, cada homem sai com duas

idéias”.

Este simples ditado demonstra claramente a realização desta monografia, todo o

nosso processo de conhecimento e de trocas compartilhadas.

Dentro das categorias estudadas nas reportagens, percebemos a emergência da

categoria produção de subjetividade no tocante das modificações que o trabalho pode

realizar na estrutura psíquica do profissional de atendimento pré-hospitalar móvel.

Percebemos por um lado que, no fazer destes profissionais, há a possibilidade de

organização do trabalho com espaços de criação, tanto na seqüência de tarefas a serem

realizadas como no processo de sua realização - na iniciativa ou não de realizá-las.

Esses trabalhadores, por outro lado, estão imersos nas relações de trabalho sobre as

quais não têm controle, vendo-se na contingência de se submeter em diferentes níveis.

Acreditamos que, nesta dialética, o profissional permite-se pensar, questionar,

ocupar os diferentes espaços de possibilidade que o levam a resistir e enfrentar,

conquistando espaço à criatividade e permitindo-se exercer sua autonomia enquanto

sujeito.

Percebemos que é interessante destacar as recomendações contidas nas

reportagens utilizadas nesta monografia: aumento da frota de viaturas; escala de serviço

mais larga (mudança de 24/72 para 24 por semana) ou diminuição da jornada de

trabalho de 24 horas para 12 horas; alimentação saudável e balanceada com lanches

periódicos (visto que muitas vezes eles não têm pausa para almoçar); acompanhamento

57
psicológico; discussões em grupo para dividir experiências; trocar idéias e planejar

mudanças para melhoria do trabalho; redução da duração do emprego; criação de um

departamento de readaptação profissional dentre outros.

Com a realização deste estudo, compreendemos que a saúde permeia todos os

âmbitos do processo de trabalho. Falar em saúde e doença significa considerar todos os

aspectos do processo de trabalho dos profissionais de emergência, percebendo-os em

sua unidade contraditória, ora possibilitando, ora dificultando a saúde; ora à satisfação e

motivação do profissional, ora a seu adoecimento, desmotivação e despersonalização. O

que dá sentido a esta contradição é, no final das contas, a categoria "produção de

subjetividade" que emergiu da análise do material da Revista. Dentro dessas

adversidades enfrentadas pelo trabalhador, vemos uma subjetividade que tenta “manter

o corpo e a mente vivos”. Trata-se da missão salvadora e da imagem de herói imputada

e assumida pelo profissional de emergência, e onde vemos a salvação ou a perdição do

ser humano. Salva, mas sofre, cria mecanismos defensivos, adoece e em certos casos

acaba por sucumbir ao longo do tempo de milhares de jornadas nem sempre bem

sucedidas.

58
COLABORADORES

Claudia Comaru foi responsável pela elaboração da metodologia, revisão da literatura,

análise dos resultados e redação final da monografia. Priscilla Vitorio foi responsável

pela revisão da literatura, descrição da história e processo de trabalho dos profissionais

que atuam em atendimento pré-hospitalar móvel, e redação final da monografia.

REFERÊNCIAS

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26. Reimberg C. Ajudando pessoas. Revista Emergência 2006, nº1; nov.

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http://www.alemtemporeal.com.br/interno.php?pag=saude&cod=988 (acessado em
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34. Foucault M. Os corpos dóceis. In: Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes; 2004.

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ANEXOS

Anexo 1
Reportagem sobre processo de trabalho no SAMU

A vida por um fio. Revista Emergência 2006, nº1; jul.

Anexo 2
Reportagem sobre processo de trabalho dos Bombeiros
Ajudando pessoas. Revista Emergência 2006, nº1; nov.

Anexo 3
Entrevista com psicólogo sobre estresse nos profissionais de emergência
Estresse no trabalho. Revista Emergência 2006, nº1; jul.

Anexo 4
Matéria sobre o alto número de trotes recebidos pelo SAMU
Alagoas em tempo real:
http://www.alemtemporeal.com.br/interno.php?pag=saude&cod=988 (acessado em
5/Jun/2008).

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