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JANUS 2013

2.6 • As Forças Armadas dos PALOP

Desmobilização, desarmamento e reintegração João Gomes Porto

A desmilitarização de um conflito e de mentação destes programas, têm-se desenvolvi- papel indiscutível no aumento da segurança
uma sociedade é essencial para a construção de do iniciativas como a publicação do “Integrated no curto-prazo, além de contribuir para construir
uma paz sustentável em países que saem de uma Demobilization, Disarmament and Reintegration a confiança de todos as partes interessadas no
guerra civil. À medida que conflitos prolongados Standards” (IDDRS) em Agosto de 2006 pelo processo e, finalmente, em evitar a ressurgência
terminam, os processos que facilitam a poten- Departamento de Operações de Paz das NU do conflito. De facto, processos de desarmamen-
cialmente volátil transição de paz formal para (UNDPKO), exemplo da tentativa em criar uma to incompletos ou ineficazes têm em muitos ca-
paz social são igualmente importantes. Para isso “base substantiva na qual os Estados-membros se sos contribuído para a proliferação de pequenas
é essencial transformar a cultura e os instrumen- comprometam e apoiem os programas de DDR”, armas e de armas ligeiras, afectando não só o país
tos de guerra – desmilitarização – incluindo o através da codificação “da experiência das NU ao em questão mas também os países vizinhos.
desarmamento, desmobilização e reintegração longo dos anos” (UNDPKO 2006). E, se dúvidas
de antigos combatentes, bem como isentar a so- ainda resistissem quanto à centralidade dos pro- A reinserção e a reintegração
ciedade de armas. gramas de DDR nos esforços da CI na resolução Para a literatura política de abordagem sequen-
Os programas de desmobilização, desarmamen- de conflitos, manutenção e construção da paz, cial ao DDR – que vê o desarmamento, a desmo-
to e reintegração (DDR) têm, nas últimas duas o Relatório do Painel de Alto-Nível sobre Amea- bilização e a reintegração como processos separa-
décadas, obtido atenção significativa de acadé- ças, Desafios e Mudança (2004), também das NU, dos sujeitos a uma implementação sequencial –,
micos e decisores políticos. Este facto deve-se ao considerou que “desmobilizar combatentes é o o último componente da fase de desmobilização
aumento total do número de programas de DDR factor mais importante que determina o sucesso é designada de reinserção, definida como “ajuda
no mundo, bem como a um maior apoio da co- das operações de paz. Sem a desmobilização, as oferecida aos ex-combatentes durante a desmo-
munidade internacional (CI) – e em particular as guerras civis não são passíveis de serem termi- bilização mas antes do processo, de longo prazo,
Nações Unidas (NU) – a estas atividades. Em fi- nadas e outros objectivos críticos – tais como de reintegração. Para a ONU, a “reinserção é uma
nais da década de 1990, as Nações Unidas tinham a democratização, justiça e desenvolvimento – forma de ajuda transitória para ajudar a proteger
apoiado a implementação (com diferentes graus têm poucas hipóteses de sucesso”. as necessidades básicas dos ex-combatentes e das
de sucesso), de programas de DDR em situações suas famílias e pode incluir garantias como sub-
tão diversas como a Namíbia, Camboja, Angola, A desmobilização e o desarmamento sídios, alimentação, roupa, abrigo, serviços médi-
Somália, Moçambique, Guatemala, Croácia, Li- Como um dos componentes dos programas de cos, formação, emprego e ferramentas. Enquanto
béria e Serra Leoa. Em 2007 o DDR fazia parte DDR, a desmobilização é definida pelo UNDPKO a reintegração é um processo de desenvolvimen-
de diversas operações de manutenção de paz das como “o processo pelo qual as Forças Armadas to social e económico contínuo e de longo pra-
NU incluindo as do Burundi, Costa do Marfim, (governamentais e/ou forças faccionais ou da zo, a reinserção consiste em ajuda material e/ou
República Democrática do Congo, Haiti, Libéria oposição) se reduzem ou se dispersam total- financeira de curto prazo, para ir de encontro das
e Sudão. Nestas operações “complexas” e “mul- mente, como parte de uma transformação mais necessidades imediatas, e que pode durar até um
tidimensionais”, os programas de DDR são vistos abrangente da guerra para a paz. Tipicamente, ano” (UNSG 2005).
