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O CIMENTO

GIANFRANCESCO GUARNIERI
O teledrama O CIMENTO foi apresentado, em 1962, pela TV Excelsior,
canal 9, de São Paulo, com direção de Flávio Rangel, tendo como
principais intérpretes Itala Nandi e Fernando Peixoto. Este espetáculo foi
também gravado em video-tape, em 1964, pelo canal 4 de Montevidéu,
Uruguai, com o elenco do Teatro Oficina de São Paulo, sob a direção de
Fernando Peixoto.

Ato I

CENÁRIO: Prédio em construção. Apenas o esqueleto do edifício. Vigas de


cimento armado entrelaçadas, formando um enorme gradeado.
Pranchas ligam um pavimento ao outro, bem como um elevador
de madeira, movimentado a roldana. No andar térreo, material
para a obra: pilhas de tijolos, carrinhos de pedreiro,
misturadora de cimento, sacas de material, montes de
pedregulhos, etc. Um tapume limita a área em construção,
isolando-a da rua.

A C. detalha uma placa no tapume onde se lê. “MORAES &


MEDINA — CONSTRUTORES”. Panoramiza verticalmente
focando um aviso mal desenhado em tinta preta: “NÃO HÁ
VAGAS”. Lentamente, a C. panoramiza horizontalmente
atingindo o portão de entrada da obra que lentamente se abre
dando passagem à C., que penetra no ambiente, descobrindo-se
a armação do edifício. Um coro masculino, rítmico, acompanha
os movimentos da C.

Coro masculino — Tema.

Cortes alternados para o ponto de vista das outras duas


câmeras colocadas em diferentes planos, enquanto se superpõe
os slides de apresentação.

Ao término dos slides, corte para ferro suspenso por uma corda
que serve de sineta; a mão de um operário faz soar o ferro com
batidas rápidas.

Bater da sineta prossegue com tema.

Pelo portão, em fila, entram os operários. A C. fixa descobre os


rostos que passam em close. São rostos cansados onde se
estampa miséria e fome. A C. afasta-se para P.G. descobrindo-

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se a casinhola-escritório. Os operários passam diante dela,
recebendo com um gesto mecânico o envelope que lhes é
estendido por um jovem, funcionário dos escritórios da
Construtora, enquanto o Mestre da obra chama os operários um
por um.

MESTRE — Antônio Silva Clementino! José Ferreira!... Cândido Murié!...


Pedrico Santarém!...

A C. demora-se um pouco mais em Pedrico que pegando o


envelope cospe para o lado, e com ar de deboche murmura para
o pagador:

PEDRICO — Vida mansa, hein, moço?

MESTRE — Anda, anda!... Alberto Morais!... José Tolentino!..


(Irritado) Passa, Juca Arigó!

O coro prossegue, imponente.

Corte para a rua, junto ao tapume. Maria Inês aproxima-se


rapidamente, parando no portão.

MARIA I. — Pedrico... Pedrico!

Pedrico chega ao portão.

MARIA I. — Pedrico, já recebeu?

PEDRICO — Tá tudo aqui. Hum, tudo!... Descontaram o que podiam!

MARIA I. — Mas dá?

PEDRICO — Deve dá. Julião não conseguiu nada?

MARIA I. — Só umas injeção. Tá faltando tudo a bem dizer...

PEDRICO — E Murilico?

MARIA I. — Do mesmo jeito de quando tu saiu.

PEDRICO — Tava sorrindo, bom sinal.

MARIA I. — Não é preciso preocupação. Forte que nem tu!

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PEDRICO — Eu? Quem dera fosse!

MARIA I. — Não vai sê nada, tudo se ajeita. Tem gente cuidando.

PEDRICO — Se ficá bom, vou acendê vela pra Santa Miguelina!

MARIA I. — Vela pra Julião, isso é que sim. Nem foi trabaiá, garrado no
menino que nem avô.

PEDRICO — Gente boa tem parentesco com o mundo.

Surge o Mestre.

MESTRE — Já não chega de prosa? Vamo lá, vamo lá!

O coro — tema aumenta.

PEDRICO — Cuida do Murilico!

MARIA I. — Não fica com susto!

PEDRICO (Dando-lhe o envelope) — Toma. Quinze dia de trabalho...

MARIA I. — Volta cedo. Corre! Pega o trem das oito!

PEDRICO – Vô de avião!

Surge novamente o Mestre.

MESTRE — Como é, ô Pedrico?

Para o interior da construção. Penúltimo


andar construído. Murié e Tolentino
trabalham fazendo uma parede.

TOLENTINO — Olha, seu Murié!

MURIÉ — O que foi?

TOLENTINO — Lá adiante, no edifício em frente!

MURIÉ — Onde?

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TOLENTINO — Lá, olha! Um... dois... três... quatro. No quarto andá...
segunda janela, de cortina verde!

MURIÉ — Ih! Não enxergo nada. Os óio já estão falhando!

TOLENTINO — Espreme eles, faz força. Vale a pena vê!

MURIÉ — Não adianta, Tolentino. Vejo tudo embaraçado. Velhice, ué!

TOLENTINO — Pois é pecado! Palavra que tão linda nunca vi!

MURIÉ — Então é mulher?!

TOLENTINO — Claro, uai! Ia ficá olhando pra janela vazia?

MURIÉ — Qual é o jeitão dela?

TOLENTINO — Sei lá. Mas que mexe com a gente, mexe. Tem um sorriso
gaiato! Bonita, bonita pode sê que não seja, mas é linda, viu? E depois,
o que vale é que já me fez sinal.

MURIÉ — Já vai atracá, não é?

TOLENTINO — E não é pra atracá?... Me deu no estômago uma fisgada


assim logo quando eu vi!... Seu Murié, não quero bancá adivinho, mas
ali em frente, no quarto andá, segunda janela esquerda, tá a madame
Tolentino, viu, quase que posso garantir!

MURIÉ — O que, sô! Pensando em casá?

TOLENTINO — Fez sinal uma vez, fiz outro pra confirmação. Confirmô!
Fiz um terceiro, só pra evitá miragem, e lá foi: abriu em um sorriso que
nem na janela cabia!... Quase que me atiro cá de cima!

MURIÉ — (Empalidecendo) — Ainda bem que não! (Agarra-se com força


em uma das vigas) Tombo feio!...

TOLENTINO — O que é que há, seu Murié? Sentindo mal?

MURIÉ — Sei lá o que é. Já há dias me vem dando isso; uma cisma com as
altura, pavor dos andaime. Pra pedreiro isso não é bom, não!...

TOLENTINO — Mal de momento. Já vi o senhor agarrado em cada lugar

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que Deus me livre!

MURIÉ — O fato é que Murié tá ficando velho!

TOLENTINO (No auge) — Sorriu de novo, seu Murié. (Gritando) Moça, oi


moça! (Faz sinais marcando encontro na construção.)

MURIÉ — Vê lá se ela entende essa fala de mudo!...

TOLENTINO — Entendeu sim, ela vem! (Saltitando) Ah, ah, moçada, que a
vida é boa! Ela vem, seu Murié — eu bem que tava sentindo... um nó
nas tripa que nunca me deu. Fisgada gostosa!

MURIÉ — (Sorrindo) — Mas que é isso? Vamos trabalhá, ô amoroso!


(Abraça-o.)

Pedrico junto à misturadora de cimento.


Agachado, examina o material com atenção.
Ferreira aproxima-se empurrando um carrinho de
mão.

FERREIRA — Oba!

PEDRICO — Oba!... Esse cimento não segura nem papel, água pura!

FERREIRA — É! Num sei nem porque esses caras estuda. Nunca vi


engenheiro mais micho!

PEDRICO — Pouca vergonha, isso é que é... Ah, meu camarada, queria ter
um por cento do que tá sendo roubado nessa construção!

FERREIRA — Nem fala. Já viu a rachadura da coluna?

PEDRICO — Eu tava esperando! Apareceu hoje?

FERREIRA — Só hoje notamo.

PEDRICO — Isso não chega nem no sexto andar.

FERREIRA — Deus que me livre! Tá me dando gana de largá isso aqui!

PEDRICO — Eu também é que não fico! Mais uma quinzena, e fim! Tô aí


pra ficá esmagado?

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FERREIRA — Acho bom falá com o Mestre.

PEDRICO — Eles estão tudo combinado. Então o Mestre não ganha o dele?

FERREIRA — Perigoso é pra ele também.

