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Alberto Paulo Neto

ISSN online 2178-4612 Disponível: http://www.ucs.br/etc/ revistas/index.php/conjectura


Democracia republicana e cidadania
contestatória em Philip Pettit
8
Republican democracy and contestatory
citizenship in Philip Pettit

DOI: 10.18226/21784612.v23.n2.8

Alberto Paulo Neto*

Resumo: A filosofia política de Pettit realiza a leitura normativa da


matriz republicana de pensamento político. Na construção
historiográfico-normativa do significado de republicanismo é reafirmada
a centralidade da liberdade como não dominação. Pettit mantém o
intuito de releitura da cidadania republicana como sendo inclusivista.
O republicanismo apregoa que a liberdade como não dominação é o
princípio necessário para avaliação de qualquer organização social e
política. Esse princípio não se constitui como valor apriorístico da teoria
política porque as relações não dominadas são compreendidas em suas
diferentes formas e contextos. No âmbito social, ela exigirá que as
relações entre indivíduos sejam justas e não haja motivo para que se
tenha medo ou deferência perante diferenças econômicas ou sociais.
A liberdade como não dominação poderá oferecer os recursos sociais
necessários, para que não se tenham as relações assimétricas de
capacidade de influência e escolha na sociedade política. No âmbito
político, a liberdade republicana será representada pela capacidade
dos cidadãos de influenciarem e direcionarem as decisões dos
representantes políticos. Por isso, abordam-se os elementos políticos
necessários à contenção da dominação pública (imperium). No âmbito
político-democrático, a oportunidade de participação política, a
discussão das desvantagens sociais e políticas e as formas de contenção
da dominação pública serão mecanismos à diminuição da dominação

*
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor na Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Coordenador do Núcleo de Direitos
Humanos da PUCPR/Campus Londrina. E-mail: <apnsophos@yahoo.com.br>

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Democracia republicana e cidadania contestatória em Philip Pettit

pública. O exercício de contestação e o controle popular podem ser


mecanismos políticos à saída da forma minimalista de compreender a
ação política como realização das preferências individuais (Schumpeter).
Esse exercícioo político significa a possibilidade de realização do ideal
de bem comum pelo procedimento discursivo de formação da opinião
e da vontade políticas. O debate e a contestação se constituem em
ambiente ao entendimento das normas comuns. Nesse sentido, o modelo
republicano de democracia prioriza o exercício dos direitos políticos
básicos, como sendo a ferramenta para estabelecer a vontade política.
A democracia republicana possibilita o compartilhamento dos direitos
políticos entre os cidadãos e incentiva a que exerçam o controle popular
sobre as decisões governamentais.
Palavras-chave: Republicanismo. Democracia. Contestação. Philip
Pettit.

Abstract: The political philosophy of Philip Pettit performs the


normative reading of the republican matrix of political thought. In its
historiographical and normative construction of the meaning of
republicanism, the centrality of freedom as non-domination is
reaffirmed. Pettit maintains the intention of rereading republican
citizenship as inclusivist. Republicanism claims that freedom as non-
domination is the necessary principle for the evaluation of any social
and political organization. This principle does not constitute an a priori
value of political theory because un-dominated relations are understood
in their different forms and contexts. In the social sphere, it will require
that relations between individuals be fair and there is no reason for
fear or deference to economic or social differences. Freedom as non-
domination can offer the necessary social resources so as not to have
asymmetrical relations of influence and choice in political society. In
the political arena, republican freedom will be represented by the ability
of citizens to influence and direct the decisions of political
representatives. Therefore, we will address the political elements
necessary to contain public domination (imperium). In the democratic
political arena, the opportunity for political participation, discussion
of social and political disadvantages, and ways of containing public
dominance will be mechanisms for reducing public domination. The
exercise of contestation and popular control may be the political
mechanisms for moving away from the minimalist way of understanding
political action as realization of individual preferences (Schumpeter).
This political exercise means the possibility of realizing the ideal of the
common good through the discursive procedure of forming opinion
and political will. The debate and the contestation constitute an

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environment for the understanding of common norms. In this sense,


the Republican model of democracy prioritizes the exercise of basic
political rights as the tool to establish political will. Republican
democracy enables the sharing of political rights among citizens
and encourages them to exercise popular control over government
decisions.
Keywords: Republicanism. Democracy. Contestation. Philip Pettit.

De fato, se vocês [jurados] se importassem em considerar e


investigar a questão do que é isso que dá poder e controle
(ischuroi kai kurioi) sobre tudo na polis para aqueles aos quais
são jurados a qualquer momento... vocês achariam que a razão
não é essa que vocês sozinhos em relação aos cidadãos estão
armados e mobilizados em fileiras, nem que vocês são
fisicamente os melhores e mais fortes, nem que vocês são mais
novos em idade, nem qualquer outra coisa, mas descobririam
que vocês são poderosos (ischuein) através das leis (nomoi). E
qual é o poder (ischus) das leis? É que, se algum de vocês é
atacado e clama, elas virão em sua ajuda? Não, elas são apenas
cartas inscritas e não têm habilidade (ouchi dunaint) para fazer
isso. Qual é então o seu poder motriz (dunamis)? Vocês serão
fortes, se vocês as protegerem e tornarem autorizadas (kurioi)
sempre que alguém pedir ajuda. Então, as leis serão poderosas
(ischuroi) através de vocês e vocês através das leis. Vocês devem,
portanto, defendê-las (toutois boethein) da mesma maneira que
qualquer indivíduo se defenderia se for atacado; vocês devem
considerar que as ofensas contra a lei são questões públicas
(koina). (DEMÓSTENES apud OBER, 2008, p. 8).

A teoria republicana da democracia tem o intuito de resolver o dilema


entre a decisão majoritária e as exigências de não dominação nos processos
de decisão, nas democracias contemporâneas. A democracia republicana
afirma que o conceito de liberdade, essa compreendida como ausência de
dominação, representa o ideal central da teoria política. De acordo com
Connolly (2014, p. 11), a filosofia política de Pettit representa a nova
perspectiva sobre a teoria republicana ao enfatizar a centralidade da
liberdade civil como fundamento à rejeição de qualquer forma de
subjugação social.
O republicanismo de Pettit (1997, 2012, 2014) advoga que o
conceito romano de liberdade civil, expresso no status de não dominação,

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deve ser efetivado e garantir livre-escolha entre opções políticas e sociais.1


Ele deixa claro que a teoria republicana não está preocupada somente com
o status da livre-escolha ; a teoria republicana se interessa pelas condições
necessárias ao exercício da ação livre.
O modelo republicano de Pettit, apresentado desde a obra Republicanism
(1997), se posiciona mais próximo da teoria político-normativa do que o
historicismo metodológico ou o antiquarismo da Escola de Cambridge
(Q. Skinner e J. Pocock). A análise de Pettit se situa no mesmo contexto
da filosofia política de Rawls (1971) ao deduzir, analiticamente, os princípios
que irão compor a teoria republicana, ao utilizar o método de reconstrução
dos conceitos via estudo da historiografia e a proposição de novas ideias a
problemas contemporâneos das instituições políticas.
Na obra On the people’s terms,2 Petitt (2012) reforça a argumentação de
que o ideal de liberdade é o núcleo da teoria republicana, e que, a partir
dessa concepção, se desencadearia a teoria republicana da justiça social e
a fundamentação da legitimidade política. De acordo com Pettit (2012,
p. 1-25), na análise da historiografia das ideias republicanas, é possível

1
Em Republicanism, Pettit (1997) havia caracterizado a dominação sob a ambivalência
imperium/dominium como representando a coerção que o Estado e os indivíduos ou grupos
exercem sobre outrem. Como explica o autor (1997, p. 22): “Dominação, como eu
entendo aqui, é exemplificada pela relação de um mestre ao escravo ou mestre para o
servo. Essa relação significa, no limite, que o partido dominante pode interferir de forma
arbitrária nas escolhas dos dominados: pode interferir, em particular, na base de um
interesse ou uma opinião que não precisa ser compartilhada pela pessoa afetada.” Nesse
sentido, é postulado que o Estado teria a obrigação de colocar o ideal de não dominação
como a única forma possível de interação social. O revival da teoria republicana alicerçou
a ideia de que o Estado deve promover o ideal de liberdade e que não é somente um valor
para a vida ou possui uma importância última. Ela é uma exigência para os governantes
manterem as formas de vida das pessoas. (PETTIT, 2012).
2
A obra On the people’s terms (2012) consolida o esforço de Pettit em aprofundar as teses
republicanas sobre a democracia que haviam sido germinadas na década de 90 com
Republicanism (1997), e elas vinham sendo objeto de investigação e disseminação em
artigos e capítulos de livro publicados posteriormente de maneira esparsa, durante duas
décadas de pesquisa. (PETTIT, 2014, p. 241). Como salienta Lovett (2013, p. 1): “On
the People’s Terms de Philip Pettit denota uma importante declaração, abrangente da
doutrina política republicana contemporânea”. Essa opus objetiva consolida a teoria
republicana da democracia ao reafirmar os princípios do Republicanism e fornecer uma
nova argumentação sobre a ideia de democracia e justiça social que estavam implícitas
nesse livro. Por consequência, On the people’s terms responde às críticas que se originaram
da publicação da obra Republicanism e, simultaneamente, explicita os princípios clássicos
da tradição republicana: o governo misto, a defesa do império da lei (rule of law) e a
importância da participação dos cidadãos em assuntos públicos.

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identificar três princípios fundamentais, que perpassaram pela república


romana e permaneceram até o período das eras das revoluções, a saber, a
ideia de liberdade como ausência de dominação, a forma de governo misto
e a capacidade dos cidadãos de contestar as decisões políticas. Segundo o
autor, essas ideias políticas possibilitam concretizar o ideal de Estado de
Direito como tendo a estrutura constitucional e sua forma de governo: a
democracia contestatória. O império da lei é requerido como forma de
mediação entre as demandas da democracia, os direitos individuais, os
direitos políticos e as exigências do governo misto (constitucionalismo).
O modelo de democracia republicano se insere como contraste aos
modelos contemporâneos desenvolvidos pelos liberais e populistas
(comunitaristas). 3 A teoria republicana afirma a necessidade de
entrelaçamento da ideia de democracia com a liberdade individual. Além
disso, a forma jurídico-constitucional deve ser estabelecida como mecanismo
de ação política. A concepção republicana de liberdade é necessária à
democracia porque o povo que não realiza o controle sobre o governo
torna-se dominado pelo aparelho estatal. A postulação do constitucionalismo
(como forma de controle da política) não representa, necessariamente,
constrangimento/obstáculo à ação individual. A liberdade republicana pode
se tornar o ideal comum a ser buscado na sociedade política e se constituir
no medium de entrelaçamento entre as diversas cosmovisões.