como essenciais, em conjunto com programas desmobilização envolve a reunião, aquartelamen- Neste processo sequencial acima referido,
de ajuda humanitária, de Reforma do Sector de to, desarmamento, administração e dispensa de o último passo do programa de DDR é o da rein-
Segurança (RSS), democratização, direitos huma- antigos combatentes, que podem receber alguma tegração de antigos combatentes na sociedade.
nos e Estado de direito. forma de compensação e outra ajuda para enco- O UNDPKO considera a reintegração como “medi-
A crescente consciencialização de que processos rajar a sua transição para a vida civil” (1999). das de apoio providenciadas a antigos combaten-
controlados de DDR são centrais para a desmilita- tes que visam melhorar o potencial, dos próprios
rização e, por conseguinte, para uma paz susten- e da sua família, de reintegração económica
tável em sociedades devastadas pela guerra, deu e social na sociedade civil. [...] podem incluir
origem à inclusão de novos actores neste campo. [...] a reintegração permanece ajuda monetária ou compensação em bens, bem
Além das operações de manutenção de paz das a fase mais desafiante do como formação profissional e actividades gera-
NU e da assistência militar bilateral providencia- processo de DDR e, na maioria doras de rendimento” (1999). Contudo, durante
da por países terceiros em apoio aos processos as experiências iniciais das NU em DDR na déca-
dos casos, insuficientemente
de DDR e de RSS, dadores e agências de desen- da de 1990, apesar de haver um reconhecimento
volvimento internacional tornaram-se igualmente compreendida. da natureza de longo prazo dos processos de
relevantes nos programas de DDR, nomeadamen- reintegração (incluindo a necessidade de forma-
te o Programa das Nações Unidas para o Desen- ção profissional e de proporcionar oportunida-
volvimento, o Banco Mundial, a Organização O desarmamento, outro componente do DDR, des de emprego para antigos combatentes), mais
Internacional do Trabalho, o Alto Comissariado envolve a recolha, documentação, controlo frequentemente se verificava que os programas
das NU para os Refugiados mas também diversas e disponibilização das armas, munições e explo- de reintegração se focavam no provisionamento
agências de desenvolvimento bilaterais e de coo- sivos, e é visto como uma actividade sequencial de dinheiro e pagamento em géneros com o ob-
peração técnica, bem como uma miríade de ONG à reunião dos combatentes nos centros de des- jectivo de “estabilizar” o antigo combatente em
e organizações comunitárias. mobilização (geralmente denominados de áreas áreas de reinstalação.
Contudo, apesar da proliferação de programas de aquartelamento ou de ajuntamento). Cen- Ainda assim, a reintegração permanece a fase
de DDR e da experiência obtida, um olhar mais tral em qualquer programa de DDR – visto ter mais desafiante do processo de DDR e, na maio-
atento à política e à prática que os acompanham, como objectivo o controlo da quantidade e tipo ria dos casos, insuficientemente compreendida.
revela importantes lacunas. Para aprofundar de armas em circulação no ambiente imediato Em 1999, Kingma alertou que, “[...] a desmo-
o conhecimento da CI sobre a criação e imple- ao pós-conflito – o desarmamento assume um bilização e a reinstalação, podem ter de ser im-

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plementadas rapidamente, mas a reintegração O DDR e os Acordos de Paz
é por natureza um processo social, económico
e psicológico lento. A reintegração bem-sucedida Apesar de os programas de DDR terem vindo a basear-se na experiência de processos de desmilitarização
na vida civil depende em larga medida da iniciati- em tempos de paz, as transições de guerra para a paz apresentam desafios muito específicos, onde por
vezes não há um claro vencedor do campo de batalha. Como consequência, os programas de DDR ten-
va do ex-combatente e da sua família, e no apoio
dem a ser alcançados através de um compromisso negociado como parte de um acordo de paz – envol-
que recebem da sua comunidade, governo, ONG vendo o governo em funções e grupos armados não estatais, bem como terceiras partes que funcionam
ou da cooperação para o desenvolvimento como mediadores. De facto, os processos de paz incluem geralmente negociações sobre a reestruturação
estrangeira. No longo prazo a reintegração tam- do sector de segurança – sendo fundamental a criação de exércitos nacionais unificados após guerras
bém depende do processo de democratização, civis (como os casos de Angola, Moçambique, Zimbabué, Burundi). Por vezes, como no caso da actual
incluindo a recuperação de um Estado fraco (ou transição da República Democrática do Congo (RDC), a Reforma do Sector de Segurança (em particular
colapsado) e da maturação de uma sociedade ci- a criação de um exército congolês unificado, as Forces Armées de la République du Congo ou FARDC),
vil independente”. está intimamente relacionado com os esforços de DDR no país. Nestes contextos, os programas de DDR
A literatura da especialidade tem alternado são mais politizados, frágeis e incertos – e a remobilização uma constante possibilidade.
a relevância do curto para o longo prazo, desde Neste âmbito, autores como Knight e Ozerdem destacam a importância do contexto político do qual qual-
quer programa de DDR depende e no qual é executado, visto que geralmente “a oposição armada ao go-
considerar o DDR como essencial para os esforços
verno retém controlo territorial e possui a capacidade para retomar o combate armado, se os acordos de
de promoção de segurança do “ambiente, de for-
paz falharem por incumprimento” (2004). Na realidade, em muitas situações – como é o caso do Burun-
ma a que outros elementos da estratégia de re- di, da RDC e do Sudão – grupos armados permanecem fora das negociações de paz por um considerável
cuperação e construção da paz possam avançar”, período de tempo, recusando o desarmamento e constituindo-se assim como sérios potenciais spoilers.
até dar aos programas de DDR a responsabilidade
de “reconstruir o tecido social e desenvolver
a capacidade humana, resultando no estabeleci- do de objectivos políticos e de segurança. Eles poníveis no período pós-guerra. Isto não deve
mento de uma capacidade de construção da paz não podem substituir a vontade inadequada das ser uma surpresa, já que o processo de desmo-
de longo prazo, sustentável, que continue as fun- partes envolvidas no conflito ou as actividades bilização (bem como a mobilização), geralmente
ções após o término da missão das NU” (UNDPKO de implementação da paz. Nem podem evitar utiliza retóricas exageradas e distorcidas do que
2006). Contudo, ao considerar a “reintegração que os conflitos ocorram. O DDR também não os combatentes podem esperar se depuserem as
de longo prazo em último caso, como o parâme- pode produzir desenvolvimento, garantir uma armas (no caso da mobilização se eles continua-
tro de medição do sucesso do DDR”, Colletta et reintegração bem-sucedida dos ex-combatentes rem a guerra).
al referem que “a velocidade de implementação na sociedade, ou substituir programas de prazos Exagerar a capacidade dos programas de DDR de
deve ser um critério importante para qualquer mais dilatados no combate à proliferação de ar- lidar com algumas destas condições estruturais
medida de reintegração, uma vez que os ex-com- mas pequenas e ligeiras [ênfase do autor] (2006). pode, em si e por si, ser prejudicial para a sustenta-
batentes estão mais vulneráveis nos primeiros Compreender as condições existentes nos bilidade da paz a longo prazo. Estes dilemas colo-
dois anos após a desmobilização” (1996). diferentes tipos de transição da guerra para a paz cam desafios conceptuais e práticos consideráveis,
Na prática, esta confluência da emergência de (tal como se relacionam perante a existência de particularmente no risco do regresso dos antigos
curto prazo e da estabilização (reinserção) sobre- estruturas estatais ou outras e com o fornecimen- combatentes para o status quo ante, ele próprio,
põe-se à reintegração socioeconómica de longo to de serviços básicos; com questões de legitimi- em primeiro lugar, na raiz do conflito armado.■n
prazo e, por conseguinte, o desenvolvimento dade horizontal e vertical; com infra-estruturas;
raramente é abordado. com o capital social ao nível comunitário; com Nota
Se se interpretar a reintegração como um “pro- a segurança; com a lei e a ordem) pode, em mui-
Texto baseado no artigo de João Gomes Porto, Chris Alden
cesso pelo qual ex-combatentes adquirem estatu- tos casos, atenuar o entusiasmo de um rápido
e Omogen Parsons in From Soldiers to Citizens: Demilitarisation
to civil e obtêm acesso a formas civis de trabalho regresso à “normalidade”. Esta questão está inti- of Conflitct and Society, Ashgate Farnham, Burlington VT, 2007.
e de rendimento”, um processo principalmente mamente relacionada com processos de DDR, já
de natureza social e económica e com um espa- que na maioria dos casos onde estes programas Referências
ço temporal aberto – levanta-se a dúvida sobre são implementados, apenas restam estruturas Ball, N. and van de Goor, L. (2006) — Disarmament,
que justificação dar para se incluir a reintegração políticas, sociais e económicas devastadas. De Demobilisation and Reintegration: Mapping Issues, Dilemmas
como parte do processo de DDR. Virginia Gam- facto, em muitos países que passaram por con- and Guiding Principles. Netherlands Institute of International
ba alerta para este problema ao referir que, “[...] flitos armados prolongados, a fraqueza e deca- Relations ‘Clingendael’, Conflict Research Unit.
Colletta, N et al. (1996) — “Case-Studies in War to Peace
o exemplo dos esforços de desmobilização, dência estatal, a pobreza e subdesenvolvimento, Transition: The Demobilisation and Reintegration of Ex-
reciclagem e reintegração na África do Sul foi instituições políticas discriminatórias e uma falta Combatants in Ethiopia, Namibia and Uganda”. World Bank
fortemente negativo. É habitual as agências generalizada de oportunidades estão na raiz da Discussion Paper, 331, Africa Technical Department Series.
( Washington DC: World Bank).
governamentais e internacionais que apoiam violência em primeiro lugar. Nestes contextos, os
Gamba, V. (1999) — “Small Arms in Southern Africa:
o processo de desmobilização e reintegração ve- desafios da reintegração vão muito para além da- Reflections on the Extent of the Problem and its Management
rem esta questão como se fosse uma correcção queles relacionados com os antigos combatentes, Potential”. Monograph 42, Institute for Security Studies.
menor, em vez de uma grande reforma da socie- e incluem um grupo muito maior composto por (Pretoria: 1999).
Kingma, K. (1999) — “Post-War Demobilisation, Reintegration
dade” (1999). deslocados internos, retornados, refugiados, etc. and Peace-building”. Paper presented at the International
De facto, ao definir objectivos irrealistas para os Estas condições estruturais vão ter uma influ- Conference and Expert-Group Meeting on The contribution of
programas de DDR, ao criar expectativas que os ência importante nas expectativas dos antigos disarmament and conversion to conflict prevention and its
relevance for development cooperation. (Bonn).
programas podem, na prática, ir além da prepa- combatentes – já que, geralmente, este tem a
Knight, M and Ozerdem, A. (2004) — “Guns, Camps and
ração da segurança no terreno, para realmente expectativa de que o programa de reintegração Cash: Disarmament, Demobilisation and Reinsertion of Former
salvaguardar e manter comunidades em situações lhe irá providenciar educação e formação, acesso Combatants in Transitions from War to Peace”. In Journal of
pós-conflito, os decisores políticos e as agências a emprego e garantir um meio de subsistência Peace Research, 41: 4, 499-516.
United Nations Department of Peacekeeping Operations
que implementam os programas podem contri- sustentável, etc. Evidências episódicas de diver- (UNDPKO) (1999) — Disarmament, Demobilisation and
buir inadvertidamente para o seu fracasso. sos casos revelaram que na altura da desmobili- Reintegration of Ex-Combatants in a Peacekeeping Environ-
Estes dilemas também são claramente identifi- zação, o antigo combatente tende a demonstrar ment: Principles and Guidelines. New York: DPKO, Lessons
Learned Unit.
cados por Ball e van de Goor quando referem expectativas irrealistas sobre o seu futuro – um
United Nations Department of Peacekeeping Operations
que os processos de DDR têm a capacidade de reflexo da falta de conhecimento e de compre- (UNDPKO) (2006) — Integrated Demobilisation Disarmament
influenciar apenas um conjunto bastante limita- ensão das oportunidades socioeconómicas dis- and Reintegration Standards.

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