PEDRICO — Pois sim. Já viu ele subi alguma vez? Fica aqui de fora, só
manjando... Na hora do aperto vai sê o primeiro a correr!

FERREIRA — Tem um edifício que vai começá perto daqui. Quando precisá
mão-de-obra, te aviso.

PEDRICO — É um favor.
C. segue Ferreira que empurra o carrinho,
deixando-o junto de Juca Arigó.

FERREIRA — Trabáia, Arigó!

ARIGÓ (Com um sorriso de retardado) — Ferreirinha, quando é que eu


chego a oficial?

FERREIRA — Dia de São Nunca, nego — lá pela tardinha!

ARIGÓ — Em que mês é?

FERREIRA — Lá pra trinta de fevereiro.

ARIGÓ — Trinta de fevereiro... Falta muito?

FERREIRA — Daqui uns três anos, quem sabe?

ARIGÓ — Três, é? Aí eu quero trabaiá com você Ferreirinha, ou então com o


Pedrico!

FERREIRA — É. A gente arruma isso.

ARIGÓ — Ó, num diz que eu falei!... Mas o Maranhense me bateu com a pá!

FERREIRA — Bate nele também.

ARIGÓ — Não! Diz que quem bate em companheiro nunca chega a oficial!

FERREIRA — Conversa, chega sim!

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ARIGÓ — Doeu!

Surge o Mestre.

MESTRE — Arigó! Vai me comprá cigarro, rápido!

ARIGÓ — Vô que nem vento!...

Arigó sai.

MESTRE — Corre, sete-mês!

FERREIRA — O senhor viu o negócio da coluna?

MESTRE — Que negócio da coluna?

FERREIRA (Entimidecendo) — Sei lá... O Pedrico é que tava falando! Ele é


quem sabe.

MESTRE — Pedrico é engenheiro agora?

FERREIRA (Sorrindo amedrontado) — Hã! Pois é! Ele diz que o edifício vai
caí!

MESTRE — Com uma turma de preguiça dessas, é bem possível. Vão


trabalhá e deixa de prosa!

Ferreira afasta-se rapidamente. C. segue o


Mestre que se dirige para Pedrico.

MESTRE (Falando para o alto) — Vamo apressá esse muro aí! Três ano pra
fazê um murinho!

Chega junto a Pedrico que continua em seu


trabalho.

MESTRE — Então, seu Pedrico, o que é que há?

PEDRICO — Eu é que pergunto.

MESTRE — Que história é essa de coluna? Do edifício cair?

PEDRICO — Cimento é água pura. Num güenta nem brisa da noite...

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MESTRE — Pois o senhor agora é engenheiro?!

PEDRICO — Posso não ter estudo, mas prática é o que não me falta. Desde
criança, da roça pra construção. Cimento é água, num segura...

MESTRE — Ninguém lhe paga pra dá opinião. Meta-se com o seu trabalho.
Talvez saia mais bem feito.

PEDRICO — Com mais uns quilos de cimento, posso garantir!

MESTRE — Você anda preocupado demais, Pedrico. Sol demais aqui


embaixo. Troca com Murié, cuida do terceiro andar, manda o velho pro
alto... Assim fica na sombra.

PEDRICO — Não sei em que altera!

MESTRE — Faz o que eu mando que tá bem.

PEDRICO — É o jeito! Mas o cimento não segura.

MESTRE — Pois então, pra lhe evitá susto. Deixa outro cuidando.

Aproxima-se Arigó.

ARIGÓ — Tá aqui o cigarro, seu Mestre!

MESTRE — Desse não! Pedi com filtro!

ARIGÓ (Tímido) — Pedi cigarro pro Mestre. Deram esse!

O Mestre abre o maço e tira um cigarro.

Depois de pausa.

MESTRE — Arigó, você agora vai cuidá do cimento.

PEDRICO — Nenhum tribuná vai pôr culpa num louco.

MESTRE — O que foi aí?... Olha, Pedrico, tua fama de arruaceiro chegô até
aqui e tá enfeiando tua ficha. Acho melhor cuidá do teu serviço!

PEDRICO — Tá bom. Vou subi!


MESTRE — Dá uma olhada lá fora, tem fila pedindo emprego!

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PEDRICO (Voz surda) — Vou subi.

Pedrico afasta-se lentamente.

ARIGÓ — Cuidá de cimento é trabalho de oficial?

MESTRE — Não é ainda não, mas pode ficar. É só ter ouvido aceso. Sacudi
essa cabeça tonta e prestá atenção.

ARIGÓ — Prestá atenção?

MESTRE — Só no que ouvir. O que a turma disser, você me conta,


entendeu?

ARIGÓ — Conto. Tudo o que eles dissé.

MESTRE — Mas eles não podem saber que você me conta!

ARIGÓ — Num pode sabê, né?

MESTRE — Ninguém pode saber. E se eu descobrir que você não faz o que
eu mando — záz! — pra rua, e adeus trabalho de oficial, hein?

ARIGÓ — Adeus trabalho de oficial, hein?

MESTRE — É isso mesmo, sete-mês. (Dá-lhe uma nota de cinco cruzeiros)


Tó, isso é pela nossa amizade.

Arigó sorri agradecido.

Terceiro andar. Tolentino e Murié trabalham na


construção do muro. Tolentino sempre atento no
edifício fronteiro. Surge Pedrico.

TOLENTINO — Oilá, seu Pedrico. Manja só, no quarto andá ali em frente,
segunda janela à esquerda. Aquela lá é minha namorada!

PEDRICO — Benza Deus, pedaço, hein?

TOLENTINO — Madame Tolentino, se Nosso Senhor me ajudá!

MURIÉ — Deu a louca no menino!


PEDRICO — Tá com a razão, moleque, namora mesmo. É o que se espreme

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da vida!

MURIÉ — Pra depois ficá que nem eu? Mulher gorda-balão, cinco filhos de
berreiro... Aí tu pensa...

PEDRICO — Se arrependeu, Murié?

MURIÉ — Té que nada! É a gorda-balão mais coisa minha do mundo; os


berro da criançada parece até música... Só quem é caco sou eu!

PEDRICO — Vai se mudá, seu Murié. Ordem aí do Mestre. Mandô a gente


fazê troca: eu aqui, atazanando o Tolentino, você lá em cima debaixo do
sol.

MURIÉ — Lá em cima?!

PEDRICO — Melhor, ué — ar livre!

MURIÉ — Mas pra que?

PEDRICO — A coisa é comigo. O Mestre não quer que eu fique junto do


cimento, misturado com o pessoá. Quer fazê a robalheira sossegado...

MURIÉ — Que robalheira?

PEDRICO — Não manjô ainda a consistença do cimento? Água pura.


Coluna-mestra tá cedendo!

MURIÉ — Deus padre!

PEDRICO — Falei com o Mestre. Fez que não era com ele. Tão tudo na
gaveta!

MURIÉ — Pode desabá!

TOLENTINO — Desabá?

PEDRICO — Eles tão crente que não, pelo menos não tão já... Eu, por mim,
não espero nem mais mês. Fim da quinzena me arranco!

MURIÉ — É! Melhor mesmo é procurá lugar mais firme.

PEDRICO — Vamo lá, Murié, faz a mudança.


TOLENTINO — Eu fico aqui mesmo, né?

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PEDRICO — Lá em cima você namora até melhó!

TOLENTINO — Que o que! Ela tá acostumada me vê aqui! Se eu subo, ela


namora outro que tivé no meu lugá!

PEDRICO — É namoro complicado! Você fica aqui sim!

MURIÉ — Pedrico... eu acho que não posso subi!

PEDRICO — O que é que há?

TOLENTINO — O que tá havendo, Murié?

MURIÉ — Tou com enguiço no corpo. Não agüento lugar alto. Me dá um


frio, embaça a vista e vem tontura que pareço tá voando. Preciso ter
parede pra me escorá!

PEDRICO — Sendo assim, tu não pode.

MURIÉ — Vou explicá pro Mestre... Isso até que humilha. Palavra que me
dói. A gente tem orgulho, sabe. Eu era que parecia cabrito. Edifício
aprontava eu era o último a saí. Parecia dono de tudo. Tô um caco é o
que é!

PEDRICO — Descanso é o que tu precisa. Vai falá com o homem. Nós dá


jeito!

MURIÉ — Tá.

Murié afasta-se lentamente.

TOLENTINO — Coitado do seu Murié. Pra mim, ele não tem mais um ano
de trabalho.