O ideal democrático e o bem comum


A teoria republicana da democracia oferece os recursos e a proteção
necessários aos cidadãos perante as práticas institucionais e administrativas
do Poder Público (imperium). Para conter as formas de dominação e garantir

3
Pettit (1997, p. 7-8; 1999, p. 25; 48-50; 2006, p. 302) denomina populista (populist)
a teoria política que enfatiza a característica de autogoverno e a necessidade de
autoentendimento ético no processo político. Segundo ele, as teorias políticas de J.-J.
Rousseau, H. Arendt e M. Viroli seriam exemplos dessa modalidade populista de pensar
a política. Essas teorias políticas afirmariam a necessidade da reunião do povo em
assembleia e a constituição de uma forma de vida boa (ética) mediante a participação
política. Na teoria política norte-americana, o termo comunitarista (communitarian)
corresponderia ao significado do termo que Pettit utiliza para denominar as teorias
políticas de populistas (populists). Como explica Pettit (1997, p. 8): “Essa abordagem
representa as pessoas em sua presença coletiva como mestre e o Estado como servo, e
sugere que as pessoas devem contar com os representantes e os funcionários do Estado
somente quando absolutamente necessário: a democracia direta, seja por assembleia ou
plebiscito, é a opção preferida sistematicamente”.

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a liberdade republicana, é notória a necessidade de participação política no


modelo democrático de instituição das leis e organização do Estado de
Direito.

Uma abordagem republicana retifica a negligência da participação


dos cidadãos na ordem social. A concepção da liberdade como
não-dominação coloca claramente dois problemas domésticos
distintos sobre a mesa. O primeiro, como já vimos, diz respeito à
forma de proteger e garantir às pessoas perante a possibilidade de
dominação pelo poder privado ou pelo dominium, promovendo
assim a sua satisfação como consumidores da ordem social em que
vivem. E o segundo, diz respeito à forma de garantir que o poder
público ou o imperium, através do qual este recurso e proteção
seja fornecido, não está dominado e garante que os cidadãos possam
moldar e reformular a ordem imposta. (PETTIT, 2014, p. 110).

As instituições políticas estão fadadas ao paradoxo do imperium, pois


impõem uma ordem jurídico-estatal à coordenação da conduta dos atores
sociais, e, simultaneamente, as ações do aparato estatal não deveriam se
constituir em uma forma de restrição injustificada à liberdade civil. Por um
lado, a impositividade jurídica é necessária para garantir o equilíbrio, no
poder de influência política, e a manutenção da convivência entre os cidadãos.
Por outro lado, a coerção estatal não deve significar a forma de diminuição
da capacidade de escolha pelos cidadãos. Pettit salienta que esse aparente
paradoxo é possível de ser resolvido pelo modelo de democracia que conceda
um igual compartilhamento da forma de controle popular perante as decisões
governamentais.
De acordo com Ober (2008), o sentido primordial do termo democracia
estava em ser uma capacidade compartilhada pelo povo (demos, significando
homem livre, nativo e independente economicamente) para agir na vida
pública. Segundo ele, a democracia grega se caracterizava pelo modelo
igualitário de relação que os cidadãos estabeleceram entre si. Esse modelo se
desenvolveu pelo nível relacional de igualdade de direitos (isonomia) ou de
discurso (isegoría).

Assim, a isonomia é uma distribuição justa das imunidades legais


para toda a população e o igual acesso aos processos legais. A isegoría
significa o igual acesso aos fóruns deliberativos: o igual direito de
falar em assuntos públicos e atender ao discurso de outros. Por

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analogia, a isokratia é o igual acesso ao bem público do kratos – o


poder público conduz ao bem comum, permitindo que boas coisas
aconteçam no domínio público. (OBER, 2008, p. 6).

O povo (demos) exerceria o controle sobre o domínio público e, pela


ação política, realizaria a moldagem das instituições políticas em
conformidade com o interesse comum. No sentido do discurso de
Demostenes (IV a. C.), a democracia se referiria à capacidade relacional de
proteger a lei e direcionar as instituições políticas no sentido do bem público.
Os cidadãos exercem o controle e protegem as leis perante as intemperanças
da vontade popular que queiram se restringir aos interesses particulares e às
necessidades individuais.
Na modernidade, essa capacidade (kratos/poder) de relação política foi
reduzida pela instituição do voto e a tomada de decisão política pela “regra
da maioria” (Majority rule). Essa redução normativa da democracia
introduziu o sentido mínimo de participação política (pleito). O processo
de tomada de decisão e a formação da vontade política se tornaram alheios
ao detentor do poder político (kratos).
O sentido clássico e moderno de democracia diferiu também por conta
da acepção que foi dada pelos filósofos modernos à participação política.
Na Antiguidade, a participação democrática estava fundamentada nas relações
sociais de igualdade, e a escolha se dava por meio de sorteio. No início do
período moderno, a participação democrática foi referida pela decisão
majoritária na assembleia política como sendo oposta à decisão monárquica.
A escolha majoritária garantiria a legitimidade democrática nas decisões
políticas. Além disso, a democracia moderna, a partir da segunda metade
do século XVIII, foi caracterizada pela possibilidade de representação política
e a divisão e separação dos Poderes Políticos. (PETTIT, 2017a, p. 3-4;
MANIN, 2007, p. 21).
O modelo de democracia republicano contraria a premissa dos filósofos
políticos modernos que fundamentaram a ideia de consentimento como
sendo a forma de alcance da legitimidade pelo representante político. De
acordo com Pettit, o modelo moderno estaria fundado na capacidade do
macrossujeito (povo) e do microssujeito (indivíduo) em dar o assentimento
às leis públicas e as decisões políticas pelo voto. Pettit (2017a) retoma a
análise desenvolvida por Schumpeter (1984) sobre a democracia de massas
e a caracterização da participação política pela via eleitoral. De acordo com
Schumpeter, as eleições seriam a expressão de preferências individuais. Pettit

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propõe a ampliação do conceito de democracia pela via contestatória, e o


exercício da cidadania pelo controle popular das decisões que são tomadas
pelos representantes políticos.
Pettit (2017a), em sua caracterização da democracia em Schumpeter
(1984), assinala que o cientista político austríaco descreveu a doutrina clássica
da democracia como sendo concernente à assembleia reunida. A crítica
desse autor ao modelo clássico de democracia estaria na ausência de
representação efetiva do ideal de bem comum e sua impossibilidade
processual de ser realizado na sociedade moderna. “A primeira crítica pode
ser descrita como fundada na substância, e a segunda como sendo fundada
em procedimentos”. (PETTIT, 2017a, p. 6).
A primeira crítica expressa, pitorescamente, a sociedade agrária como
sendo fundada no bem comum e seus cidadãos como estando na situação
social que estaria ausente da necessidade de tomada de decisão. Todavia, a
sociedade modernoa-industrial se caracteriza pelas diferenças sociais e a
impossibilidade de acordo comum sob regras, a exceção daqueles acordos e
compromissos que satisfaçam os interesses individuais ou de grupo no
sentido oferecido pelo utilitarismo.

Pelo critério de Schumpeter qualquer noção substantiva de bem


comum tem que passar por uma barreira alta: deve implicar “a
resposta definitiva a todas as questões para que todos os fatos sociais
e todas as medidas sejam tomadas ou a serem tomadas possam ser
inequivocamente avaliadas. (PETTIT, 2017a, p. 7).

A segunda crítica enfoca o processo democrático de concatenação das


preferências políticas dos indivíduos e impossibilita o gerenciamento das
preferências em prol da ideia de bem comum.

A sua crítica baseada em procedimento gira mais centralmente,


no entanto, em duas queixas concretas sobre as preferências das
pessoas em questões públicas como distintas de suas preferências
privadas. Agora, antecipando a economia comportamental, ao invés
da teoria da escolha social, ele reclama que aquelas preferências
são muito desordenadas e manipuláveis para o procedimento
democrático, a ser dito para identificar uma vontade comum.
(PETTIT, 2017a, p. 8).

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Diante desse diagnóstico, Schumpeter (1984) arguiu pelo modelo


democrático que satisfizesse as exigências dos indivíduos. Esses seriam os
atores sociais autointeressados. O processo democrático se estabelece como
mecanismo de conexão das preferências individuais, e a competição eleitoral
propicia a apresentação de programas políticos. Os programas dos partidos
políticos e do governo buscam satisfazer os interesses do eleitorado. Nesse
realismo e cinismo políticos de Schumpeter (1984), os partidos políticos
se estruturariam para obter vitória no pleito, e seus programas e propostas
se estabeleceriam em consonância com os interesses dos indivíduos e grupos
sociais. Assim, o jogo dos partidos políticos, durante o processo eleitoral,
se reduz à ação mercantil de “compra e venda de votos” pela apresentação
de propostas que se adequam aos interesses dos eleitores (clientes ou
consumidores).
Segundo Pettit (2017a, p. 10), o minimalismo da concepção de
democracia de Schumpeter (1984) conduz ao equívoco de considerar a
satisfação dos interesses do eleitorado. Por isso, ele propõe a ampliação do
conceito de democracia para além do sentido eleitoral. A democracia, no
sentido que será apresentado, significa o sistema de controle popular e a
atividade contestatória pelos cidadãos. No aspecto que se refere ao controle
popular e à formação da vontade comum, talvez seja possível pensar de
forma realista e observar que os atores políticos necessitam apresentar,
publicamente, o motivo de sua decisão política para, paulatinamente, ocorrer
a formação da cultura político-democrática (padrões comuns de atitude
democrática).
O Estado de Direito estabelece os meios à contestação e, gradualmente,
essa atividade fornece a direção ao governante. Levy (2016) destaca que a
concepção de democracia de Pettit se fundamenta nos aspectos institucional
e constitucional. A necessidade da instituição estatal (Estado) para a proteção
dos indivíduos, e o exercício democrático deve ser direcionado pelos
cidadãos. O constitucionalismo é expresso pelos meios institucionais à
proteção perante o uso arbitrário do poder político.

Pettit, em vez disso, argumenta pela contestação sobre o uso do


poder como o material de política democrática diária. Ele não
abraça o agonismo ou a compreensão quase caótica da alternância
no poder de Schumpeter. Na verdade, com base em sua obra (com
List) sobre a agência de grupo, ele insiste que o Estado deve ser o
agente corporativo coerente e capaz de demonstrar consistência
intertemporal de intenção. (LEVY, 2016, p. 680).

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Pettit prossegue na configuração da democracia contestatória segundo


a possiblidade de controle popular mediante os mecanismos políticos que
estão disponíveis a todos os cidadãos. A forma constitucional, amplamente
aquiescida pela tradição republicana, impõe as restrições necessárias ao poder
arbitrário do governante, e a contestação sendo exercida pelos cidadãos na
esfera pública (meios de comunicação de massa, canais de escuta, ombudsman,
movimentos sociais e associações civis) e nos tribunais, oferece
direcionamento aos governantes.

As verificações constitucionais – incluindo as verificações eleitorais


e contestatórias – foram proeminentes destacadas na constituição
mista da antiga tradição republicana [...]. A tradição republicana,
como eu vejo, nos leva a reconhecer não apenas que a influência
democrática ultrapassa os canais reconhecidos por Schumpeter,
mas ela pode se constituir em uma forma de controle democrático.
(PETTIT, 2017a, p. 11).

