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—p Ciência, ■-*- A Comissão Científica de


Exploração (1859-1861).
Civilização e A ciência imperial e a musa cabocla1

Império nos o^>

Lorclai Kury
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A Comissão Científica de Exploração (1859-1861) foi a pri­


meira expedição científica brasileira. Idealizada pelo IHGB e
patrocinada pelo governo imperial, a expedição percorreu re­
giões do nordeste brasileiro, principalmente do Ceará. A equi­
pe era composta por Francisco Freire Alemão, Guilherme
Orj^ni^^dores Schüch Capanema, Manuel Ferreira Lagos, Giacomo Raja
Gabaglia, Antonio Gonçalves Dias e pelo pintor José dos Reis
HeiJser Carvalho, além de diversos ajudantes.
AntcniO fojusto fasses \lidcir4 Mal falada, de reputação duvidosa, alguns chegaram a refe­
rir-se a ela como comissão "defloradora"2, em alusão às incur­
sões sexuais dos participantes pelos sertões. Seu principal
apelido foi, no entanto, Comissão das Borboletas, o que desvia
a crítica da moralidade para a inutilidade da empreitada. Atual­
mente, a memória da expedição ficou associada à presença do

1. Agradeço as sugestões de Magali Romero Sá e Maria Margaret Lopes.


2. ow) Cf. Renato Braga, História da Comissão Científica de Exploração,
s.l., Imprensa Universitária do Ceará, 1962, p. 52 e carta de Gonçalves
Dias a Antonio Henriques Leal, Ceará, 17 de julho de 1859 in Anais da Bi­
blioteca Nacional (Correspondência ativa de Gonçalves Dias), vol. 84,
1964, p. 258.
S&' .& Q ccess
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poeta Gonçalves Dias e à malograda tentativa de naturalização O linda7, em parte porque comprou-se material científico e li­
de d roínedários no Ceara promovida pelos viajantes, em asso­ vros especializados na Europa, o que demandou tem po para a
ciação com a S o c ié té Im p é r ia le d 'a c c lim a ta tio n , de Paris. entrega das encomendas. Apesar de ter contado com o apoio
Ainda pouco estudada, a Comissão Científica de Explora­ do Imperador, material moderno, bibliografia adequada, equi­
ção (CCE) mereceu um trabalho criterioso da parte de Rena­ pe numerosa composta somente por brasileiros, instruções de
to Braga, em 1962.^ Este livro faz um apanhado geral da do­ viagem e roteiro que percorreu regiões pouco exploradas, a
cumentação que existe relativa à expedição, mas não fornece Comissão Científica de Exploração não correspondeu às ex­
análise detalhada sobre os aspectos científicos da comissão, pectativas de “até mudar a face do Brasil”89, como cogitou
nem do material publicado e coletado por seus membros. A Gonçalves Dias, nem satisfez a curiosidade dos europeus es­
importância do trabalho de Braga não impede que se lamente tudiosos do país, como Cari Philipp von Martius^ ou Ferdi-
a raridade de estudos posteriores sobre o assunto. A principal nand Denis10. Dos preparativos aos resultados passou-se do
contribuição atual é o artigo de Margaret Lopes, de 19964, entusiasmo às lamúrias e decepções. Apesar disso, a primeira
que analisa a CCE como uma dás atividades promovidas pe­ expedição científica brasileira cumpriu, de certo modo, sua
los homens de ciência da época em busca da delimitação do vocação de pôr em prática os ideais do que seria uma ciência
campo científico, de prestígio político e de reconhecim ento nacional.
profissional. O utro estudo recente é o de Marco Antonio
Villa, sobre as secas, que trata principalm ente do malfadado
V iagen s e prod u ção cie n tífic a
episódio dos drom edários.5 Maria Silvia Porto Alegre dedi­
cou um artigo à Comissão do Ceará, nó qual trata da relação As viagens constituem uma das atividades capazes de produzir
que os viajantes estabeleceram com os grupos indígenas e po­ objetos para a ciência. Para tanto, é necessária a execução de
pulares que encontraram, de uma ideologia de modernização uma série de procedimentos que permitam o reconhecimento
do país ;6 daquela atividade como científica: estabelecer o que é digno
A preparação da expedição levou vários anos, em parte por­ de estudo, selecionar, coletar, transportar, classificar, expor,
que Capanema esperava a queda do ministro Marquês de
7. Cf. carta de Capanema a Gonçalves Dias, Rio de Janeiro, 12 de no­
vembro de 1857 in Anais da Biblioteca Nacional (Correspondência passiva
3. Renato Braga, op. cit. de Gonçalves Dias), vol. 91, 1971 p. 156.
4. Maria Margaret Lopes, "‘Mais vale um jegue que me carregue, que 8. Cana de Gonçalves Dias a Teófíio, Ceará, 15 de fevereiro de 1859
um camelo que me derrube... iá no Ceará’". História, Ciências, Saúde - in Anais ..., vol. 84, op. cit., p. 248.
Manguinhos, 111(1), mar-jun, 1996, p. 50-64. 9. o*** Cf. a introdução de Darcy Damasceno a "Os manuscritos do botâ­
5. Marco Àntonio Villa. Vida e morte no sertão. História das secas no nico Freire Alemão" in Anais da Biblioteca Nacional, vol. 81 (separata),
Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo, Ática, 2000. 1964, p. 30, onde o autor comenta a correspondência entre o botânico brasi­
6. Maria Silvia Porto Alegre. “O Brasil descobre os sertões - a expedi­ leiro e Cari Friedrich von Martius.
ção científico de 1859 ao Ceará", Ciências Sociais Hoje, Vértice/Anpocs, 10. Cana de Ferdinand Denis a Gonçalves Dias, Paris, 19 de julho de
1989, P. 200-216. 1862, Anais ..., vol. 91, op. cit., p.256.

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divulgar, utilizar. No século XIX, as potências européias que brasileira, que seguisse o padrão internacional, teria melhores
tinham a direção dos rumos da ciência só reconheciam a vali­ condições de trabalho em Londres e Paris do que no Rio de Ja­
dade dos resultados das viagens quando estivessem de acordo neiro, onde as coleções eram pequenas13 e as bibliotecas in­
com os procedimentos que seus homens de ciência haviam es­ completas e desatualizadas. No Museu Nacional do Rio de Ja­
tabelecido para a produção de objetos científicos. Já no início neiro, desde a administração de Custódio Alves Serrão, a or­
do século XIX o zoólogo Étienne Geoffroy Saint-Hilaire dizia ganização de uma biblioteca especializada em Ciências N atu­
a propósito dos herbários do Museu da Ajuda: "todos são vir­ rais foi uma das principais reivindicações da casa. A demanda
gens, não se deram ao trabalho de abri-los: nem uma planta, tornava-se ainda mais premente, aos olhos de seu diretor, em
nem uma idéia botânica saíram deles.”11 Com a ajuda dos in­ uma época na qual os conhecimentos se transformavam em
vasores franceses, que identificariam e classificariam os espé- velocidade vertiginosa.14
cimens, os portugueses passariam a ter uma "propriedade ci­ As principais instituições científicas do século XIX, além
entífica, quando até então eles possuíam apenas ervas”.12 de concentrarem objetos e dados essenciais para as pesquisas,
Naquele contexto, já haviam se consolidado os pilares bási­ passavam a exigir cada vez mais que os naturalistas aperfeiço­
cos de uma ciência expansionista européia, que podia contar assem técnicas de preparação e tratam ento de objetos natu­
com diversos fatores. Em primeiro lugar, a ciência estava rela­ rais, que se tornavam bastante complexas. Um botânico do
tivamente internacionalizada (ao menos na Europa e suas áre­ século XIX não precisava apenas saber confeccionar um her­
as de maior influência). Diversos naturalistas realizavam tra­ bário, mas deveria também ser apto a dissecar uma planta em
balhos coletivos, para além das fronteiras de seus países, como busca de detalhes morfológicos. Para a zoologia, igualmente,
é o caso do próprio Martius e da organização da F lo ra B r a s ili- os procedimentos originários da anatomia comparada exigiam
e n s is . Desde o final do século XVIII começava a havef um cer­ do naturalista precisão de cirurgião. Desse modo, paulatina­
to consenso, se não com relação à classificação, ao menos com mente, os amadores foram sendo deslocados para a periferia
relação à nomenclatura linèana, o que facilitava o diálogo in­ do desenvolvimento científico, deixando a cena principal para
ternacional e a criação de um campo científico supranacional e naturalistas profissionalizados.
pretensamente neutro. , A História Natural eüropéia e a norte-americana contavam
Além disso, os museus, jardins botânicos e bibliotecas da com o apoio do Estado ou de mecenas privados. Este apoio
Europa e, principalmente a partir da segunda m etade do sécu­ não se dava de forma casual nem ocasional. Ao contrário, hou­
lo XIX, da América do Norte, possibilitavam aos naturalistas a ve uma espécie de aliança entre o exercício do poder e o de­
comparação e a troca de informações. Um estudioso da flora senvolvimento científico, o que se verifica não apenas no pia-

1E Carta aos professores Muséum, Lisboa, 24/05/1808 in E. T. 13. Sobre as coleções do Museu Nacional, ver Maria Margaret Lopes,
Hamy, Líi mission d Etienne Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portu­ cp. cit., cap. 2.
gal (1808). Histoire et documents, Paris, Masson, 1908, p. 45. 14. Cf. Dulce Fernandes da Cunha. História da Biblioteca do Museu
12. t arta a Joseph Banks, Lisboa, s.d., ibidi.p. 51. Nacional. Rio de Janeiro, Museu Nacionaf 1966, p. 25.

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no simbólico, mas também, para não falar dos arsenais de qual seria nomeado bibliotecário, quando da inauguração da
guerra, na alimentação, moradia, controle e estilo de vida das biblioteca, em 1863j. O principal argumeato de Lagos ao con­
populações, na repressão e no lazer. vocar os sábios brasileiros para a realização de uma expedição
Assim, os elos que unem as viagens científicas ã vida cotidi­ científica era a necessidade de pôr fim aos erros difundidos
ana das capitais européias são essenciais para a construção e o pelos naturalistas estrangeiros. Na sessão do IHGB onde fez
reconhecimento dos objetos científicos15. No Brasil, outros sua proposta, o secretário atacou o relato de viagem de Castel-
elos unem outras instâncias de poder. A atuação da CCE ajuda nau, que estivera no Brasil entre 1843 e 1847.
a compreender os caminhos percorridos pelos cientistas e sá­ Considerar uma expedição científica bem-sucedida requer
bios brasileiros na tentativa de estabelecer objetos científicos uma série de relativizações e comparações que podem acabar
válidos. negando a procedência de tal julgamento. No caso da CCE,
quando avaliamos seus traços deixados nas principais institui­
ções científicas e históricas do Rio de Janeiro, sua relevância
Expectativas e Naufrágios torna-se evidente. Não se trata, ainda, de considerar os natu­
Antes da Comissão Científica de Exploração, diversos brasilei­ ralistas brasileiros "incompetentes” diante dos estrangeiros.
ros já haviam percorrido o país com propósitos científicos. A Ao contrário, no plano individual, grande parte dos cientistas
CCE, no entanto, caracterizou-se por seu caráter globalizante e locais havia sido formada na Europa e mantinha-se atualizada.
sua dimensão inusitada. Gonçalves Dias e Raja Gabaglia com­ Desse modo, a avaliação da desempenho científico da Comis­
praram na Europa o que havia de mais moderno e confiável em são não deve ser confundida com sua importância. Interessa
termos de instrumentos científicos. Compraram também uma sobretudo buscar a especificidade da cultura científica nacio­
biblioteca científica, encomendada ao livreiro Brockhaus, de nal, a partir da análise de suas realizações.
Leipizig, contendo uns 200&volumes de livros e periódicos, em O principal meio de divulgação dos trabalhos da CCE, d u ­
grande parte ilustrados, escolhidos a dedo. Esta fabulosa cole­ rante sua realização, foram os jornais da Corte e do Ceará.
ção foi incorporada a partir de 1863 à Biblioteca do Museu Na­ Capanema, sob pseudônimo, publicou regularmente os “Zi-
cional, onde, fora as perdas, se encontra até hoje. guezagues”, no D iá r io d o R io d e J a n e ir o , entre 1860 e 62,
Tamanha despesa só pode ser feita por causa do interesse onde dava conta do andamento dos trabalhos, descrevendo
do Imperador pela expedição e por ter o patrocínio do Institu­ as atividades de todos os membros da equipe. Gonçalves
to Histórico e Geográf ico Brasileiro, uma das mais respeitadas Dias tam bém usou a divulgação pela imprensa: publicou di­
instituições da Corte. Dizem os documentos oficiais que a ex­ versos artigos no J o r n a l d o C o m é r c io , além de outras contri­
pedição nasceu por proposta de Manuel Ferreira Lagos, secre­ buições esparsas. Foi nesses diários - principalmente os jo r­
tário do IHGB e assistente de zoologia do Museu Nacional (do nais cearenses - que tornou-se público o bate-boca entre os
viajantes e seus críticos. Os jornais noticiaram tam bém al­
guns momentos de glória da expedição, corno foi o caso da
15. Sobre este ponto, ver: Lorei ai Kury, Histoire naturelle et noyages
scientifiíjues, ( l 780-1830), Paris, l’Harmattan, 2001. exposição de artigos do Ceará organizada por Manoel Ferrei-

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ra Lagos no Museu Nacional, em setembro de 1861, resenha­ "Não me foi possível executar esses trabalhos, que teriam, sc-
da no D iá r io d o R io d e J a n e ir o , n ’0 C e a r e n s e e no J o r n a l d o guramente urn belo resultado; mas um concurso de circuns­
C o m é r c io . tâncias imprevisto forçou-me a uma retirada a marchas força­
Após o retorno dos viajantes, os resultados da CCE foram das”; "Em S. Pedro não tivemos tem po de ir pesquisar o lugar
divulgados em exposições e em lóruns mais seletos, como as em que se encontrara por acaso uma porção de zinco”; "Essa
reuniões do 111GB. Nestas, Lagos apresentou trabalho sobre explicação chegou, porém tarde, perdi a ocasião de executar
os costumes e a fala dos cearenses e Capanema leu texto sobre trabalhos importantes no Cariri”.16
os indígenas do Ceará, onde analisa as técnicas que empregam A Comissão se desagregou quase que totalm ente. Ao che­
para fabricação de utensílios e produtos. gar ao Rio, Capanema e Lagos tentaram salvar as aparências e,
A publicação dos relatórios aconteceu em 1862. Seu cará­ se não reverter, ao menos abafar as críticas.
ter foi provisório, na medida em que os membros da equipe Na verdade, tanto Capanema quanto Gonçalves Dias
consideravam que ainda não tinham tido tem po suficiente mantiveram sempre um tom irônico ou de desprezo ao se re­
para trabalhar o material coletado. Algumas outras publica­ ferirem à CCE. Mesmo antes da partida, Capanema já trata­
ções se seguiram, em jornais e revistas especializadas (Freire va criticam ente do assunto, ao comparar, em carta a Dias, o
Alemão e "Freirinho”, seu sobrinho). que ganharia como Engenheiro-em-chefe encarregado do
Para Capanema, a Comissão foi ocasião para observações projeto de construção de uma estrada de ferro e os benefí­
geológicas, antropológicas e climáticas. Sua experiência no cios que teria com a Comissão de exploração, que ele chama
Ceará foi-lhe útil alguns anos depois, na grande seca de de "excursão tupi":
1877/1879, quando escreveu diversos artigos de análise do fe­ “Quanto à glória, o nosso papalvo me chamará de homem
nômeno. Mas, apesar da solidez da carreira científica de Capa­ imenso por ter feio um caminho de ferro, enquanto se eu des­
nema, o que ficou registrado de forma mais evidente quanto à cobrir no Ceará que a formação cretácea é mais antiga que a
sua participação na CCE foi o naufrágio do barco Palpite, com carbonífera o que poria o Instituto de França de pernas para o
todas as coleções que formara no Nordeste e com seus álbuns ar, aqui me chamariam de toleirão.”17
de fotografias. Seus inimigos acusaram-no de ter forjado o aci­ Dias deixou inúmeros testem unhos em sua correspon­
dente e, assim, atribuir o malogro de seus trabalhos ao destino dência de que sentia-se como um prisioneiro da expedição.
e não à incompetência ou à preguiça. As críticas insinuavam Em carta a seu amigo Antonio H enriques Leal, em 1861,
que Capanema teria se dedicado mais a orgias que ao trabalho desabafou:
científico.
Sem entrar no mérito das proezas sexuais dos viajantes no
Ceará, acontece que os trabalhos da Comissão de Exploração
16. Guilherme Capanema, “Relatório da Seção Geológica" in Braga,
e a divulgação de seus resultados foram marcados por um tom
op. cif., p. 299, 300, 303.
de lamentação que colocava os viajantes na defensiva. O rela­ 17. í v Carta de Capanema aGonçalves Dias, Praia Grande, 12 de janei­
tório de Capanema é recheado de frases como as que seguem: ro de 1858 in Anais vol. 91, op. at., p. 174.

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imenso por ter reio um cammnu uc ic n v ,
X K . ^ ^1; ^4 4-»-» Ao r < ir f P Í r o r i P T t t í f i m H p O & D íl o r O é> mais nntiaa

“A Comissão do Ceará se está esbandalhando miseravel­ O próprio Freire Alemão assume o tom de lamúria. Grande
mente, mas sem unidade e sem dignidade. De junho em dian­ parte de seus escritos permaneceu sem publicação. A situação
te deixo de fazer parte d ela/’18 agravou-se para o botânico quando seu discípulo e sobrinho
Gonçalves Dias, já doente, embarcou para a Europa, morreu ainda jovem em 1863. Freirinho, como era chamado
onde ficou se tratando nas mais famosas estâncias hidrom i- pelos colegas, foi um dos que mais divulgou as pesquisas reali­
nerais. Em correspondência seguida com Capanema, o poe­ zadas no Ceará.
ta continua, mesmo de longe, a tratar, ainda que sem grande Assim, não houve nenhuma grande publicação com os re­
entusiasmo, dos interesses da Comissão, como, por exem ­ sultados da expedição, embora o material manuscrito e as co­
plo, no caso das estampas de artefatos indígenas, executa­ leções fossem bastante ricos, principalmente no que se refere
das no Imperial Instituto Artístico e coloridas por H enrique ao trabalho de Freire Alemão22, em grande parte deixado ma­
Fleiuss. nuscrito. De Gonçalves Dias, pouca coisa restou, além de arti­
O tom geral da correspondência entre os dois viajantes é gos de jornal e de sua participação na Exposição Nacional de
de te n ta r salvar as aparências, apesar de não mais se in te ­ 1861. De suas andanças pela Amazônia ficou também o R e l a ­
ressarem pelos assuntos do N orte. Capanem a parecia d es­ to d a v ia g e m a o R io N e g r o , inacabado, que ficou manuscrito
prezar o trabalho de Lagos e duvidar de sua com petência até 1943. Do naufrágio do barco Palpite ao desinteresse da
científica: parte de Lagos no que se refere a assuntos estritam ente zooló­
“O Lagos no Instituto leu uma grande descompostura sobre gicos resulta que houve grande dispersão na organização do
o [ilegível] que fez rir, decididamente, é o palhaço da casa (...) material e na publicação dos resultados da expedição.
De ciência ainda nada”.19 No exterior, aguardavam-se notícias da Comissão. Em ju­
Em outra missiva ao poeta, o geólogo atacou novamente: lho de 1862, Ferdinand Denis escreveu a Gonçalves Dias, en­
“O Lagos está prom etendo mandar gravar dois passarinhos tão em Paris, cobrando notícias da Comissão:
infelizmente morreu o Vila Real20 e eles ainda andam voando
pelos matos da aratanha.”21 “Ainda que a sociedade científica da qual o senhor faz
parte não tenha realizado tudo o que prometeu, sei que
sua persistência soube obter muitas informações precio­
sas e eu ficaria contente em conhecer os detalhes de suas
longas expursões. ”23
18. cNw Carta de Gonçalves Dias a Antonio Henriques Leal, [1861],
IHGB in Anais, vol. 84, op. cit., p. 318. 1
19. Carta de Capanema a Gonçalves Dias, Rio de Janeiro, 24 de agos­ 22. Sobre os estudos de Freire Alemão relativos ao Ceará, ver: Mel-
to de 1862 in Anais..., vol.91, op. cit., p. 262. quíades Pinto Paiva, "Os naturalistas e o Ceará: IIÍ - Francisco Freire Alle-
20. Capanema reiere-se preparador da seção de zoologia, João Pedro mão (1 797-1874), Revista do Instituto do Ceará, t. CIX, ano CIX, 1995, p.
Vila Real. 51-88.
21. Carta de Capanema a Dias, Rio de Janeiro, 24 de setembro às tan­ 23. Carta de Ferdinand Denis a Gonçalves Dias, [Paris], 19 de julho
tas da noite 1862. ibid, p., 262. de 1862 in Anais .., vol91, op. cit., p. 256, tradução minha.

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Em novembro de 1862, Gonçalves Dias, então em Dresde, O próprio Lagos lança mão deste argumento para justificar
recebeu uma carta de um certo A. Peterman, de Gotha, pe­ a necessidade de promover uma expedição totalm ente nacio­
dindo-lhe notícias acerca dos resultados da CCE: nal. Na parte histórica dos relatórios da Comissão, esta justifi­
cativa aparece claramente:
“Acompanhei com o mais vivo interesse a extraordinária
expedição que o governo brasileiro enviou, no ano de "Desde os primeiros tempos da colonização do Brasil
1859, ao norte de seu país (...) Infelizmente até agora (...) já acontecia que a terra de Santa Cruz era melhor
pouco ou nada tem sido feito para satisfazer o interesse estudada e apreciada nas viagens e relações dos escrito­
do mundo científico no empreendim ento, já que muito res estrangeiros do que nas memórias dos nossos ante­
poucas notícias foram publicadas sobre o mesm o.”24 passados. ”(...)
(...)“mas aquele fato singular (...) de ser o Brasil mais
A E xaltação N a cio n a l e melhor conhecido pelos estranhos do que pelos nossos
(...) se conserva no mesmo pé. Precisamos estudar o Bra­
Considerando os problemas políticos e os de ordem pessoal,
sil nos autores estrangeiros, consultamos as suas cartas
que dificultaram a integralização de trabalhos que foram efeti­
marítimas até na nossa navegação de cabotagem"...25
vamente realizados durante a viagem, pode-se supor que a mai­
or realização da Comissão tenha sido no sentido do delinea­
Além disso, o relatório afirma que muitas vezes os estrangei­
mento das estratégias de construção de uma ciência nacional,
ros se enganaram, como é o caso das obras de história do Brasil
vinculadas à criação de identidades regionais na segunda m eta­
de Robert Southey e dos trabalhos de diversos viajantes, cri­
de do século XIX. A estratégia de construção de uma ciência
ticados por Lagos na famosa sessão do Instituto Histórico e
nacional presente na atuação da CCE pode ser entendida a
Geográfico. Este tipo de crítica aos trabalhos dos estrangeiros
partir de 3 eixos: a crítica do estrangeiro e a exaltação da inte­
não era novidade. Já em 1819, um dos textos fundadores da
ligência nacional; a valorização do mundo natural e humano do
política científica brasileira alertara:
Brasil (com exceção dos afro-brasileiros); a criação de identi­
dades regionais folclorizadas.
“Ninguém espere que de viagens de meses ou ainda de
O primeiro eixo diz respeito à crítica ao papel preponde­
alguns anos, e muito menos de informações somente,
rante assumido pelos estrangeiros nos estudos científicos so­
resulte uma exata notíçia da história natural desta vasta
bre o Brasil. Num contexto de afirmação das elites imperiais,
região (...) Só de naturalistas dignos e judiciosamente
as instituições locais reivindicam para si o s t a t u s de produto­
empregados no Brasil por toda a vida se poderá esperar
res de conhecimento.
uma série de observações sabiamente feitas, compara-

24. Carta de A. Peterman a Gonçalves Dias in Anais...\o\. 91, op. cit., 25. Trabalhos da Commisão Scientifica de Exploração. Rio de Janeiro,
p,. 271, traduzida pelos editores do original alento. Grifo meu.
* **é Laemmert, 1862, transcrito por Braga, op. cit., p. 165-166.

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mento das estratégias de construção ue to s se enganai a 1 MV) V ^ v '

das e sistematizadas (...) Até desairoso será para os na­ to s”: meruins, micuins, piuns, mosquitos, mutucas, aranhas,
turalistas americanos esperar que os naturalistas euro­ lacraus, cobras, etc. Assim,
peus venham fazer as ricas colheitas científicas do Novo
M undo”.2,1 “Nesta Babel de pragas, a poesia, como passarinho ao cair
da tarde, esconde-se, que ninguém sabe mais notícias
Um corolário da crítica ao trabalho dos estrangeiros, consi­ dela. Engano-me: a poesia do naturalista, botânico ou
derado superficial e apressado, foi a exaltação do gênio nacio­ zoólogo, principalmente se é alemão, resiste a tudo.
nal e a crença de que só um brasileiro seria capaz de com pre­ Martius no Japurá ou Grão-Caquetá, como melhor se
ender o Brasil e suas regiões. chame, fez um poema à solidão das florestas.”
Gonçalves Dias também criticou, à sua maneira, os cientis­
tas europeus. Depois de ter percorrido o Ceará, o poeta foi Não que deixasse de admirar a musa alemã, ao contrário,
para a Amazônia dar prosseguimento a suas pesquisas etnoló­ ele a desvela da seguinte maneira:
gicas, pois não achara quase índios em suas andanças sertane­
jas. De Manaus, pouco antes de voltar ao Rio, e de lá para a Eu­ "È uma dessas donzelas, um pouco inteiriças, mas cheias
ropa, Dias escreve uma longa carta a seu amigo Antônio H en­ de poesia e dignas de acatamento, atravessando as vastas
riques Leal27, para ser publicada. Nesta missiva, um dos seus salas de um antigo castelo feudal, entre retratos que
melhores escritos sobre a Amazônia, Dias estabelece uma amedrontam e amplos rases, que movidos ao sopro de
comparação entre a observação de um brasileiro e a de um es­ vento frígido numa noite de inverno, dão vida e movi­
trangeiro, representados por ele e por um naturalista alemão, mento a um mundo fantástico, ideal e para sempre des­
Martius. O texto inicia com uma descrição do rio Amazonas e vanecido!”
seu entorno, que ele diz assemelhar-se a um imenso arquipéla­
go: “O Amazonas! Ao pronunciar esta palavra todo o coração Do mundo ideal povoado por Kant, Fichte ou Schelling, a
brasileiro estrem ece.” Em seguida, descreve a vegetação, "vi­ musa alemã é evocada pelo poeta e convidada a descer:
gorosa e rica”, que perfuma os ares. Diante de tal natureza, o
descrente abandonaria a imaginação sombria e sentiria orgu­ “Musa, onde me sobes?! - Desce, vadia, senta-te com
lho de se chamar "brasileiro”. Porém, o reverso da moeda é propósito, e conta-nos...
“todo o arsenal do diabo em número infinito de instrumen- Ai! Já me esquecia que se tratava de pragas, micuins,
e miudezas quejandas!”
26'. histmcção para os viajantes e empregados nas colônias sobre a ma­
neira de colher, conservar, c re'meter os objetos de historia natural, Rio de Ja­
Deste modo, Dias ironiza a metafísica alemã e traça para o
neiro, Imprensa Régia, 1819, p. XXV.
27. Carta de Gonçalves Dias a Antonio Henriques Leal, Manaus, 20 conhecimento brasileiro um caminho que é o de conhecimen­
de dezembro dc 186] in Anais, vol.84, op. cit., p. 311-317. (Publicada no to sensorial, concreto, de quem, à beira dos rios e em meio às
jQrnal amazonense O Progressoj florestas, convive com os males que reinam' no país: doenças,

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martius. U texto inicia com uma d e s c r i a A ____ mentn a . _____ I r
<vw«u, 03 0 vida e movj-

insetos, animais peçonhentos, povo ignorante, abandono, po­ dinhos e tem perados pelos ares ainda está por ser
breza. Em seu diário de yiagem ao rio Negro deixou registra­ d esco b erto .”30
das algumas impressões aterradoras, como esta, quando saía
de Tomar: O próprio Lagos critica as esperanças exagerada dos habi­
tantes do Ceará na descoberta da minas de metais e pedras
"A igreja sem janelas e sem fechaduras - os santos e al­ preciosas. Segundo o viajante, eles já possuem três minas ines­
guns pobres paramentos fechados na sacristia. O profes­ gotáveis que não exploram adequadamente: a agricultura, a
sor não tem alunos. É tudo miséria e destruição. O dire­ criação de gado e a pescaria.31 O tema da descoberta de metais
tor dos índios de Marina está no Pará - não deixou quem preciosos no Ceará persegue os viajantes durante toda e reali­
lizesse as suas vezes.”28 zação da expedição e, segundo eles, teria contribuído para o
descrédito da comissão. Provavelmente, as notícias sobre a
A reivindicação de “realidade”, da parte de Dias, não impe­ descoberta de ouro na Califórnia em 1849 e 1850 e o começo
de a exaltação da natureza pátria. Não faltariam exemplos de do g o ld riish aumentaram as expectativas brasileiras. Capane-
passagens em louvor das belezas e riquezas naturais do Brasil. ma comentou ironicamente que a grande afluência para a ses­
No entanto, me parece que o tom geral dos documentos pro­ são do IHGB, onde dariam as primeiras notícias da expedição,
duzidos pelos viajantes parece, por um lado, querer afirmar a se devia à curiosidade de todos para verem os "bichos do
idéia de que o verdadeiro tesouro seria a apropriação racional m ato” ou “queriam admirar os enormes diamantes e as massas
e produtiva da natureza e, pòr outro lado, a crítica da esperan­ de ouro que trazíamos.”32
ça sem fundamento de encontrar no Ceará a Califórnia brasi­ A exaltação nacional nos docum entos relativos à CCE pa­
leira e a refutação da crença do Eldorado ou em algum País de rece deslocada da natureza e focalizada nas pessoas, ou pelo
São Saruê.29 Ao defender sua interpretação das secas do menos na relação que podem estabelecer com a natureza.
"N orte” como um fenômeno benéfico para a fertilidade da Além de estarem sem pre louvando a capacidade dos cien­
terra, Capanema afirma: tistas, os índios e o povo em geral são tratados de forma ex­
trem am ente positiva e mesmo paternalista. Capanem a e
"não são elas [as secas] a causa das grandes calamida­ Gonçalves Dias se interessam particularm ente pelos índios,
des, mas a imprevidência da gente, que não sabe tirar enquanto Lagos investigou o que poderíamos classificar de
proveito da abundante produção de seu solo que as se­ “folclore” do N orte.
cas perpetuam . O país em que os pássaros voam assa-
30. ‘""w. Guilherme Capanema, “Relatório da Seção Geológica”, in Braga,
op. cit., p. 294. Grifo meu.
28. Dias, Antônio Gonçalves. Diário da Viagem ao Rio Negro. Rio de 31. Lagos, Manoel Ferreira, Relatório da Secão Zoológica, in ibid., p.
Janeiro, ABL, 1997, p. 46. 322.
29. Sobre as esperanças de encontrar riquezas minerais no Ceará, ver 32. Carta de Capanema a Gonçalves Dias, Rio de Janeiro, 6 de agosto
Braga, op. cit. de 1861, Anais..., vol 91, op. cit., p. 2^3.

44 45
A abordagem de Gonçalves foi bem diferente do indianismo Guzo, segundo a definição do Dicionário de Caldas Aule-
de gabinete da primeira geração romântica. A investida estética e te, é palavra de origem africana que designa força. A defesa
intelectual do poeta maranhense, que transitou mais ou menos à do vigor físico e cultural dos indígenas se harmoniza com o
vontade entre Paris, o Cariri e o Amazonas, teve suporte antro­ que todos os brasileiros possuem ern comum: a beleza e o en­
pológico. Em sua memória apresentada ao II IGB B ra sil e O c e a - canto do país. Para a Amazônia, o poeta escreveu uma espé­
n i a p já havia defendido a tese de que os Tupis brasileiros têm cie de hino em honra da pátria. A natureza é chamada para
mais capacidade de civilizar-se que os nativos dos mares do Sul. celebrar a nação. Lá
Quando ainda estava na Europa, às voltas com a compra de
livros e material para a Comissão, Dias comprou um craniôme- “respira-se às largas, em ondas, a plenos pulmões,
tro e buscava um cefalômetro que constava de sua lista, embora como se toda a atmosfera não bastasse para satisfazer a
achasse que ambos se equivalessem, já que não há como medir sede de olfato, que se desperta sôfrega, que é poesia
o cérebro propriamento dito. Estes instrumentos seriam neces­ ainda, que se converte em amor! - amor por todos
sários1para seguir as instruções da seção etnográfica34, estabele­ quantos respiram sob este céu abençoado, e cujos p ei­
cidas em 1857, fortemente impregnadas pelas teorias raciais tos, se alguns tendes por perto, arfam acordes convos­
então em voga, onde são citados Camper e Gall. O poeta, de co num sentim ento invisível de amor da pátria e ben e­
todo modo, não parece totalmente convencido da pertinência volência recíproca."37
dos Métodos de medição da antropologia física. Diz que é pos­
sível que exista relação entre a capacidade do crânio e a quanti­ T anto G onçalves Dias quanto C apanem a parecem dis­
dade de matéria cerebral, “ainda que há nisso muito que se lhe postos a considerar os indígenas com o p e rte n c e n te s à na­
diga." Procurava, ainda, no comércio europeu, um goniómetro ção. O geólogo, filho de Roque Schüch, austríaco que vie­
facial, indicado por Lagos, mas acrescenta: ra ao Brasil com a A rquiduquesa Leopoldina, chega a b rin ­
car, em carta a seu amigo, diante da possível reação de es­
(...) “tam bém se o não achar, não é grande a perda, trangeiros para com sua m em ória sobre os índios do C e a ­
pois que não creio m uito no sistema. Seria preferível rá, a ser lida no IH G B , na qual relativiza o co n ceito de ci­
um d i n a m ô m e t r o para ver que o caboclo35 tem mais vilização:
g u z o .’36
“será sobre caboclos da Serra Grande estabelecendo pa­
ralelo entre eles e o povo alemão, é questão de cana e
33. Antonio Gonçalves Dias, "Brazil e Occeania” in Obrasposthwnas,
São Luiz, s. edit., 1869. cerveja já se vê, e tiro conclusão que os selvagens tem
34. Reproduzidas em Braga, op. cit. p. 202 a 209. mais gosto mais asseio mais poesia, e até mais raciocí-
35. Nos documentos relativos às suas viagens Gonçalves Dias se refe­
re aos índios como "caboclos".
36. Carta de Gonçalves Dias a Capanema. Paris, 3 de setembro de 37. Carta de Gonçalves Dias a Antonio Henriques Leal, Manaus, 20
1857, in Anais..., xo\. 84, op. c p. 227. Grilo meu, itálico do original. de dezembro de 1861 in Anais, vol. 84, op. cit., p. 314.

46 47
I I V

nio qu<* osUi gent<> f iviüzada. filegível] são capazes de ! A coleção formada por Gonçalves Dias privileeioti os artefatos
me afogar na pipa de Heícíelberg. " iH inuígenas. A .isca de oojetos enviados pessoamiente por ete in­
clui, por exemplo: garrafas de leite de bacury, de sucúba e de
A tal memória lida no IHGB foi bastante elogiada no relató­ muerá-tunga, dois cueios de mulher (Uaupés), uma cabaça de
rio de 1862 do primeiro-secretário, Cônego Fernandes Pinhe­ veneno do Rio Negro, uma pulseira de ossos enfeitada, um ferro
iro, que assim resume a investida de Capanema: de arpoar tartarugas...“10 Dias preparou, ainda, uma seção deno­
minada “Ethnographia”, onde lista “ornatos indígenas, armas e
“Buscando com inesgotável paciência os vestígios das su­ curiosidades naturais”, que são acompanhados de comentários
cessivas transmigrações das tribos indígenas, (...) chega à sobre cada peça, onde o poeta explica como são feitos e seus
generosa conclusão que os autóctones brasilienses tem usos.41 Foi provavelmente esta coleção que suscitou o comen­
bastante inteligência, grande propensão para as artes m e­ tário de Castro Faria de que Gonçalves Dias fora um pioneiro
cânicas, governam-se por meios filosóficos, regulam-se na constituição de coleções etnográficas.42 Várias das peças co­
por preceitos ditados pelas necessidades práticas, e final­ letadas foram litografadas e expostas na Exposição Antropoló-
m ente são menos bárbaros e cruéis do que os eslavos, cel­ gica Brasileira, realizada no Museu Nacional, em 1882.43
tas, godos e outras hordas, de quem se ufanam de des­ As peças reunidas por Gonçalves Dias ganham sentido se
cender as modernas nações da Europa."39 compreendidas em conjunto com seus escritos sobre a expedi-
; ção ao Ceará e à Amazônia. Os artefatos dos índios são colecio-
i nados como testemunhos de seu grau de civilização. Este proce-
O Im pério vem pára o B rasil i dimento denota pertencimento a uma tradição iniciada no sécu-
A criação de identidades regionais folclorizadas pode ser per­ ! lo das Luzes, que busca compreender as sociedades estudadas a
cebida em várias dimensões dos trabalhos dos viajantes, den­ | partir das descrições fisionômicas e de costumes, mas também a
tre as quais a coleta de material etnográfico para a Exposição ■ partir da realização do inventário e da descrição técnica de arte-
Nacional de 1861, efetuada por Gonçalves Dias e a realização | fatos das diferentes culturas. Michèle Duchet, ao analisar os mé-
da "exposição cearense” organizada por Ferreira Lagos, em se­ i todos de pesquisa dos viajantes-filósofos do Iluminismo, identifi-
tem bro de 1861. | ca uma tendência à descrição minuciosa dos objetos fabricados
Mal chegara do Rio Negro, em outubro de 1861, Gonçalves
Dias já enfrentava a missão de enviar artefatos e produtos na­
40. Cf. Catalogas dos productas naturaes e industruws remettidos das
turais do Amazonas para a Exposição Nacional, no Rio de Ja­
Províncias do Império do Brasil que figurarão na Exposição N acional... de
neiro, que foi inaugurada em dezembro. 1861. Rio de Janeiro, Typ. Nacional, 1862.
41. o * . Ibid.
38. Carta de Capanema a Gonçalves Dias, Rio de Janeiro, 5 de setem­ 42. Luiz de Castro Faria. As Exposições de Antropologia e Arqueologia
bro de 1,862 , Anais..., vol 91, op. cit., p. 266. do Museu Nacional. Dep. de Imprensa Nacional, 1949, p. 10.
39. Relatório do primeiro secretário o sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes 43. Cf. Guia da Exposição Anthropologica Brazileira.... de 1882. Rio
Pinheiro , Revista do IHGB, t. 25, 1862, p. 708. de Janeiro, Leuzinger e Filhos, 1882.

48 49
1
I
f
pelos “selvagens", tujo modelo seria a E n cyclo p éd ie e os artigos As abelhas ao lado dos meles que produzem figuram na ex­
“c a n o t" ou "m a c h in e s ". Segundo a autora, "a coleção de objetos posição do mesmo modo que objetos artesanais, em sua gran­
adquire valor de conhecimento imediato, ela caracteriza um es­ de maioria sem indicação de autoria. Na detalhada descrição
tado de civilização, ela serve de referencial, de índice e dispensa que o D iá r io d o R io d e J a n e ir o faz da “exposição cearense”,
familiaridade anterior.”44 No caso de Dias, há o elogio do “cabo­ certamente tendo contado com a estreita colaboração de La­
clo" e de suas possibilidades técnicas e criativas. gos48, vê-se que o "bom povo" é anônimo. A autora de um ser­
Mais diretam ente ligada à viagem ao Ceará, foi a exposição viço de chá de barro é
que Manoel Ferreira Lagos organizou no Museu Nacional, inau­
gurada em 9 de setembro de 1861. Ela foi noticiada no J o r n a l “uma m ulher surda, muda e de pouca vista; os apare­
d o C o m é r c io , no D iá r io d o R io d e J a n e ir o e um mês depois lhos de que ela se serve para produzir tão variados fei­
n '0 C e a r e n s e . O J o r n a l d o C o m é r c io se desdobra em elogios a tos são os dedos e os instrum entos que estão juntos:
Lagos e sua “exposição cearense", onde, segundo o jornal, fo­ duas favas de m ucunã espetadas em um são os burni-
ram expostos produtos sumamente úteis, como diversas qua­ dores e alguns seixos do rio, com qúe ela grava os enfei­
lidades de mel, ceras e produtos extraídos da carnaúba. O pró­ tes! (..;) E digam ainda que esse bom povo não tem j‘e-
prio Imperador teria ido visitar a exposição, onde ficara por ito nem recursos!”49 M
duas horas “examinando cuidadosamente os objetos e inqui­ .■jj ;; ; j' ij ; ; ;■ ■ ;

rindo com minuciosidade acerca de cada um .”45 O tom do artigo continua assim e descreve rendas e bicos,
Parte desses produtos passou em seguida para a Exposição para a fabricação dos quais foram usados espinhos de cardeiro
Nacional e alguns ainda foram selecionados para a Exposição ou de xiquexique na falta de alfinetes; fala ainda de dezenas
Universal de Londres, de 1862. Em parte graças à "Comissão de artefatos para os quais foram usados madeiras e produtos
das Borboletas”, o Ceará foi a província mais bem representa­ locais. Todos esses belos objetos são comparados a peças m e­
da na Exposição Nacional de 61.46 Lagos é personagem oni­ dievais, à arte "indostânica” ou ao artesanato da Floresta N e­
presente nas longas listagens de produtos das exposições. Lon­ gra. Tudo isso teria mais valor ainda, quando fosse levado em
dres foi invadida por produtos da carnaúba e diferentes espé­ conta, que muitas das cidades de onde vinham os produtos
cies de abelhas do Ceará, sem falar das redes, tecidos de algo­ eram “muito além dos confins do domínio da civilização”,
dão, lenços bordados e rédeas de couro.47

47. Cf. Catalogo dos productos naturaes e industriaes remettidospara


a Exposição Universal em Londres. Rio de Janeiro, Typ. do Diário do Rio de
44. Michèle Duchet. Anthropologie et Histoire au Siècle des Lumières. Janeiro, 1862.
Paris, Albin Michel, 1995, p. 124-125. 48. Lagos deixou pouquíssima coisa escrita. Mesmo o texto sobre o Cea­
45. Jomal do Commercio, 15/09/1861. rá apresentado no ÍHGB se perdeu. Ao que tudo indica, este artigo de jornal re­
46. “Representação da indústria fabril de todo o Brasil nas diversas ex- produz a argumentação de Lagos quanto à importância dos objetos expostos.
posiçõe; nacionais”, tabela reproduzida em Francisco Foot Hardman. Trem 49. Diário do Rio de Janeiro, s. d. e O Cearense (04/10/1861), repro­
Fantasn a. A modernidade na selva. São Paulo, Cia das Letras, 1991, p. 86. duzido por Renato Braga, op. cit., p. 126.

50 Ç7
como é o caso de Inhamum. Aquelas pessoas não conheciam ções pelas ventas porque eu dei para escrever e conti­
os modelos de beleza europeus ou da Corte, daí a conclusão nuarei.”52
do artigo:
As “cousas curiosas” expostas por Lagos vão no sentido de
T u d o isto é disposição inata em gente que nunca viu construir uma imagem naturalizada das classes populares.
um desenho nem uma gravura, a não serem essas d e ­ Como lembra Jacques Revel, “a cultura das elites molda per­
gradantes caricaturas de mau gosto, debaixo das quais m anentem ente a cultura popular que lhe convém.”53 Lagos,
se estampa como por escárnio algum norne de san­ nesse sentido, segue uma tradição já estabelecida na Europa,
to!”50 nas Américas e na literatura de viagens, de considerar o ho­
mem como produto do meio. Sua religião, linguagem, artefa­
Aparentemente, nas concepções veiculadas por Lagos os tos, festas e tudo o mais seriam como que produtos do solo e
habitantes anônimos das cidades do interior são produtos na­ da paisagem.54 Nas Américas, este tipo de interpretação é cor­
turais, como as abelhas ou a carnaúba. Sem se aventurar pela rente na pluma dos viajantes. Na Europa, os métodos do
antropologia física ou histórica, como é o caso de Gonçalves neo-hipocratismo são muitas vezes usados para a compreen­
Dias e Capanema, Lagos prefere a folclorização do “N orte”, são dos populares e habitantes do interior, ou seja, para aque­
com a descrição de tipos pitorescos, como “o vaqueiro”, “o les que não eram considerados civilizados.
pescador” ou "o jangadeiro”. Na exposição do Museu Nacio­ O olhar generoso de Lagos para com os populares do Norte
nal estavam expostos: indica o abismo que os separa. A Corte vai ao interior; o Brasil
! ; ' : ' ' 1

j : í. !
civilizado descobre o Brasil pitoresco, da mesma forma que a
“Üma vestimenta completa de váqueiro, com seu cha­ Europa civilizada descobrira o Brasil pitoresco.
péu, gibão, guarda-peito, pederneiras’’...51 Talvez <j>julgamento dos çearenses não fosse tão falso assim,
a despeitei da opinião do botânico Freire Alemão:
Capanema teve oportunidade de revelar sua opinião sobre
a exposição organizada por Lagos. Em carta a Dias, diz o se­
guinte:

"O Lagos vai fazer exposição de todas as cousas curio­ 52. Carta de Capanema a Gonçalves Dias, Rio de Janeiro, 6 de agosto
de 1861 , Anais..., vol 91, op. cit., p, 244.
sas que trouxe e que comprovem o estado florescente
53. Jacques Revel, “Duas variações acerca do popular” in A Invenção
da indústria cearense, ele talvez leve algumas observa- da sociedade. Lisboa/Rio de Janeiro, Dífei/Bertrand, [1990], p. 47.
54. r>^. Ver, para comparação: A. Burguière, M. Ozoyf e M.-N. Bour-
guet, "Naissance d ’une ethnographie de la France au XVIlIe. siècle”,
Objets et méthodes de l ’histoire de la culture. Actes du colloque fran­
50. Ibid., p. 122. co-hongrois de Tihany, Budapeste, Academia das Ciências, 1977, p.
51. <">*_> Ibid., p. 126. 195-228.

52 53
H. \ W ** *
,1 **

“O povo do Ceará, e talvez de mais outras províncias,


têm idéias muito falsas a respeito do Brasil: para eles
Brasil é Ceará, e tudo o que não [é] cearense é estran­
geiro.'55

Gonçalves Dias notara o mesmo sentimento na população


de São Bernardo das Russas, e escreve ironicamente a propósi­
to de intrigante pergunta que ouvira:

“Dizem que o Império vem para o Brasil? O Brasil já se


vê que é o Ceará, ou melhor S. Bernardo das Russas.
Com esta explicação adivinha-se a charada.”56

55. Francisco Freire Alemão, “Conceitos populares a respeito de te­


souros e riquezas do país" in Os manuscritos cio botânico.,., op. cit., p. 311.
Grifo meu.
56. c'%.» Gonçalves Dias, Jornal cio Comniercio, 10/05/1860. Grifo meu.

54
:Sà

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