PEDRICO — É ...Velhice!

TOLENTINO — Cegando, o que é pior... Só hoje ele falô, mas eu noto de há


tempo... Gosto dele que nem pai, me ensinô todos os macetes da
profissão. Diz que, pra mim, mais um mês de servente já é muito, que
tenho classe de oficial!

PEDRICO — Pra casá, precisa profissão firme.

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TOLENTINO — É o que eu penso.

PEDRICO — Quantos anos você tem?

TOLENTINO — Dezenove... Vou fazê...

PEDRICO — Ih! Tem chão ainda... Pra casá tem tempo.

TOLENTINO — Agora me veio comichão. Só de ver aquela moça resolvi:


casá Tolentino que a vida é outra... Sabe, nunca pensei em mulher do
jeito que penso agora.

PEDRICO — E ela topou?

TOLENTINO — Não sei. Vou falá.

PEDRICO — Como é que ela se chama?

TOLENTINO — Todo o jeito é de Dora, mas não sei o nome, não!

PEDRICO — Como é que não sabe, seu louco?

TOLENTINO — Ainda não conversamo, não é?

PEDRICO — Quer dizer que você só vê ela daqui. Ainda nem chegô perto?

TOLENTINO — É. Vi ontem duas vez. E só ficamo de olho no olho, sem


nem ri, sem nem mexê. Hoje fizemo sinal. Ela vem encontrá comigo.

TOLENTINO — Dora é bacana. (T) Aquela moça que veio até o portão é sua
mulher?

PEDRICO — É. Maria Inês.

TOLENTINO — Com ela também, ligô logo as simpatia.

PEDRICO — Você leva um pescoção!

TOLENTINO — Não... ora... Simpatia, assim, de amizade! Bonita, né?

PEDRICO — Já foi! A vida andô estragando um pouco. Mas é valente. Isso


ficô...

TOLENTINO — Dora também deve de sê valente...

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PEDRICO — Maria Inês agüentô o inferno comigo. Do sertão da Bahia pra
Salvador numa penúria que eu nem conto. De Salvador pra Goiás, de
Goiás pra S. Paulo... Teve filho na estrada, bem na beira... O menino
nasceu e morreu logo; fez tudo de uma vez!

TOLENTINO — Deve tê dado uma tristeza!

PEDRICO — Que o quê! Chega um ponto que tu nem sente mais... A gente
só sentiu mesmo alívio. O cabrinha ia sofrê um pedaço. Viagem dura!

TOLENTINO — Só quero filho quando passá a oficiá!

PEDRICO — E faz bem!... Chegando aqui eu disse pra Maria Inês: “Maria
Inês, tu é forte e valente, mulher pra homem que nem eu, vamo deixá
nossa raça seguindo... Tão forte quanto Maria Inês!” — Ela riu pra mim
e caímo um no outro. Tudo virô um abraço só. Era tanto amor que nem
mais existia o tempo!

TOLENTINO — Eu e Dora, tal e qual!

PEDRICO — Nem chegô perto dela ainda, fica falando! Mas foi assim,
Tolentino, que Murilico nasceu! Tá parecendo que Deus num gostou de
nosso pedido ou sei lá, foi amor demais que ofendeu os santo; sei só que
também nasceu definhando... Tá hoje aí, assustando a gente!

TOLENTINO — Num vai sê nada. Ele fica bom!

PEDRICO — Tem de ficar, filho de Maria Inês... Pois não é pra continuá a
raça?

TOLENTINO — Olha lá! Outro sinal. Ela tá que nem eu! Já não agüenta de
esperá!

PEDRICO — Manda um beijo pra ela.

TOLENTINO — Será que pode?

PEDRICO — Claro, rapaz! Manda com jeito, com garbosura...

TOLENTINO — Me dá uma vergonha! Juro em Deus, primeiro amor que


tenho... Dá uma agonia... As oreia tão até fervendo!

PEDRICO — Manda o beijo, se não eu mando!

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TOLENTINO (Mandando o beijo) — Vai!

PEDRICO — Não disse? Resposta urgente!

TOLENTINO — Eu falei! Madame Tolentino sem medo de errá!

Em frente à casinhola-escritório, Murié e o Mestre.

MESTRE — Não, seu Murié! Chega de discussão que não adianta.

MURIÉ — Mas eu já disse que tenho os meus direito. Tem lei!

MESTRE — Pois se tem lei, o assunto é com o Sindicato. O senhor vai lá e


reclama!

MURIÉ — Não custava nada o senhor me atendê!

MESTRE — Já imaginô se eu for atender todo mundo? Isso vira uma


bagunça que ninguém mais entende. Meu dever é organizá o serviço...

MURIÉ — Mas o Pedrico pode ficá lá em cima, tem competença!

MESTRE — Pedrico Santarém que não se meta! E pode dizê pra ele que
mais uma confusão que me arrume vai pra rua. Tô cansado disso aqui!
Me faça o favor, seu Murié, tenha paciência, vá pro seu trabalho ou peça
a conta. Sinto muito!

MURIÉ — Pois tá bom. Nem quero que pense que seje preguiça... Tenho
meus anos de trabalho. Sou profissioná querido e respeitado. É o corpo
que não mais comanda. E eu nada posso fazer.

MESTRE — Pois o jeito então é procurá médico, ou se interná no hospital.


Não é por isso que vamo desorganizá o serviço. Sinto muito, já disse!

MURIÉ — Pois tá bom. Vai na conta de um desafio. Eu subo!

MESTRE — Pois suba que não lhe acontece nada. Se fosse trinta andares
ainda vá lá. Mas uma alturinha dessa, com franqueza, seu Murié!

MURIÉ — Eu subo!

Murié afasta-se. C. segue-o. O velho cruza com Arigó


que se dirige ao Mestre. Na porta do escritório.

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Tomada do Mestre escrevendo. Pedrico surge em quadro
na porta do escritório.

PEDRICO — Licença. (Pausa.) Seu Mestre, o Murié não tá em condição de


trabalhá sentado, quanto mais lá no alto...

MESTRE — Já tratei com ele! Além de engenheiro, é advogado agora?

PEDRICO — Por causa do velho, vim lhe pedi! Ele não pode mesmo,
Mestre. Eu fico lá em cima e, garanto, não precisa se preocupá comigo,
eu não quero confusão. Fique com os seus negócios que eu não me
meto.

MESTRE — O que é que você quer dizer com isso?

PEDRICO — Tou falando na sinceridade. O senhor bem que me entendeu.

MESTRE — Não entendi coisa nenhuma. Ordem é ordem! Manda o velho


subi já! (Furioso) — E vamo acabá com esse diz-que-diz se não vai
todo mundo pro olho da rua!...

PEDRICO — É um pedido só... O senhor podia considerá!

MESTRE — Tá aprendendo, hein? Mas não pode não.

PEDRICO — O senhor é duro! Tá bom, responsabilidade sua.

MESTRE — Minha sim.

PEDRICO (Sem conseguir se conter) — Mas a vida é de Murié!

MESTRE — Ouça aqui, seu Pedrico Santarém, na saída, pode cobrá seu dia.
Amanhã não precisa voltá!

PEDRICO — Eu disse que não me meto. Vim só porque gosto do Murié!

MESTRE — O que está dito, está dito. Na saída!

C. vai a close de PEDRICO em desespero.

Fusão com P.P. de velho berço. Os braços de Maria


Inês, depois o corpo. C. afasta-se quando se curva sobre
o berço, descobrindo também Julião.

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MARIA I. — Nem se mexe, Julião!

JULIÃO (Sorrindo) — Tá dromindo, Maria Inês...

MARIA I. — Tá parado demais!

JULIÃO — Impressão só... Tá descansando.

MARIA I. — É. Tô imaginando coisa. Cansada demais.

JULIÃO — Vai deitá um pouco. Eu tomo conta.

MARIA I. — Não é preciso... Será que os remédio dão jeito?

JULIÃO — Tem que dá!

MARIA I. — Demoramo muito pra comprá!

JULIÃO — Mas compramo. Calma, Maria Inês.

MARIA I. — Coitado do meu Murilico! Tão magrinho!

JULIÃO — Chi! Daqui a uns mês tá um tourinho correndo por aí!

MARIA I. — Amém.

Vai ao berço.

Fusão com close de Pedrico. C. afasta-se. Está no


último andar do edifício junto a Murié que
apavorado, segura-se fortemente a uma das
colunas.

PEDRICO — Qualquer coisa é só gritá. Tô lá embaixo, com atenção aqui!

MURIÉ — Não consigo me desgrudá dessa coluna. Nem sei se e doença


ou medo!

PEDRICO — Uma coisa vem da outra. Vai trabalhá lá no meio, evita as


beirada.

MURIÉ — O pior é que elas parece que me chama. Dá uma vontade danada
de espiá a altura, e sei que depois é cair. Mas dá vontade de saber...

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PEDRICO — Não queira sabê não. Fica lá no centro bem no seguro.
Qualquer coisa é só chamá..

MURIÉ — Olha pro alto, Pedrico. Vê só que mundo grande, nem tem légua
pra medi! Vida besta a nossa!

PEDRICO — É

Toca a sineta chamando para o almoço.

PEDRICO — Até que enfim! Hora da bóia!

MURIÉ — Me deixa descê daqui logo. Graças a Deus!

PEDRICO — Graças a Deus!

MURIÉ — Ó, Pedrico, nem conta pros outros meus medo!

PEDRICO — Pode ficá descansado!

Tiro geral — Os operários saem da construção.


Extremamente cansados procuram lugares na sombra para se
sentar. Lentamente abrem as marmitas. Pedrico e Murié
surgem logo depois. Arigó deve ser focado sem largar o seu
posto junto ao cimento. A C. passeia lentamente mostrando-
nos os rostos cansados dos homens que comem. Silêncio,
exaustão, calor enorme. A C. finaliza em close de Pedrico,
extremamente triste, olhos úmidos de lágrimas.

Em gravação — Voz indeterminada começa a cantar uma


triste modinha nordestina. Logo estoura também a orquestra
acompanhando o canto.

FIM DO PRIMEIRO ATO

Ato II

Detalhe da sineta tocando.

Fim do almoço. Os homens dirigem-se novamente


para o trabalho. C. isolado Pedrico e Murié.

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MURIÉ — Bom! Vou voltá pro poleiro!

PEDRICO — Já te falei. Não te arreda do centro, evita as beirada. Qualquer


coisa é só chamá.

MURIÉ — Amigão você é!

PEDRICO — Somo companheiro, uai! Um faz pelo outro!

Murié dirige-se para o corpo da obra. Pedrico fica


ainda um instante. Resoluto dirige-se para os
fundamentos do prédio: cruza com Tolentino que vem de
baixo.

TOLENTINO — Fui ver, lá um racho que dá até medo!

PEDRICO — Vou lá agora.

TOLENTINO — Será que agüenta?

PEDRICO — Sei lá. Vou ver!

Tolentino sobe. Juca Arigó aproxima-se.

ARIGÓ (Sorriso tonto) — Pedrico, o que é que você acha do cimento?

PEDRICO — Como é que é?

ARIGÓ — Você não vai dizê nada do cimento?

PEDRICO — Arreda, infeliz!

C. segue Pedrico que chega aos alicerces da


construção. Ferreira está junto à coluna-mestra,
cercado por um grupo de operários.

FERREIRA — Ninguém me contou, não. Eu vi!

ANTÔNIO — E como é que tu escapou.

FERREIRA — Sorte minha que estava longe... Foi aquela barulheira de


instante, que nem relâmpago. E o mundo caiu. Só nuvem de pó! Tava
uma rachinha um terço dessa!

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ANTÔNIO — Puxa vida!

PEDRICO (Afastando-os) — Deixa eu espiá!

FERREIRA — Te falei! Olha só o tamanho da fenda. As coluna laterá tão


cedendo também. Num dou mais dez dias pra isso tudo achatá!

Pedrico examina atentamente a coluna.

ANTÔNIO — Baixou mais de palmo!

PEDRICO — Porqueira de trabalho!

FERREIRA — O que a gente faz?

PEDRICO — Isso é com o Mestre. Por mim, mandava logo pôr reforço. E
nem sei se ainda dá jeito!

ANTÔNIO — Vou pedi minha conta!

PEDRICO — A minha já deram.

FERREIRA — Despediram você?

PEDRICO — Agorinha!

ANTÔNIO — Tu que é feliz! Não fica nessa inferneira.

PEDRICO — A diária de amanhã vai fazê falta!...

FERREIRA — Pois é!... Mas eu olho pra isso e chega me dá pavor!

Mestre surge ao alto. Falando para os operários.

MESTRE — Que é isso agora, sala de visita?

PEDRICO — Tamo vendo a fenda. Cabe a mão dentro!

MESTRE — Cala a boca, Pedrico, já tá despedido.

PEDRICO — Seria bom mandá reforçá!

MESTRE — Me ensinando trabalhá, engenheiro!

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PEDRICO — Tô dizendo o que é certo!

ANTÔNIO — É sim, seu Mestre, isso tá um perigo.

MESTRE — Mas que é? Todo mundo tremendo agora? Nunca viram uma
viga rachá? Pois isso acontece! Parece tudo mulher medrosa. Vão
trabalhá que é melhor! Já falei com o engenheiro, ele vem vê!

PEDRICO — Mas é preciso pôr reforço já!

MESTRE — Meta-se com sua vida que vagabundo nenhum me ensina o que
fazer!

PEDRICO — Vagabundo não! Óia o jeito de falá que não sou seu moleque!

MESTRE — Falo o que quisé... E quem não gostá, portão tá aberto!

FERREIRA — Mas, seu Mestre...

MESTRE — O que foi, seu Ferreira, também vai estrilá?!

FERREIRA — Não, nada. O senhor sabe o que faz.

ANTÔNIO (Entredentes) — Afinô, hein!

MESTRE — Vá pro seu trabalho, Pedrico. De despedida.

PEDRICO — Também, pudera! Põe a metade do cimento que é pra pôr!

MESTRE — O que foi aí!?

PEDRICO — Ah!...

Pedrico sobe seguido por Ferreira.

FERREIRA — É de morte esse cara!

PEDRICO — Culpa é nossa! Quando ele levá uma invertida, perde essa
mania de mando.

FERREIRA — Eu sei lá! Comigo é assim, não tenho corage de discuti com
ele. Eu por mim dava o fora dessa obra em três tempos, mas não posso perde o
emprego, né!

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Pedrico sobe.

Terceiro andar do edifício. Tolentino sorridente


faz sinais para o edifício em frente. Surge Pedrico.

PEDRICO — Mas que é isso, velho? Namoro de marinheiro é que é na base


de siná!

TOLENTINO — Será que ela entendeu?

PEDRICO — Vou lá sabê?

TOLENTINO — Tou mandando ela vim pelos fundo. Pra gente se encontrá.

PEDRICO — Cuidado com o Mestre, tá com a louca hoje!

TOLENTINO — Num tenho medo dele!

PEDRICO — Bobeia que ele te despede!

TOLENTINO — Vai dizê que Dora não vale o risco?

PEDRICO — Coração teu é que sabe. O meu tá cansado.

Tolentino vai sair. C. acompanha-o descobrindo Antônio


que se aproxima trazendo uma lata de cal. Tolentino
pára fazendo sinais avisando que vai descer.

ANTÔNIO — Eta, boazuda! (Gritando) Morena! Manda uma beijoca pra


mim... Ai nós dois!

TOLENTINO — Fecha essa boca, vagabundo!

ANTÔNIO — Ô pequenino, o que é que há?

TOLENTINO — Tô mandando deixá a moça sossegada!

ANTÔNIO — Vai dormi, rapaz! Dono das mulhé, agora?

TOLENTINO — Daquela sou!

ANTÔNIO — Deixa de cuspe, tu não é disso que eu sei!

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Tolentino dá-lhe um violento pontapé
derrubando a lata. Está furioso.

ANTÔNIO — Tá querendo apanhá, seu lesma. Te mostro eu!...

TOLENTINO — Vem mostrá!

ANTÔNIO (Pegando uma pá) — Te racho a cabeça!

TOLENTINO (Sacando o canivete) — Pois racha!

PEDRICO — Que é isso? Brigando por besteira!

ANTÔNIO — Moleque assanhado! Eu racho ele!

PEDRICO — Vai rachá ninguém, não!

ANTÔNIO — Pois toma, vagabundo!

Antônio vai desferir o golpe quando é agarrado


por Pedrico que o imobiliza. Tolentino aproveita-
se disso para procurar, em um gesto rápido,
golpear o companheiro. É detido pelo grito
assustado de Pedrico.

PEDRICO — Seu louco! Pára!

TOLENTINO (Lívido) — Ninguém abusa de Dora perto de mim!

PEDRICO — Não tem razão pra isso tudo... Vai embora, companheiro, vai...
Tô pedindo!

ANTÔNIO — Ainda te pego, garoto. Ainda te pego.

Antônio afasta-se olhando ameaçadoramente para


Tolentino.

PEDRICO — Que foi, deu doidura? Podia tê matado ele!

TOLENTINO — Foi a vontade que me deu!

PEDRICO — Tá muito estourado, meu velho. Joga fora esse canivete ou


vende, que é melhor! Evita fazê desgraça!

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TOLENTINO — Sei lá o que deu. Dora pra mim virô coisa sagrada... de
repente.

PEDRICO — Precisa aprendê ter sangue-frio!

TOLENTINO — Sempre tive. Nunca fui de valentia. Bem que dizem que
mulher vira a cabeça!

PEDRICO — Hum, vira!... Vai encontrá com a moça, vai!

TOLENTINO — Fica com o meu canivete... De garantia.

PEDRICO — Tá. Vai!

C. acompanha Tolentino e desce.

Juca Arigó no seu posto, junto ao cimento. No fundo


surge Tolentino. Juca Arigó percebe-o e decide seguir o
rapaz.

Tolentino desce em direção aos alicerces. Em primeiro


plano, observando-o, Juca Arigó surge.

Tolentino chega à base da obra. Procura Dora com o


olhar. Não vendo ninguém, resolve esperar: acendendo
um cigarro encosta-se em uma das vigas. Juca Arigó
observa ao fundo.

Casinhola-escritório. O Mestre está agitado,


caminhando de um lado para outro. Resolvendo-se vai
ao telefone e disca.

MESTRE — Alô? Dr. Moraes, por favor... Pronto! Dr. Moraes?... Sou eu
sim... É, vai mal, dr. — muito mal. As colunas estão começando a
ceder!... Bastante, sim. A do centro está com uma rachadura que vai de
lado a lado.. O jeito seria mandá reforçá, mas eu quero que o senhor
veja antes. Acho que nem reforço adianta mais!... Seria bom o senhor
vir hoje mesmo!... Mas que providência o senhor quer que eu tome?...
Essa não, dr. — eu tinha avisado que isso tava pra acontecer!... Mas é
perigoso esperar! Além disso, os homens já estão assustados!... Que
alarme falso o que, dr.!... Claro que acalmei, mas a coisa está feia!...
Não, não — o senhor pode verificá, é a quantidade de cimento que o
senhor mandô, nem mais nem menos. (Intencional) — Pois é, doutor, o

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erro é seu! Foi um pouco demais, né?... Em compensação, tem uma boa
notícia! Vendi mais cinqüenta sacas! (Ri.) Foi por isso, viu? Pagamento
à vista, claro. Já tá no bolso. (Rindo muito) O senhor é de morte, doutor!
Tá bem, até amanhã, pessoalmente a gente conversa... Até amanhã,
engenheiro!

Olha para a porta furioso. C. recua rápida.

C. descobre Juca Arigó.

MESTRE — Ouvindo conversa dos outros?

ARIGÓ — Ouvi nada, não!

MESTRE — Tá ficando muito metido, sete-mês! Que é que você quer?

ARIGÓ — O Tolentino não tá trabaiando!

MESTRE — Onde é que ele está?

ARIGÓ — Lá nas colunas... Ele tá lá, sem fazê nada, fumando!

MESTRE — Dou um jeito nele!... E do cimento que é bom, você não ouviu
nada?

ARIGÓ — Ninguém quer falá!

MESTRE— Amolecendo o corpo, hein?

ARIGÓ — Tou ouvindo tudinho, tudinho. Juro que tou ouvindo!... Mas
ninguém diz nada!

MESTRE — Tá bom... Vai pra junto do cimento... Não deixa ninguém


examiná o cimento, hein!? Ninguém!

ARIGÓ — Pode deixá.

Arigó não se mexe.

MESTRE — O que está esperando? Anda!

ARIGÓ (Com um fio de voz) — Quando é que eu chego a oficial?

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MESTRE — Um dia, um dia! Faz o que eu mando que você chega lá...

Corte para detalhe de pazinha de pedreiro utilizada por


Pedrico. Mão de Pedrico que pega a pá, revolve o
cimento com ela, pega um pouco do material colocando-
o sobre um tijolo, pondo outro sobre aquele. C. afasta-se
descobrindo Santarém. Cansado ele enxuga a testa
molhada de suor. Passa a mão pelo rosto, suspirando
profundamente. Levanta-se, flexiona as pernas. Acende
um cigarro e fixa um ponto qualquer diante de si.
Superpõe-se rosto de Maria Inês. Berço. Rosto de
Julião. Maria Inês dando remédio para o menino. Maria
Inês e Julião que se entreolham. Julião baixa a cabeça e
Maria Inês que olha fixam ente para o berço.
Cessa a superposição.
C. em close de Pedrico , rosto contraído.

VOZ DE MURIÉ — Pedrico, Pedrico! Meu irmão! Pedrico!

Pedrico sobressalta-se e precipita-se para a


escadinha que leva ao último andar.

Último andar do edifício. Murié, olhos muito


abertos, agarra-se desesperadamente a uma das
armações à beira do pavimento. Está molhado de
suor, aterrorizado.

MURIÉ — Pelo amor de Deus, Pedrico! Não posso mais!... Não posso mais!

Surge Pedrico que de um salto o segura.

PEDRICO — Que houve, meu velho?

MURIÉ — Não sei, coisa estranha! Veio vindo, veio vindo... vontade danada
de me aproximar da beirada, vontade doida de saber o que é lá
embaixo... tudo embaçado!... Ah, que coisa, Pedrico!

PEDRICO — Calma, meu velho! Vamos descer um pouco.

MURIÉ — Não, agora não. Meu corpo treme.

PEDRICO — Você tá bem doente, Murié!

MURIÉ — Eu sei, eu sei!... Fica aqui comigo, um pouco só... tô te

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atrapalhando, não é?

PEDRICO — Qual o quê! Acho bom cuidá desse corpo. Desleixado pode
piorá.

MURIÉ — Tratá de que jeito? Isso não depende de remédio. É idade, tô


ficando velho!

PEDRICO — Uns tempo de descanso dava jeito nisso!

MURIÉ — Descanso! E gente como nós pode descansá? Só uma vez, irmão,
pra sempre.

PEDRICO — Deixa de pensá em bobagem agora!

MURIÉ — Pensei que dessa vez eu não ia agüentar. Puxa, não sei o que fazia
sem você aqui.

PEDRICO — É bom acostumá. Manhã já não estou mais.

MURIÉ — Tu vai embora?

PEDRICO — O Mestre me despediu.

MURIÉ — Desgraçado! Foi por minha culpa, não foi?

PEDRICO — Que nada! Me acharam antipático, só isso.

MURIÉ — Foi por minha culpa, eu sei. O Mestre já estava de cisma contigo.
Piorei as coisas.

PEDRICO — Deixa de história!

MURIÉ — Não te preocupa irmão. Te arrumo serviço nem que seja pra
procurá o dia inteiro!

PEDRICO — Deixa. Eu mesmo arranjo.

MURIÉ — Mas vou procura, nem que seja pra sossego meu!

PEDRICO — Se você quer, só tenho a agradecê...

MURIÉ — Ai, amigão! Agora tou melhorando... Sabe do que acho que me

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vem essa agonia?

PEDRICO — Hum?

MURIÉ — De pensá. Eu nem consigo ficá sozinho mais! É um tal de


pensamento rodopiá debaixo dos cabelo que fico até zonzo...

PEDRICO — Pensá em quê?

MURIÉ — Em tudo misturado. Tudo em confusão!

PEDRICO — Isso eu tenho também. Começo a cismá nas coisa e uma vai se
misturando com a outra que a gente nem sabe mais o que é...

MURIÉ — Isso mesmo. Foi o que me deu há pouco. (Pausa.) Vê daí, esses
três edifício grande? O primeiro tem dois andar do Murié, o segundo um
andar do Murié, o terceiro, três andar do Murié!...Olho pra essa cidade,
me dá a impressão de que fiz ela!

PEDRICO — É.

MURIÉ — Quanto mais a gente faz, mais a gente vai ficando pequeno...aí a
cidade vem e te engole...

PEDRICO — É. Ela engole.

MURIÉ — Quanto mais a gente faz, menos a gente tem. Nem a beleza de ter
feito. Vê aqui? Nem bem se levanta, a obra tá pra caí... Cada tijolo que
eu ponho é um desperdício... Nem pra dizê: taí fiz! Até o gosto pelo que
faz a gente perde. Palavra, meu amigo Pedrico Santarém — gritei por
você, chamando, mas preferia já está lá embaixo, esquecido!

PEDRICO — Ora, ora, seu Murié, vamo deixá de drama!

MURIÉ — Ah, já não me interessa... Não me interessa nada!...

PEDRICO — Vá! Tem a sua gorda, a filharada... Quanta coisa pra interessá!

MURIÉ — Hum, minha gorda!

PEDRICO — Pois então!

MURIÉ — Num vejo eles há mais de dez ano!

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PEDRICO — Sério?!

MURIÉ — Pra mais de dez ano! Estupidez que me bateu. Resolvi largá,
larguei... Procurá liberdade!

PEDRICO — Largô tudo?

MURIÉ — Pois então... Esqueci até a cara dos garoto!

PEDRICO — Mas você sempre conta coisas deles!

MURIÉ — Papo, garganta, vontade de tê... Choro da besteira que fiz...

PEDRICO — Não é razão pra ficá desse jeito. Todo mundo tem seus galho.
O bonito é enfrentá! Dá um jeito de encontrá eles de novo!

MURIÉ — Fiz de tudo. Até anúncio em rádio. Que o quê, nem sombra!...

PEDRICO — É...

MURIÉ — Tudo por causa de medo... Quando vi a família crescê, bateu em


mim o medo de não agüentá o tranco... Resolvi largá, como se
resolvesse!

São interrompidos por gritos que vêm de baixo.

PEDRICO — Santa mãe!...aconteceu alguma coisa!

Os homens correm assustados em direção


aos fundamentos do prédio.

Movimentação geral. Surgem Pedrico e Murié.

ANTÔNIO — Corre gente!

PEDRICO — O que é que houve?

ANTÔNIO — Cedeu uma viga lateral, pegô o Ferreira.

PEDRICO — Infeliz! Machucou muito?

ANTÔNIO — Sei lá!

Todos precipitam-se para baixo.

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Alicerces do edifício. Ferreira caído está
sendo socorrido pelos companheiros.

FERREIRA — Ai, quebrou!... Ai, quebrou. Bem que eu dizia. Eu já vi


desabá!... Escapei... Dessa vez, logo em mim!

Pedrico aproxima-se do grupo.

PEDRICO — Como é, machucou muito?

TOLENTINO — Sei não. Parece que quebrou a perna!

FERREIRA — E agora o que eu faço? Me diz, o que eu faço?

PEDRICO — Calma, velho, tudo se arruma!

FERREIRA — Preciso ganhá pão, eu! Preciso ganhá!

ANTÔNIO — Preocupa não... Tu ate que vai ficá no macio... Eles te


indeniza!

FERREIRA — Ai, vai atrás! Se duvidá, ainda me fazem pagá a viga!

Mestre desce rapidamente acompanhado por Arigó.

MESTRE — Que é que houve, seu Ferreira?

PEDRICO — A viga caiu!

MESTRE — Hum. Qual?

FERREIRA — A esquerda, a segunda... Nem sei como é que foi!

MESTRE — É, seu Ferreira, vamo deixá de fita, não está doendo tanto
assim!

FERREIRA — Tá, sim, Mestre!

TOLENTINO — Quebrô a perna!

MESTRE — Que é que você está fazendo aqui embaixo!

TOLENTINO (Enfrentando-o) — Vim trazê tijolo!

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ARIGÓ — Mentira! Não...

MESTRE — Cala a boca, sete-mês! Leva ele pro escritório...

Arigó e mais um operário pegam Ferreira.

MESTRE — Vamo, vamo!... Não foi nada, não! Vamo continuá o trabalho.
Pedrico, você e esse outro, providencia reforço pra viga que caiu, pede
ajuda pro Maranhense também!...

O Mestre afasta-se. Os homens, rápidos,


providenciam o reforço.

PEDRICO — E a moça, Tolentino?

TOLENTINO — Ainda não veio. Melhó, ela ia se assustá!

PEDRICO — Acho que te deram um baita bolo!

TOLENTINO — Que o quê. Tá atrasada, só.

Planos dos homens trabalhando. Murié


chama Pedrico e mostra-lhe fendas novas
em diversos pontos da estrutura.

PEDRICO — Senta aí, Murié, e descansa. Ninguém percebe!

Murié senta-se. Pedrico sai de quadro. Murié olha


para a frente e sorri.

C. do ponto de vista de Murié descobre ao fundo,


por entre vigas e armações de madeira, a figura
de Dora. A C. aproxima-se lentamente terminando
em big-close da moça.

MURIÉ — Tolentino, olha só!

FIM DO SEGUNDO ATO

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Ato III

Close de Tolentino. C. recua até focar Dora em primeiro


plano. Ficam alguns instantes parados. O rapaz
aproxima-se com um sorriso encantado.

TOLENTINO — Você é... é... quarto andar, segunda janela à esquerda?

Dora faz que sim com a


cabeça.

TOLENTINO — Eu sou o que você via... de lá! (Sorri acanhado.)

Dora sorri também acanhada.

TOLENTINO — De perto é diferente, não?

Dora faz que não.

TOLENTINO — Você também não!... Bonita!

Dora encabuladíssíma.

TOLENTINO — Me desculpe, sabe... hã... eu... eu sou meio desajeitado...


(Limpa a garganta.) Sorri pra mim que nem de lá de cima!

Dora obedece.

TOLENTINO — Sorriso gaiato você tem!

Dora faz um muxoxo.

TOLENTINO — Mas ser assim... gaiato é bom. É isso que faz eu achá você
tão bacana!

Dora sorri.

TOLENTINO — Sabe, eu não sei... mas achei.... quer dizer... Eu não sei o
seu nome, mas todo o jeito é de Dora!

DORA (Arregala os olhos com espanto, sorri e diz) — É.

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TOLENTINO — O que? É Dora mesmo, acertei?

DORA — Hum, hum!

TOLENTINO — Puxa, eu sabia, sabe?! Quer dizer, bobagem, não é! Mas


tinha quase certeza, acertei. É Dora; igual parece...

Os dois ficam um instante sem assunto.

TOLENTINO — Num quer sabê meu nome?

Dora faz que sim.

TOLENTINO — É José. José Tolentino. Minha mulher vai sê a madame


Tolentino. (Ri.)

Dora sorri. Parece querer dizer alguma coisa.


Desaparece o sorriso. Repentinamente, procura fugir.

TOLENTINO (Retendo-a, espantado) — Que foi, fiz alguma coisa? Não


gosta de mim?

DORA (Fala com grande dificuldade) — N...ão é n....ada.

TOLENTINO — Por que você queria ir embora?


Dora sacode os ombros.

TOLENTINO (Sorrindo) — Você é envergonhada, não é?

Dora faz que sim.

TOLENTINO — Eu também sou. Quer dizer, sem jeito. Primeira moça que
eu falo a sério, sem segunda intenção...

Dora sorri.

TOLENTINO — Você é doméstica?

Dora faz que sim.

TOLENTINO — Eu, servente de pedreiro... Vou chegá a pedreiro logo,


logo... Aí dá pra casá!

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DORA (Falsa) — T....em n... am... orada?

TOLENTINO — Você, ué!

DORA (fingindo espanto) — ...Eu?

TOLENTINO — Pois então. Olha, não tenho vergonha de contá: vi você,


me fisgou o estômago. É coisa que nunca me aconteceu.

Dora sorri.

TOLENTINO — Por que você não fala comigo? Só fica rindo, me olhando
com esses olho que brilha!

DORA — V...ocê n...ão v...ai g...ostá de m...im!

TOLENTINO — Mas ora, que bobagem! Já é coisa feita; nós vamo acabá
casando. Sinto isso como é certo eu morrê um dia!

DORA — M...eu j...eito de f...alá, t...odo m...undo ri!

TOLENTINO — Não sei porquê! É uma beleza. Você não podia falá de outro
jeito — fica bem em você... Ajeita com o sorriso. Teu riso é assim
também, meio esticado...

DORA — N...um c...açoa!

TOLENTINO — Tou falando sério!

DORA — V...ocê num acha g...raça do m...eu modo d...e falá?

TOLENTINO — Qual o quê! Pra mim também dá dificuldade de falá... Nem


sei o que sinto... Fico atrapalhado, bocó, boca aberta na tua frente.
Precisava tê estudo. Aí eu dizia e você entendia tudo!

DORA — V...ocê é um am...orzinho!

TOLENTINO — Ai, num fala isso que eu saio voando!

Os dois estão juntinhos.

Dora manda-lhe um beijo, encostando os dedos


nos lábios.

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TOLENTINO (Imita-a) — Ocê nem parece desse mundo!

DORA — P...or que, ué?

TOLENTINO — Sei lá, meio esgarçada, sem contorno certo...

DORA — S... ou f...eia assim?

TOLENTINO — Num fala bobagem! Jeito de alma você tem...

DORA — P...areço ass...ombração?

TOLENTINO — Não é isso! Jeito de anjo! Quis dizê, me deu vergonha.


(Estende-lhe a mão.) Vem. Vou te mostrá meu trabalho!

DORA — T...enho d...e v...oltá pro s...erviço!

TOLENTINO — Um instante só. Deixa eu mostrá; único orgulho que eu


tenho!

Os dois se afastam para o interior da obra. Fusão com


casinhola-escritório. C. sobre Ferreira estendido sobre
sacos vazios de cimento. Sofre. Arigó está junto dele.
Entra o Mestre. Maria Inês surge à porta.

MARIA I. — Quem é o Mestre da obra?

MESTRE — Eu aqui. O que é que há?

MARIA I. — Queria falá com Pedrico.

MESTRE — Tá ocupado agora. Hora de serviço num é pra namorá!

MARIA I. — Sou mulher dele!

MESTRE — Pois então espera a saída!

MURIÉ — Foi alguma coisa com o menino, dona?

MARIA I. — Preciso falá com Pedrico, urgente!

MESTRE — Ai, ai, ai... Que isso já tá virando bagunça!

MURIÉ — Eles tão com doença em casa, Mestre.

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MESTRE — Se a gente for atender a tudo quanto é caso isso vira um
hospício. Tem ordem e precisa cumpri. Imagina se cada um resolve
trazê a mulhé pro serviço!

MARIA I. — Mas tou dizendo que é urgente. Coisa que não pode esperá!

MURIÉ — Eu levo ela até lá, Mestre!

MESTRE — Pois então vai, vai falá com Pedrico. Tá despedido mesmo!

MARIA I. — Despedido?!

MESTRE — Pois é, despedido... Pra ele aprende a deixá de arrogância!

MARIA I. — Mas o senhor não pode, logo agora!

MESTRE — Não posso o quê? Não venha com choro que pra cima de mim
não adianta. Já agüentei demais. Paciência tem fim.

MARIA I. — Podia esperá outra quinzena!

MESTRE — Podia mas não quis. Quer falá com ele ou não quer?

MURIÉ — Vem, dona, eu lhe levo lá!

Maria Inês pára. Há revolta em seus olhos. Fixa o


Mestre que não resistindo ao olhar baixa os olhos.

MURIÉ — Vamo!

Murié e Maria se afastam.

Corte para os fundamentos do prédio: Pedrico


está colocando uma estaca com a ajuda de outro
operário. Aproximam-se Tolentino e Dora.

TOLENTINO — Oi, Pedrico!

PEDRICO — Oi, Tolentino!

TOLENTINO — Queria lhe apresentá... É Dora.

PEDRICO — Ah, veio, hein. Foi bom. O rapaz tava quase louco na espera!

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TOLENTINO — Eu sabia que ela vinha...

PEDRICO — Pois então, muito prazer.

DORA — Eu n...ão atrap...alho aqui?

PEDRICO — Nóis não. Mas se o Mestre vê, não ligue pra ofensa. É um
cavalo que anda solto por aí.

DORA — Nossa!

TOLENTINO — Assusta ela não, seu Pedrico!

DORA — M...elhó eu i ...indo!

TOLENTINO — Não vai, não! Vou subi com ela, seu Pedrico. Mostrá o
muro da gente!

PEDRICO — Cuidado com a moça!...

TOLENTINO — Tá segura!

PEDRICO — Desvia do Mestre!

TOLENTINO — É um instante só. Quero mostrá o trabalho pra ela. Lá do


alto se vê melhó!

PEDRICO — Vai, beija-flor!

O casal caminha em direção ao elevadorzinho.


Cruzam com Antônio.

O casal continua. C. com Antônio que vai até a


viga-mestra.

ANTÔNIO — Abriu mais dois racho nas laterá!

PEDRICO — Epa!... Agorinha?

ANTÔNIO — Tá enfeiando a coisa. Mais uma fenda faço a trouxa!

PEDRICO — Pois, pra mim, é bem feito. Que nem palhaço, gostava de vê
tudo isso ir pro inferno!

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ANTÔNIO — Comigo longe, nem me incomodo!

C. no nível pega ao fundo elevador que


ameaça a subir levando Tolentino e Dora.

TOLENTINO — Segura firme!

DORA — D...eve d...á v...ertige!

TOLENTINO — Subo nisso com uma pilha “assim” de tijolos...

DORA — D...eve sê que n...em he...licóptero.

Tolentino sorri, abraçando-a quando


passam diante da objetiva.

Alicerces. Pedrico em primeiro plano.


fundo surge Maria Inês. Logo mais,
Murié.

Close Maria Inês.

MARIA I. — Pedrico!

Pedrico voltando-se fixa-a atentamente. Recua como


querendo evitar a notícia que pressente. Esbarra em
uma das vigas e quase se desequilibra. Arfa.
Repentinamente bate de rijo com o martelo na madeira.

PEDRICO — Fala; rápido. Maria Inês. Diz! (Silêncio.) Diz!

MURIÉ — Conversa à vontade, Pedrico. Cuido dos reforços...

Pausa longa. Marido e mulher fitam-se desesperados.


Maria Inês aproxima-se dele com muito amor.

PEDRICO — Quando foi?

MARIA I. — Logo depois do almoço!

PEDRICO — Mas ele tava melhor!

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MARIA I. — Tava não. A gente é que queria!

PEDRICO — E os remédio... O médico disse que adiantava...

MARIA I. — Na certa atrasô... Julião tá lá com ele! Dinheiro veio tarde!

Pedrico num impulso abraça Maria Inês. As


duas cabeças juntas, desesperadas.

PEDRICO — Ai, Maria Inês!... Maria Inês, me explica! Me explica, Maria


Inês!

MARIA I. — Tem nada pra explicá!

PEDRICO — Pra que toda essa força que Deus nos deu? Pra que agüentar
pancada no lombo? Pancada e mais pancada. Esfola o corpo,
desgraçado, te mata, te mata e a toda esperança!... Pra que, Maria Inês?
Pra que? (Chora.)

MARIA I — Tu é homem forte, Pedrico. Não pode desesperá!

PEDRICO — A teimosia nossa é de dá raiva! Mas não é que a gente fica,


embora tudo desanime, esperando sempre, querendo, na certeza de
encontrá descanso um dia... Ai, quem me dera poder sentá relaxado,
dizendo: sou gente, meu Deus! Tenho coisa minha; direito de homem,
carne minha pra ficá!... Não adianta, Maria Inês...

MARIA I — Amor nosso sempre fica...

PEDRICO — Rasgado! Rasgado é o que fica! Pois eu grito: continua a


teimosia, e que matem a mim, meus filhos, minha mulher. Maria Inês...
eu queria ser um gigante e explodir a minha raiva!...

Fusão lenta. Com Dora e Tolentino


abraçados no último andar do edifício.

TOLENTINO — Foi o que eu sempre quis ter. Mas mora na roça! Casa
própria, curral, cuida da terra... Já tão falando em reforma agrária!

DORA — C...idade g...rande n...ão d...igo, p...referia c...idade d...o int...


terior. Siiinto f...alta de c...inem...a e na roça não t...em l...uz!

TOLENTINO — Mas tem carroça, dois cavalo reforçado e vamo nóis cada
domingo, assisti o seriado. Que tal?

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DORA — P...enso na v...ida e me assusta. Que...ria s...ê v...idente, s...abê o
d... dia d...e amanh...ã!

TOLENTINO — Pois tudo perdia a graça! Imagine se eu soubesse: amanhã


eu encontro Dora e vou namorá sério! Não dava fisgada na hora que te
visse, não dava embaraço, nem nada gostoso. Melhó assim!

DORA — S...abendo a g...ente es...capa das trist...eza!

TOLENTINO — Pois tristeza não tá nos meus programa. Quero tê vida


bonita!

DORA — Te ouça D...eus!

TOLENTINO — Deus é nóis. Acredito no querê. Vê esse mundão que se


espalha por aí! Homem é bicho danado. Faz o que quer! (T) Você
estudou na escola?

DORA — D...ois a...no s...ó!

TOLENTINO — Pois eu fiz todo curso... Mas qual! Me vi sozinho na vida


sem nem ter tempo pra percebê. Foi aí que procurei emprego:
engraxate! Mas antes eu queria ser jogadô. Mas não tinha jeito pra
futebol. Perna-torta que nem eu só. Desisti da carreira. Aí apelei pra
engraxá os pisante... Fui até guarda automóvel. Mas lá isso é profissão
de homem? Virô, virô, tô aqui.

DORA — Eu n...ão t...enho é ca...beça. É um c...usto pra eu entendê as coisa.


Ih! Ch...ego a ficá zon...za!

TOLENTINO — Pois vou sê teu professor.

DORA — Hum, pois sim. Na terceira aula apela pros gritos na quarta pra
sova! Sou burra, viu!
TOLENTINO — Não falei! Não falei!

DORA — O quê?
TOLENTINO — Eu disse que tu ia acabá falando sem arrastá... Você disse
tudo de vez!

DORA — Mesmo?

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TOLENTINO — Pois então!

DORA — Bom siná!


Tolentino beija-a meio sem jeito.

Alicerces do prédio. Pedrico e Maria Inês.

MARIA I. — Julião até estranhou. Chora, ele dizia, chora por favor!... Não
houve jeito. Sequei de todo.

PEDRICO — Agora Maria Inês, é largá de ser besta! Vou voltá pra Bahia.
Vamo lá! É a tal da teimosia. Quem sabe voltando pro mesmo lugá a
gente pode recomeçá.

MARIA I. — Aproveita enquanto a gente é moço!

PEDRICO — Só me assusta é a viage. Nem Cristo fez o Calvário de volta!

MARIA I. — A gente agüenta! Gozado, preferia que Murilico tivesse ficado


na estrada também.

PEDRICO — É! Tirava essa impressão de acabado. No meio da estrada a


gente tinha a esperança de melhorá chegando...

MARIA I. — Agora a gente espera na volta.

PEDRICO — Bicho danado o homem. É duro de sê rendê!

MARIA I. (Com alívio) — Pedrico! Até que enfim, acho que vou chorá!

PEDRICO — Chora! Chora!

Maria Inês chora tranqüilamente,


placidamente. Surge o Mestre.

MESTRE — Mas o que é que há? Não têm casa, precisa vir se abraçá no
serviço?!

PEDRICO — Deixa pra lá, Mestre, que a hora é dura pra nós!

MESTRE — Que dura, o quê! Vai arrumá suas coisa e pode dá o fora. Leve
sua mulher daqui!

41
PEDRICO — Respeite a dô dos outro...

MESTRE — Não quero saber. Vamo pra fora, já falei!...

Aproximam-se operários.

PEDRICO — Fala com modos que eu sou homem que nem tu!

MESTRE — Falo como eu quisé, sou eu quem manda aqui. (Empurrando


Maria Inês.) Pra fora!

PEDRICO — Tira essa mão porca de minha mulher!

MESTRE — Tá querendo, Pedrico?!

PEDRICO — Tira essa mão porca. Há tempo que eu quero lhe rachá essa
cara!

MESTRE — Tá pensando que eu sou de bate-boca é? (Pega um ferro.)


Arreda daqui!

PEDRICO — Pois vem me buscá! (Tira o canivete.)

MESTRE — Larga isso, Pedrico. Você é um homem morto!

PEDRICO — Agora chega. Vamo tratá sem diferença, de cara a cara, igual
pra igual, vem me buscá!

Os dois homens se medem. Maria Inês observa sem um


gesto. Os operários mudos olham ora para um, ora para
outro.

MESTRE — Larga isso, Pedrico!

PEDRICO — Não tem mais o que me segure. Num adianta de nada se


humilhá!

MESTRE (Inseguro) — Você tá fazendo besteira!

PEDRICO — Com medo agora, não é? Pois até hoje ninguém enfrentô, não é
mesmo?

MESTRE — Pedrico, arreda daqui! Evita eu tê de fazê uma desgraça!

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PEDRICO — É papo! Você tava pensando que a turma ia apartá? Se
enganou. Olha, tá todo mundo segurando esse punhal!

MESTRE (Em pânico) — Arigó! Arigó! Chama a polícia, Arigó...

PEDRICO — Chama, pode chamá!

Corte para Arigó guardando o cimento


junto à máquina.

VOZ DO MESTRE — A polícia Arigó! Chama a polícia!

Arigó ouve e agarra-se ainda mais à misturadora de


cimento.

ARIGÓ — Não me desgruda do cimento. Não me desgruda!

Arigó continua murmurando a frase. Percebe-se sua


indecisão.

Corte para os alicerces: os dois homens iniciam uma


estranha luta. Pedrico frio, equilibrado. O Mestre
batendo a torto e a direito. Os operários observam.

Último andar. Dora e Tolentino.

DORA — Cinco só!

TOLENTINO — Doze que nem minha mãe!

DORA — É duro. P...ra ed...ucá!

TOLENTINO — Tá bom. Faço por oito. Dos doze, só sobrou mesmo eu e


meu irmão que tá na Força!

DORA — É soldado?!

TOLENTINO — É!... Espia lá! Nunca tinha reparado...

DORA — Em quê?

TOLENTINO — Naquela sombra que faz o sol...

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Corte para os alicerces. Luta. Movimento rápido de Pedrico.
Revide do Mestre. Maria Inês observa. Calma. Durante a luta
os operários a princípio timidamente, depois com coragem
incentivam Pedrico.

OPERÁRIOS — Dá-lhe! Acerta ele... Boa... Estende ele, Santarém!...


Pedrico! Pedrico!... Pe-dri-co! Pe-dri-co!

No auge da fúria o Mestre dá um violento golpe que


atinge Pedrico que cai. Todos ficam alguns instantes
estarrecidos. Pedrico tenta levantar-se caindo
novamente. O Mestre rápido corre para fora...

ANTÔNIO — Corre lá! Não deixa fugi! Pega ele!

OPERÁRIOS — Vamo lá!

Maria Inês precipitou-se para Pedrico que não


chegou a perder a consciência.

PEDRICO — A viga!... a viga!... a viga!

Gritos dos homens que procuram correr.

Cortes rapidíssimos e alternados: vigas, pedaços


de parede, utilização de maquete se possível.
Estrondo. Desabamento total.

Dissolvência lenta. Pó. Gemidos. Em gravação


conjuntamente com os ruídos.

VOZES — Maranhense... Ai, meu pai... Pedrico... Ai... segura... Levanta ele.

Gemidos.

C. abre lentamente, focando escombros. Desce


vagarosamente em panorâmica vertical
descobrindo, sujos de pó e terra, Tolentino e
Dora. Ainda abraçados, sob uma viga...
Aproximam-se os pés de Murié. C. afasta-se
enquanto Murié se agacha.

MURIÉ (Fundo de vozes e gemidos) — Tolentino, meu garoto! Tolentino!...


(Levanta-se.) Ai, inferno! (Chamando.) Gente! Gente!... Ai, tinha de

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sobrá eu... logo eu! Sou um caco, não valho nada! E nem assim... Logo
eu pra sobrá!...

Arigó, ainda segurando fortemente a misturadora sob os


escombros. C. passeia por escombros. Maquete.

Superposição.

Macas passam em primeiro plano em frente à C. fixa. Passam Antonio,


Pedrico, Maria Inês e outros dois operários. Passam de forma que os rostos
ficam em close.

Coro-tema. Ainda com os ruídos.

C. começa a afastar-se descobrindo o Mestre que


abatido observa a retirada dos feridos. C. recua ainda
mais focando o tapume e, panoramizando, descobrindo
a tabuleta:

Cessam os ruídos. – Coro fortíssimo.

“MORAES & MEDINA – CONSTRUTORES” C. desce


lentamente até focar a tabuleta rústica de madeira onde
se lê agora “PRECISAM-SE OPERÁRIOS” com os
“SS”desenhados ao contrário.

FIM

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