Pettit assevera que a atuação dos cidadãos e dos representantes políticos


poderia formar um padrão comum de ação política e também significar a
mudança de comportamento daqueles que não estão acostumados ao
cumprimento das exigências democráticas. Assim se o jogo político,
atualmente, é regido pela racionalidade econômica, ele poderá ser coordenado
pela atitude democrática contestatória de se orientar pela influência popular.
Nesse caso, seria possível reconectar o sentido grego de democracia, como
sendo o modo relacional de exercício da capacidade de fazer ações em
conjunto e manter os arranjos institucionais que foram instaurados na
modernidade.

Contestação e controle popular


A estrutura institucional do Estado republicano deve satisfazer o
requisito de controle popular e democrático. A relação vertical entre Estado
e cidadãos tem que ser mediada pelos dispositivos políticos de controle do
poder estatal. A questão se centra em apresentar o modelo de influência e
direção que forneça, igualmente, a capacidade (poder/kratos) de agir sobre
as decisões parlamentares e construir a sociedade democrática.
O controle popular evidencia que os cidadãos exercem influência no
comportamento do governo. Os cidadãos, ao fornecerem seu consentimento,
não se alienaram do exercício de seus direitos políticos. Essa forma de

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controle social é possível que ocorra em momentos de crises na história das


instituições políticas, bem como o exercício do poder discricionário e a
necessidade de auxílio dos cidadãos para alcançar a mais correta decisão.
Pettit argumenta que o modelo republicano de liberdade poderia garantir
a estruturação do ordenamento jurídico como justo, e a coerção estatal
deve estar submissa ao controle popular. O controle popular age como uma
espécie de fiscal das decisões políticas. O modelo de democracia contestatória
adquire proeminência ao enfatizar que os cidadãos atuam como tutores e
controladores da coerção estatal. Esse é o modelo que se diferencia dos
modelos democráticos fundados no consentimento, porque enfatiza a
necessidade de participação cidadã no processo de tomada de decisão. A
participação política não tem o valor intrínseco à realização da liberdade
civil, ela é somente requerida, como valor instrumental, se a interferência
arbitrária tiver sido praticada pelo Estado. (PETTIT, 2012, p. 158).
No modelo de Schumpeter (1984), a influência popular se manifesta
durante o período de competição eleitoral. Os partidos políticos ajustariam
seus programas de governo segundo as preferências dos eleitores. Nas prévias
eleitorais, aconteceria a contabilização das vontades individuais. O processo
democrático não seria caracterizado pelo anseio de realização do interesse
comum ; ele se reduz ao enfeixamento dos interesses individuais e está sob
a influência dos interesses privados das corporações. Por isso, os diversos
problemas da democracia contemporânea estão na forma de contenção da
influência privada (lobbies e financiamentos privados de campanha política)
sobre as decisões parlamentares e o acesso aos meios de comunicação de
massa. Esses devem representar a pluralidade das opiniões e narrativas sobre
acontecimentos políticos.
A descrição de Schumpeter (1984) não possibilita conceber a
democracia como sendo o sistema de influência popular atuante sobre as
decisões parlamentares. A influência popular, no modelo schumpeteriano,
apenas atua sobre os partidos políticos durante a competição eleitoral e se
desfaz após a composição do governo. Pettit denuncia que essa forma de
participação política se constitui em uma forma fraca de democracia. Essa
concepção fraca de democracia não conduz ao reconhecimento da
legitimidade das decisões políticas.
A legitimidade política é alcançada pela concessão de controle popular
sobre as ações dos governantes. A teoria republicana enfatiza a capacidade
contestatória dos cidadãos de apresentar queixas à ordem política ilegítima.
Os cidadãos devem ser capazes de influenciar nas e direcionar as decisões de

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seus representantes políticos. O controle do Estado pelos cidadãos é


caracterizado pela individualidade, incondicionalidade e eficácia do exercício
da influência e da direção sobre o processo de tomadas de decisão políticas.
A democracia republicana propicia os mecanismos políticos à realização da
influência e direção popular. A contestabilidade das ações governamentais
pode ser realizada individualmente e expressa sem a necessidade de autorização
por órgão público. Os canais de escuta e ouvidoria das instituições políticas
podem ser espaços para denunciar as ações de cooptação dos representantes
políticos. Os canais de escuta podem ser um meio eficaz ao redirecionamento
das ações parlamentares ao ideal de bem comum.
O modelo republicano estrutura a forma de participação política dos
cidadãos pelo requisito de igual influência sob as decisões estatais e o
oferecimento de diretivas aos representantes políticos. Pettit denomina a
capacidade de influência como sendo o controle democrático sobre as
instituições políticas. Ele se caracteriza pelo acesso aos meios de influência
democrática e não está condicionado aos interesses do governante ou de
interesses privados. Esse sistema de influência é exercido pelos indivíduos e
em conformidade com sua intuição política. Isso quer dizer que o sistema
de influência deve ser individualizado e se estabelecer como oposto ao governo
majoritário ou ao poderio dos grupos majoritários (facções). Ele tem que
ser igualmente acessível aos indivíduos desde a composição dos representantes
políticos pelo sistema eleitoral e a proporcionalidade do voto, e o uso de
direitos políticos que possibilitem a participação popular para além do
pleito: referendum, plebiscito, iniciativa popular, etc.
Nesse sentido, Pettit (2012) caracteriza o controle social como sendo
exercido pelos cidadãos e embasado em três requisitos: suficientemente
individualizado, não condicionado e eficaz. O requisito individualidade
denota igualdade de acesso ao sistema político; o requisito incondicionalidade
representa a independência ou a não mediação pela vontade de grupos sociais
ou pessoas, e a eficácia significa que ação estatal não impõe uma restrição
injustificada. Esses requisitos garantem que todos os cidadãos tenham a mesma
capacidade de influência no Estado de Direito. (PETTIT, 2012, p. 179).
O processo eleitoral conduz a divisão política no Estado entre a maioria
vencedora e a minoria derrotada. O pressuposto de igualdade, no peso dos
votos, não indica o reconhecimento do direito das minorias, uma vez que a
minoria vencida poderá ser massacrada em suas causas e objetivos políticos
pela maioria vencedora. O modelo republicano de democracia alerta aos
casos de majoritarianismo e possibilita que o direito das minorias e sua

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capacidade de influência possam ecoar na esfera pública pela atitude


contestatória.

Se essas observações são sólidas, então, a versão mais plausível desse


primeiro relato da direção popular diria que o povo exerce o
controle na medida em que eles intencionalmente usam a influência
para forçar o governo a prosseguir com as políticas de interesse
público, em que o interesse público é entendido em uma forma
pós-social, mas não corporativa. O povo realiza isso de uma
maneira política ou eleitoral: primeiramente, ele identifica as
políticas adequadas e, em seguida, ele seleciona os representantes
que apoiam aquelas políticas; ou primeiro identifica os
representantes adequados e depois contando com eles para
formular as políticas de interesse público. (PETTIT, 2012, p. 245).

Isso quer dizer que deve haver correspondência entre a vontade dos
representados e a ação dos representantes. O problema de institucionalização
das diretrizes da esfera público-comunicativa representa a maior dificuldade
à teoria democrática que tenha o anseio normativo de realizar a
correspondência entre os representados e a autoridade política eleita. O
assédio das corporações sobre o processo de decisão política desmantela a
normatividade democrática mediante o emprego de lobbies, a promessa de
financiamento privado de campanhas políticas, o pagamento de propinas e
subornos, o aparelhamento ou a monopolização dos meios de comunicação
de massa, etc.
Para equilibrar esse desnível no Estado Democrático de Direito, Pettit
(2012, 2014) propõe o exercício da participação política como contestação.
Essa representa a possibilidade de os cidadãos exporem queixas ou
apresentarem recursos às decisões políticas e exercitarem seus direitos com
o objetivo de reconduzir ao tratamento igualitário as consequências dos
atos administrativos. O dinamismo da contestação se aplica ao processo
político pela exigência de que as atribuições dos representantes políticos se
caracterizem pela transparência e publicidade nas questões que estão sendo
objeto de discussão. De acordo com Pettit (2012), essa fase seria denominada
de pré-contestatória porque o princípio de atuação exige transparência nos
atos dos representantes políticos. A fase de contestação representa a
possibilidade de os cidadãos questionarem a pauta política e a votação de
projetos de lei. A fase pós-contestação é medida pelo critério da

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Democracia republicana e cidadania contestatória em Philip Pettit

imparcialidade na avaliação das demandas políticas e pela adjudicação dos


questionamentos e recursos que foram propostos pelos cidadãos.
A publicidade como princípio de ação política representa a possibilidade
de concatenação entre os anseios políticos e os deveres morais. O princípio
da publicidade concebe a necessidade de diálogo entre o órgão político
legislativo e a sociedade civil. Os cidadãos devem dispor dar informações
necessárias para avaliar projetos de lei que serão decididos pela Assembleia
Legislativa. O ideal de imparcialidade, no processo de adjudicação, necessita
que os órgãos jurisdicionais tenham independência em relação àqueles que
nomearam a autoridade jurídica. Esse ideal jurídico se satisfaz pelo
compromisso dos cidadãos em garantir a igualdade do poder de influência e
o controle sob o governo.
A esfera pública, na contemporaneidade, se encontra dissolvida em
textos digitais e espaços de interação comunicativa dos meios de comunicação
de massa. Ela pode adquirir o dinamismo das redes sociais no processo de
formação da vontade e da opinião política ou respaldar, legitimamente, as
decisões parlamentares pelo uso das mídias sociais. A sociedade civil, mediante
associações civis e meios de comunicação de massa, pode instaurar atividades
de fiscalização e vigilância das decisões parlamentares. Os meios de
comunicação de massa podem disponibilizar espaço aos cidadãos para
apresentarem suas críticas e opiniões. As mídias digitais podem se tornar o
espaço, ser o canal de escuta e consulta acerca da opinião dos cidadãos.
Pettit (2012) concebe que a influência eleitoral e contestatória dos
cidadãos deve direcionar o processo de tomada de decisão. O exercício
contestatório deve ser caracterizado pela valorização individual das petições
e queixas que os cidadãos apresentam ao governo. Além disso, ele acrescenta
a característica incondicional ou independente de realização da influência
popular. Isso quer dizer que a participação contestatória não se realiza sob a
conivência do governante. Ela impõe a influência diretiva como sendo o
anseio do cidadão. Os cidadãos manifestam resistência ao governo ilegítimo
por meio da contestação das leis e políticas governamentais injustas.
O modelo republicano de democracia se estrutura no anseio por
instituições que satisfaçam o sistema de influência popular. O modelo
representativo de exercício da influência popular sobre o Poder Legislativo
carece de racionalidade quando é avaliada a decisão política mediante pleito,
o qual poderá resultar em políticas públicas inconsistentes. As eleições têm
a relevância pragmática na composição dos representantes dos cargos públicos
e fornecem aos cidadãos a possibilidade de escolha daqueles que os

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Alberto Paulo Neto

representarão. Contudo, o aspecto eleitoral da democracia se mostra


insuficiente para fornecer a ação individualizada e a igualdade de acesso
para direcionar as decisões políticas. O modelo eleitoral de democracia se
constituiu sob o dilema da tirania majoritária. Por isso, o modelo republicano
apregoa que os indivíduos e os grupos sociais poderiam proceder vistas
sobre as decisões e fazer contestação. Explica Van Parijs (1999, p. 193): “A
democracia aqui não é definida como governo do povo (em conjunto),
mas como a contestabilidade pelas pessoas (distributivamente) e, portanto,
como intrinsecamente amiga da liberdade (freedomfriendly)”. Essa
diferenciação conduz à superação metafísica a figura do povo nas filosofias
político-modernas e a pressuposição que qualquer indivíduo, em sua ação
singular ou coletiva, pode exigir a orientação da ação dos agentes públicos
em conformidade com o interesse comum ou com o respeito à regra de
ação não arbitrária.
Essa modalidade de atitude democrática exige que haja transparência
nos processos de tomada da decisão e imparcialidade na forma de julgar as
críticas às decisões políticas. A forma de influência popular se caracteriza
por duas modalidades: diretiva e intencional (as pessoas se informariam e,
posteriormente, exigiriam dos agentes públicos a adequação das decisões
ao interesse público) e o não intencional (o ato de votar por preferências).
O critério de aceitabilidade racional surge pela formação do exercício de
influência sobre as políticas públicas. A legislação democrática promulgada
necessita que seja revisada sob a perspectiva da função reguladora e do
constrangimento, que impuseram aos cidadãos. Esse processo legislativo
ocorreria pela via deliberativa. “Para tornar possível a contestação, a legislação
deve ocorrer em um contexto de debate para que todos os lados estejam
representados, e apenas as razões que são aceitáveis em tal debate podem
ser reconhecidas como relevantes”. (VAN PARIJS, 1999, p. 194).
A normatividade da teoria republicana da democracia está na exigência
de que os atores sociais possam conviver em um sistema político de igual
capacidade para influenciar no processo de formação da vontade política e
das decisões governamentais. A estrutura política deve satisfazer a
possibilidade de realização das determinações coletivas e deve ser estável em
tempos de infortúnio e devassidão político-moral (corrupção). Em outras
palavras, as instituições políticas devem se alicerçar no ideal político que
seja o sustentáculo em tempos em que os cidadãos estejam mais dispostos à
virtude política e, principalmente, nos momentos em que o caráter
corruptível das ações civis predomina sobre as decisões políticas.

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Democracia republicana e cidadania contestatória em Philip Pettit

Os arranjos que apoiamos devem ser capazes de sobreviver às


eslingas e flechas de nossa natureza rebelde e os obstáculos que
pode colocar no caminho do progresso social. O republicanismo
cívico está totalmente de lado com o argumento de que a filosofia
política deveria dar atenção, se não exclusiva, às iniciativas viáveis
e instituições sustentáveis. (Marti & Pettit, 2010). A tradição está
marcada, como mencionamos, por um compromisso com a
constituição mista e uma cidadania contestatória, em que estes são
lançados como requisitos para evitar a corrupção do Estado. A
constituição mista é defendida por esses motivos por Políbio,
Maquiavel, Harrington e, claro, pelos autores do Federalist papers.
(PETTIT, 2017b, p. 9).

Na tradição republicana, a análise da degeneração dos regimes políticos


é contida pela constituição mista como sendo a forma de proteção perante
a corrupção das instituições. A constituição estabelece mecanismos políticos
de defesa e contrabalanceamento das formas de dominação. Os cidadãos
dispõem da contestação como sendo a ação de oposição às arbitrariedades
estatais.

A constituição mista não é um modelo para a concepção de


instituições públicas, é claro, e assumir esse papel levou a regimes
com problemas muito salientes, como os problemas de bloqueio e
oligarquia nos Estados Unidos. Mas a ideia sinaliza um
compromisso dentro da tradição republicana de pensar para
proteger contra um desprezo utópico pelos problemas de
viabilidade e, em particular, de sustentabilidade. Aqui, como em
outras posições, penso que a abordagem tem boas credenciais
realistas. (PETTIT, 2017b, p. 9).

O modelo republicano de filosofia política prescinde de abstrações e


princípios a priori para a construção da sua teoria da justiça. Ele se alicerça
nas exigências normativas da liberdade como não dominação para extrair os
recursos necessários para a vida social e política equilibrada na sociedade
moderna.
O fundamento da democracia contestatória está na capacidade de
influenciar no e exercer o controle social. A assembleia se constitui em
espaço propício para o exercício dos direitos políticos e a eleição dos
representantes. Esses, sub judice, são inqueridos e avaliados por seus eleitores

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Alberto Paulo Neto

nos moldes da democracia moderno-representativa. (PETTIT, 2012, p. 198).


Contudo, o controle coletivo é pressuposto à garantia dos direitos individuais
e para que não haja discriminação com a minoria derrotada. O controle
coletivo possibilita que cada indivíduo exerça sua capacidade de apresentar
queixas ao aparelho estatal. (PETTIT, 2012, p. 209-217).
Para Pettit essa modalidade de influência popular resulta no fato de
que os cidadãos se observam envolvidos em seus direitos políticos como
eleitores e contestadores. Por isso, o Estado de Direito teria a obrigação de
guardar os indivíduos contra a dominação privada (dominium). Para isso é
requerida justiça, e é necessária a forma de proteção contra a dominação
pública (imperium) com o uso do controle popular perante o poder arbitrário
do governante.
Pettit (2017b) critica a perspectiva vanguardista dos filósofos que
ousaram conceber, metafisicamente, o certo e o errado. Eles se colocam
como seres superiores aos cidadãos e se postulam como mestres da sociedade.
Os vanguardistas se arrogam uma autoridade superior que não é possível
que seja oferecida em uma sociedade democrático-contemporânea.
A democracia republicana prioriza o exercício dos direitos políticos
básicos (liberdade de expressão, liberdade de voto, liberdade de associação,
etc.), como sendo ferramenta à formação da vontade política. Além disso,
ele salienta a atitude contestatória dos cidadãos perante as formas
injustificadas de desigualdade de tratamento. Essa perspectiva democrática
realiza o compartilhamento dos direitos políticos entre os cidadãos e
incentiva a que exerçam o controle popular sobre as decisões governamentais.

Que a democracia seja tomada como um valor, então – um valor,


como pensam os republicanos, que está enraizado na preocupação
das pessoas em não ser dominadas – e isso irá colocar restrições
sobre o que o povo pode fazer, sobre como o demos pode exercer o
seu kratos. Isso argumenta, em minha opinião, para a constituição
consolidando os direitos democráticos básicos, colocando-os além
de qualquer possibilidade de alteração. Esses direitos estabelecem
a reivindicação de todos os cidadãos para poderem votar, ocupar
cargos e contestar as decisões políticas por canais estabelecidos,
bem como o pressuposto das formas de reivindicação da liberdade
de expressão e de associação. (PETTIT, 2017b, p. 10).

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Democracia republicana e cidadania contestatória em Philip Pettit

A autoridade política é compartilhada no exercício dos direitos


democráticos. Além disso, a realização da vida política exige educação
inclusiva e o acesso aos recursos materiais, sociais, médicos e judiciais para
a garantia e o desenvolvimento das capacidades humanas e cívicas.

O ideal orientador republicano exige que eles assumam o papel


democrático de interlocutores respeitosos que visam persuadir os
outros, não lhes [sic] aniquilando. Isto está em consonância com a
mais longa tradição, na qual o perigo da dominação pública – o
perigo de dominação por parte de um governo que não é
adequadamente limitado pelas pessoas – é tão grande quanto o
perigo da dominação privada. (PETTIT, 2017b, p. 11).

Nesse sentido, os cidadãos interagem discursivamente, com o objetivo


de alcançar o entendimento sobre as normas que guiarão a sociedade política.
Essa atitude permite reconhecer as formas de dominação públicas e propor
medidas à garantia da liberdade civil.

Considerações finais
Na história do republicanismo, segundo Pettit (2012), a ideia de
constituição mista e a contestação representaram as formas de resistência ao
governo despótico. A constituição mista impede que o órgão político
estabeleça a unicidade de seu poder sobre a sociedade. A autoridade política
deveria reverenciar os anseios populares e estaria impossibilitada de impor
sua vontade arbitrária. A divisão e a separação dos Poderes Políticos se
configuram como sendo a forma de restrição ao anseio arbitrário da
autoridade política.
A teoria republicana de democracia demonstra que a participação política
deve ocorrer sempre que forem necessárias a proteção e a defesa perante as
formas de dominação pública (imperium). O Poder Político-democrático
tem intersecção com a liberdade quando os cidadãos realizam o controle
sobre as atividades dos representantes políticos. O controle popular exercido
de forma individual, independente e eficaz, poderá influenciar nas e direcionar
as decisões políticas.
A questão da influência no modelo schumpeteriano está minimamente
expressa nas escolhas individuais no ato eleitoral. Os indivíduos
autointeressados e egoístas não se dispõem a compor o interesse público ou

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a satisfazer o critério de igual consideração e respeito. Eles se predispõem a


negociar e a realizar seus interesses pessoais na escolha democrática. Por
isso, o processo eleitoral é o momento de escolha do programa de governo
que satisfaça o interesse egoísta, e o “interesse público” se reduz à intersecção
entre os interesses privados e as preferências. Os indivíduos não estão
dispostos a conviver em uma sociedade igualitária. Eles anseiam somente a
satisfação de seus interesses.
A perspectiva republicana assevera que o interesse público não pode se
reduzir à intersecção dos interesses privados. O ideal de bem comum
representa os princípios normativos que os cidadãos compartilham como
membros de uma comunidade política e garante o status social e político de
igual participação no processo democrático.
A ideia republicana de povo e participação política não adquiriu conotação
metafísica, como realizaram as teorias modernas; surgiu como representando
a possibilidade, individual ou coletivamente, de exercício do controle popular
sobre a arbitrariedade estatal. Em verdade, o conflito entre a imposição da
dominação legal e a proteção dos direitos individuais e políticos só podem
ser equilibrados pelo exercício contestativo da política.
A atividade contestatória desempenha a função de alertar sobre as formas
de dominação e subjugação que são exercidas pelos funcionários do Estado
de Direito. A contestação ocorre na esfera pública e nos meios de que os
cidadãos dispõem para, reciprocamente, realizar a formação de opinião e de
vontade política. Os cidadãos realizam o ato de influência mútua e
questionam as decisões dos representantes políticos.
Essa forma de contenção do imperium interessa à realização do sentido
primordial da democracia como nível relacional de igualdade entre os
cidadãos, e as diferenças sociais e econômicas não são motivos para
tratamentos desiguais ou que haja diferença na capacidade (poder) de
influência entre os cidadãos.

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Democracia republicana e cidadania contestatória em Philip Pettit

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Submetido em 27 de abril de 2018.


Aprovado em 26 de junho de 2018.

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