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MINICURSO – Universidade Federal de Sergipe

(11 e 12 de Julho de 2018 – 14 às 17 hs)

A crítica da religião nos séculos XIX e XX: Uma leitura a partir de


Feuerbach, Kierkegaard e Nietzsche

Prof. Dr. Marcio Gimenes de Paula

Departamento de Filosofia - UnB

O propósito de nosso minicurso é dividido em duas etapas. Na primeira,


almejamos investigar, por meio das reflexões de Heine (1797-1856) em A
contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha como o
protestantismo foi um fator determinante da moderna filosofia alemã e quais
perspectivas se afirmam a partir de tal herança. O mesmo tipo de tese, com
outro viés interpretativo, percebe-se igualmente nas reflexões de Hegel (1770-
1831) sobre o protestantismo em Lições sobre a filosofia da história universal.
Numa segunda etapa, desejamos investigar, em paralelo, as obras A essência
da fé segundo Lutero de Feuerbach (1804-1872), o Exercício do cristianismo
de Kierkegaard (1813-1855) e O Anticristo de Nietzsche (1844-1900). O intuito
não é aqui, como também não o foi na primeira etapa, observá-las com
minúcias, mas, a partir da análise de fragmentos dos referidos autores
escolhidos, perceber a centralidade das teses do reformador Lutero para os
princípios da filosofia moderna alemã, quer seja ela de matriz mais marcante
religiosa ou secularizada.

Palavras-chave: Filosofia moderna, Filosofia da religião, História da Filosofia


Protestantismo, Reforma Protestante
PRIMEIRA DIA (DIA 11.07)

PRIMEIRA PARTE DA AULA

A moderna filosofia alemã como herdeira da Reforma Protestante: uma


investigação a partir de Heine1

Muitas reflexões e trabalhos investigativos já foram feitos sobre a influência do


pensamento religioso, notadamente do pensamento protestante, sobre a moderna
filosofia alemã2. A visão, talvez mais clássica é aquela apresentada por Hegel nas suas
Lições da Filosofia da História3 e, de algum modo, recuperada por Karl Löwith no seu
De Hegel a Nietzsche4. Tal caracterização pode ser facilmente observável se nos
dispusermos a estudar qualquer um dos assim chamados pensadores pós-hegelianos.
Neles a influência da religião e seu trânsito entre a política e a literatura são mais do que
observáveis, são fundamentais para o seu próprio fazer filosófico. Por isso, optamos
aqui por voltar mais firmemente nossas reflexões no intuito de investigar essa mesma
temática através de um prisma ainda pouco utilizado pelos filósofos: a obra História da
Religião e da Filosofia na Alemanha de Heinrich Heine (1797-1856).
A obra de Heine é composta de um preâmbulo e de três livros. O primeiro deles
abordará Lutero e suas consequências para a filosofia alemã, o segundo livro disserta
mais efetivamente sobre a filosofia alemã. Todavia, nunca se pode esquecer que tal tipo
de explicação, notadamente na filosofia alemã, nunca consegue ser feita em separado da
religião. Heine aborda aqui oito pensadores: Descartes (visto como o mais alemão dos
filósofos franceses), Leibniz, Wolff, Espinosa (que também não é alemão), Jacobi,
Paracelso, Jacob Bohme e Lessing. Além deles, surgem referências a Kant, Schelling,
Hegel e Fichte, que serão analisados cuidadosamente no terceiro livro. Trata-se,
evidentemente, de uma espécie de panorama da história da filosofia alemã e, como todo
panorama, não consegue apresentar a totalidade e sequer almeja fazer isso. Todavia,
com extrema ironia e perspicácia, Heine consegue esboçar um primeiro esforço em
compreender diversos temas importantes do pensamento germânico. Feitos tais

1
A presente reflexão será publicada brevemente, em forma de artigo, na Revista Dialectus.
2
Uma obra exemplar é a de Fernández.
Fernández, Arsenio Ginzo. Protestantismo y filosofia – la recepción de la Reforma em la filosofia
alemana. Universidad de Alcalá, Alcalá, 2000.
3
Hegel, G.W.F. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal. Alianza Editorial, Madrid, 1984.
4
Löwith, K. De Hegel à Nietzsche. Unesp, São Paulo, 2014.
esclarecimentos, passemos, portanto, a uma exposição pormenorizada da obra citada,
operando um diálogo da mesma com outros filósofos da tradição moderna germânica.

Heinrich Heine, célebre poeta e escritor alemão publica, no ano de 1834, uma
obra intitulada Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha. Seu
principal intuito é lançar uma resposta à obra De L´Allemagne de Mme. Staël5, cujo
texto caracteriza-se por demonstrar uma visão majestosa da história do pensamento
germânico. Desse modo, fica muito evidente aqui o objetivo do escritor alemão: ser lido
pelo público francês e explicitar a ele um pouco da história do pensamento alemão. Por
isso é que, de forma absolutamente planejada, a obra é destinada a tal público e surge,
originalmente, em revistas francesas.

Segundo Heine, uma interpretação original da história do pensamento alemão


deve principiar com a Reforma Protestante e ir até o advento da moderna filosofia
alemã. Trata-se, portanto, de um movimento teológico-filosófico equivalente a
Revolução Francesa. Somente se tivermos tal coisa em mente é que compreenderemos a
verdadeira essência da filosofia alemã. A obra de Heine possui dois prefácios: o
primeiro, de 1834, traz poucas informações sobre o todo da obra; já o segundo, de 1852,
traz maiores informações e mostra claramente o quanto o autor articula uma estratégia
irônica para escapar da censura e de eventuais ataques por contrariar algumas posições
religiosas. Por isso, ele afirma que mentiu em todas as informações religiosas que
forneceu no decorrer do seu texto:

A um homem probo, no entanto, resta em qualquer circunstância o


direito inalienável de admitir abertamente seu erro, e desejo aqui
exercê-lo sem nenhum receio. Por isso, confesso com franqueza que
tudo o que neste livro se refere particularmente às questões religiosas
é tão impensado quanto falso. Tão impensada quanto falsa é a
afirmação escolar, por mim repetida, de que o deísmo está demolido
na teoria e só penosamente ainda resiste no mundo dos fenômenos.
Não é verdade que a crítica da razão, que destruiu as novas provas da
existência de Deus, tais como as conhecemos desde Anselmo de
Cantuária, também pôs fim à própria existência de Deus. O deísmo
vive, vive sua vida mais viva; não está morto, e muito menos o matou
a moderna filosofia alemã. A dialética de teia de aranha de Berlim não
é capaz de atrair um cão, nem matar um gato e muito menos um Deus
(Heine, 1991, p. 14-15).

5
Recentemente traduzido no Brasil:
Madame de Staël. Da Alemanha. Unesp, São Paulo, 2016.
Hegel surge aqui, mais do que como a teia de aranha de Berlim, mas como o
pensador que introduzirá, notadamente na sua Fenomenologia do espírito, o célebre e
complexo conceito de consciência de si. Todavia, o que aqui interessa para Heine é
apenas apontar que, no suposto Jardim do Éden, a serpente e suas propostas de
sabedoria já preconizaram em pelos menos seis mil anos antes tudo aquilo que o célebre
professor proporia no futuro. Por isso, de forma absolutamente jocosa, ele compara a
consciência de si em Eva como um desejo de comprar belos vestidos:

Logo no início, a história da árvore proibida e da serpente do Paraíso,


a pequena livre-docente que já expôs toda a filosofia hegeliana seis
mil anos antes do nascimento de Hegel. De maneira bem perspicaz,
essa pedante sem pés mostra como o Absoluto consiste na identidade
de ser e saber, como o homem se torna Deus por intermédio do
conhecimento, ou, o que vem a der no mesmo, como Deus chega à
consciência de si no homem. – Esta última fórmula não é tão clara
quanto as palavras originais: ‘Se provardes da árvore do
conhecimento, sereis como Deus!’ De toda a demonstração, dona Eva
reteve apenas uma coisa: que o fruto era proibido e, porque era
proibido, a boa senhora o provou. Mal, porém, mordeu a apetitosa
maçã perdeu a inocência, a imediatez ingênua e, achando-se
demasiado despida para uma pessoa na condição de mãe ancestral de
tantos futuros imperadores e reis, exigiu um vestido. Por certo, apenas
um vestido de folhas de figueira, pois ainda não haviam nascido os
fabricantes de seda de Lyon e ainda não existiam chapeleiras e
modistas no Paraíso... (Heine, 1991, p. 16).

Tais observações espirituosas, fornecem o tom da obra de Heine. Seu intuito, tal
como anuncia o título de sua obra, é tratar da temática da religião e da filosofia na
Alemanha. Entretanto, além da estratégia irônica prévia de defesa, ele lança aqui um
novo apelo para as almas pias. A despeito de não ter nunca experimentado ou
vivenciado um milagre, ele almeja trazer algumas contribuições para as discussões
acerca do pensamento alemão e suas origens:

Almas pias parecem sequiosas de que lhes impinja um milagre


qualquer e de bom grado gostariam de saber se não vi, como Saulo, a
luz no caminho de Damasco ou se não cavalguei, com Balaão, o filho
de Beor, numa mula recalcitrante, que de repente abriu a boca e
começou a falar como um homem: ó almas crédulas! Jamais viajei
para Damasco, nada sei sobre Damasco... Também jamais vi uma
mula, isto é, uma mula quadrúpede que falasse como um homem, mas
já encontrei muitos homens que, toda vez que abriam a boca, falavam
como mulas (Heine, 1991, p. 16-17).

Não interessa para Heine nenhum tipo de iluminação fantástica. Ele, na


condição de um típico alemão, apenas advoga em seu favor o fato de ter sido formado
dentro do espectro cultural fornecido pela Reforma Protestante e de ter recebido o
apreço que a mesma possui pelas Escrituras:

Na verdade, nem uma visão, nem um seráfico arrebatamento, nem


uma voz celestial, nem ainda um sonho notável ou uma aparição
maravilhosa que pôs a caminho da salvação, e devo minha iluminação
muito simplesmente à leitura de um livro. – De um livro? Sim, e um
simples livro antigo, singelo como a natureza, e também natural como
ela; um livro do dia-a-dia, despretensioso como o sol que me aquece,
como o pão que nos alimenta; um livro que nos fita com tanta
intimidade, com tanta bênção, com tanta benevolência quanto a velha
avó que o lê diariamente com lábios amáveis, trêmulos, e óculos na
ponta do nariz - , e esse livro se chama bem sucintamente o Livro, a
Bíblia (Heine, 1991, p. 17).

01) O primeiro livro de Contribuição à história da religião e da filosofia na


Alemanha

O objeto de análise do primeiro livro da obra de Heine será Lutero e a Reforma.


Para o pensador alemão, os franceses se equivocam ao tentar compreender a Alemanha
por intermédio da sua literatura. A chave para sua compreensão se encontra na religião
e, posteriormente, no seu desdobramento que é a filosofia. Desse modo, para que o
pensamento alemão seja compreendido é necessário que se esclareça tanto a sua religião
como a sua filosofia. Todavia, Heine confessa que não é um erudito. Este seria o seu
limite. Entretanto, é, ao mesmo tempo, sua vantagem, uma vez que tal grupo não parece
disposto, no entender do autor, em dividir o seu conhecimento com aqueles que dele
necessitam:
Grandes filósofos alemães, que por acaso corram os olhos nestas
páginas, darão sobranceiramente de ombros para o mísero traje de
tudo aquilo que apresento aqui. Mas que façam o obséquio de
considerar que o pouco que digo é expresso de modo bem claro e
distinto, ao passo que, por mais profundas, imensuravelmente
profundas, e por mais penetrantes, estupendamente penetrantes, que
sejam suas obras, são, ainda assim, incompreensíveis. De que servem
os celeiros fechados, se o povo não lhes tem as chaves? O povo tem
fome de saber e me agradece o pequeno pedaço de pão espiritual que
com ele honestamente partilho. Não creio ser falta de talento o que
impede a maioria dos eruditos alemães de discorrer de forma popular
sobre religião e filosofia. Creio ser receio dos resultados de seu
próprio pensar, resultados que não ousam transmitir ao povo. Quanto a
mim, não tenho esse receio; pois não sou erudito, sou povo. Não sou
erudito, não faço parte dos setecentos sábios da Alemanha. Deixo-me
ficar com a multidão diante das portas de sua sabedoria, e se alguma
verdade escapa por entre elas e chega até mim, já foi bastante longe:
com belas letras a escrevo no papel e a entrego ao tipógrafo, que a
compõe em chumbo e a passa ao impressor, que a imprime e, então,
ela pertence a todo o mundo (Heine, 1991, p. 19-20).

Com efeito, o estudo do pensamento alemão deve principiar com o estudo da


religião na Alemanha. Primeiramente deve-se estudar o cristianismo, depois sua
passagem para o catolicismo, depois ainda sua passagem ao protestantismo e como, a
partir desse, surge a filosofia alemã. Por isso, Heine é absolutamente enfático e claro em
sua divisão cronológica: “O cristianismo é a religião que temos desfrutado na
Alemanha. Terei, portanto, de contar o que é o cristianismo, como se tornou catolicismo
romano, como deste surgiu o protestantismo e como do protestantismo surgiu a filosofia
alemã” (Heine, 1991, p. 20).

Novamente, de forma irônica, Heine pede perdão às almas piedosas e, tal como
Feuerbach o faz na Essência do cristianismo6, aponta que a essência do cristianismo
reside numa ideia. Desse modo, mesmo toda a crítica de autores como Voltaire nada
mais conseguiram fazer do que atingir o corpo já debilitado do cristianismo. Todavia,
não foram capazes de ferir a sua essência, que reside numa ideia e, por isso, como bem
sabia Feuerbach, possui uma força:

Voltaire pôde ferir apenas o corpo do cristianismo. Todos os seus


gracejos tirados da história eclesiástica; todos os seus chistes sobre a
dogmática e o culto; sobre a Bíblia, o livro mais sagrado da

6
Feuerbach, L. A Essência do cristianismo. Vozes, Petrópolis, 2009.
humanidade; sobre a Virgem Maria, a mais bela flor da poesia; todo o
Dictionnaire de flechas filosóficas que disparou contra clero e
confraria, feriram apenas o corpo agonizante do cristianismo, não a
sua essência íntima, o seu espírito mais profundo, a sua alma eterna
(Heine, 1991, p. 20-21).

No entender de Heine, não há uma história clara do cristianismo. Nela, dois


partidos estão sempre em luta: no primeiro momento, surge o cisma entre a Igreja do
Ocidente, marcada pela cultura romana, e a Igreja do Oriente, marcada pela cultura
grega; num segundo momento, afirma-se um cisma no próprio Ocidente, isto é, uma
polêmica entre católicos e protestantes. Desse modo, o pensador alemão sugere que, até
o momento a história do cristianismo não passou de um estudo de superficialidades e de
interesses: “Ainda não há nenhuma história do cristianismo justamente porque ainda
não se compreendeu claramente essa ideia e porque superficialidades foram tomadas
pelo essencial” (Heine, 1991, p. 21).

Sua proposta é realizar uma pré-história do cristianismo, isto é, começar pela


análise da questão dos maniqueus e dos gnósticos. Segundo ele, os primeiros se
caracterizam por afirmarem a crença num eterno combate entre o bem e o mal; já o
segundo grupo, se caracterizaria por afirmar uma espécie de pré-existência do bem:

Os maniqueus receberam essa doutrina da antiga religião persa, na


qual Aura-masda, a luz, é hostilmente oposta a Arimã, as trevas. Os
gnósticos propriamente ditos acreditavam antes na preexistência do
princípio do Bem e explicavam o surgimento do princípio do Mal pela
emanação, pelas gerações de eões que se deterioram e se turvam
quanto mais distantes estejam da origem (Heine, 1991, p. 22-23)

Aqui encontramos o cerne da argumentação de Heine na sua explicação do


cristianismo. Para ele, a despeito da vitória do grupo gnóstico nos debates, o
cristianismo ainda adquiriu resquícios da proposta maniqueísta. Tal perspectiva faz uma
clara oposição entre espírito e natureza. Desse modo, boa parte daquilo que a
humanidade conhecia por natureza se perde ou é explicitamente rejeitado nessa estranha
conjunção:
De origem hindu, essa visão de mundo gnóstica trazia implícita a
doutrina da encarnação de Deus, do perecimento da carne, da
introspecção espiritual, e gerou a vida monástica de contemplação
ascética, a mais pura flor da ideia cristã. No dogma, tal ideia só pôde
ser expressa de uma maneira bastante confusa e, no culto, de uma
maneira bastante obscura. Não obstante, em toda a parte vemos surgir
a doutrina dos dois princípios: ao bom Cristo, que representa o mundo
do espírito, se opõe o maligno Satanás, que representa o mundo da
matéria; àquele pertence nossa alma, a este nosso corpo; e assim, todo
o mundo dos fenômenos- a natureza- é originalmente mau, e Satanás,
o príncipe das trevas, deseja nos levar à perdição, sendo necessário
renunciar a todos os prazeres sensíveis da vida e flagelar o corpo, o
feudo de Satanás, para que a alma se eleve tanto mais
esplendidamente ao céu luminoso, ao resplandecente reino de Cristo
(Heine, 1991, p.23).

Desse modo, antecipando algumas das teses de Feuerbach na Essência do


cristianismo (1841), de Nietzsche no Anticristo7 (1887) e de Freud no Futuro de uma
ilusão8 (1927), Heine afirma categoricamente que o cristianismo se propaga tal como
uma doença, debilitando todo o Ocidente:

De uma maneira espantosamente rápida, essa visão do mundo, a


verdadeira ideia do cristianismo, se propagou por todo o Império
Romano como uma doença contagiosa; os sofrimentos se prolongaram
por toda a Idade Média, ora como acesso de febre, ora como
prostração, e nós modernos, ainda sentimos cãibras e fraquezas nos
membros (Heine, 1991, p. 23).

Todavia, Heine, dentro do melhor espírito iluminista, parece esperançoso em


superar tal religião de sofrimento e legar aos seus futuros descendentes algo melhor:

Quando a humanidade recobrar sua plena saúde, quando a paz entre


corpo e alma for restabelecida e novamente se unirem em sua
harmonia original, mal se poderá compreender a artificial discórdia
que o cristianismo semeou entre ambos. As gerações mais felizes e
belas que, engendradas pelo amor livre, florescerão numa religião de
alegria, sorrirão, melancólicas, de seus pobres antepassados, que
lugubremente se abstiveram de todos os gozos desta bela terra e quase
desapareceram, como frios espectros, pela mortificação de sua viva e

7
Nietzsche, F. O Anticristo. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
8
Freud, S. O futuro de uma ilusão. LPM, Porto Alegre, 2010.
ardente sensualidade. Afirmo com certeza que nossos descendentes
serão mais felizes e belos do que nós. Pois acredito no progresso,
acredito que a humanidade esteja destinada à felicidade e, por isso,
tenho sobre a divindade uma opinião mais favorável do que essa gente
pia, que presume que criou o homem apenas para o sofrimento (Heine,
1991, p. 23-24).

Sua esperança possui ainda uma conotação política. Por isso, não fortuitamente,
Heine aponta aqui, com forte ironia, alguns aspectos de como a religião pode ser
utilizada pelos poderosos para a dominação dos pobres. Com efeito, ele antecipa aqui
alguns aspectos da crítica que Marx, baseando-se em Feuerbach, realizará da religião
enquanto ideologia e instrumento repressivo:

Talvez porque estejam seguros de seu poder e talvez porque, para


infelicidade nossa, decidiram em segredo abusar eternamente dele, os
grandes deste mundo estão convencidos da necessidade do
cristianismo para seus povos e, no fundo, é um terno sentimento
humanitário que os faz despender tanto esforço para a conservação
dessa religião!

O destino final do cristianismo dependerá, pois, de se ainda


precisaremos dele. Por dezoito séculos, essa religião foi um reconforto
para a humanidade sofredora: foi providencial, divina, sagrada. Tudo
o que fez em benefício da civilização, amansando os fortes e
fortalecendo os fracos, unificando os povos pelo mesmo sentimento e
idioma, e tudo o mais que possa ser enaltecido por seus apologistas é
ainda insignificante em comparação com o grande consolo que, por si
mesma, proporcionou aos homens (Heine, 1991, p. 24).

No entender de Heine, a Igreja, durante toda a Idade Média, zelou pela ideia do
bem em toda a cristandade europeia mantendo, desse modo, uma certa unidade na
compreensão do bem. Contudo, o mesmo não ocorreu em relação a ideia de mal, que se
apresentou de forma variada e diversificada. Um exemplo cabal disso é que na
Alemanha a ideia de mal é bastante diferente das concepções mais latinas. Para o
pensador alemão, tal coisa ocorre em virtude do cristianismo nunca ter rejeitado
totalmente as divindades nacionais:

Mas sobre o princípio do Mal, sobre o império de Satã, reinavam


opiniões diferentes nos diversos países, e a seu respeito se tinham, no
norte germânico, ideias totalmente distintas das do sul romântico. Isso
se devia ao fato de que o clero cristão não rejeitava, como vãs
quimeras, os antigos deuses nacionais que encontrou, mas admitia-
lhes uma existência real, afirmando, porém, que todos esses deuses
não passavam de diabos e diabas que perderam o poder sobre os
homens com a vitória de Cristo, e agora queriam desviar para o
pecado através da volúpia e da astúcia. Todo o Olimpo se tornou um
inferno etéreo, e por mais formosamente que o poeta da Idade Média
cantasse os mitos gregos, o cristão pio via neles apenas assombrações
e demônios. O lúgubre delírio dos monges atingiu mais duramente a
pobre Vênus, que passava por uma filha de Belzebu... (Heine, 1991, p.
26).

O norte germânico era panteísta, isto é, lá se acreditava plenamente que Deus e a


natureza formavam um todo integral, sem distinções. Com a chegada do cristianismo,
tal posição se altera e a natureza é demonizada, prevalecendo o divino sobre a natureza,
isto é, a cisão. Por isso, para Heine, o cristianismo nórdico é esteticamente pior se
comparado ao cristianismo romano do sul, que se caracteriza pelo refinado gosto
estético oriundo das belezas da civilização greco-romana e de uma relação mais
saudável e equilibrada com a natureza, mesmo depois do advento do cristianismo. Para
o leitor francês não é uma tarefa fácil compreender o gosto germânico pelos diabos e
pelo horror. Tais dados, já observados aqui por Heine, serão fartamente explorados
futuramente. No século XX, por exemplo, Walter Benjamin realiza, na sua célebre tese
A origem do drama trágico alemão9, uma instigante análise do fascínio que os alemães
possuíam pelas histórias de terror. Tais histórias se constituíram num importante apoio
para um tipo de divulgação que almejava, através de apresentações públicas, infundir o
medo nas pessoas estimulando-as, desse modo, a uma vida devota e consagrada aos
assuntos divinos. Desse modo, nem mesmo a Reforma de Lutero foi capaz de romper
com esse tipo de cristianismo nórdico e sua visão panteísta:

Tais atrocidades não eram provocadas diretamente pela Igreja cristã,


mas indiretamente, já que havia tão perfidamente desfigurado a antiga
religião nacional germânica, transformando a visão de mundo
panteísta dos alemães em uma visão de mundo pandemônica e
convertendo em vil feitiçaria os antigos santuários do povo. O homem,
porém, não renuncia de bom grado àquilo que foi precioso e caro para
si mesmo e seus antepassados, e secretamente seus sentimentos a isso
se agarram com firmeza, mesmo que já o tenham corrompido e
deformado. Eis por que essa desfigurada crença popular talvez ainda

9
Benjamin, W. Origem do drama trágico alemão. Autêntica, Belo Horizonte, 2013.
se sustente na Alemanha por mais tempo do que o cristianismo, que,
diferentemente dela, não se enraíza na nacionalidade. Na época da
Reforma, desapareceu muito rapidamente a crença nas lendas
católicas, mas de maneira alguma a crença na magia e bruxaria.

Lutero já não acredita em milagres católicos, mas ainda acredita em


coisas do demônio (Heine, 1991, p. 32-33).

Lutero, segundo Heine, é um típico frade nórdico. Por isso, ele jamais poderia
compreender alguém como o Papa Leão X. Aliás, parece não haver nenhuma
possibilidade de que um pudesse entender o outro. Lutero é, tal como também defenderá
Nietzsche, um típico frade alemão que não consegue enxergar a superação do
cristianismo na sua própria sede10. Leão X é um típico representante do cristianismo da
decadência que também não é capaz de enxergar quais eram os valores reivindicados
por Lutero. Por isso, de forma absolutamente perspicaz e humorística, Heine toma a
defesa do Papa Leão X:

Com efeito, se me sondassem interiormente, confessaria que no fundo


o Papa Leão X era muito mais razoável que Lutero e que este de
forma alguma compreendeu os fundamentos últimos da Igreja
Católica. Pois Lutero não compreendeu que a ideia do cristianismo, a
destruição da sensualidade, estava demasiadamente em desacordo com
a natureza humana para ser, um dia, plenamente realizada na vida; não
compreendeu que o catolicismo era como uma concordata entre Deus
e o Diabo, isto é, entre o espírito e a matéria... um sábio sistema de
concessões que a Igreja fez em favor da sensualidade... Podes dar
ouvidos às ternas inclinações do coração e tomar uma bela moça em
teus braços, mas depois terás que confessar que isso foi um pecado
vergonhoso e pagar penitências por eles. Que essas penitências
pudessem ser feitas através do dinheiro, isso era tão benéfico para a
humanidade como útil para a Igreja. A Igreja, por assim dizer, deixava
que se pagasse indulto por cada gozo carnal... O comércio de indultos
não era um abuso, era uma consequência de todo o sistema
eclesiástico e, ao atacá-lo, Lutero atacou a própria Igreja, que teve que
condená-lo como herege. (Heine, 1991, p. 34-35).

Desse modo, o protestantismo germânico é, no entender do pensador, algo frio e


gelado, totalmente incapaz de compreender a vida, o desejo e a natureza. Por isso,
segundo Heine, o protestantismo facilita o exercício das virtudes cristãs:

10
Refiro-me especialmente a parte final do aforismo 61 (pp.78-79).
Nós, nórdicos, somos de sangue frio e não precisávamos de tantas
cartas de indulgência quantas o paternalmente solícito Leão nos
enviava. O clima nos facilitava o exercício das virtudes cristãs e, em
31 de Outubro de 1517, quando Lutero afixou suas teses contra as
indulgências nas portas da Igreja de Agostinho, o fosso da cidade de
Wittenberg talvez já estivesse gelado e nele talvez já se pudesse andar
sobre patins que, sendo um prazer bastante frio, não é portanto, um
pecado (Heine, 1991, p. 35).

Por detrás de toda a comicidade de Heine, podemos enxergar aqui qual é o


debate filosófico em questão, isto é, trata-se de uma polêmica entre o cristianismo
protestante e o sensualismo do cristianismo católico. Dessa forma, o real motivo da
Reforma é a luta do espírito contra o sensualismo:

A luta contra o catolicismo na Alemanha não foi senão uma guerra


desencadeada pelo espiritualismo, quando percebeu que apenas usava
o título de soberano e imperava apenas de jure, enquanto o
sensualismo, por fraude habitual, exercia a verdadeira soberania e
imperava de fato – os comerciantes de indulgências foram
perseguidos, as belas concubinas dos sacerdotes trocadas por frias
esposas, destruíram-se atraentes imagens de Madonas, surgindo aqui e
ali o puritanismo mais hostil à sensualidade (Heine, 1991, p. 36).

Tal conceituação de cristianismo protestante e católico é de fundamental


importância para entender a diferença entre a recusa dos franceses a tudo que fosse
eclesiástico e a luta dos protestantes alemães contra o catolicismo. É verdade que ambos
lutam contra o catolicismo. Contudo, os alemães, no entender de Heine, lutam de forma
grave e pesada, visto que o seu protestantismo possui tal natureza. Os franceses lutam
com leveza, visto que não estão influenciados por nenhuma concepção protestante, mas
pela sátira e por alguns dos ideais mais caros do iluminismo:

Assim, enquanto na Alemanha se lutava com recatada gravidade, aqui


se luta com gracejo lascivo; e, enquanto ali se travava uma disputa
teológica, aqui se compunha uma sátira jocosa qualquer. Geralmente o
objeto dessa sátira era mostrar a contradição que o homem cai consigo
mesmo quando quer ser completamente espírito; e assim floresceram
as mais deliciosas histórias de homens pios que, involuntariamente,
sucumbem a sua natureza animal ou querem manter a aparência de
devoção e se refugiam na hipocrisia (Heine, 1991, p. 36).

As objeções ao espiritualismo não são gratuitas. Embora Heine reconheça o seu


valor, ele não pode aceitar, em hipótese alguma, que o mesmo se afirme em detrimento
do sensual. Para ele, o espiritualismo só existe visto que o sensual da matéria pode ser
efetivamente afirmado:

Mas por que o espiritualismo nos é tão repulsivo? É algo tão ruim?
Absolutamente. Essência de rosas é algo precioso, e um pequeno
frasco dela é refrescante quando se tem de consumir seus dias nos
aposentos reservados de um harém. Não queremos, no entanto, que se
pisem e espezinhem todas as rosas desta vida para que se obtenham
algumas gotas de essência, por mais reconfortante que seja seu efeito
(Heine, 1991, p. 37-38).

Contudo, mesmo o protestantismo que, nos seus primórdios, era fiel


representante do espiritualismo, se altera e, aos poucos, vai se tornando sensual.
Entretanto, com o passar dos anos, o espiritualismo retoma o controle da situação, mas é
ferido por um inimigo engendrado dentro de si mesmo, isto é, pela filosofia:

Por toda parte se abriam as portas dos conventos, e freiras e


mongezinhos se abraçavam e beijocavam uns aos outros. A história
aparente dessa época, com efeito, consiste quase exclusivamente em
revoltas sensualistas. Mais tarde veremos o quão pouco restou disso,
como o espiritualismo reprimiu novamente esses desordeiros, como
paulatinamente assegurou a soberania no norte, mas foi mortalmente
ferido por um inimigo que nutriu em seu próprio seio, a saber, a
filosofia (Heine, 1991, p. 38).

A interpretação de Lutero feita por Heine pode ser lida quase que em uníssono
com a interpretação nietzschiana do reformador. Para ambos, Lutero é mais do que um
simples homem, mas um símbolo de uma época, um monge que nega a vida e seus
instintos:
Esse homem era Martinho Lutero, o pobre monge escolhido pela
Providência para romper o poderio mundial romano, contra o qual os
imperadores mais poderosos e os sábios mais astutos já haviam
inutilmente lutado. A Providência, no entanto, sabe muito bem em que
ombros põe os seus fardos; aqui não era necessário apenas força
espiritual, mas também força física. Para suportar os esforços dessa
tarefa, era preciso de um corpo fortalecido desde a juventude pela
austeridade e castidade monásticas (Heine, 1991, p. 39).

Lutero se torna o símbolo alemão por excelência. Seu caráter, suas virtudes e
seus defeitos passam a ser a marca de todos os alemães. Seu modo severo é ao mesmo
tempo cordial, sua crença contrasta com suas dúvidas, seu jeito místico faz oposição ao
seu modo empreendedor. O reformador traz em si todas as contradições que formam o
protótipo do novo homem alemão: “O mesmo homem que podia xingar como uma
vendedora de peixes, também podia ser afável como uma virgem terna” (Heine, 1991, p.
40). Entretanto, o que Heine destaca é que Lutero vai além da discussão entre
espiritualismo e sensualismo. O reformador apresenta dois pontos centrais para uma
nova discussão da religião: a Bíblia como fonte única de autoridade e os argumentos
racionais. Com tais elementos, Lutero acaba com qualquer perspectiva indo-gnóstica no
cristianismo e inicia o chamado cristianismo evangélico, baseado nas crenças judaico-
deístas. A partir de tais teses que, primeiramente pareciam versar apenas sobre religião,
pode-se agora discutir uma infinidade de outras coisas, inclusive, a própria legitimidade
da fé:

O sacerdote se torna um ser humano, desposa uma mulher e gera


filhos, tal como Deus o exige. Em compensação, Deus volta a ser um
celestial solteirão sem família; contesta-se a legitimidade de seu filho;
demitem-se os santos; cortam-se as asas dos anjos; a mãe de Deus
perde todos os direitos à coroa e proíbem-na de fazer milagres. Os
milagres cessam a partir daí, mas especialmente depois que as ciências
naturais fazem tão grandes progressos (Heine, 1991, p. 41).

A razão adquire em Lutero, segundo Heine, o papel de uma juíza. Dela procede
“o direito de explicar a Bíblia, e ela, a razão, foi reconhecida como juíza suprema em
todos os litígios religiosos” (Heine, 1991, p. 43). Novamente Lutero é aqui inovador,
rompendo com a antiga tradição escolástica, que separava as verdades em duas
modalidades: verdades teológicas e verdades filosóficas. Por isso, Heine louva Lutero
pela liberdade de pensamento propiciada e compreende que a Reforma foi de vital
importância para todo esse processo.

Contudo, com a costumeira comicidade, Heine aponta que, com a entrada de


alguns príncipes no processo reformador (especialmente Frederico II da Prússia), as
teses outrora inovadoras passam a adquirir um caráter profundamente autoritário:
“Naturalmente, as coisas mudaram desde então, e o patrono natural de nossa liberdade
de pensamento protestante se entendeu com o partido Ultramontano no sentido de
suprimi-la, para isso utilizando a arma que o papado concebeu e usou por primeiro
contra nós: a censura (Heine, 1991, pp. 43-44).

Tal censura acaba por atingir academias e universidades e os príncipes, que


outrora pareciam tão adeptos da liberdade e do livre pensamento protestante, resolvem
mudar de opinião:

E que valeria toda a ciência, estudo ou cultura para os príncipes, se a


sagrada segurança dos seus tronos estivesse ameaçada! Eles seriam
suficientemente heróicos para sacrificar todos esses bens relativos em
prol do único bem absoluto: a soberania absoluta. Pois esta lhes foi
confiada por Deus, e, quando o Céu manda, todas as ponderações
terrenas têm de ceder (Heine, 1991, p. 45).

Lutero é mais do que apenas um reformador religioso, ainda que isso tenha
alterado não somente o ambiente religioso, mas todo um contexto histórico, político e
filosófico. Para Heine, ele é o criador da língua alemã e assim se firmou com a sua
tradução da Bíblia para o seu idioma natal. Além disso, o reformador é ainda um amante
da música, um teólogo que fazia música ao escrever. Por isso, não fortuitamente, uma
das marcas características do protestantismo é o apreço pela música, pelas melodias
elaboradas e pelas letras claras e expressivas.

A literatura alemã antes de Lutero se caracteriza por ter uma marcada luta entre
o cristianismo e a religião nórdica e por espelhar essa convivência, notadamente nos
épicos medievais. Depois de Lutero surge a chamada verdadeira religião, isto é, ela
estimula a prática, por isso advém daí uma nova filosofia, a indústria e o novo
comércio. Surge o conceito de clássico e as divisões históricas parecem ficar mais
evidentes. Entretanto, o ponto central no entender de Heine está na questão do
indivíduo. O luteranismo coloca o sujeito diante de Deus e, por isso, ajuda no
nascimento daquilo que conhecemos como filosofia moderna e como ceticismo.

2) O segundo livro de Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha

O objetivo do livro segundo é dissertar mais efetivamente sobre a filosofia


alemã. Todavia, nunca se pode esquecer que tal tipo de explicação, notadamente na
filosofia alemã, nunca consegue ser feito em separado da religião. Heine aborda aqui
oito pensadores: Descartes, Leibniz, Wolff, Espinosa, Jacobi, Paracelso, Jacob Bohme e
Lessing. Além deles, surgem referências a Kant, Schelling, Hegel e Fichte, que serão
analisados no terceiro livro. Trata-se, evidentemente, de uma espécie de panorama da
história da filosofia alemã e, como todo panorama, não consegue apresentar a
totalidade. Todavia, com extrema ironia e perspicácia, Heine consegue tocar e esboçar
um primeiro esforço em compreender diversos temas importantes do pensamento
germânico.

O primeiro filósofo abordado será Descartes. No entender de Heine, ele será o


primeiro filósofo moderno. Entretanto, a rigor, ele não era alemão. Contudo, para o
pensador, ele seria o mais alemão dentre todos os filósofos franceses:

O pai da filosofia moderna não é Bacon, como se costuma ensinar,


mas Descartes, e mostraremos, de modo bem claro, em que medida a
filosofia alemã dele descende.

René Descartes é um francês e, também aqui, cabe à grande França a


glória da iniciativa. Mas a grande França, a terra dos barulhentos,
buliçosos e loquazes franceses, jamais foi solo adequado para a
filosofia, na qual talvez essa jamais floresça e sentindo isso, Descartes
foi para a Holanda... (Heine, 1991, p. 53).

Segundo Heine, a filosofia de Descartes espelha o seguinte conflito: a eterna


batalha entre espiritualismo/idealismo/racionalismo e
sensualismo/materialismo/empirismo. Sem entrar no mérito e no significado de cada
uma dessas palavras, a questão crucial aqui é reenviada para uma polêmica mais antiga
da história da filosofia, a saber, a disputa entre o legado platônico e o legado
aristotélico: “Ainda que com outros nomes, trata-se sempre de Platão e Aristóteles”
(Heine, 1991, p. 59). A França, no entender de Heine, seria herdeira do empirismo que,
por sua vez, remontaria às teses aristotélicas. Já a Alemanha representaria a herança
idealista, ou seja, platônica.

O segundo filósofo mencionado por Heine é Leibniz. Para ele, Leibniz é


herdeiro da tradição idealista de Descartes e com suas doutrinas matemáticas e,
notadamente com a explicação sobre as mônadas, causa impacto no ambiente filosófico
alemão. Todavia, segundo nosso autor, sua outra obra Teodiceia11, a despeito de ter sido
bastante discutida na Alemanha, foi seu trabalho menos satisfatório: “Entre todos os
escritos de Leibniz, Teodiceia foi o mais discutido na Alemanha. E, no entanto, sua obra
filosófica mais fraca” (Heine, 1991, p. 58). A suposta fraqueza da obra de Leibniz se
deve ao fato de que a mesma tenta articular uma resposta racional para diversas
questões centrais do cristianismo num tempo onde isso não parece ser bem recebido.
Por isso, não fortuitamente, o destino dela foi receber a mais severa crítica dos seus
contemporâneos.

Se Leibniz se caracteriza por ser um discípulo de Descartes, Wolff, o terceiro


filósofo aqui mencionado, é caracterizado como um leibniziano pietista que, no
entender de Heine, foi um homem de grandes méritos. Para ele, Wolff, a despeito de
criar uma certa prisão para as ideias de Leibniz, é o responsável pelo exercício da
filosofia em alemão:

Chama-se Christian Wolff o homem primoroso que não apenas


sistematizou, mas também apresentou as ideias de Leibniz em alemão.
Seu verdadeiro mérito não consiste em ter encerrado as ideias de
Leibniz em um sólido sistema e, menos ainda, em tê-las tornado
acessíveis ao grande público através da língua alemã; seu mérito
consiste em ter-nos estimulado a também filosofar em nossa língua
materna. Se até Lutero só soubéramos tratar de teologia em latim, da
mesma forma foi só em latim que, até Wolff, soubemos tratar de
filosofia (Heine, 1991, p. 69).

11
Leibniz, G.W. Ensaios de teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do
mal, Estação Liberdade, São Paulo, 2013.
Entretanto, o mesmo Wolff teve relações com o movimento religioso pietista,
que se caracterizava por uma busca da piedade cristã em meio a uma religião que se
acreditava excessivamente racionalizada. Para Heine, ao assumir tal postura, o pensador
antecipa-se a Hegel, que realizará a efetiva junção entre razão e religião. Segundo nosso
autor, trata-se de uma relação imprópria, isto é, Wolff se serve da religião e essa se
serve do seu suporte intelectual, não se dando conta de que esse também é seu caminho
de destruição: “A partir do instante em que uma religião busca auxilio na filosofia, seu
declínio é inevitável. Ela procura se defender e se enreda cada vez mais na destruição”
(Heine, 1991, p. 75).

Outro filósofo não alemão mencionado será o holandês, filho de portugueses


fugitivos da Inquisição, Bento de Espinosa (ou Baruch, tendo em vista que se tratava de
uma família judaica). Heine discorrerá longamente sobre a biografia pessoal de
Espinosa e notadamente sobre os seus sofrimentos e sobre a sua faceta de um mártir do
pensamento moderno. Ele assinala que o pensador defende a existência de uma
substância única, eterna e imutável. Ressaltando, a partir desse ponto, sua importância
para o pensamento moderno:

A moderna filosofia da natureza possui apenas o mérito de ter


provado, da maneira mais sagaz, o eterno paralelismo existente entre
espírito e matéria. Digo espírito e matéria, empregando tais expressões
como sinônimos daquilo que Espinosa chama de pensamento e
extensão. De certo modo, também são sinônimos daquilo que nossos
filósofos da natureza chamam de espírito e natureza, ou o ideal e o
real (Heine, 1991, p. 64).

A presença de Espinosa no texto de Heine aparece também em alguns outros


momentos. Sua importância é enfatizada na ética e há uma referência ao seu Tratado
teológico – político12. Contudo, o pensador também aparece nas digressões feitas por
Heine. No seu texto, há uma longa exposição do panteísmo e sua defesa em relação ao
deísmo:

12
Espinosa.B. Tratado teológico-político. Martins Fontes, São Paulo, 2008.
... a Alemanha é o solo mais fértil para o panteísmo; é a religião de nossos
maiores pensadores, de nossos melhores artistas, e lá o deísmo já há muito
tempo ruiu na teoria, conforme relatarei mais tarde. Como muitas outras
coisas, ainda se conserva, sem nenhuma justificação racional, apenas na
massa irrefletida. Ninguém diz, mas todo mundo sabe; o panteísmo é o
segredo público na Alemanha. Na verdade, já estamos muito crescidos para o
deísmo. Somos livres e não queremos um tirano tonitruante. Somos
emancipados e não precisamos de cuidados paternais. Também não somos
obras mal feitas de um grande mecânico. O deísmo é a religião para servos,
para crianças, para genebrinos, para relojoeiros (Heine, 1991, p. 68).

O quinto dos filósofos citados por Heine será Jacobi. Tal pensador caracteriza-se
por sua crítica violenta a Espinosa e por abdicar do uso da razão, colocando-a sempre
numa posição secundária. Por isso, nosso autor afirma que o mesmo nada é se
comparado com a grandiosidade de Espinosa e que, além disso, ele não passa de uma
grande toupeira: “Que toupeira! Não viu que a razão se assemelha ao sol eterno, que
ilumina sua trajetória com luz própria, enquanto passeia seguro lá no alto. Não há nada
que se compare ao ódio piedoso, benevolente, do pequeno Jacobi contra o grande
Espinosa” (Heine, 1991, p. 69).

Dois outros autores enumerados aqui apenas de forma crítica e sem nenhuma
relevância para a filosofia alemã são Paracelso e Jacob Bohme. O primeiro se
caracteriza por seu charlatanismo e por seus experimentos suspeitos em alquimia. O
segundo teria relações com o movimento teosófico, estando mais próximo do
misticismo.

Antes de citar o oitavo pensador, que será Lessing, Heine faz uma nova
digressão, desta vez, sobre a polêmica entre pietistas e ortodoxos no pensamento
religioso alemão. A ortodoxia protestante se estabeleceu logo após a formação efetiva
da nova Igreja e, aos poucos, foi implantando sua legislação, seu cânone e seus dogmas.
O protestantismo, vagarosamente, começa a se tornar uma religião legalista e sem
nenhuma afetividade ou relação com as coisas da vida cristã. Em reação a tal
movimento, surge um grupo denominado de pietistas. O intuito de tal grupo é
reintroduzir no cristianismo protestante a afetividade e a religião do coração e da
emoção. Seu principal expoente foi Spener, célebre autor da obra Pia Desideria13. O
movimento de piedade teve uma importância crucial na história do protestantismo,

13
Spener, P.J. Pia Desideria. Imprensa Metodista, S.Bernardo do Campo, 1985.
estimulando-o às obras sociais e missionárias, gerando reflexos, inclusive, no resto da
Europa e na América do Norte.

O intuito de Heine é explicar, notadamente para o público francês, diversas das


disputas teológicas alemãs e todo o ódio envolvido no processo. Segundo ele, os
franceses, formados na tradição católica, não conseguem ter a real dimensão do que isso
efetivamente significa. Aliás, nosso pensador aponta que o ódio é um dos constituintes
do modo de ser alemão. Para ele, até o ódio alemão é idealista, isto é, possui raízes
profundas:

Isso vem do fato de serem idealistas também no ódio. Não nos


odiamos por causa de coisas externas como vocês, por exemplo, por
causa da vaidade ferida, de um epigrama, de um cartão de visita não
respondido; em nossos inimigos odiamos neles o que há de mais
profundo, o que há de mais essencial: o pensamento. Vocês, franceses,
são levianos e superficiais, tanto no amor quanto no ódio. Nós,
alemães, odiamos de maneira profunda, persistente; sendo muito
honrados, muito desajeitados para nos vingar de uma rápida perfídia,
odiamos até o nosso último suspiro.

‘Conheço, senhor, essa calma alemã’, disse recentemente uma senhora


fitando-me, incrédula e temerosa, com os olhos esbugalhados. ‘Sei
que vocês, alemães, empregam a mesma palavra para perdoar e
envenenar. E, de fato, ela tem razão: Vergeben significa as duas coisas
(Heine, 1991, p. 74).

O terrível destino do cristianismo na Alemanha depois da Reforma é ter se


transformado em moral, abstraindo-se de qualquer tipo de perspectiva histórica. Ao
romper com a tradição do catolicismo, o cristianismo protestante deixa de enfatizar sua
relação com a história e se perde. Logo, a moral se constitui num dos seus pontos de
apoio. Por isso é que, não sem intencionalidade, perceberemos em filósofos como Kant,
por exemplo, toda uma carga moral de origem protestante, com um forte apelo ao
indivíduo e sua consciência.

Heine também deseja destruir um outro mito germânico admirado na França: o


rei Frederico II da Prússia. O célebre monarca é bastante louvado pelos franceses
chegando, inclusive, a ser denominado de Salomão nórdico por Voltaire. Sua
característica de ser um rei iluminista e de mentalidade universal, seduz boa parte da
intelectualidade da época. Entretanto, nosso autor aponta que Frederico menosprezou a
cultura alemã e sua língua. Além disso, ocorreram censuras em seu governo iluminista.
Heine, diferentemente de Kant, que vive a louvar o monarca, é severo critico do seu
governo, tal como também fará Nietzsche.

Por fim, ele analisa o oitavo pensador: Lessing, que será sobejamente elogiado.
Sua formação privilegiada é bastante admirada e louvada. Lessing, desde os primeiros
anos, estudou línguas clássicas e humanidades em geral, destacando-se, ainda muito
jovem, como um brilhante pensador. A influência de Espinosa em sua obra é marcante.
Entretanto, sua interpretação de Leibniz será ainda mais forte. Para Lessing, tal como
para Leibniz, existiam duas modalidades de razão: verdades de fato e verdades de razão.
O cristianismo estaria ligado ao primeiro tipo, enquanto a matemática estaria ligada ao
segundo tipo. Com tal distinção, Lessing cria um espaço racional para a fé cristã, mas,
ao mesmo tempo, aponta que há um grande fosso que separa fé e razão, tal como fará,
anos mais tarde, também por sua influência direta, o dinamarquês Kierkegaard em
Temor e tremor14. Por isso, o cristianismo seria uma proposta paradoxal que se chocaria
com a razão e, nesse sentido, sua tese rememora também o pensamento de Pascal, mas
antecipa o pensamento do autor de Copenhague, que considera o cristianismo como um
escândalo (visto que supera qualquer lei) e como uma loucura (visto que ultrapassa a
racionalidade à moda grega).

Lessing contribui ainda com a defesa do diálogo permanente entre as religiões,


com o entendimento claro da relação entre o cristianismo e a filosofia grega e com suas
investigações acerca da estética e da arte. Por todos esses motivos, Heine não poupa
elogios a ele, comparando-o a Lutero:

Digo que Lessing deu continuidade a Lutero. Depois que Lutero nos
libertou da tradição e elevou a Bíblia à única fonte do cristianismo,
surgiu, como já relatei acima, um rígido culto da palavra, e a letra da
Bíblia imperou tão tiranicamente quanto outrora a tradição. Lessing
foi o que mais contribui para que se libertasse dessa letra tirânica.
Assim como Lutero não foi o único a combater a tradição, Lessing
também não lutou sozinho, mas foi o mais violento contra a letra
(Heine, 1991, p. 85).

3) O terceiro livro de Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha

14
Kierkegaard, S.A. Temor e tremor. Relógio D´Água, Lisboa, 2009.
Heine começa o livro terceiro com uma citação curiosa: uma referência indireta
à obra Frankenstein ou o moderno Prometeu de Mary Shelley15. Sua metáfora é cheia
de significado. Trata-se de uma crítica à concepção deísta e mecanicista inglesa, que se
julgava capaz de criar a própria vida.

Quatro pensadores serão abordados neste livro: Kant, Fichte, Schelling e Hegel.
Sobre Kant, Heine fornece fartos dados bibliográficos e anedóticos, relembrando os
seus célebres hábitos severos, sua pontualidade e sua postura celibatária. Entretanto,
para além de tais considerações, há uma importante percepção da importância da Crítica
da razão pura16 no cenário filosófico germânico: “Dizem que os espíritos noturnos
ficam aterrorizados se se lhes apresentasse a Crítica da Razão Pura de Kant! Esse livro
é a espada com que se executou o deísmo na Alemanha” (Heine, 1991, p. 89)

A primeira coisa a se notar é que a crítica kantiana consegue, no entender de


Heine, ser tão potente do ponto de vista filosófico quanto foram as armas durante a
Revolução Francesa. Em outras palavras, ela fornece o suporte intelectual para uma
mudança de atitude. Além disso, sua Crítica da razão pura ao demonstrar, por meio de
fórmulas matemáticas, qual é a real extensão do nosso conhecimento, terminou por
solapar os últimos fundamentos da metafísica. Tal coisa ocorre quando Kant divide as
coisas em duas esferas: o mundo dos fenômenos (que podemos conhecer) e a coisa em
si (que não somos capazes de conhecer). Ao operar tal distinção, Kant destrói qualquer
tentativa teológica de provar a existência de Deus e qualquer concepção deísta.

Kant também opera, com sua filosofia, algo que ele mesmo denominou como a
revolução copernicana na história do pensamento. Até ele, os filósofos se dividiam em
dois grupos: inatistas e empiristas. Os primeiros se caracterizam como um grupo que ia
de Platão a Descartes, tendo como sua marca a defesa das idéias inatas como forma de
conhecimento. O segundo grupo se caracteriza por defender que as idéia se formavam
na mente na medida em que percebemos as coisas. Tal grupo possuía uma variação que
ia desde alguns antigos pré-socráticos até autores como Hobbes, Locke, Hume. Kant
aponta o acerto e o erro das duas posições. Para ele, nós temos a forma do

15
Shelley,M. Frankenstein ou o moderno Prometeu. LPM, Porto Alegre, 1997.
16
Kant, I. Crítica da razão pura. Martins Fontes, São Paulo, 1993.
conhecimento, mas os conteúdos são dados pela experiência. Desse modo, o pensador
concilia os dois polos e cria uma divisão na história da filosofia ocidental.

Contudo, a despeito de todos os seus méritos, Heine julga que a filosofia de Kant
conduziria naturalmente a um processo de descrença, mas ele, ao contrário de alguns
outros filósofos, não teria tido a coragem de seguir adiante nas suas investigações e
negar, por meio de sua filosofia, a crença em Deus:

Será que, ao destruir todas as provas da existência de Deus, quis nos


mostrar justamente como é desagradável se nada podemos saber da
existência de Deus? Nisso agiu quase tão sabiamente quanto meu
amigo westfaliano que quebrou todos os lampiões da Rua Grohnder,
em Göttingen e, estando nós no escuro, proferiu um longo discurso
sobre a necessidade prática dos lampiões, que quebrara apenas
teoricamente para nos mostrar que nada poderíamos ver sem eles
(Heine, 1991, p. 98).

Ao analisar a filosofia de Fichte, Heine novamente fornece fartos dados


biográficos da vida do filósofo e explora, de forma especial, sua relação de amizade
com Kant. São retratados inúmeros episódios jocosos de sua vida, inclusive, sua célebre
viagem até a cidade onde Kant residia e sua falta de dinheiro para retornar, visto que
Kant também não pôde ajudá-lo financeiramente. Entretanto, além desses dados
biográficos e das histórias engraçadas, nosso autor enfatizará a importância de Fichte
como alguém que radicalizou a subjetividade proposta por Kant, transformando a ideia
do eu em ponto central de sua filosofia. Sua principal obra foi Doutrina da ciência17. No
entender de Fichte, “todas as coisas têm realidade apenas em nosso espírito”.

Além da relação com Kant, outra amizade será fundamental na trajetória


intelectual de Fichte: Goethe. Para Heine, o escritor alemão teria realizado, de modo
literário, o que Fichte realizará em sua filosofia. Entretanto, Heine também crítica a
idéia fichtiana sobre Deus:

17
Fichte, J.G. Fundamentos da doutrina da ciência completa. Colibri, Lisboa, 1996.
De fato não se sabe ao certo se é por ironia ou mero delírio que Fichte
depura o amado Deus de todo ingrediente sensível e, apenas enquanto
tal, possível! A doutrina-da-ciência, diz, não conhece outro ser senão
o ser sensível e, uma vez que só se pode atribuir um ser a objetos da
experiência, esse predicado não pode ser aplicado a Deus. Por isso, o
Deus fichtiano não possui existência alguma, não é, manifesta-se
apenas como puro agir, como uma ordem de eventos, como ordo
ordinans, como lei do universo (Heine, 1991, p. 112).

Seguindo na mesma trilha de Fichte (e dos pós-kantianos), encontramos


Schelling que, no entender do próprio Fichte simplesmente continuou a sua filosofia,
acrescentando-lhe apenas a ideia de natureza. Em outras palavras, Schelling parte do eu
para os fenômenos, mas também acrescenta a natureza a esse eu que parte dos
fenômenos. Schelling é o introdutor da ideia de absoluto. Sua tentativa é intuir o mundo
dos fenômenos a partir do eu e da natureza. Contudo, não consegue obter bom êxito
nesse empreendimento. Com efeito, ele não consegue ir além daquilo que Espinosa já
realizara. Suas propostas terminam no reino da poesia e confundem totalmente ideal e
real, não conseguindo alcançar nenhum tipo de reconciliação. Por isso, Heine ressalta
que seu grande mérito foi prenunciar a chegada de Hegel:

Creio que a trajetória intelectual do senhor Schelling se encerra com a


tentativa de intuir intelectualmente o Absoluto. Agora, entra em cena
um pensador maior, que desenvolve a filosofia da natureza num
sistema acabado, elucida todo o mundo dos fenômenos a partir de sua
síntese, completa as grandes ideias de seus predecessores com ideias
ainda maiores, realizando-as por todas as disciplinas e
fundamentando-as, pois, cientificamente. É um discípulo do senhor
Schelling, mas um discípulo que, no reino da filosofia, aos poucos se
apropriou do poder do mestre, deixou arrogantemente de obedecer-lhe
e, finalmente o lançou na obscuridade. Eis o grande Hegel, o maior
filósofo que a Alemanha já produziu desde Leibniz (Heine, 1991, p.
122-123).

No entender de Heine, com Hegel, “nossa revolução filosófica está encerrada.


Hegel fechou o grande ciclo” (Heine, 1991, p. 123). Seu gigantesco trabalho, tal como o
de Kant, será responsável por uma divisão de águas na história do pensamento. Se Kant,
promoveu a revolução copernicana na teoria do conhecimento e trouxe toda uma série
de pensadores denominados pós-kantianos, caracterizados pela ênfase na subjetividade e
ora esbarrando na poesia e no sentimentalismo, Hegel também trará, na esteira de sua
filosofia, tanto os pensadores que aperfeiçoam o seu sistema quanto aqueles que o
recusam. Por isso, surgiu na filosofia o título de pós-hegeliano. Tal nomenclatura serve
para designar uma gama de autores: ateus, marxistas, existencialistas e niilistas.

Hegel e sua dialética buscam a reconciliação do indivíduo e da natureza, do


indivíduo e do Estado, do indivíduo e do coletivo religioso. Tais questões são capitais
em qualquer filosofia depois do século XIX e por isso espelham, com seus acertos e
seus erros, todo um panorama da história da religião e da filosofia na Alemanha.

Conclusão

Segundo podemos avaliar, o grande mérito da obra de Heine sobre a relação


entre religião e filosofia na Alemanha foi, na verdade, estabelecer uma singular
distinção entre dois tipos de iluminismo, a saber, o iluminismo francês (lumières) e o
iluminismo alemão (Aufklärung). O primeiro tipo de iluminismo ainda que possa fazer
forte oposição à aspectos religiosos, não brota do cerne da própria religião, mas antes se
constrói em torno de um anti-clericalismo particular e, nesse caso, a herança católica
francesa faz toda a diferença. Já o iluminismo alemão nasce, antes de mais nada, do
cerne da própria religião, de uma espécie de compromisso cristão que, posteriormente,
desdobra-se num combate entre crentes, descrentes, apostatas, ateus e agnósticos. Nesse
caso, o protestantismo alemão parece também fazer toda a diferença. Note-se, contudo,
que todas essas categorias brotam do próprio solo religioso e, nesse sentido, talvez a
própria secularização apareça de modo distinto tanto na Alemanha como na França, tal
como também já aponta Marramao em Céu e Terra – genealogia da secularização18.

Seguindo tal senda, Löwith é mais um dos pensadores que irá explorar o
conceito de secularização como algo que brota do solo alemão protestante e, nesse
sentido, mesmo o ateísmo pós-hegeliano do século XIX seria, aos seus olhos, um filho
da Reforma Protestante. Tal tese é defendida com vigor tanto no seu De Hegel a
Nietzsche, onde há menções explicitadas a Heine19 e também no seu O Sentido da
história, onde o Manifesto Comunista de Marx e Engels, por exemplo, nada mais seria
do que uma espécie de novo evangelho secularizado, usando as mesmas categorias do
messianismo judaico e agora aplicando-as ao contexto político20.

18
Marramao, G. Céu e Terra – genealogia da secularização. Unesp, São Paulo, 1997.
19
Notadamente nas pp. 52-53.
20
Notadamente o capítulo II da seguinte obra:
Um outro tipo de exercício, bastante singular e meritório, nos é apresentado pelo
espanhol Arsenio Guinzo Fernández. Com extrema argúcia – e certamente inspirado nas
reflexões de Heine e de Hegel – o autor desenvolve no seu Protestantismo e filosofia,
um inventário que vai dos dias de Lutero a Schopenhauer, mostrando como a recepção
luterana modulou, na verdade, toda a moderna filosofia alemã. Por isso, Nietzsche
parece ter alguma razão quando, no aforismo 10 do Anticristo, afirma que “o pastor
protestante é o avô da filosofia alemã e o protestantismo é o seu peccatum originale”
(Nietzsche, 2007, p.16). Desse modo, o que parece sempre haver fascinado os
estudiosos da filosofia alemã é um encantamento pela história dos seus próprios
pecados ancestrais, que se multiplicaram em inúmeras filosofias.

Referências bibliográficas

Benjamin, W. Origem do drama trágico alemão. Autêntica, Belo Horizonte, 2013.


Espinosa.B. Tratado teológico-político. Martins Fontes, São Paulo, 2008.
Fernández, Arsenio Ginzo. Protestantismo y filosofia – la recepción de la Reforma em
la filosofia alemana. Universidad de Alcalá, Alcalá, 2000.
Feuerbach, L. A Essência do cristianismo. Vozes, Petrópolis, 2009.
Fichte, J.G. Fundamentos da doutrina da ciência completa. Colibri, Lisboa, 1996.
Freud, S. O futuro de uma ilusão. LPM, Porto Alegre, 2010.
Hegel, G.W.F. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal. Alianza Editorial,
Madrid, 1984.

Heine, H. Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha. São Paulo:


Iluminuras, 1991.
Kant, I. Crítica da razão pura. Martins Fontes, São Paulo, 1993.

Kierkegaard, S.A. Temor e tremor. Relógio D´Água, Lisboa, 2009

Leibniz, G.W. Ensaios de teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e


a origem do mal, Estação Liberdade, São Paulo, 2013.

Löwith, K. De Hegel à Nietzsche. Unesp, São Paulo, 2014.

Löwith, K. O Sentido da história, Edições 70, Lisboa, 1991.

Madame de Staël. Da Alemanha. Unesp, São Paulo, 2016.

Löwith, K. O Sentido da história, Edições 70, Lisboa, 1991.


Marramao, G. Céu e Terra – genealogia da secularização. Unesp, São Paulo, 1997.

Nietzsche, F. O Anticristo. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.

Phelan, A. Reading Heinrich Heine. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.


Shelley,M. Frankenstein ou o moderno Prometeu. LPM, Porto Alegre, 1997.
Spener, P.J. Pia Desideria. Imprensa Metodista, S.Bernardo do Campo, 1985.
Spenlé, J. E. O pensamento alemão - de Lutero a Nietzsche. Coimbra: Arménio Amado
Editor, 1963.

SEGUNDA PARTE DA AULA

A Visão de Hegel sobre o protestantismo nas Lições sobre a filosofia da


história universal21

Em suas Lições sobre a filosofia da história universal, Hegel compreende o


protestantismo como um dos elementos centrais e fundadores da modernidade. Esta
obra póstuma do pensador é divida em quatro grandes partes: uma introdução geral,
uma introdução especial, uma análise do mundo oriental, uma análise do mundo grego,
uma análise do mundo romano e, por fim, uma análise do mundo germânico. Após as
introduções, a abordagem acerca do mundo oriental não deixa de ser um relato sobre um
mundo anterior ao processo de civilização ocidental e, portanto, destituído do progresso
característico da nossa civilização, segundo a compreensão hegeliana da história. Nesse
sentido, o mundo greco-romano e o mundo germânico são afirmados como os
momentos centrais do progresso da nossa civilização.

A Reforma Protestante é analisada por Hegel na quarta parte da obra intitulada o


mundo germânico, no capítulo terceiro denominado a idade moderna, sendo o primeiro
dos seus itens. Os demais itens desse capítulo são a consolidação política e espiritual
(da Idade Moderna) e a revolução francesa e suas conseqüências.

Hegel inicia o seu texto afirmando que o protestantismo é um dos princípios da


Idade Moderna. No entender do filósofo, ele representaria a época e um espírito que é

21
Trabalho publicado em: Bezerra, C. (org). Estudos sobre Religião, UFS, Aracaju, 2009, pp.25-34.
consciente da sua liberdade, deseja o universal e aquilo que é eterno em si e para si.
Segundo ele, o protestantismo representa uma espécie de sol que se segue após os
períodos mais sombrios da Idade Média. Seu nascedouro está diretamente ligado a uma
causa: a corrupção da Igreja no período medieval. Assim sendo, para sua correta
compreensão é preciso examinar as suas fontes e também estar consciente de que ele é
um movimento que conseguiu ir além da suas próprias fronteiras, reformando até
mesmo o seu antagonista:

A Reforma nasceu por causa da corrupção da Igreja. Para


compreender esta luta contra a Igreja é necessário ler alguns
escritos de Lutero, pois a Igreja de hoje já não se encontra na
mesma situação que ele combateu, também a Igreja católica
purificou-se por causa da Reforma (HEGEL, 1980, p. 657).

O diagnóstico hegeliano aponta a corrupção na Igreja e o uso de indulgências


como causas da Reforma. Assim sendo, para compreender a Reforma, não basta o
estudo acerca da biografia e da obra de Lutero. O reformador é mais do que um
indivíduo, mas um indivíduo produzido pelo seu tempo. Para Hegel, há motivos
bastante claros e concretos para que a Reforma tenha se dado em solo germânico. Na
época da sua afirmação, os demais povos da Europa estão mais preocupados, no
entender do filósofo, com a expansão de suas fronteiras territoriais e marítimas do que
com seus assuntos internos. Já na Alemanha, conserva-se a idéia de pátria e de uma
espiritualidade interior e de caráter mais introspectivo. Ora, Lutero é um monge, um
indivíduo que enxerga, a partir do seu interior, a corrupção da Igreja e começa a
combatê-la. Sua subjetividade é o ponto alto a ser aqui destacado. No seu entender, a
religião parte do indivíduo e do seu coração. Desse modo, a concepção luterana enfatiza
a liberdade humana e a espiritualidade interna de cada indivíduo como um elo de união
entre o homem e Deus.

A doutrina luterana da comunhão, por exemplo, difere tanto dos demais linhas
da Reforma como dos católicos. Algumas concepções da Reforma, inspiradas
notadamente na teologia de Zwínglio, afirmam existir na Eucaristia apenas a recordação
da presença de Cristo, isto é, trata-se apenas de um ato memorial e de uma lembrança.
Já a concepção católica afirma a presença real de Cristo na Eucaristia, ocorrendo,
inclusive, uma transubstanciação, isto é, uma alteração dos seus elementos
componentes. Em outras palavras, o pão torna-se totalmente o corpo de Cristo e o vinho
torna-se completamente o seu sangue. No entender de Hegel, Lutero rechaça a
concepção de alguns reformados que enxergam na comunhão apenas uma lembrança ou
recordação, mas também não subscreve a concepção católica de transubstanciação. A
concepção luterana afirma a presença real de Cristo na Eucaristia, tal como os católicos,
mas afirma que tal presença se dá na fé e no espírito e não materialmente.

Além da compreensão da Eucaristia, a distinção que Lutero realiza entre fé e


obras o afasta, no entender de Hegel, ainda mais fortemente de qualquer concepção
católica. No entender do reformador, as obras de beneficência operadas pelos cristãos
sempre devem ocorrer em razão e como conseqüência da sua fé, ao passo que o
catolicismo concebe as boas obras como pontos centrais da sua doutrina e, notadamente,
da sua doutrina de salvação. Há aqui um novo confronto entre a interioridade enfatizada
por Lutero e a exterioridade defendida pela concepção católica.

Ao contrário do catolicismo, Lutero enfatiza uma doutrina denominada como


sacerdócio universal dos fiéis. Nela, cada cristão é compreendido como um sacerdote,
devendo exercitar tal vocação no lugar e nas condições concretas onde vive. No
catolicismo medieval, o sacerdócio era algo compatível exclusivamente com o mundo e
com a vocação dos religiosos. Naquela sociedade, fortemente hierarquizada, as divisões
entre os reis (que deviam governar), os guerreiros (que deviam guerrear) e os sacerdotes
(que deviam rezar e se dedicar à vida contemplativa) não era algo discutível ou
questionável. A proposta luterana altera tal panorama e iguala o laico ao religioso, isto
é, ela não acredita mais em mosteiros, conventos e em ordenações eclesiásticas como
únicos espaços do sagrado. O sagrado deve tomar conta do mundo todo e Lutero
desautoriza a tese de que alguns estariam destinados a rezar pelos demais. Seu intuito é
transformar o mundo todo num lugar sagrado. Com efeito, não é mais preciso ser
religioso para ser sacerdote, ele coloca o sacerdócio ao alcance de todos e faz dele pedra
angular e, inclusive, obrigatória de toda a sua teologia.

Hegel, evocando aqui algumas das teses de Joaquim de Fiore, analisa a Reforma
como uma espécie de Reino do Espírito, contrapondo-a ao período medieval que seria,
no seu entender, um período marcado por discussões acerca do Reino do Filho. A
Reforma, ao romper com a antiga concepção medieval, sugere não apenas a liberdade
do Espírito, mas também a busca por um universal. Lutero apresenta, a partir da sua
própria vida, um caminho em busca do Espírito, partindo da subjetividade e tentando
objetivar-se. Um dos conteúdos centrais da Reforma luterana é a determinação que esta
fornece ao homem para que o mesmo seja livre. Este será um dos princípios da Idade
Moderna, isto é, a autonomia do sujeito, que sempre pensa o mundo a partir da sua
subjetividade. Nesse sentido, Lutero opera uma reconciliação do mundo com a religião,
contribuindo com a fundamentação racional do Estado moderno:

O direito, a propriedade, a eticidade, o governo, a


constituição, etc, necessitam agora ser definidos de um modo
universal, a fim de que se ajustem ao conceito de vontade livre e
resultem racionais. A religião e o Estado se encontram desde
então em harmonia, pois ambos tem a mesma missão; verifica-
se a verdadeira reconciliação do mundo com a religião
(HEGEL, 1980, p. 661).

Para Hegel, porém, a despeito de seus desdobramentos políticos e sociais, a


Reforma se desenvolve primeiramente no âmbito eclesiástico, isto é, ela ocorre nesse
âmbito, ao menos inicialmente. A polêmica de Lutero com a autoridade eclesiástica é
decorrente da sua interpretação do texto sagrado e revela, com muita clareza, a
consciência atormentada de um monge que deseja servir melhor a Deus e à sua Igreja.
Contudo, a partir de tal inquietação, desenvolve-se em Lutero a tese do livre-exame da
Bíblia, contrapondo-se esta a qualquer interpretação fornecida pelo magistério da Igreja
ou pelas autoridades. Em outras palavras, a Bíblia começa a firmar-se aqui como a única
autoridade capaz de interpretar-se a si mesma.

A partir da tese do livre-exame das Sagradas Escrituras é que se pode


compreender a concepção que os alemães possuem da tradução luterana da Bíblia como
o livro germânico por excelência. Em outras palavras, o denominado iluminismo
alemão nasce com Lutero e com a Reforma Protestante. Por isso é que somente aqueles
que compreendem a Reforma e sua importância para o pensamento alemão estão
plenamente aptos para compreender o que significa o iluminismo alemão. As Luzes da
Alemanha se constituem, acima de tudo, num projeto protestante. Por isso é que, não
fortuitamente, autores que parecem tão alheios ao modo hegeliano de filosofar como
Heine e Nietzsche, partem desse mesmo ponto comum: Lutero é o início da filosofia
moderna alemã. Tal como se pode constatar na forma irônica como Heine descreve a
figura do reformador e sua importância para os alemães:

Esse homem era Martinho Lutero, o pobre monge escolhido pela


Providência para romper o poderio mundial romano, contra o
qual os imperadores mais poderosos e os sábios mais astutos já
haviam inutilmente lutado. A Providência, no entanto, sabe
muito bem em que ombros põe os seus fardos; aqui não era
necessário apenas força espiritual, mas também força física.
Para suportar os esforços dessa tarefa, era preciso de um corpo
fortalecido desde a juventude pela austeridade e castidade
monásticas (HEINE, 1991, p. 39).

Ou, tal como Nietzsche, preferia observar, com igual ironia, Lutero seria uma
espécie de monge fracassado, alguém incapaz de enxergar as boas conquistas do
Renascimento e que, ao invés de agradecer aos céus, pelo final do cristianismo na sua
própria sede, decide reformá-lo:

Um monge alemão, Lutero, foi à Roma. Este monge, que levava


em seu corpo todos os instintos de um sacerdote fracassado, se
indignou em Roma contra o Renascimento... Em lugar de
compreender, com a mais profunda gratidão, o enorme
acontecimento que havia ocorrido, a superação do cristianismo
na sua própria sede” (NIETZSCHE, 2002, p. 120).
Hegel aponta que a própria idéia de um livro nacional que sirva para a afirmação
da identidade individual de um povo é extremamente curiosa. Afinal, muitas nações,
segundo ele, sequer podem pleitear a adoção de um livro nacional, visto que seus
cidadãos sequer sabem ler. No protestantismo, tal coisa não ocorre, pois todos devem
ser alfabetizados para ler o texto sagrado e utilizá-lo como a autoridade máxima para a
sua vida moral e de fé. Há aqui uma crítica acentuada do filósofo aos países católicos
que, no seu entender, inibem o livre-exame das Sagradas Escrituras.

A reforma política, segundo a concepção hegeliana, é conseqüência da reforma


religiosa. Para Hegel, a Igreja Católica da época da Reforma é uma instituição que,
apesar de tudo, possui um contato com o pensamento grego e humanístico. Mesmo a
sua relação com o poder, notadamente com a corrupção e as indulgências no período
medieval, não retiram dela a sua herança humanística. Já o protestantismo terá sérios
problemas na relação com o pensamento humanístico. Ao combater as indulgências e a
corrupção, o protestantismo, segundo Hegel, acaba por exagerar e abrir mão também da
herança humanística da Igreja. Nesse sentido, a tese nietzschiana, que denuncia Lutero
como um anti-humanista, pode ter maiores afinidades com a leitura hegeliana do
reformador do que costumeiramente se pode imaginar. O pior em todo esse processo é
que o próprio catolicismo, depois da Reforma, também perde sua herança humanística.
Por isso, não parece despropositado aqui estabelecer algumas conexões entre a
leitura hegeliana da Reforma e a crítica da mesma estabelecida também por Troeltsch e
Spenlé. É um fato notório que a cultura moderna mantém fortes laços com a cultura
eclesiástica. Contudo, historicamente, a cultura antiga (e pagã) termina com o
surgimento do cristianismo e a Idade Média reflete um pouco da antigüidade tardia e do
cristianismo. Nesse sentido, nem mesmo o protestantismo, pode ser enfocado como
único responsável pelo surgimento da cultura moderna. Afinal, ela é uma ruptura - ainda
que com limites - com tudo aquilo que a antecedeu. Entretanto, o que caracteriza o
protestantismo é que ele parece ter maior flexibilidade para lidar com a autonomia do
indivíduo do que o catolicismo, tal como explicita Troeltsch: “Somente o catolicismo
rigoroso se mantém apegado à velha idéia de autoridade e mostra-se no mundo moderno
como um enorme corpo estranho...”(TROELTSCH, 1958, p. 17).

Nesse sentido, o protestantismo não deixa de ser uma reelaboração da Idade


Média, caracterizando-se por uma relação de repulsa e, ao mesmo tempo, afinidade com
a cultura moderna. O que diferencia o protestantismo do catolicismo é sua peculiar
relação com o capitalismo nascente e sua eterna crise eclesiológica com suas múltiplas
divisões. Todavia, a austeridade protestante quanto ao indivíduo parece se constituir
numa espécie de resquício do que existiu de mais severo na Idade Média:

Contudo, em sua visão fundamental das relações entre


indivíduo e comunidade, o protestantismo é totalmente o contrário do
puramente individualista e sem autoridade. Pelo contrário, em quase
todos os ramos principais, ele é surpreendentemente conservador. Não
conhece, descontando-se os grupos batistas radicais, a idéia de
igualdade e jamais propôs a formação livre da sociedade pelos
indivíduos. Se alguma vez existiu a igualdade, isso foi no estado de
inocência do Paraíso, mas não se pode falar disso no mundo do
pecado (TROELTSCH, 1958, p. 80).
Para Troeltsch, a suposta vanguarda do protestantismo é colocada em xeque
quando observada em relação à ciência moderna, por exemplo. Segundo ele, não há
nenhum impulso para a ciência proveniente do protestantismo propriamente dito. Seu
mérito reside no fato dele secularizar a ciência, retirando-a dos meandros eclesiásticos,
tal como ela se encontrava na Idade Média. Nesse sentido, o protestantismo serve como
um preparador do terreno para a cultura moderna. Contudo, no seu entender, ele, tal
como Hegel, julga que a primeira preocupação do protestantismo é sempre de fundo
religioso. Por isso, para Spenlé, a teologia luterana se constrói em oposição ao
pensamento especulativo escolástico. Em outras palavras, no seu entender, não
importava ao fiel luterano conhecer a Deus, como buscava a escolástica, mas crer nele:

A este princípio racional do ‘conhecimento’, Lutero opunha o


princípio irracional da ‘Fé’. O ‘crer’ não implica de maneira alguma o
‘conhecer’. É acima de tudo obedecer passivamente ao apelo, à
vontade de Deus expressa pela sua Palavra. Não é num sistema lógico
de verdades nem numa autoridade exterior representada pela Igreja,
mas unicamente na Palavra, no apelo pessoal de Deus, que o crente
luterano encontra a sua certeza interior (SPENLÉ, 1963, p. 12-13).
A Reforma se estabelece, portanto, para Hegel, como um evento germânico por
excelência e não consegue avançar em países católicos. Para a concepção hegeliana, tal
coisa ocorre tendo em vista que nos países católicos existe uma interioridade frágil.
Contudo, isso não significa dizer que o protestantismo é aceito por todos os homens de
cultura. Na França, por exemplo, os homens mais cultos possuem um sério problema
com o protestantismo por causa do seu rigorismo moral e da tristeza que esse
proporciona.

Do ponto de vista político, há um dado positivo apresentado pelo protestantismo:


ele advoga uma reconciliação entre o homem e Deus. Tal coisa faz com o homem
cultive a consciência da liberdade e se encaminhe em direção ao Espírito. A partir daí, a
ética protestante alcança a sua compreensão acerca do Estado e a da própria religião. O
ganho aqui se apresenta exatamente no fim de qualquer obediência cega. A
reformulação ética ocorre sempre no coração do indivíduo, isto é, a partir da sua
interioridade. Todavia, qualquer idéia sobre o mal, também é advinda do interior de
cada indivíduo. É por isso que, não fortuitamente, o protestantismo também teve, a
partir do interior dos indivíduos, seu processo de caça às bruxas que não precisavam
apresentar, necessariamente, qualquer sinal exterior de bruxaria.

Para Hegel, a afirmação política do protestantismo ocorre depois das guerras de


religião na Alemanha. A nova configuração européia se altera profundamente depois de
tais eventos. O que caracteriza, entretanto, tal situação é que os países católicos
possuem, em geral, o Estado como o seu braço civil, ao passo que o protestantismo
divide mais claramente Igreja e Estado, abrindo um germe para a secularização, ao
menos no modelo luterano. As experiências protestantes ocorrem ainda em países como
Bélgica, Holanda e Inglaterra, mas são frutos de um segundo desdobramento do próprio
movimento e possuem uma matriz calvinista que, por sua vez, diferencia-se do modelo
luterano, que aqui almejamos averiguar.

Referências bibliográficas

- HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal, Trad.


José Gaoes. Madrid: Alianza Editorial, 1984.
- HEINE, Heinrich. Contribuição à história da religião e da filosofia na
Alemanha, tradução e notas de Márcio Suzuki, posfácio de Wolfgang Wieland,
Iluminuras, São Paulo, 1991.
- NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo - maldición sobre el cristianismo,
tradução e notas de Andrés Sánchez Pascual, 5ª reimpressão, Alianza Editorial,
Madrid, 2002.
- SPENLÉ, J. E. O pensamento alemão - de Lutero a Nietzsche, tradução de
Mário Ramos, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1963.
- TROELTSCH, Ernst. El protestantismo y el mundo moderno, tradução de
Eugenio Ímaz, 2ª edição, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1958.
SEGUNDA DIA (DIA 12.07)

PRIMEIRA PARTE DA AULA

A essência da fé segundo Lutero: um texto de Feuerbach

1) O contexto de A essência da fé segundo Lutero de Feuerbach

Parece praticamente um lugar comum na história do pensamento, a afirmativa de


que Feuerbach foi uma espécie de profeta do ateísmo humanista do século XIX. A
titulação conferida, que evoca tanto o lado religioso, não parece injusta quando aplicada
ao pensador alemão. Entretanto, surge aqui um problema com a nomenclatura: o que se
almeja dizer quando se denomina alguém assim? Se o intuito é dissertar acerca de um
sujeito, de um homem individual, filho de um mundo desencantado – e também filho da
Reforma Protestante – a pista merece ser seguida mais com mais vagar.

Diferentemente de Kierkegaard, seu quase contemporâneo, que parece não ter


tido outra saída senão preconizar o sacrifício do intelecto em favor da fé, Feuerbach não
procede de tal maneira e antes termina por se inserir nos chamados mestres da suspeita,
somando-se nessa empreita talvez junto com autores como Nietzsche, Freud e Marx,
antes mesmos destes ficarem conhecidos como tal, já no século XX.

Interessa-nos investigar aqui a leitura que Feuerbach realiza acerca de Lutero


notadamente em sua obra A essência da fé segundo Lutero. Trata-se de um pequeno
texto denominado por Arroyo, juntamente com alguns outros, como Escritos em torno
da Essência do Cristianismo22, pois gravitam em torno dessa que foi a principal obra do
autor para a investigação do cristianismo e que- até os dias atuais – é referência
obrigatória para sua análise do fenômeno do cristianismo. Contudo, esses textos, que
ora podem parecer marginais ou menores, revelam-se como fundamentais para a
investigação da mesma temática e, notadamente se o objeto a ser pesquisado é a crítica
do cristianismo, eles se tornam referências essenciais.

22
FEUERBACH, Ludwig. Escritos en torno a La esencia del cristianismo. Tradução e notas de
Luis Miguel Arroyo Arrayás. Madrid: Tecnos, 2001.
Luis Arroyo defende a tese de que o ateísmo de Feuerbach é extraído do próprio
cristianismo, isto é, Lutero seria uma espécie de precursor da descrença e o primeiro a
operar tal coisa de modo tão categórico segundo o pensador 23. O cristianismo, tal como
Feuerbach o concebe, representa o fim da crença em qualquer divindade e, nesse
sentido, até mesmo ele é uma espécie de ateísmo, ainda que tal coisa não fique clara ou
seja diretamente confessada. Por isso é que Max Stirner, autor da célebre afirmação de
que Feuerbach era um piedoso ateu, parece ter algum fundamento na sua brincadeira
quando diz que até o ateísmo de tal autor se afirma de modo religioso. Afinal, o
desencanto também é uma faceta da religião, talvez da nova religião.

Com efeito, Lutero passa a ser um aliado de Feuerbach e o precursor de uma


espécie de cristianismo que é uma auto-afirmação do homem. Nessa perspectiva, o
próprio cristianismo já é visto pelo filósofo como autônomo, tal como se pode constatar
na obra A Filosofia Moderna de Bacon de Verulam até Bento Spinoza (1833). A tão
propalada distinção entre Hegel e Feuerbach parece se acentuar aqui, isto é, a oposição
essencial entre fé religiosa e razão. Entretanto, nas obras que escreveu sobre Leibniz
(1837) e sobre Pierre Bayle (1838), o protestantismo, segundo a visão feuerbachiana,
passa a adquirir um outro traço: o da irracionalidade. A pergunta a ser aqui perseguida é
como se dá tal alteração interpretativa.

A partir de 1842, Lutero vira novamente o referencial para o ateísmo. Antes, em


1841, tal como pode ser constatado na Essência do Cristianismo, há poucas referências
a Lutero, Calvino e outros autores protestantes. Tal coisa parece provar que o tipo de
cristianismo mais fortemente criticado nessa obra é de matriz católica. Nesse sentido, e
levando em conta observações feitas por teólogos protestantes (como J. Muller, por
exemplo) à 1ª edição da obra, Feuerbach reformulará algumas de suas teses exatamente
por julgá-las mais apropriadas ao catolicismo.

Julgamos que há aqui uma importante chave para a compreensão de tal questão:
a diferença entre o que o protestantismo e o catolicismo compreendem por Deus. O
catolicismo acredita num Deus para si, ao passo que o Deus protestante é voltado para o
homem. Em outras palavras, O Deus católico é um Deus-Homem, enquanto o

23
ARROYO ARRAYÁS, Luis Miguel. “Yo soy Lutero II” – La presencia en la obra de L.
Feuerbach. Salamanca: Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 1991.
protestante acredita num Homem-Deus. Logo, o protestantismo é, por definição, mais
próximo do aspecto antropológico.

Contudo, o protestantismo ainda mantém o supranaturalismo e aqui reside a sua


contradição. Sua verdade oculta é, na verdade, o ateísmo. Desse modo, o objetivo do
filósofo não é outro senão levar adiante a obra que Lutero começou, mas não terminou,
isto é, o desvelamento completo de todas as coisas, o frente a frente com a descrença.

Desse modo, julgamos que é em tal contexto que se insere a obra A essência da
fé segundo Lutero. Nela discute-se claramente não apenas os escritos do reformador e
sua interpretação, mas o próprio significado da proposta feuerbachiana de uma filosofia
do futuro ou de negação da antiga filosofia. Desse modo, cabe notar que o princípio
sensualista é proveniente de Lutero. A ênfase na encarnação de Cristo é uma prova
contundente de tal tese. Ela é a prova da tese do Homem-Deus. Por isso, Cristo, segunda
pessoa da trindade, adquire um peso fundamental em toda a obra feuerbachiana. Para
autores como J. Glasse e H.H. Brandhorst a ênfase do pensador na figura de Lutero
também não é gratuita. Tal coisa se daria por uma afirmação política e estratégica
dentro do contexto prussiano. Lutero é o ponto de partida da modernidade alemã, com
tudo o que isso possa significar para mais ou para menos.

A doutrina luterana é oposta à consciência humana, isto é, oposta ao entendimento e


ao sentimento humanos. Desse modo, Lutero parece se opor a tese central da Essência
do Cristianismo. Para o reformador, Deus é um totalmente outro transcendente, ao
passo que, para o filósofo alemão, Deus é totalmente imanente e, por esse motivo, toda
a teologia se reduz a antropologia. A questão que aqui se coloca é como o homem chega
a fazer tal distinção proposta por Lutero, ou seja, como o homem se rebaixa e Deus
acaba sendo elevado. Qual a diferença entre aquilo que constitui a essência do
cristianismo e aquilo que é a sua aparência.

Nesse sentido, Deus e o homem não são contrários segundo cogita Feuerbach. A
necessidade que os homens possuem de Deus se dá por ele ter aquilo que os homens
não têm e almejam possuir. Caso não fosse assim, a existência de Deus seria
completamente indiferente para os seres humanos que, a rigor, não teriam como se
aproximar do ser divino. Note-se, por exemplo, que as propriedades que atribuímos aos
homens são gradativamente menores que as propriedades atribuídas a Deus. Conceitos
como bondade e justiça, por exemplo, são propriedades fundamentais de Deus e, em
grau menor, também são atribuídas aos homens.

Os pensadores antigos divinizavam a natureza. O passo adiante de tal concepção é


atribuir aos homens propriedades divinas, tal como a bondade e a justiça. O homem
passa a ter, portanto, propriedades divinas. Quebra-se, desse modo, o fundamento dos
rituais mágicos e a necessidade de um ser divino. Para Feuerbach, tal coisa representa o
fim da servidão, pois, no seu entender, toda escravidão possui um fundo teológico na
medida em que Deus se configura como uma espécie de necessidade. Ele parece,
segundo tal compreensão, mais importante aos fracos do que aos fortes. Afinal, os que
possuem maiores necessidades parecem, a princípio, carecer mais de um auxílio divino
do que aqueles que possuem autonomia e se sentem livres das necessidades básicas.

É dentro desse contexto que se insere também a distinção entre católicos e


protestantes, isto é, a distinção entre as boas obras católicas e o princípio protestante da
graça imerecida. Na concepção de Feuerbach, aquilo que um homem deixa de fazer,
Deus termina por fazer por ele, tal como, numa relação entre um casal, uma mulher
termina por fazer coisas para o seu esposo:

Deus e homem se contrapõem como marido e mulher, uma


comparação frequentemente usada por Lutero e, em geral, pelos
cristãos. Se a mulher cozinha, lava e passa para mim, não
necessito cozinhar, passar e lavar eu mesmo; quando a mulher é
ativa eu sou inativo, se ela é algo eu sou um nada. Em suma, o
que eu tenho na mulher não necessito ter em mim mesmo, pois o
que é da mulher é certamente do marido, ainda quando a mulher
é outra realidade, um ser distinto do marido (FEUERBACH,
2001, 17-18).

Ao retomar a discussão acerca da graça divina, Lutero, segundo Feuerbach, traz


à tona as teses agostinianas. Aliás, cabe lembrar aqui que o reformador era um monge
agostiniano e nunca deixou de afirmar tal concepção na sua teologia. Tal distinção pode
ser muito fortemente percebida na ênfase luterana no pro nobis cristão, isto é, a paixão
de Cristo é para os homens. Não se trata de um em si, como advoga a concepção
católica. Feuerbach observa, com extrema pertinência, que em alemão a palavra Deus
(Gott) deriva da palavra gut (bom). Ora, nada pode ser bom para si, mas somente pode
ser bom na medida em que pode ser bom para um outro. Desse modo, a tese protestante
do pro nobis é cada vez mais reforçada.

Ser bom equivale a amar. Logo, Deus, o sumo bem, só pode ser amor. A saída
protestante parece retirar o homem do abstrato, pois passa a enfatizar não apenas a
figura de Deus como criador da natureza, mas também como criador do homem. Se
Deus é bom para o homem tal coisa se dá em virtude dele possuir sentimentos humanos.
A prova cabal de tal tese é a encarnação de Cristo. Nela a própria idéia do limite da
morte é atenuada e se torna reconciliação ou liberação. Por isso, não fortuitamente,
mesmo nos sacramentos, a imaginação precisa se materializar e, por esse motivo, o pão,
o vinho e a água aparecem enfaticamente marcados.

Feuerbach observa que Deus é uma espécie de espírito ou combustível, enquanto


Cristo representaria o corpo, isto é, a parte sólida. Para ele, por exemplo, crer na
promessa de Abraão é algo material e expressa coisas muito concretas como amizade,
filantropia e relações afetivas e do coração. Nesse sentido é que se pode compreender
Cristo como uma personificação do amor divino:

‘Fora de Cristo não há complacência de Deus no homem’; ‘só


em Cristo Deus ama os homens’, como o próprio Lutero afirma.
Por quê? Porque Deus não pode amar o homem, porque não
pode ter nenhuma complacência nele, se o homem não é homem
em si mesmo, propriamente dito. Só em Cristo, não em si
mesmo... (FEUERBACH, 2001, 56)

Com efeito, Feuerbach, intérprete de Lutero, avalia que a encarnação é, ao


mesmo tempo, a divinização do homem. Nela um Deus humano surge da própria
essência humana. Esse binômio Deus-Cristo acaba por enfatizar a adoração do humano.
Em outras palavras, aquilo que Deus é para mim torna-se um Deus mais forte. Por isso,
a fé humana é boa e a descrença é algo ruim e, ao mesmo tempo, não humana. Mal e
bem passam a conviver sob o mesmo signo, como faces da mesma moeda.
Segundo Feuerbach, a posição de Lutero é profundamente crítica da metafísica.
Para o teólogo, Cristo representaria o fim da abstração metafísica. O clássico embate
entre suas teses acerca da teologia da cruz contra as teses de uma teologia da glória
divina deixam claro o seu tipo de posicionamento. O Cristo luterano é muito mais o
sofredor da cruz do que o Cristo glorioso da ressurreição. E é exatamente aqui que
reside a semente da descrença feuerbachiana, isto é, Deus passa a ser visto como
necessário para fora de si mesmo. Com efeito, seu fundamento reside no homem.

Um Deus que se faz propositalmente carente por amor parece ser a marca do
Cristo luterano. Nesse sentido, o amor ao homem passa a ser a essência suprema do ser
divino. O amor é visto como uma obra, como um esforço. Deus se aproxima do homem
ao fazer tal esforço. Feuerbach compreende tal coisa como humanização do divino,
como desencanto.

No bojo da hierarquia luterana há uma clara divisão. O primeiro posto é ocupado


pela fé e, por esse motivo, qualquer obra ou esforço não é capaz de alcançá-la. Em tal
posto ocorre uma primazia do eu. Tal afirmação da subjetividade é de origem
agostiniana e encontrará forte eco também naquilo que se convencionou denominar de
filosofia moderna e é, por sua vez, oriunda da filosofia socrática. Por isso, e não
fortuitamente, Feuerbach afirmava que o tema da sua Essência do Cristianismo era o
“conhece-te a ti mesmo”. O segundo ponto da hierarquia é ocupado pelo amor. Surge
aqui a afirmação do amor ao próximo e este sempre está subordinado ao primeiro ponto,
isto é, ao ato de fé, ao eu. Quando o homem crê, no entender de Feuerbach, ele se
afirma como um Deus e, ao mesmo tempo, ele humaniza o divino.

Nesse sentido, Feuerbach aponta pistas para compreendermos a distinção entre


duas figuras da trindade: o pai e o filho. Para o filósofo, o pai espelha o presente
enquanto o filho representa o futuro, a promessa. O cristianismo, enquanto religião da
esperança, coloca forte ênfase na figura do filho. O coração e o sentimento seriam
marcas de tal concepção e Feuerbach, tal como também já fizera Schleiermacher,
enfatiza o coração e o sentimento, ainda que discorde dele 24. O pecado nada mais seria
do que uma morte que precisa ser superada. Com efeito, é sempre necessária uma
vitória do sentimento e do coração. No léxico feuerbachiano: uma aposta na filosofia do
futuro.

24
Tal debate com Schleiermacher aparece explicitamente na Essência do Cristianismo.
Referências bibliográficas

FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus Editora, 1997.

HEINE, H. Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha. São Paulo:


Iluminuras, 1991.

LÖWITH, K. De Hegel à Nietzsche. Paris: Gallimard, 1969.

NIETZSCHE, F. O Anticristo: maldición sobre el cristianismo. Madrid: Alianza


Editorial, 2002.

PHELAN, A. Reading Heinrich Heine. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.


SPENLÉ, J. E. O pensamento alemão - de Lutero a Nietzsche. Coimbra: Arménio
Amado Editor, 1963.

1) O Exercício do Cristianismo de Kierkegaard: o cristianismo como crítico da


cultura25

Antes de uma aproximação mais efetiva dessa obra kierkegaardiana, resta talvez
uma pergunta: pode haver um Cristo da filosofia e outro do culto e da religião?
Como bem sugere Jaeger, nas primeiras linhas de Cristianismo primitivo e paideia
grega (Jaeger, 1991, pp. 13 e ss.), o debate entre cristianismo e cultura é gigantesco
e, talvez, já tenha sido melhor realizado, por exemplo, por autores protestantes do
século XX como Emil Brunner e Karl Barth. Entretanto, como já pudemos atestar
também em Cassirer, tal questão é, antes de mais nada, igualmente filosófica, visto
que é a recuperação da discussão entre filosofia e teologia, entre temas que transitam
entre a razão e a fé revelada. Desse modo, a obra O Exercício do cristianismo de
Kierkegaard comporta tal contexto. Assim, a questão que pode ser o mote dessa
obra kierkegaardiana é: haveria uma proposta filosófica a partir de Cristo? Se
existisse, em qual grau seria possível?

25
Trabalho publicado em Revista Brasileira de Filosofia da Religião, aqui apresentada com pequenas
modificações: http://abfr.org/revista/index.php/rbfr/article/view/71
Seguindo uma senda antiga, já aponta por Santo Agostinho, Erasmo e
desenvolvida mais fortemente por Hegel nas Lições de Filosofia da Religião,
Kierkegaard é mais um dos autores que fará uma comparação entre a figura de
Sócrates e Cristo. Contudo, mesmo consciente da analogia e realizando-a mais
detidamente na sua obra O Conceito de Ironia, ele próprio faz tal aproximação,
ciente também das distâncias e, como gostava de afirmar, das dissemelhanças entre
o filósofo grego e a figura de Cristo. Com efeito, Kierkegaard será um crítico severo
do ideal de um Cristo filosófico que, na sua percepção, mais do que talvez afirmar-
se na obra do próprio Hegel, foi coroado no hegelianismo do século XIX. Nepi,
estudioso italiano da obra de Kierkegaard, aponta com clareza a crítica produzida
pelo autor de Copenhague:

O Cristo da filosofia, para Kierkegaard, não é outro que uma


caricatura do Cristo da fé, como o era para Pascal (1623-1662) o
Deus dos filósofos em comparação com o Deus de Abraão, de
Isaque e de Jacó. Aquele Deus que, também segundo Pascal, o
homem pode conhecer plenamente somente através de Jesus
Cristo (Nepi, 1992, p. 13).

Como já bem alertava Nietzsche no aforismo 10 de O Anticristo, na Alemanha o


sangue de teólogos e filósofos está absolutamente misturado (Nietzsche, 2009,
p.16). Partilha da mesma percepção Heine no seu inventário Contribuição à história
da religião e da filosofia na Alemanha e, mais contemporaneamente, o fez Karl
Löwith no seu O Sentido da história e em De Hegel a Nietzsche. Logo, o contexto
germânico é, desde o advento da Reforma, muito particular para que possamos
compreender tanto o legado de Hegel como as críticas produzidas por seus
opositores. Kierkegaard está exatamente dentro desse quadro. Curiosamente, tal
legado avança, inclusive, para além do âmbito eclesiástico e, no contexto
germânico, misturam-se inúmeras vezes tanto o contexto eclesiástico como o
contexto acadêmico e universitário. Por isso, em inúmeras ocasiões da obra
kierkegaardiana, críticas acadêmicas terminam por resultar também em críticas
eclesiásticas e, por sua vez, críticas eclesiásticas ampliam-se para críticas do
contexto universitário e, diríamos, de cultura geral, tal como se poderá constatar, por
exemplo, na obra inacabada de Kierkegaard denominada O Instante que é, ao
mesmo tempo, uma crítica da Igreja dinamarquesa e da cultura. Por isso, Nepi
aponta, tendo em vista o contexto italiano, a diferença entre o seu país e o contexto
germânico:

Ocorre pois, ter presente, um fato importante, ligado ao sistema


universitário alemão, que não encontra comparação na
instituição acadêmica italiana de hoje. A ligação filosofia-
teologia é, na Itália, menos incisiva que em outros países, como
a Alemanha, onde as faculdades de teologia gozam nas
universidades estatais de um reconhecimento e de um prestígio
cultural entre nós desconhecido (Nepi, 1992, p. 13).

Tal comparação, como se pode notar, não se restringe apenas ao contexto


italiano, isto é, entre outros povos latinos, a saber, portugueses, espanhóis e
franceses, o problema se coloca, a despeito de diferenças pontuais, da mesma e,
portanto, a afirmação de Nepi não nos é indiferente. Cabe ressaltar que o debate, tão
marcadamente germânico entre cristianismo filosófico e cristianismo teológico, que
inúmeras vezes se misturam, não deixa de espelhar, de certo modo, o debate mais
antigo entre a religião grega e a religião hebraica, que também parecem se
amalgamar em alguns momentos e ambas, é bom que lembremos, foram formadoras
do cristianismo tal como o conhecemos.

Rigorosamente falando, a própria concepção de teologia racional ou natural,


muito antes de estar próxima da tese judaico-cristã, já tinha proximidade com a
metafísica aristotélica. Logo, quando na modernidade, Leibniz denomina um projeto
como teodiceia não o faz de modo gratuito, mas por haver um suporte para tal
concepção. É o mesmo tipo de suporte que permitirá a Hegel, já no século XIX,
articular sua proposta de filosofia da religião. Ali, o pensador alemão, irá explorar a
tese de Sócrates como um mestre da moral, aproximando-o da figura de Cristo.
Kierkegaard encontra-se exatamente dentro desse escopo intelectual. Contudo, é
aqui que também podemos perceber com clareza, tal como enfatiza Nepi, a
diferença de sua proposta:
Também Kierkegaard, acolhendo a interpretação socrática
proposta pela cristologia iluminista, verá em Sócrates ‘o
campeão da ética natural’. Ele todavia, contrapõe ao filósofo
ateniense, em nome dos direitos superiores da religião a respeito
da ética puramente natural, o ‘paradoxo’ e o ‘escândalo da fé’.
Cristo, segundo Kierkegaard, pode ser de fato alcançado
somente passando de uma atitude ética (Sócrates) a uma atitude
religiosa (Abraão), através do ‘salto’ da ratio a fides (Nepi,
1992, p. 25).

Em outras palavras, Kierkegaard recupera um tema tradicional da teologia: o


conceito de “metanóia” (também tomada por conversão). Há, portanto, uma articulação
que tenta superar um tipo de conversão intelectual proposta por Sócrates e almeja
alcançar uma conversão de ordem religiosa. Nesse mesmo contexto ainda podemos
observar inúmeros outros autores. Hamann, por exemplo, na sua obra Memórias de
Sócrates, apontava Sócrates como uma espécie de proto-Cristo, Fichte na obra Crítica
de toda a revelação apontava Cristo como o modelo de um profeta inspirado, o mesmo
podemos observar no romantismo de Schelling e também nos escritos juvenis de Hegel,
especialmente nas suas obras Vida de Jesus e Espírito do cristianismo e seu destino.
Contudo, sempre parece se afirmar a aversão kierkegaardiana a ideia de um Cristo dos
filósofos. Por isso, podemos observar na sua obra um aspecto diferente da posição
hegeliana, que almejava uma reconciliação (Versöhnung) entre uma moral ao modo
grego e uma moral judaico-cristã. Assim, há uma trama entre religião universal e
religião judaica e também entre o conflito subjetivo e objetivo, que igualmente marca os
primórdios do cristianismo.

A despeito de estar inserido nesse mesmo ambiente intelectual, Kierkegaard


marca posição contrária a essa tese. Por isso, rigorosamente falando, seu pensamento se
insere dentro daquilo que ele próprio denominará como um ‘pensamento religioso’, uma
espécie de hábil dialética que cobra da posição hegeliana no século XIX o fato de o
paradoxo e o escândalo terem sido extirpados do pensamento, coisa que sequer a
filosofia antiga havia feito. Assim, ele almeja não fazer uma reconciliação ou dar uma
resposta que consiste numa síntese, mas em apontar, ao contrário do que fazia Hegel em
Fé e saber, a impossibilidade de existir uma espécie de “sexta-feira santa especulativa”.
Desse modo, a cristologia kierkegaardiana, que é especialmente exposta em
Exercício do cristianismo, é diversa da cristologia especulativa, alcançando um viés
existencial. Ela evoca as lembranças da infância do pensador que, seguindo o que lhe
dizia seu pai, sempre procurara amar verdadeiramente Cristo. Assim, o menino diante
do crucifixo representa uma busca pela primitividade, pela ingenuidade, pelo espanto. É
a partir desse cenário que podemos compreender o tema central da obra, a saber, a
discussão sobre o paradoxo do Homem-Deus.

Nessa obra escrita em 1850, pela pena do pseudonímico autor Anti-Climacus,


igualmente autor da Doença Mortal (1849), há a continuidade de um trabalho autoral
que, a princípio, parece que se encerraria em 1846, ano em que Kierkegaard publicou o
Pós-Escrito às Migalhas Filosóficas e dava indícios de que se despediria de sua
atividade como escritor. Tal fato, como podemos constatar, jamais ocorreu. Nessa obra,
novamente aparece a temática de Sócrates e Cristo. Ambos, no entender do autor
dinamarquês, recusam a comunicação magistral e, como observa Nepi: “Assim
preferiram, portanto o ensinamento à viva voz, um ensinamento no qual o conteúdo da
verdade vem comunicado sobretudo através do testemunho da vida” (Nepi, 1992, p. 37).

O uso estratégico dos pseudônimos sempre coloca a pergunta se eles se referem


a Kierkegaard ele próprio ou não. Talvez, mais relevante do que essa pergunta seria
explorar a tese de que o autor dinamarquês, na verdade, vive, por contingência da sua
própria filosofia, um processo de reduplicação. Assim, Kierkegaard ele próprio parece
viver o drama entre o penitente e o pensador. Nesse mesmo horizonte conceitual é que
podemos compreender a relação entre dois dos seus pseudônimos, a saber: Johannes
Climacus e Anti-Climacus. Por isso, o próprio pseudônimo Johannes Climacus funciona
como uma espécie de propedêutica para uma melhor compreensão do pseudônimo Anti-
Climacus26.

No fundo, o problema com o qual Kierkegaard parece se deparar novamente é o


mesmo sobre o qual já havia se debruçado longamente, sob a pena de Climacus, nas
Migalhas Filosóficas e no Pós-Escrito às Migalhas filosóficas, isto é, o problema da
história no âmbito do cristianismo. Tal problema é central no século XIX e,
notadamente no Pós-Escrito, Kierkegaard o avalia através das interpretações de Lessing

26
Uma discussão instigante da temática pode ser encontrada no seguinte artigo:
Possen, D.D. The Work of Anti-Climacus in International Kierkegaard Commentary – Practice in
Christianity- vol. 20, ed. Robert L. Perkins, Mercer University Press, Macon, 2004, pp. 187-209.
que, um século antes, tentou pensar o cristianismo e a subjetividade de modo diverso
daquilo que foi proposto pelas teses hegelianas e sistemáticas do século XIX. Por isso, e
não despropositadamente, Lessing apontará que existe uma diferença fundamental entre
a religião de Cristo e a religião cristã.

Kierkegaard, na verdade, recupera novamente um tema central do cristianismo


no Exercício do Cristianismo, a saber, o tema da kenôsis, isto é, o rebaixamento de
Deus em direção ao homem, o tema do Deus-Homem por excelência. Nesse
rebaixamento o eterno parece superar o histórico e nele também se espelha um passo
adiante as duas religiosidades pensadas por Kierkegaard no Pós-Escrito. Ali, o
pseudônimo Climacus havia pensado numa religiosidade ‘A’ representa por Sócrates.
Tal religiosidade transitaria entre a ética, a ironia e a estética. Já na religiosidade ‘B’,
também exposta ali, começamos a vislumbrar os aspectos essenciais da graça tal como a
pensa o cristianismo. Por isso, o Exercício do Cristianismo é igualmente uma resposta
indireta a Feuerbach e ao iluminismo na medida em que ambos pensavam o cristianismo
como cultura e produção humana. Sua estrutura básica é constituída de uma divisão
tríplice: a) o convite; b) o escândalo; c) a elevação. Nelas, como podemos notar, a
questão será muito mais complexa do que apontar se Kierkegaard era (ou não) um
fideísta.

O Exercício do Cristianismo foi escrito em 1848 e publicado em 27 de Setembro


de 1850. Tal obra reflete um pouco da explosiva situação social vigente na Dinamarca
(e na Europa) desta época. Seu teor contém uma severa crítica aos movimentos sociais
de cunho socialista que não conseguiam perceber o indivíduo. Através da comparação
entre o cristianismo do Novo Testamento e a cristandade, seu autor proporciona ao
leitor uma clara visão de suas severas críticas ao cristianismo no seu estágio atual. Há
também acerbas críticas destinadas ao luteranismo, que se aliou ao poder. A cristandade
acabou, no entender de Anti-Clímacus, com o martírio e o sofrimento e, por isso,
destruiu o próprio cristianismo. A obra é também, como já pudemos verificar, uma
resposta implícita às teses de Feuerbach sobre o cristianismo, e também às observações
kantianas e hegelianas, bem como uma crítica do positivismo de Comte e ainda uma
resposta à Vida de Jesus de Strauss. No seu entender, a desmitologização histórico-
científica nos estudos bíblicos é um processo equivocado e que não alcança o
cristianismo genuíno, que é escândalo, loucura e martírio. Desse modo, a filosofia de
Kant e de Hegel não conseguiram, de igual forma, dar tal passo.
São duas as suas obras assinadas por Anti-Climacus no corpus kierkegaardiano:
O Exercício do Cristianismo (1850) e A Doença Mortal (1849). Ambas ocupam uma
posição estratégica em oposição ao cético Clímacus- o pseudônimo (autor) das
Migalhas Filosóficas, Post-Scriptum e Johannes Clímacus. Na soma e no contraste
desses dois pseudônimos é que se pode observar um pouco melhor o cristianismo em
Kierkegaard. Além disso, esses pseudônimos preparam o terreno para a polêmica
kierkegaardiana com o bispo Mynster e para a luta contra a igreja estatal em o Instante.
Cabe ressaltar que a obra é ainda influenciada pela Imitação de Cristo de Thomas
Kempis e, seu significado, no original dinamarquês (Indøvelse) evoca um treino ou
iniciação no exercício do cristianismo (Christendom). Trata-se, assim, de uma obra
destinada ao aprofundamento e despertamento da vida interior. Um ponto de vista
cristão do que significa tornar-se cristão.

Logo em seu início, há uma parte intitulada invocação que, de modo intencional,
assemelha-se à estrutura de uma liturgia ou ao chamamento dos fiéis para uma
cerimônia religiosa. Em tal invocação, recorda-se que a passagem de Jesus Cristo pelo
mundo não se tornou apenas passado histórico, mas algo muito mais intenso. Em tal
intensidade, reside o que o autor denominará de escândalo do cristianismo. Após tal
invocação, há um convite para, tal como diz o Evangelho, que “venham todos os
cansados e oprimidos” (Mateus 11:28).

Note-se que o convite é oriundo do amor. Assim sendo, é um convite destinado a


todos. O convite é para todos, mas deve ser recebido por cada um, de forma individual.
Aliás, o próprio convite vem na forma de um indivíduo. Nesse sentido, é que se pode
entender Jesus Cristo pregando o repouso para cada pecador. Se a recepção do
cristianismo se dá no interior de cada indivíduo, esse deve ser entendido como um sinal
interior e jamais como um signo exterior.

É necessário também frisar que, do ponto de vista humano, o aviso é sempre


mais importante do que aquele que avisa, isto é, é importante em si e em grau maior do
que o veículo que o transmite. A vida daquele que fez o convite também não pode ser
captada pela perspectiva histórica. Sua vida tornou-se o símbolo e o objeto da fé, e por
seu intermédio veio o escândalo, aquilo que não se coaduna com a antiga concepção
judaica da fé.

O escândalo se torna ainda mais chocante quando se descobre que aquele que
convida é Jesus Cristo, um homem terreno. Muitos admiram o Jesus celestial, mas
poucos reconheceriam um convite feito pelo Jesus terreno e que assume a forma do
servo. Anti-Climacus chama a atenção para o fato de que o retorno de Jesus para a
glória celestial não é objeto de estudo, mas sim a sua estadia terrena. As palavras de
Jesus só serão verdadeiras se ele falar com os homens no seu rebaixamento (kenôsis) e
não na sua glorificação. Por isso, devemos captar suas palavras no breve intervalo entre
seu rebaixamento e ascensão. Assim sendo, nada se pode afirmar deste Cristo pela
história e aqui residem os seus limites. Ele é paradoxo, objeto da fé. Afinal, toda
transmissão histórica transmite um dado saber e Cristo é o saber em si.

Pode-se, então, provar historicamente a divindade de Cristo? Ora, tal coisa seria
impensável, uma vez que se tem que enfrentar a terrível contradição de querer falar
sobre a divindade de um homem particular, ou seja, Jesus de Nazaré. Obviamente que o
pensamento de boa parte das pessoas achará tal coisa ilógica ou escandalizadora. Tomar
um homem particular por Deus é promover o escândalo e posicionar-se contrariamente
à razão. Desse modo, um erro comum ocorrido na história da Igreja é que ora se toma
Jesus de modo demasiado divino, ora ele é tomado de forma demasiadamente humana.
Querer usar a história para provar que Cristo era Deus é um projeto fadado ao fracasso.
Antes devemos nos perguntar se a continuidade da vida de Cristo é mais importante do
que sua vida terrena. Para Anti-Climacus, sua importância reside exatamente aí: Deus se
revela na forma de um homem comum, ou seja, a ênfase deve ser feita no Deus que vem
na forma de um homem.

É certo que em Sócrates, por exemplo, o significado de sua vida importa mais do
que suas palavras. Já na figura de Cristo é evidente que a mensagem é de suma
importância, mas esta também é inseparável do mensageiro que é o servo e, ao mesmo
tempo, o salvador. Afinal, Cristo é o servo que transmite e é a própria verdade:

Jesus Cristo é o objeto da fé se há de crer nele ou escandalizar-


se; porque o ‘saber’ significa justamente o que não concerne a
ele. A história, pois, é certamente capaz de comunicar muito
saber; mas o saber aniquila a Jesus Cristo” (Kierkegaard, 2009,
p. 57)

Tal ideia do Cristo enquanto sofredor precisa ser recuperada com urgência, visto
que a cristandade a aboliu e decretou, dessa forma, o fim do escândalo. Somente o
rebaixamento de Cristo é a real condição para compreender a sua mensagem. A
cristandade empalideceu a mensagem de Cristo e, por isso mesmo, ele precisa ser
reintroduzido nela.

Falar de Cristo como um contemporâneo (tal como também observa Clímacus


nas Migalhas Filosóficas) também não ajuda em nada, pois não se trata de uma questão
histórica. É evidente que o sistema se chocará com tal concepção e julgará que isso não
passa de uma loucura subjetiva de algum indivíduo que se autonomeou Deus. Alguns
até, talvez, discutam sobre se Cristo tinha o desejo de montar alguma organização
política ou defender um determinado sistema de governo. O que se deve compreender,
portanto, é que o divino e o humano são partes integrantes (e inseparáveis) da vida de
Jesus. Aquele que convida- e é o escândalo- é também Deus (e não somente homem).
Dessa maneira, a questão divina de quem convida vai muito além da pura compaixão
diante da miséria humana, trata-se de uma compaixão divina e por isso ele é a ocasião
de escândalo. A loucura reside no fato dele ser absoluto, pouco se importando com a
contemporaneidade do discípulo, mas sim com o tornar-se cristão. Nessa perspectiva, o
cristianismo histórico é um engano e todos os cristãos verdadeiros são contemporâneos
de Cristo, independentemente da época em que vivem.

O que fará diferença é o indivíduo diante do seu Deus e o reconhecimento da


dificuldade do processo do devir cristão. A consciência do pecado é a reabilitação de tal
indivíduo. Tal consciência é a porta estreita narrada pelos Evangelhos e fundamento da
fé. Nesse contexto é que podemos compreender que felizes são aqueles que, apesar de
tudo, seguem crendo e não se escandalizam. Aqueles cuja fé supera o escândalo. Note-
se ainda que o termo escândalo é um termo cristão por excelência e ele é uma passagem
obrigatória para a fé. Ele transforma uma possibilidade em ato.

O escândalo refere-se ao Deus-Homem. Com efeito, não é toda a humanidade


que se transforma em Deus, mas um dado e específico homem, a saber, Jesus. Notemos
aqui, nesse trecho, o desenho de uma resposta à teoria da religião como projeção de
Feuerbach e do pré-socrático Xenofánes, visto que não são todos os homens que são
deuses, mas um homem específico. Tal escândalo ocorre de duas formas: através da
elevação de um homem que se diz Deus e através do rebaixamento de Deus ao mais
baixo estágio da condição humana. Tal Homem-Deus é o paradoxo absoluto. Em seu
posicionar-se aparece um novo confronto: o confronto com a ordem estabelecida que
surge através da luta entre Cristo e os poderes mundanos.
O confronto com a ordem estabelecida se produz devido ao natural choque
interior do Homem-Deus com essa ordem. O processo de interiorização desmascara a
suposta divindade da ordem estabelecida. Nesse sentido é que se deve compreender
Jesus Cristo como um escândalo, pois ele não congrega o exterior (hábitos) com a
piedade (interioridade). Suprimir o escândalo equivale a suprimir o próprio Cristo. É,
com efeito, a possibilidade do escândalo essencial no sentido da elevação, onde um
homem particular fala e age como se fosse Deus. Ele pretende ser Deus, isto é, no
sentido do termo composto Homem-Deus.

O escândalo é um sinal de contradição e por isso não pode ser compreendido


pela lógica sistemática. O sofrimento de Cristo é tão escandaloso como o fato dele beber
e comer. Note-se que a possibilidade deste escândalo essencial significa rebaixamento;
onde aquele que se toma por Deus se mostra como um homem de humilde condição,
pobre, sofredor e, finalmente, impotente. Falando de outra forma, ele efetiva em ato o
escândalo de Deus se tornar homem.

Sendo Deus um homem, surge a pergunta: Ele não é filho de um carpinteiro?


Não é humano? Tais perguntas revelam a desconfiança existente nos contemporâneos
de Jesus. Assim sendo, de que serve a contemporaneidade com Cristo, uma vez que
existe a desconfiança? Pedro será uma figura exemplar da desconfiança, pois ele
representa o escândalo e a dúvida.

A encarnação acompanha o escândalo, e ambos são seguidos do sofrimento para


Cristo e seus imitadores. O fim do escândalo representa a equivalência entre paganismo
e cristianismo. Tal equivalência gera uma religiosidade banal que desvirtua a dureza dos
textos bíblicos. Afinal, o sofrimento e o martírio são consequências inevitáveis do
cristianismo. A adaptação do cristianismo à ordem mundana representa o fim do
escândalo.

Para melhor estudo desta questão do Homem-Deus deve-se, de antemão,


delimitar o seu foco. Em outras palavras, ela não pode ser estudada pela filosofia
moderna, uma vez que essa parte da dúvida e não da admiração. Também não pode ser
comunicado de modo direto, visto que o cristianismo não é comunicação direta. Ora, se
o próprio mestre é mais do que a doutrina, trata-se de saber que existe uma
reduplicação, ou seja, um paradoxo da comunicação. Por isso, como bem recorda
Binetti: “A partir do ponto de vista do espírito – o autenticamente real – que Deus seja
sujeito significa que ele é a infinita reduplicação presente em todo o finito. Deus é
sempre subjetividade, jamais objeto, e é sempre subjetividade inclusive para a
subjetividade autoconsciente, como o concebe como modo de sua própria reduplicação,
como o próprio nada da sua subjetividade finita” (Binetti, 2015, p. 164).

A diferença essencial entre Cristo e o homem é que Cristo é mais importante do


que sua doutrina, já no homem a doutrina é mais importante do que o seu mensageiro.
Portanto, Cristo é mais do que um homem. O Deus-Homem é um sinal e é diferente do
imediato. O sinal é aquilo que aponta para algo, mas tal gesto só pode ser captado por
quem sabe do que se trata e entende a linguagem do sinal: “Um sinal não é o que é
imediatamente, já que ‘sinal’ é uma determinação da reflexão. Um sinal de contradição
é o que atrai a atenção e quando esta o atende, se manifesta contendo uma contradição”
(Kierkegaard, 2009, p. 137). O Homem-Deus é, portanto, equivalente a um sinal de
contradição. O milagre chama a atenção para esse sinal, notadamente para os que não
acreditam. Todavia, não se trata de uma comunicação direta. A sobrevivência da
doutrina e o esquecimento de Cristo representam o fim do cristianismo.

Também a forma do servo - que aparece aqui e já havia aparecido nas Migalhas
Filosóficas- é a do incógnito, isto é, aquele que não se dá a conhecer. Na perspectiva
divina, trata-se de um homem particular. Logo, mesmo se for contemporâneo de Cristo,
devido ao seu rebaixamento, não seria possível reconhecê-lo. Tal reconhecer
diretamente a Deus seria uma blasfêmia ou pecado contra o Espírito Santo, aquele para
o qual não há perdão, pois se existe incógnito, não há comunicação direta e isso ocorre
por causa de uma estratégia divina.

Assim, diante da impossibilidade da comunicação direta, resta a comunicação


indireta. Ocorre, então, uma reduplicação da comunicação. Em tal reduplicação,
dissolve-se a personalidade de quem comunica e não se caminha para a objetividade
pura, mas há uma espécie de pseudonímia nesta dupla reflexão. Em outros termos,
ocorre algo que se pode caracterizar como uma espécie de nó dialético e uma
comunicação com crise de esquizofrenia, por causa das suas muitas personalidades.

Há também em tal tipo de comunicação um discurso da opção, isto é, o ser


humano pode decidir no que deseja crer ou não. Tal estratégia de comunicação indireta
não é entendida nem pela filosofia especulativa e nem pela cristandade. Todavia, essa
comunicação revela a seriedade do milagre de Cristo e do discurso da opção. Para Anti-
Climacus, somente um ídolo é reconhecido diretamente. Cristo é o eleito de Deus mas é,
ao mesmo tempo, o seu rejeitado.
A incognoscibilidade de Deus é decorrência do seu amor pelo homem. Tal coisa
tem que ser assim, pois não há homem capaz de compreender um Deus sofredor na
pessoa de Cristo. A possibilidade do escândalo é a negação da comunicação direta e
marca também o abismo que há entre Deus e os homens. Já a comunicação direta é a
recusa de tal diferença, representando também o fim do escândalo. Note-se que a
comunicação indireta pode tanto seduzir quanto criar repulsa em quem a ouve.

Todavia, só se pode negar a comunicação direta através da fé. Tal tipo de


comunicação não se importa com o tornar-se cristão e, por isso mesmo, só aparenta
seriedade. De igual modo procede a filosofia moderna, crendo na comunicação direta e
vendo a fé como imediata. Tal filosofia é mera opinião doutrinária, representando o fim
do escândalo e do paradoxo.

O Deus-Homem só pode ser entendido como objeto da fé justamente por ser


também uma possibilidade de escândalo. Não é possível entender o Deus-Homem
dissociando-o do escândalo. Somente assim é que se pode se aproximar do seu amor e
da fé. Reconhecer um deus diretamente equivale a paganismo, e a filosofia especulativa
comete esse erro ao racionalizar a fé. Por isso, para Anti-Climacus, dezoito séculos de
cristianismo nada podem provar, exceto para a especulação.

Um cristão deve se esquecer de todo o mundo a fim de lembrar-se de uma única


coisa: Jesus Cristo. Ele é atraído para Cristo não apenas por mera sedução, mas o
rebaixar-se desse Deus é, para ele, uma verdadeira ascensão. Crer no Deus que se
rebaixa é a condição cristã para ascender com ele. Cristo, ao se fazer o menor de todos
os homens, dá igual condição para todos os que querem segui-lo. Tal Cristo é filho de
Deus, aquele que é eternamente. Sua história de sofrimento é real e os homens são seus
contemporâneos quando reconhecem tal sofrimento. Dessa forma, os cristãos também
tem o dever de amar, de modo inclusivo, a todos os homens. Cristo é a opção de
sofrimento de Deus pelos homens. Tal sofrimento é inevitável e ocorre por amor.

A missão desse Cristo é congregar todos os que se dispõe a segui-lo e a seguir


sua cruz. Não recusar o sofrimento é dever do imitador de Cristo. Somente desse modo
é que se testemunha a fé. Também é importante notar que o homem, apesar de tudo,
segue fazendo imagens desse Deus, tal como já notou Feuerbach. O que é importante
destacar, no entanto, é que, para ele (o cristão autêntico), seu Deus é mais do todas elas.
Desse modo, se ele tiver em mente o real rebaixamento de Cristo, deve igualmente se
rebaixar.
Em que sentido, então, se afirma que Cristo foi a verdade? Afinal, enquanto
indivíduo e Deus, ele se recusou a responder a pergunta de Pilatos acerca da verdade (Jo
18:38) e silenciou. Certamente ele não é uma verdade triunfante como a Igreja
Triunfante, mas uma verdade a ser testemunhada e seguida com martírio, como a Igreja
Militante. Dessa maneira, o principal desafio do genuíno cristianismo é mudar e
reintroduzir seus conceitos na cristandade. Para tanto, um cristão não deve ser apenas
um admirador (tipo estético), mas um imitador de Cristo (sentido religioso). Rebaixar-se
é, portanto, elevar-se. Elevar a fé e o cristianismo.

SEGUNDA PARTE DA AULA

2) Nietzsche como leitor e crítico de Lutero27

Antes de avaliar uma figura tão difundida como Nietzsche – e sua típica
caracterização como pensador anti-religioso - parece ser mais proveitoso pensá-lo, tal
como salienta Salaquarda, como alguém que apontou os motivos para sermos religiosos
ou anti-religiosos, isto é, nos cabe a investigação de sua crítica genética e genealógica
do discurso religioso (SALAQUARDA, 2006). Notadamente quando nosso intuito é
circunscrever a interpretação nietzschiana da figura emblemática de Lutero, nunca é
demasiado lembrar que o pensador, como um luterano de família, sabia muito bem usar
as imagens do cristianismo, sua linguagem, sua retórica. Nietzsche, nos primórdios de
sua formação cristã, parece se caracterizar como alguém de intensa vida devocional e
com forte influência nas leituras da Bíblia na tradução de Lutero. Segundo Jaspers, o
pensador considerava um privilégio a sua formação protestante mas, ao mesmo tempo,
sabia o quanto ela seria decisiva na sua crítica radical do cristianismo:

É verdade que sempre considerou como um privilégio


incomparável haver vivido entre cristãos e nascido protestante.
Mas este parentesco assume para ele outro sentido tão logo
torna-se consciente de que a maioria dos cristãos não são
cristãos perfeitos (JASPERS, 2000, p. 05)

27
A presente aula foi publicada na Revista Religare (UFPB):
http://periodicos.ufpb.br/index.php/religare/article/view/9765
Nos anos de formação universitária, onde o pensador rompe efetivamente com o
cristianismo herdado da sua familia, é importante destacar o quanto tiveram influência
na sua formação autores como David Strauss (A Vida de Jesus) e Feuerbach (A
Essência do cristianismo). Em outras palavras, Nietzsche, tão logo abandona sua fé
religiosa tradicional parece almejar uma certa superação do cristianismo, julgando que
tal coisa se daria no decorrer do processo histórico. Tal fato, segundo avaliamos, coloca-
o fortemente no rol do autores pós-hegelianos, os mesmos que fazem da política uma
religião laica e movimentam-se transitivamente da religião para a literatura e desta para
a política. Evidentemente tal configuração se dá com a característica típica nietzschiana.
Todavia, a pista de Karl Lowith não parece desprovida de fundamento: “Apesar de toda
a diferença, tem-se a impressão de que Nietzsche prolonga diretamente a crítica do
cristianismo moderno feita por Feuerbach e Kierkegaard... “(LOWITH, 1985, p. 145).
Já o Nietzsche tardio trabalhará mais fortemente a temática do cristianismo
como ressentimento, relacionando-o fortemente com um dado tipo de moral. Não parece
mais existir aqui a ênfase forte na superação, mas sim um trabalho mais acurado na
discussão dos próprios valores morais. Entretanto, no afã de apontar aspectos da crítica
moral, o pensador não parece ter distinguido o sentido positivo do cristianismo para o
mundo ocidental. Sua crítica do cristianismo, a despeito de sua importância, parece
padecer de uma distinção mais precisa, por exemplo, entre herança judaica e herança
cristã. É certo que, em muitos momentos, tais coisas se misturam, mas não se pode falar
do cristianismo meramente como continuador do judaísmo. Tal coisa é fortemente
reducionista e não parece fazer justiça nem ao cristianismo e nem ao judaísmo.
Overbeck, célebre amigo de Nietzsche, professor de História Eclesiástica, não parece
que endossaria tais afirmativas. O fato é que Nietzsche parece sempre ter sido
fortemente influenciado em sua leitura do cristianismo pela posição de Schopenhauer e
seu conceito de volksmetaphysic (metafísica do povo). O elogio schopenhaueriano à
Índia e suas severas críticas ao Islã e ao judaísmo parecem reverberar na obra
nietzschiana. É certo que, notadamente no período final de sua produção, Nietzsche já
tinha abandonado boa parte do seu entusiasmo por Schopenhauer. Entretanto, é possível
encontrar aqui fortes indícios de uma influência que ainda se extinguiu completamente.
Contudo, a despeito de sua crítica severa ao cristianismo, Schopenhauer não parece
tomá-lo como análogo ao judaísmo ou como continuador deste.

Curiosamente nem a prática do cristianismo e nem a crítica nietzschiana


parecem sobreviver na modernidade. A práxis cristã, fortemente calcada na bondade e
na falta de apreço pelo interesse público, parece desde Maquiavel condenada a
desaparecer. A boa obra só parece ter espaço nos evangelhos e em figuras emblemáticas
como o príncipe de O idiota de Dostoiévski, que pensa em valores opostos aos deste
mundo e sempre privadamente. Por isso, Nietzsche parece admirar tão fortemente Jesus
como uma figura paradigmática e separá-la do cristianismo: “Vou voltar atrás, vou
contar a autêntica história do cristianismo. A palavra ‘cristianismo’ já é um mal-
entendido. No fundo, não houve mais do que um cristão, e esse morreu na cruz”
(NIETZSCHE, 2002, p. 77). Há aqui uma fecunda discussão mais voltada para o tema
do crístico ou do tipicamente cristão e um contraponto de tal conceito com o conceito de
cristianismo, uma vez que este parece totalmente corrompido. Tal pista é outra
característica tipicamente pós-hegeliana e pode ser observada, por exemplo, na crítica
de Feuerbach e na crítica de Kierkegaard ao cristianismo.
Tal valorização da figura do Cristo não faz com que Nietzsche tenha qualquer
preferência pelos textos do Novo Testamento. Ele parece, aliás, preferir os textos do
Antigo Testamento e vê Jesus muito mais próximo dessa tradição do que da tradição de
Paulo e dos apóstolos. Já a crítica nietzschiana da moral parece não sobreviver, pois
também escapa dos valores dados e estabelecidos e por isso, sem definições cabíveis,
termina além dos valores morais, além do homem.

Cabe notar que este Nietzsche, filho de pastor protestante, terá, em toda sua vida,
uma relação ambígua com o cristianismo: ele tanto será passível de crítica por sua
negação dos instintos de vida, como pode ser elogiado por sua práxis expressa na figura
do Cristo. Nessa mesma esteira, o pensador, fortemente formado no protestantismo,
após a ruptura com o cristianismo, parece começar a nutrir uma dada simpatia mais pela
versão católica do cristianismo do que pela versão protestante. Evidentemente, o autor
está rompido com a fé cristã, mas parece começar a apontar maiores defeitos no modo
protestante de entender a fé do que no modo católico. O catolicismo ainda parece
guardar aspectos da herança clássica greco-romana e, notadamente na Itália, ainda é
possível encontrar nele traços da afirmação da vida.

Julgamos que é nesse sentido que se pode compreender a obra Humano,


demasiado humano datada de 1878. Tal trabalho marca uma ruptura do filósofo com as
teses de Wagner e Schopenhauer. Nela, diferentemente do que ocorrerá em outras obras,
percebe-se um forte louvor à ciência e ao iluminismo. Há aqui uma forte influência das
idéias de Burckhardt e de Paul Rée e um certo prenúncio das teses que serão mais
exaustivamente desenvolvidas na Genealogia da moral e em Para além de bem e mal.
Percebe-se aqui também o uso inicial da escrita por meio de aforismos e uma mudança
no modo de escrevê-los, isto é, tornando-os até mesmo mais extenso do que até então
era a prática.

O aforismo 237 intitula-se Renascimento e Reforma. Como o próprio título


anuncia, o fragmento começa com um elogio ao Renascimento italiano. Nietzsche
aponta alguns motivos para tanto: ele foi criador de forças positivas criadoras da cultura
moderna. Em outras palavras, ele foi marcado pela emancipação do pensamento, pelo
desprezo das autoridades, pelo triunfo da educação sobre a arrogância da linhagem, pelo
entusiasmo pela ciência, pelo passado científico da humanidade, pelo desgrilhoamento
do indivíduo, pela flama da veracidade e pela aversão ao puro efeito.

A tese nietzschiana parece aqui fortemente influenciada pelo entusiasmo de


vários pensadores pela Itália. Diversos pensadores, sobretudo germânicos, idealizam
nesse período a Itália como uma espécie de local de festividade, de alegria, banhado
pelos raios do Sol e pelo mar Mediterrâneo. Há uma certa concepção idílica de paraíso
perdido, tal como podemos observar nos escritos de escritos de Heine, Burckhardt e
Stendhal. Jacob Burckhardt torna sua tese bastante explicita no seu clássico A cultura
do Renascimento na Itália:

O Renascimento não se teria configurado na elevada e universal


necessidade histórica que foi se se pudesse abstrair facilmente
da Antiguidade. Nesse ponto temos que insistir, como
proposição central deste livro: não foi a Antiguidade sozinha,
mas sua estreita ligação com o espírito italiano, presente a seu
lado, que sujeitou o mundo ocidental (BURCKHARDT, 2009,
p. 177).

E ainda compara claramente em qual sentido a cultura italiana supera a


concepção dos povos germânicos e nórdicos:

Na Itália, entretanto, diferentemente do que ocorreu no Norte, a


Antiguidade torna a despertar. Tão logo a barbárie tem fim, a
consciência do próprio passado faz-se novamente presente em
um povo ainda parcialmente ligado à Antiguidade; ele a celebra
e deseja reproduzi-la. Fora da Itália, o que ocorre é uma
utilização erudita e isolada de elementos isolados da
Antiguidade (BURCKHARDT, 2009, p. 179).

Nesse sentido, a reforma luterana é, aos olhos de Nietzsche, algo ainda ligado a
uma visão medieval do mundo e representa um certo espírito atrasado que precisa ser
superado pelo Renascimento. Ele, tal como Troeltsch, não enxerga nada de moderno ou
emancipador no protestantismo, mas ambos o compreendem como uma certa
reelaboração de um medieval que inevitavelmente se estilhaça com o avanço dos
tempos:

Contudo, em sua visão fundamental das relações entre indivíduo


e comunidade, o protestantismo é totalmente o contrário do
puramente individualista e sem autoridade. Pelo contrário, em
quase todos os ramos principais, ele é surpreendentemente
conservador. Não conhece, descontando-se os grupos batistas
radicais, a idéia de igualdade e jamais propôs a formação livre
da sociedade pelos indivíduos. Se alguma vez existiu a
igualdade, isso foi no estado de inocência do Paraíso, mas não se
pode falar disso no mundo do pecado (TROELTSCH, 1958, p.
80).

Entretanto, tal crítica não invalida, em nenhuma hipótese, a importância da


Reforma Protestante no cenário germânico. Sua crítica é feito em torno de que ela foi,
talvez, a revolução possível aos alemães, mas, a despeito das críticas, ela nunca é
desprezada. Ela contém em si a concepção tão cara aos alemães de progresso. Tal
concepção é intimamente relacionada com a história cristã, é reelaborada por Hegel e,
mesmo nos pós-hegelianos, como Nietzsche, isso não se apaga. Nesse sentido, podemos
ver a Reforma num duplo registro de flerte com o atraso e de chegada na modernidade,
tal como aponta Thomas Mann:

Se considerarmos, por exemplo, a Reforma de Lutero como uma


obra de princípios e convicções, quem poderia negar aqui que é
reação e que é progresso? A Reforma de Lutero foi progresso e
libertação, foi a forma alemã da revolução, foi a precursora da
Revolução Francesa. Contudo, a Reforma de Lutero foi assim
uma recaída na Idade Média, foi como uma geada mortal que se
abateu sobre a tímida primavera espiritual do Renascimento. Foi
uma fusão de tudo isso, foi uma mescla onde interviram a vida,
os atos, a personalidade, e que de modo algum é possível
entender com critérios próprios do espírito puro (MANN, 2000,
p. 140)

É instigante perceber que a mesma tese aqui explorada em Humano, demasiado


humano vai se afirmar também na fase final da obra de Nietzsche, notadamente no
Anticristo, que segue a pontuar críticas a Lutero:

Um monge alemão, Lutero, foi a Roma. Esse monge, que levava


em seu corpo todos os instintos de um sacerdote fracassado, se
indignou em Roma contra o Renascimento [...] Em lugar de
compreender, com a mais profunda gratidão, o enorme
acontecimento que havia ocorrido, a superação do cristianismo
na sua própria sede (NIETZSCHE, 2002, p. 120).

Lutero se torna o símbolo alemão por excelência. Seu caráter, suas virtudes e
seus defeitos passam a ser a marca de todos os alemães. Seu modo severo é ao mesmo
tempo cordial, sua crença contrasta com suas dúvidas, seu jeito místico faz oposição ao
seu modo empreendedor. A interpretação nietzschiana sobre Lutero, inicialmente mais
elogiosa e depois crítica, não deixa de ser um dado prelúdio para as teses do seu
Zaratustra. Talvez seja necessário apontar algo mais do que simplesmente constatar que
Lutero exterminou o Renascimento. Cabe, talvez perceber que Lutero nada mais é do
que um elo numa corrente que já se formava no apóstolo Paulo, Santo Agostinho e no
período medieval. Sua forte relação com a consciência e com a idéia de graça serão
fortemente rechaçadas por Nietzsche. A idéia de uma consciência profundamente
racionalizada já é criticada pelo pensador desde O nascimento da tragédia e, nesse
sentido, Lutero seria um continuador até mesmo de Sócrates. Já a idéia de graça parece
ir de encontro à autonomia do pensamento. Contudo, mesmo com todas as reservas,
Nietzsche parece achar que com o casamento entre os religiosos Lutero reconhece a
esfera do sensual. Karl Jaspers observa, com argúcia, que a recusa de Niezsche por tais
pensadores não representa, de modo nenhum, desconsideração por eles, mas antes uma
agonia de quem combate contra si próprio:

Impossível classificar a Nietzsche. Quiçá se encontre na linha de


Pascal, Kierkegaard, Dostoievski. Ainda que difiram
radicalmente entre si, estes homens são como as grandes vítimas
da condição humana em um momento de transição da história
universal. Quando os conhecemos, e vemos seu semblante livre
de véus, tem quiçá algo de repulsivo como toda exceção (como
os grandes pensadores excepcionais que modelaram o mundo –
Paulo, