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1
A presente reflexão será publicada brevemente, em forma de artigo, na Revista Dialectus.
2
Uma obra exemplar é a de Fernández.
Fernández, Arsenio Ginzo. Protestantismo y filosofia – la recepción de la Reforma em la filosofia
alemana. Universidad de Alcalá, Alcalá, 2000.
3
Hegel, G.W.F. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal. Alianza Editorial, Madrid, 1984.
4
Löwith, K. De Hegel à Nietzsche. Unesp, São Paulo, 2014.
esclarecimentos, passemos, portanto, a uma exposição pormenorizada da obra citada,
operando um diálogo da mesma com outros filósofos da tradição moderna germânica.
Heinrich Heine, célebre poeta e escritor alemão publica, no ano de 1834, uma
obra intitulada Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha. Seu
principal intuito é lançar uma resposta à obra De L´Allemagne de Mme. Staël5, cujo
texto caracteriza-se por demonstrar uma visão majestosa da história do pensamento
germânico. Desse modo, fica muito evidente aqui o objetivo do escritor alemão: ser lido
pelo público francês e explicitar a ele um pouco da história do pensamento alemão. Por
isso é que, de forma absolutamente planejada, a obra é destinada a tal público e surge,
originalmente, em revistas francesas.
5
Recentemente traduzido no Brasil:
Madame de Staël. Da Alemanha. Unesp, São Paulo, 2016.
Hegel surge aqui, mais do que como a teia de aranha de Berlim, mas como o
pensador que introduzirá, notadamente na sua Fenomenologia do espírito, o célebre e
complexo conceito de consciência de si. Todavia, o que aqui interessa para Heine é
apenas apontar que, no suposto Jardim do Éden, a serpente e suas propostas de
sabedoria já preconizaram em pelos menos seis mil anos antes tudo aquilo que o célebre
professor proporia no futuro. Por isso, de forma absolutamente jocosa, ele compara a
consciência de si em Eva como um desejo de comprar belos vestidos:
Tais observações espirituosas, fornecem o tom da obra de Heine. Seu intuito, tal
como anuncia o título de sua obra, é tratar da temática da religião e da filosofia na
Alemanha. Entretanto, além da estratégia irônica prévia de defesa, ele lança aqui um
novo apelo para as almas pias. A despeito de não ter nunca experimentado ou
vivenciado um milagre, ele almeja trazer algumas contribuições para as discussões
acerca do pensamento alemão e suas origens:
Novamente, de forma irônica, Heine pede perdão às almas piedosas e, tal como
Feuerbach o faz na Essência do cristianismo6, aponta que a essência do cristianismo
reside numa ideia. Desse modo, mesmo toda a crítica de autores como Voltaire nada
mais conseguiram fazer do que atingir o corpo já debilitado do cristianismo. Todavia,
não foram capazes de ferir a sua essência, que reside numa ideia e, por isso, como bem
sabia Feuerbach, possui uma força:
6
Feuerbach, L. A Essência do cristianismo. Vozes, Petrópolis, 2009.
humanidade; sobre a Virgem Maria, a mais bela flor da poesia; todo o
Dictionnaire de flechas filosóficas que disparou contra clero e
confraria, feriram apenas o corpo agonizante do cristianismo, não a
sua essência íntima, o seu espírito mais profundo, a sua alma eterna
(Heine, 1991, p. 20-21).
7
Nietzsche, F. O Anticristo. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
8
Freud, S. O futuro de uma ilusão. LPM, Porto Alegre, 2010.
ardente sensualidade. Afirmo com certeza que nossos descendentes
serão mais felizes e belos do que nós. Pois acredito no progresso,
acredito que a humanidade esteja destinada à felicidade e, por isso,
tenho sobre a divindade uma opinião mais favorável do que essa gente
pia, que presume que criou o homem apenas para o sofrimento (Heine,
1991, p. 23-24).
Sua esperança possui ainda uma conotação política. Por isso, não fortuitamente,
Heine aponta aqui, com forte ironia, alguns aspectos de como a religião pode ser
utilizada pelos poderosos para a dominação dos pobres. Com efeito, ele antecipa aqui
alguns aspectos da crítica que Marx, baseando-se em Feuerbach, realizará da religião
enquanto ideologia e instrumento repressivo:
No entender de Heine, a Igreja, durante toda a Idade Média, zelou pela ideia do
bem em toda a cristandade europeia mantendo, desse modo, uma certa unidade na
compreensão do bem. Contudo, o mesmo não ocorreu em relação a ideia de mal, que se
apresentou de forma variada e diversificada. Um exemplo cabal disso é que na
Alemanha a ideia de mal é bastante diferente das concepções mais latinas. Para o
pensador alemão, tal coisa ocorre em virtude do cristianismo nunca ter rejeitado
totalmente as divindades nacionais:
9
Benjamin, W. Origem do drama trágico alemão. Autêntica, Belo Horizonte, 2013.
se sustente na Alemanha por mais tempo do que o cristianismo, que,
diferentemente dela, não se enraíza na nacionalidade. Na época da
Reforma, desapareceu muito rapidamente a crença nas lendas
católicas, mas de maneira alguma a crença na magia e bruxaria.
Lutero, segundo Heine, é um típico frade nórdico. Por isso, ele jamais poderia
compreender alguém como o Papa Leão X. Aliás, parece não haver nenhuma
possibilidade de que um pudesse entender o outro. Lutero é, tal como também defenderá
Nietzsche, um típico frade alemão que não consegue enxergar a superação do
cristianismo na sua própria sede10. Leão X é um típico representante do cristianismo da
decadência que também não é capaz de enxergar quais eram os valores reivindicados
por Lutero. Por isso, de forma absolutamente perspicaz e humorística, Heine toma a
defesa do Papa Leão X:
10
Refiro-me especialmente a parte final do aforismo 61 (pp.78-79).
Nós, nórdicos, somos de sangue frio e não precisávamos de tantas
cartas de indulgência quantas o paternalmente solícito Leão nos
enviava. O clima nos facilitava o exercício das virtudes cristãs e, em
31 de Outubro de 1517, quando Lutero afixou suas teses contra as
indulgências nas portas da Igreja de Agostinho, o fosso da cidade de
Wittenberg talvez já estivesse gelado e nele talvez já se pudesse andar
sobre patins que, sendo um prazer bastante frio, não é portanto, um
pecado (Heine, 1991, p. 35).
Mas por que o espiritualismo nos é tão repulsivo? É algo tão ruim?
Absolutamente. Essência de rosas é algo precioso, e um pequeno
frasco dela é refrescante quando se tem de consumir seus dias nos
aposentos reservados de um harém. Não queremos, no entanto, que se
pisem e espezinhem todas as rosas desta vida para que se obtenham
algumas gotas de essência, por mais reconfortante que seja seu efeito
(Heine, 1991, p. 37-38).
A interpretação de Lutero feita por Heine pode ser lida quase que em uníssono
com a interpretação nietzschiana do reformador. Para ambos, Lutero é mais do que um
simples homem, mas um símbolo de uma época, um monge que nega a vida e seus
instintos:
Esse homem era Martinho Lutero, o pobre monge escolhido pela
Providência para romper o poderio mundial romano, contra o qual os
imperadores mais poderosos e os sábios mais astutos já haviam
inutilmente lutado. A Providência, no entanto, sabe muito bem em que
ombros põe os seus fardos; aqui não era necessário apenas força
espiritual, mas também força física. Para suportar os esforços dessa
tarefa, era preciso de um corpo fortalecido desde a juventude pela
austeridade e castidade monásticas (Heine, 1991, p. 39).
Lutero se torna o símbolo alemão por excelência. Seu caráter, suas virtudes e
seus defeitos passam a ser a marca de todos os alemães. Seu modo severo é ao mesmo
tempo cordial, sua crença contrasta com suas dúvidas, seu jeito místico faz oposição ao
seu modo empreendedor. O reformador traz em si todas as contradições que formam o
protótipo do novo homem alemão: “O mesmo homem que podia xingar como uma
vendedora de peixes, também podia ser afável como uma virgem terna” (Heine, 1991, p.
40). Entretanto, o que Heine destaca é que Lutero vai além da discussão entre
espiritualismo e sensualismo. O reformador apresenta dois pontos centrais para uma
nova discussão da religião: a Bíblia como fonte única de autoridade e os argumentos
racionais. Com tais elementos, Lutero acaba com qualquer perspectiva indo-gnóstica no
cristianismo e inicia o chamado cristianismo evangélico, baseado nas crenças judaico-
deístas. A partir de tais teses que, primeiramente pareciam versar apenas sobre religião,
pode-se agora discutir uma infinidade de outras coisas, inclusive, a própria legitimidade
da fé:
A razão adquire em Lutero, segundo Heine, o papel de uma juíza. Dela procede
“o direito de explicar a Bíblia, e ela, a razão, foi reconhecida como juíza suprema em
todos os litígios religiosos” (Heine, 1991, p. 43). Novamente Lutero é aqui inovador,
rompendo com a antiga tradição escolástica, que separava as verdades em duas
modalidades: verdades teológicas e verdades filosóficas. Por isso, Heine louva Lutero
pela liberdade de pensamento propiciada e compreende que a Reforma foi de vital
importância para todo esse processo.
Lutero é mais do que apenas um reformador religioso, ainda que isso tenha
alterado não somente o ambiente religioso, mas todo um contexto histórico, político e
filosófico. Para Heine, ele é o criador da língua alemã e assim se firmou com a sua
tradução da Bíblia para o seu idioma natal. Além disso, o reformador é ainda um amante
da música, um teólogo que fazia música ao escrever. Por isso, não fortuitamente, uma
das marcas características do protestantismo é o apreço pela música, pelas melodias
elaboradas e pelas letras claras e expressivas.
A literatura alemã antes de Lutero se caracteriza por ter uma marcada luta entre
o cristianismo e a religião nórdica e por espelhar essa convivência, notadamente nos
épicos medievais. Depois de Lutero surge a chamada verdadeira religião, isto é, ela
estimula a prática, por isso advém daí uma nova filosofia, a indústria e o novo
comércio. Surge o conceito de clássico e as divisões históricas parecem ficar mais
evidentes. Entretanto, o ponto central no entender de Heine está na questão do
indivíduo. O luteranismo coloca o sujeito diante de Deus e, por isso, ajuda no
nascimento daquilo que conhecemos como filosofia moderna e como ceticismo.
11
Leibniz, G.W. Ensaios de teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do
mal, Estação Liberdade, São Paulo, 2013.
Entretanto, o mesmo Wolff teve relações com o movimento religioso pietista,
que se caracterizava por uma busca da piedade cristã em meio a uma religião que se
acreditava excessivamente racionalizada. Para Heine, ao assumir tal postura, o pensador
antecipa-se a Hegel, que realizará a efetiva junção entre razão e religião. Segundo nosso
autor, trata-se de uma relação imprópria, isto é, Wolff se serve da religião e essa se
serve do seu suporte intelectual, não se dando conta de que esse também é seu caminho
de destruição: “A partir do instante em que uma religião busca auxilio na filosofia, seu
declínio é inevitável. Ela procura se defender e se enreda cada vez mais na destruição”
(Heine, 1991, p. 75).
12
Espinosa.B. Tratado teológico-político. Martins Fontes, São Paulo, 2008.
... a Alemanha é o solo mais fértil para o panteísmo; é a religião de nossos
maiores pensadores, de nossos melhores artistas, e lá o deísmo já há muito
tempo ruiu na teoria, conforme relatarei mais tarde. Como muitas outras
coisas, ainda se conserva, sem nenhuma justificação racional, apenas na
massa irrefletida. Ninguém diz, mas todo mundo sabe; o panteísmo é o
segredo público na Alemanha. Na verdade, já estamos muito crescidos para o
deísmo. Somos livres e não queremos um tirano tonitruante. Somos
emancipados e não precisamos de cuidados paternais. Também não somos
obras mal feitas de um grande mecânico. O deísmo é a religião para servos,
para crianças, para genebrinos, para relojoeiros (Heine, 1991, p. 68).
O quinto dos filósofos citados por Heine será Jacobi. Tal pensador caracteriza-se
por sua crítica violenta a Espinosa e por abdicar do uso da razão, colocando-a sempre
numa posição secundária. Por isso, nosso autor afirma que o mesmo nada é se
comparado com a grandiosidade de Espinosa e que, além disso, ele não passa de uma
grande toupeira: “Que toupeira! Não viu que a razão se assemelha ao sol eterno, que
ilumina sua trajetória com luz própria, enquanto passeia seguro lá no alto. Não há nada
que se compare ao ódio piedoso, benevolente, do pequeno Jacobi contra o grande
Espinosa” (Heine, 1991, p. 69).
Dois outros autores enumerados aqui apenas de forma crítica e sem nenhuma
relevância para a filosofia alemã são Paracelso e Jacob Bohme. O primeiro se
caracteriza por seu charlatanismo e por seus experimentos suspeitos em alquimia. O
segundo teria relações com o movimento teosófico, estando mais próximo do
misticismo.
Antes de citar o oitavo pensador, que será Lessing, Heine faz uma nova
digressão, desta vez, sobre a polêmica entre pietistas e ortodoxos no pensamento
religioso alemão. A ortodoxia protestante se estabeleceu logo após a formação efetiva
da nova Igreja e, aos poucos, foi implantando sua legislação, seu cânone e seus dogmas.
O protestantismo, vagarosamente, começa a se tornar uma religião legalista e sem
nenhuma afetividade ou relação com as coisas da vida cristã. Em reação a tal
movimento, surge um grupo denominado de pietistas. O intuito de tal grupo é
reintroduzir no cristianismo protestante a afetividade e a religião do coração e da
emoção. Seu principal expoente foi Spener, célebre autor da obra Pia Desideria13. O
movimento de piedade teve uma importância crucial na história do protestantismo,
13
Spener, P.J. Pia Desideria. Imprensa Metodista, S.Bernardo do Campo, 1985.
estimulando-o às obras sociais e missionárias, gerando reflexos, inclusive, no resto da
Europa e na América do Norte.
Por fim, ele analisa o oitavo pensador: Lessing, que será sobejamente elogiado.
Sua formação privilegiada é bastante admirada e louvada. Lessing, desde os primeiros
anos, estudou línguas clássicas e humanidades em geral, destacando-se, ainda muito
jovem, como um brilhante pensador. A influência de Espinosa em sua obra é marcante.
Entretanto, sua interpretação de Leibniz será ainda mais forte. Para Lessing, tal como
para Leibniz, existiam duas modalidades de razão: verdades de fato e verdades de razão.
O cristianismo estaria ligado ao primeiro tipo, enquanto a matemática estaria ligada ao
segundo tipo. Com tal distinção, Lessing cria um espaço racional para a fé cristã, mas,
ao mesmo tempo, aponta que há um grande fosso que separa fé e razão, tal como fará,
anos mais tarde, também por sua influência direta, o dinamarquês Kierkegaard em
Temor e tremor14. Por isso, o cristianismo seria uma proposta paradoxal que se chocaria
com a razão e, nesse sentido, sua tese rememora também o pensamento de Pascal, mas
antecipa o pensamento do autor de Copenhague, que considera o cristianismo como um
escândalo (visto que supera qualquer lei) e como uma loucura (visto que ultrapassa a
racionalidade à moda grega).
Digo que Lessing deu continuidade a Lutero. Depois que Lutero nos
libertou da tradição e elevou a Bíblia à única fonte do cristianismo,
surgiu, como já relatei acima, um rígido culto da palavra, e a letra da
Bíblia imperou tão tiranicamente quanto outrora a tradição. Lessing
foi o que mais contribui para que se libertasse dessa letra tirânica.
Assim como Lutero não foi o único a combater a tradição, Lessing
também não lutou sozinho, mas foi o mais violento contra a letra
(Heine, 1991, p. 85).
14
Kierkegaard, S.A. Temor e tremor. Relógio D´Água, Lisboa, 2009.
Heine começa o livro terceiro com uma citação curiosa: uma referência indireta
à obra Frankenstein ou o moderno Prometeu de Mary Shelley15. Sua metáfora é cheia
de significado. Trata-se de uma crítica à concepção deísta e mecanicista inglesa, que se
julgava capaz de criar a própria vida.
Quatro pensadores serão abordados neste livro: Kant, Fichte, Schelling e Hegel.
Sobre Kant, Heine fornece fartos dados bibliográficos e anedóticos, relembrando os
seus célebres hábitos severos, sua pontualidade e sua postura celibatária. Entretanto,
para além de tais considerações, há uma importante percepção da importância da Crítica
da razão pura16 no cenário filosófico germânico: “Dizem que os espíritos noturnos
ficam aterrorizados se se lhes apresentasse a Crítica da Razão Pura de Kant! Esse livro
é a espada com que se executou o deísmo na Alemanha” (Heine, 1991, p. 89)
Kant também opera, com sua filosofia, algo que ele mesmo denominou como a
revolução copernicana na história do pensamento. Até ele, os filósofos se dividiam em
dois grupos: inatistas e empiristas. Os primeiros se caracterizam como um grupo que ia
de Platão a Descartes, tendo como sua marca a defesa das idéias inatas como forma de
conhecimento. O segundo grupo se caracteriza por defender que as idéia se formavam
na mente na medida em que percebemos as coisas. Tal grupo possuía uma variação que
ia desde alguns antigos pré-socráticos até autores como Hobbes, Locke, Hume. Kant
aponta o acerto e o erro das duas posições. Para ele, nós temos a forma do
15
Shelley,M. Frankenstein ou o moderno Prometeu. LPM, Porto Alegre, 1997.
16
Kant, I. Crítica da razão pura. Martins Fontes, São Paulo, 1993.
conhecimento, mas os conteúdos são dados pela experiência. Desse modo, o pensador
concilia os dois polos e cria uma divisão na história da filosofia ocidental.
Contudo, a despeito de todos os seus méritos, Heine julga que a filosofia de Kant
conduziria naturalmente a um processo de descrença, mas ele, ao contrário de alguns
outros filósofos, não teria tido a coragem de seguir adiante nas suas investigações e
negar, por meio de sua filosofia, a crença em Deus:
17
Fichte, J.G. Fundamentos da doutrina da ciência completa. Colibri, Lisboa, 1996.
De fato não se sabe ao certo se é por ironia ou mero delírio que Fichte
depura o amado Deus de todo ingrediente sensível e, apenas enquanto
tal, possível! A doutrina-da-ciência, diz, não conhece outro ser senão
o ser sensível e, uma vez que só se pode atribuir um ser a objetos da
experiência, esse predicado não pode ser aplicado a Deus. Por isso, o
Deus fichtiano não possui existência alguma, não é, manifesta-se
apenas como puro agir, como uma ordem de eventos, como ordo
ordinans, como lei do universo (Heine, 1991, p. 112).
Conclusão
Seguindo tal senda, Löwith é mais um dos pensadores que irá explorar o
conceito de secularização como algo que brota do solo alemão protestante e, nesse
sentido, mesmo o ateísmo pós-hegeliano do século XIX seria, aos seus olhos, um filho
da Reforma Protestante. Tal tese é defendida com vigor tanto no seu De Hegel a
Nietzsche, onde há menções explicitadas a Heine19 e também no seu O Sentido da
história, onde o Manifesto Comunista de Marx e Engels, por exemplo, nada mais seria
do que uma espécie de novo evangelho secularizado, usando as mesmas categorias do
messianismo judaico e agora aplicando-as ao contexto político20.
18
Marramao, G. Céu e Terra – genealogia da secularização. Unesp, São Paulo, 1997.
19
Notadamente nas pp. 52-53.
20
Notadamente o capítulo II da seguinte obra:
Um outro tipo de exercício, bastante singular e meritório, nos é apresentado pelo
espanhol Arsenio Guinzo Fernández. Com extrema argúcia – e certamente inspirado nas
reflexões de Heine e de Hegel – o autor desenvolve no seu Protestantismo e filosofia,
um inventário que vai dos dias de Lutero a Schopenhauer, mostrando como a recepção
luterana modulou, na verdade, toda a moderna filosofia alemã. Por isso, Nietzsche
parece ter alguma razão quando, no aforismo 10 do Anticristo, afirma que “o pastor
protestante é o avô da filosofia alemã e o protestantismo é o seu peccatum originale”
(Nietzsche, 2007, p.16). Desse modo, o que parece sempre haver fascinado os
estudiosos da filosofia alemã é um encantamento pela história dos seus próprios
pecados ancestrais, que se multiplicaram em inúmeras filosofias.
Referências bibliográficas
21
Trabalho publicado em: Bezerra, C. (org). Estudos sobre Religião, UFS, Aracaju, 2009, pp.25-34.
consciente da sua liberdade, deseja o universal e aquilo que é eterno em si e para si.
Segundo ele, o protestantismo representa uma espécie de sol que se segue após os
períodos mais sombrios da Idade Média. Seu nascedouro está diretamente ligado a uma
causa: a corrupção da Igreja no período medieval. Assim sendo, para sua correta
compreensão é preciso examinar as suas fontes e também estar consciente de que ele é
um movimento que conseguiu ir além da suas próprias fronteiras, reformando até
mesmo o seu antagonista:
A doutrina luterana da comunhão, por exemplo, difere tanto dos demais linhas
da Reforma como dos católicos. Algumas concepções da Reforma, inspiradas
notadamente na teologia de Zwínglio, afirmam existir na Eucaristia apenas a recordação
da presença de Cristo, isto é, trata-se apenas de um ato memorial e de uma lembrança.
Já a concepção católica afirma a presença real de Cristo na Eucaristia, ocorrendo,
inclusive, uma transubstanciação, isto é, uma alteração dos seus elementos
componentes. Em outras palavras, o pão torna-se totalmente o corpo de Cristo e o vinho
torna-se completamente o seu sangue. No entender de Hegel, Lutero rechaça a
concepção de alguns reformados que enxergam na comunhão apenas uma lembrança ou
recordação, mas também não subscreve a concepção católica de transubstanciação. A
concepção luterana afirma a presença real de Cristo na Eucaristia, tal como os católicos,
mas afirma que tal presença se dá na fé e no espírito e não materialmente.
Hegel, evocando aqui algumas das teses de Joaquim de Fiore, analisa a Reforma
como uma espécie de Reino do Espírito, contrapondo-a ao período medieval que seria,
no seu entender, um período marcado por discussões acerca do Reino do Filho. A
Reforma, ao romper com a antiga concepção medieval, sugere não apenas a liberdade
do Espírito, mas também a busca por um universal. Lutero apresenta, a partir da sua
própria vida, um caminho em busca do Espírito, partindo da subjetividade e tentando
objetivar-se. Um dos conteúdos centrais da Reforma luterana é a determinação que esta
fornece ao homem para que o mesmo seja livre. Este será um dos princípios da Idade
Moderna, isto é, a autonomia do sujeito, que sempre pensa o mundo a partir da sua
subjetividade. Nesse sentido, Lutero opera uma reconciliação do mundo com a religião,
contribuindo com a fundamentação racional do Estado moderno:
Ou, tal como Nietzsche, preferia observar, com igual ironia, Lutero seria uma
espécie de monge fracassado, alguém incapaz de enxergar as boas conquistas do
Renascimento e que, ao invés de agradecer aos céus, pelo final do cristianismo na sua
própria sede, decide reformá-lo:
Referências bibliográficas
22
FEUERBACH, Ludwig. Escritos en torno a La esencia del cristianismo. Tradução e notas de
Luis Miguel Arroyo Arrayás. Madrid: Tecnos, 2001.
Luis Arroyo defende a tese de que o ateísmo de Feuerbach é extraído do próprio
cristianismo, isto é, Lutero seria uma espécie de precursor da descrença e o primeiro a
operar tal coisa de modo tão categórico segundo o pensador 23. O cristianismo, tal como
Feuerbach o concebe, representa o fim da crença em qualquer divindade e, nesse
sentido, até mesmo ele é uma espécie de ateísmo, ainda que tal coisa não fique clara ou
seja diretamente confessada. Por isso é que Max Stirner, autor da célebre afirmação de
que Feuerbach era um piedoso ateu, parece ter algum fundamento na sua brincadeira
quando diz que até o ateísmo de tal autor se afirma de modo religioso. Afinal, o
desencanto também é uma faceta da religião, talvez da nova religião.
Julgamos que há aqui uma importante chave para a compreensão de tal questão:
a diferença entre o que o protestantismo e o catolicismo compreendem por Deus. O
catolicismo acredita num Deus para si, ao passo que o Deus protestante é voltado para o
homem. Em outras palavras, O Deus católico é um Deus-Homem, enquanto o
23
ARROYO ARRAYÁS, Luis Miguel. “Yo soy Lutero II” – La presencia en la obra de L.
Feuerbach. Salamanca: Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 1991.
protestante acredita num Homem-Deus. Logo, o protestantismo é, por definição, mais
próximo do aspecto antropológico.
Desse modo, julgamos que é em tal contexto que se insere a obra A essência da
fé segundo Lutero. Nela discute-se claramente não apenas os escritos do reformador e
sua interpretação, mas o próprio significado da proposta feuerbachiana de uma filosofia
do futuro ou de negação da antiga filosofia. Desse modo, cabe notar que o princípio
sensualista é proveniente de Lutero. A ênfase na encarnação de Cristo é uma prova
contundente de tal tese. Ela é a prova da tese do Homem-Deus. Por isso, Cristo, segunda
pessoa da trindade, adquire um peso fundamental em toda a obra feuerbachiana. Para
autores como J. Glasse e H.H. Brandhorst a ênfase do pensador na figura de Lutero
também não é gratuita. Tal coisa se daria por uma afirmação política e estratégica
dentro do contexto prussiano. Lutero é o ponto de partida da modernidade alemã, com
tudo o que isso possa significar para mais ou para menos.
Nesse sentido, Deus e o homem não são contrários segundo cogita Feuerbach. A
necessidade que os homens possuem de Deus se dá por ele ter aquilo que os homens
não têm e almejam possuir. Caso não fosse assim, a existência de Deus seria
completamente indiferente para os seres humanos que, a rigor, não teriam como se
aproximar do ser divino. Note-se, por exemplo, que as propriedades que atribuímos aos
homens são gradativamente menores que as propriedades atribuídas a Deus. Conceitos
como bondade e justiça, por exemplo, são propriedades fundamentais de Deus e, em
grau menor, também são atribuídas aos homens.
Ser bom equivale a amar. Logo, Deus, o sumo bem, só pode ser amor. A saída
protestante parece retirar o homem do abstrato, pois passa a enfatizar não apenas a
figura de Deus como criador da natureza, mas também como criador do homem. Se
Deus é bom para o homem tal coisa se dá em virtude dele possuir sentimentos humanos.
A prova cabal de tal tese é a encarnação de Cristo. Nela a própria idéia do limite da
morte é atenuada e se torna reconciliação ou liberação. Por isso, não fortuitamente,
mesmo nos sacramentos, a imaginação precisa se materializar e, por esse motivo, o pão,
o vinho e a água aparecem enfaticamente marcados.
Um Deus que se faz propositalmente carente por amor parece ser a marca do
Cristo luterano. Nesse sentido, o amor ao homem passa a ser a essência suprema do ser
divino. O amor é visto como uma obra, como um esforço. Deus se aproxima do homem
ao fazer tal esforço. Feuerbach compreende tal coisa como humanização do divino,
como desencanto.
24
Tal debate com Schleiermacher aparece explicitamente na Essência do Cristianismo.
Referências bibliográficas
Antes de uma aproximação mais efetiva dessa obra kierkegaardiana, resta talvez
uma pergunta: pode haver um Cristo da filosofia e outro do culto e da religião?
Como bem sugere Jaeger, nas primeiras linhas de Cristianismo primitivo e paideia
grega (Jaeger, 1991, pp. 13 e ss.), o debate entre cristianismo e cultura é gigantesco
e, talvez, já tenha sido melhor realizado, por exemplo, por autores protestantes do
século XX como Emil Brunner e Karl Barth. Entretanto, como já pudemos atestar
também em Cassirer, tal questão é, antes de mais nada, igualmente filosófica, visto
que é a recuperação da discussão entre filosofia e teologia, entre temas que transitam
entre a razão e a fé revelada. Desse modo, a obra O Exercício do cristianismo de
Kierkegaard comporta tal contexto. Assim, a questão que pode ser o mote dessa
obra kierkegaardiana é: haveria uma proposta filosófica a partir de Cristo? Se
existisse, em qual grau seria possível?
25
Trabalho publicado em Revista Brasileira de Filosofia da Religião, aqui apresentada com pequenas
modificações: http://abfr.org/revista/index.php/rbfr/article/view/71
Seguindo uma senda antiga, já aponta por Santo Agostinho, Erasmo e
desenvolvida mais fortemente por Hegel nas Lições de Filosofia da Religião,
Kierkegaard é mais um dos autores que fará uma comparação entre a figura de
Sócrates e Cristo. Contudo, mesmo consciente da analogia e realizando-a mais
detidamente na sua obra O Conceito de Ironia, ele próprio faz tal aproximação,
ciente também das distâncias e, como gostava de afirmar, das dissemelhanças entre
o filósofo grego e a figura de Cristo. Com efeito, Kierkegaard será um crítico severo
do ideal de um Cristo filosófico que, na sua percepção, mais do que talvez afirmar-
se na obra do próprio Hegel, foi coroado no hegelianismo do século XIX. Nepi,
estudioso italiano da obra de Kierkegaard, aponta com clareza a crítica produzida
pelo autor de Copenhague:
26
Uma discussão instigante da temática pode ser encontrada no seguinte artigo:
Possen, D.D. The Work of Anti-Climacus in International Kierkegaard Commentary – Practice in
Christianity- vol. 20, ed. Robert L. Perkins, Mercer University Press, Macon, 2004, pp. 187-209.
que, um século antes, tentou pensar o cristianismo e a subjetividade de modo diverso
daquilo que foi proposto pelas teses hegelianas e sistemáticas do século XIX. Por isso, e
não despropositadamente, Lessing apontará que existe uma diferença fundamental entre
a religião de Cristo e a religião cristã.
Logo em seu início, há uma parte intitulada invocação que, de modo intencional,
assemelha-se à estrutura de uma liturgia ou ao chamamento dos fiéis para uma
cerimônia religiosa. Em tal invocação, recorda-se que a passagem de Jesus Cristo pelo
mundo não se tornou apenas passado histórico, mas algo muito mais intenso. Em tal
intensidade, reside o que o autor denominará de escândalo do cristianismo. Após tal
invocação, há um convite para, tal como diz o Evangelho, que “venham todos os
cansados e oprimidos” (Mateus 11:28).
O escândalo se torna ainda mais chocante quando se descobre que aquele que
convida é Jesus Cristo, um homem terreno. Muitos admiram o Jesus celestial, mas
poucos reconheceriam um convite feito pelo Jesus terreno e que assume a forma do
servo. Anti-Climacus chama a atenção para o fato de que o retorno de Jesus para a
glória celestial não é objeto de estudo, mas sim a sua estadia terrena. As palavras de
Jesus só serão verdadeiras se ele falar com os homens no seu rebaixamento (kenôsis) e
não na sua glorificação. Por isso, devemos captar suas palavras no breve intervalo entre
seu rebaixamento e ascensão. Assim sendo, nada se pode afirmar deste Cristo pela
história e aqui residem os seus limites. Ele é paradoxo, objeto da fé. Afinal, toda
transmissão histórica transmite um dado saber e Cristo é o saber em si.
Pode-se, então, provar historicamente a divindade de Cristo? Ora, tal coisa seria
impensável, uma vez que se tem que enfrentar a terrível contradição de querer falar
sobre a divindade de um homem particular, ou seja, Jesus de Nazaré. Obviamente que o
pensamento de boa parte das pessoas achará tal coisa ilógica ou escandalizadora. Tomar
um homem particular por Deus é promover o escândalo e posicionar-se contrariamente
à razão. Desse modo, um erro comum ocorrido na história da Igreja é que ora se toma
Jesus de modo demasiado divino, ora ele é tomado de forma demasiadamente humana.
Querer usar a história para provar que Cristo era Deus é um projeto fadado ao fracasso.
Antes devemos nos perguntar se a continuidade da vida de Cristo é mais importante do
que sua vida terrena. Para Anti-Climacus, sua importância reside exatamente aí: Deus se
revela na forma de um homem comum, ou seja, a ênfase deve ser feita no Deus que vem
na forma de um homem.
É certo que em Sócrates, por exemplo, o significado de sua vida importa mais do
que suas palavras. Já na figura de Cristo é evidente que a mensagem é de suma
importância, mas esta também é inseparável do mensageiro que é o servo e, ao mesmo
tempo, o salvador. Afinal, Cristo é o servo que transmite e é a própria verdade:
Tal ideia do Cristo enquanto sofredor precisa ser recuperada com urgência, visto
que a cristandade a aboliu e decretou, dessa forma, o fim do escândalo. Somente o
rebaixamento de Cristo é a real condição para compreender a sua mensagem. A
cristandade empalideceu a mensagem de Cristo e, por isso mesmo, ele precisa ser
reintroduzido nela.
Também a forma do servo - que aparece aqui e já havia aparecido nas Migalhas
Filosóficas- é a do incógnito, isto é, aquele que não se dá a conhecer. Na perspectiva
divina, trata-se de um homem particular. Logo, mesmo se for contemporâneo de Cristo,
devido ao seu rebaixamento, não seria possível reconhecê-lo. Tal reconhecer
diretamente a Deus seria uma blasfêmia ou pecado contra o Espírito Santo, aquele para
o qual não há perdão, pois se existe incógnito, não há comunicação direta e isso ocorre
por causa de uma estratégia divina.
Antes de avaliar uma figura tão difundida como Nietzsche – e sua típica
caracterização como pensador anti-religioso - parece ser mais proveitoso pensá-lo, tal
como salienta Salaquarda, como alguém que apontou os motivos para sermos religiosos
ou anti-religiosos, isto é, nos cabe a investigação de sua crítica genética e genealógica
do discurso religioso (SALAQUARDA, 2006). Notadamente quando nosso intuito é
circunscrever a interpretação nietzschiana da figura emblemática de Lutero, nunca é
demasiado lembrar que o pensador, como um luterano de família, sabia muito bem usar
as imagens do cristianismo, sua linguagem, sua retórica. Nietzsche, nos primórdios de
sua formação cristã, parece se caracterizar como alguém de intensa vida devocional e
com forte influência nas leituras da Bíblia na tradução de Lutero. Segundo Jaspers, o
pensador considerava um privilégio a sua formação protestante mas, ao mesmo tempo,
sabia o quanto ela seria decisiva na sua crítica radical do cristianismo:
27
A presente aula foi publicada na Revista Religare (UFPB):
http://periodicos.ufpb.br/index.php/religare/article/view/9765
Nos anos de formação universitária, onde o pensador rompe efetivamente com o
cristianismo herdado da sua familia, é importante destacar o quanto tiveram influência
na sua formação autores como David Strauss (A Vida de Jesus) e Feuerbach (A
Essência do cristianismo). Em outras palavras, Nietzsche, tão logo abandona sua fé
religiosa tradicional parece almejar uma certa superação do cristianismo, julgando que
tal coisa se daria no decorrer do processo histórico. Tal fato, segundo avaliamos, coloca-
o fortemente no rol do autores pós-hegelianos, os mesmos que fazem da política uma
religião laica e movimentam-se transitivamente da religião para a literatura e desta para
a política. Evidentemente tal configuração se dá com a característica típica nietzschiana.
Todavia, a pista de Karl Lowith não parece desprovida de fundamento: “Apesar de toda
a diferença, tem-se a impressão de que Nietzsche prolonga diretamente a crítica do
cristianismo moderno feita por Feuerbach e Kierkegaard... “(LOWITH, 1985, p. 145).
Já o Nietzsche tardio trabalhará mais fortemente a temática do cristianismo
como ressentimento, relacionando-o fortemente com um dado tipo de moral. Não parece
mais existir aqui a ênfase forte na superação, mas sim um trabalho mais acurado na
discussão dos próprios valores morais. Entretanto, no afã de apontar aspectos da crítica
moral, o pensador não parece ter distinguido o sentido positivo do cristianismo para o
mundo ocidental. Sua crítica do cristianismo, a despeito de sua importância, parece
padecer de uma distinção mais precisa, por exemplo, entre herança judaica e herança
cristã. É certo que, em muitos momentos, tais coisas se misturam, mas não se pode falar
do cristianismo meramente como continuador do judaísmo. Tal coisa é fortemente
reducionista e não parece fazer justiça nem ao cristianismo e nem ao judaísmo.
Overbeck, célebre amigo de Nietzsche, professor de História Eclesiástica, não parece
que endossaria tais afirmativas. O fato é que Nietzsche parece sempre ter sido
fortemente influenciado em sua leitura do cristianismo pela posição de Schopenhauer e
seu conceito de volksmetaphysic (metafísica do povo). O elogio schopenhaueriano à
Índia e suas severas críticas ao Islã e ao judaísmo parecem reverberar na obra
nietzschiana. É certo que, notadamente no período final de sua produção, Nietzsche já
tinha abandonado boa parte do seu entusiasmo por Schopenhauer. Entretanto, é possível
encontrar aqui fortes indícios de uma influência que ainda se extinguiu completamente.
Contudo, a despeito de sua crítica severa ao cristianismo, Schopenhauer não parece
tomá-lo como análogo ao judaísmo ou como continuador deste.
Cabe notar que este Nietzsche, filho de pastor protestante, terá, em toda sua vida,
uma relação ambígua com o cristianismo: ele tanto será passível de crítica por sua
negação dos instintos de vida, como pode ser elogiado por sua práxis expressa na figura
do Cristo. Nessa mesma esteira, o pensador, fortemente formado no protestantismo,
após a ruptura com o cristianismo, parece começar a nutrir uma dada simpatia mais pela
versão católica do cristianismo do que pela versão protestante. Evidentemente, o autor
está rompido com a fé cristã, mas parece começar a apontar maiores defeitos no modo
protestante de entender a fé do que no modo católico. O catolicismo ainda parece
guardar aspectos da herança clássica greco-romana e, notadamente na Itália, ainda é
possível encontrar nele traços da afirmação da vida.
Nesse sentido, a reforma luterana é, aos olhos de Nietzsche, algo ainda ligado a
uma visão medieval do mundo e representa um certo espírito atrasado que precisa ser
superado pelo Renascimento. Ele, tal como Troeltsch, não enxerga nada de moderno ou
emancipador no protestantismo, mas ambos o compreendem como uma certa
reelaboração de um medieval que inevitavelmente se estilhaça com o avanço dos
tempos:
Lutero se torna o símbolo alemão por excelência. Seu caráter, suas virtudes e
seus defeitos passam a ser a marca de todos os alemães. Seu modo severo é ao mesmo
tempo cordial, sua crença contrasta com suas dúvidas, seu jeito místico faz oposição ao
seu modo empreendedor. A interpretação nietzschiana sobre Lutero, inicialmente mais
elogiosa e depois crítica, não deixa de ser um dado prelúdio para as teses do seu
Zaratustra. Talvez seja necessário apontar algo mais do que simplesmente constatar que
Lutero exterminou o Renascimento. Cabe, talvez perceber que Lutero nada mais é do
que um elo numa corrente que já se formava no apóstolo Paulo, Santo Agostinho e no
período medieval. Sua forte relação com a consciência e com a idéia de graça serão
fortemente rechaçadas por Nietzsche. A idéia de uma consciência profundamente
racionalizada já é criticada pelo pensador desde O nascimento da tragédia e, nesse
sentido, Lutero seria um continuador até mesmo de Sócrates. Já a idéia de graça parece
ir de encontro à autonomia do pensamento. Contudo, mesmo com todas as reservas,
Nietzsche parece achar que com o casamento entre os religiosos Lutero reconhece a
esfera do sensual. Karl Jaspers observa, com argúcia, que a recusa de Niezsche por tais
pensadores não representa, de modo nenhum, desconsideração por eles, mas antes uma
agonia de quem combate contra si próprio:
28
Tal discussão é feita especialmente numa obra de Kiekegaard denominada Livro sobre
Adler.
29
Tal afirmativa é feita no texto Necessidade de uma transformação, citado em nossa
bibliografia final.
demasiadamente em desacordo com a natureza humana para ser,
um dia, plenamente realizada na vida; não compreendeu que o
catolicismo era como uma concordata entre Deus e o Diabo, isto
é, entre o espírito e a matéria... um sábio sistema de concessões
que a Igreja fez em favor da sensualidade... Podes dar ouvidos
às ternas inclinações do coração e tomar uma bela moça em teus
braços, mas depois terás que confessar que isso foi um pecado
vergonhoso e pagar penitências por eles. Que essas penitências
pudessem ser feitas através do dinheiro, isso era tão benéfico
para a humanidade como útil para a Igreja. A Igreja, por assim
dizer, deixava que se pagasse indulto por cada gozo carnal... O
comércio de indultos não era um abuso, era uma conseqüência
de todo o sistema eclesiástico e, ao atacá-lo, Lutero atacou a
própria Igreja, que teve que condená-lo como herege. (HEINE,
1991, p. 34-35).
Lutero termina por servir ao objetivo dos príncipes e do Papa, pois ambos
terminam por utilizá-lo em suas disputas políticas. O mais curioso de tudo isso é que a
história parece repleta de acasos, pois se não fosse assim o reformador poderia ter
terminado na fogueira, tal como muitos dos seus antecedentes. Logo, o que parece
tomar força aqui é a tese do ressentimento no cristianismo e a crítica dos seus valores
morais. Caberia, entretanto, investigar aqui, a partir de Nietzsche, mas para além dele,
se a religião é, de fato, tão fortemente marcada por sua relação com a moral ou se há um
excesso na avaliação nietzschiana de tal fenômeno. Não se trata de negar tal traço, mas
de pensá-lo criticamente e avaliar em que sentido ela também pode ser explorada em
outras fronteiras.
Uma primeira grande diferença parece saltar aos olhos na compreensão de Lutero
que Feuerbach e Niezsche possuem. Se para o autor da Essência do Cristianismo, o
reformador protestante era, de certo modo, alguém que prenunciava o espírito ateu e
científico, visto que na sua teologia já se encontra o germe da descrença e a afirmação
da primazia do antropológico sobre o teológico, para Nietzsche, Lutero carrega em si
todos os instintos de um monge fracassado e, nesse sentido, representa uma clara
ruptura com o espírito do Renascimento.
Feuerbach também é um entusiasta dos ideais do Renascimento e o compreende
como um avanço do espírito científico, mas não enxerga Lutero como oposto a ele. De
igual modo, compreende que a subjetividade, tão cara ao pensamento moderno alemão,
também se afirma muito fortemente na Reforma luterana e, nesse sentido, ela é de
fundamental importância para a filosofia posterior. A despeito da diferente leitura no
que concerne ao Renascimento, Feuerbach e Nietzsche parecem concordar acerca do
diagnóstico, tão típico dos pós-hegelianos, de que a filosofia moderna alemã é, de certo
modo, uma continuidade da proposta da Reforma luterana, mas agora com linguagem
filosófica. Entretanto, Nietzsche tem severas críticas a um dos principais pilares da
subjetividade: Sócrates. Para ele, o pensador ateniense já representa um problema no
próprio modo grego de pensar e sentir. Diferentemente dele, Feuerbach chega a
enunciar que o propósito de sua obra é uma busca socrática pelo auto-conhecimento, tal
como se pode atestar na Essência do Cristianismo.
Referências bibliográficas
BLUHM, Heinz. Nietzsche’s Final View of Luther and the Reformation in PMLA, V.
71, N. 1 (Mar, 1956), pp. 75-83.
BURCKHARDT, Jacob. 2009. A Cultura do renascimento Itália. São Paulo,
Companhia das Letras.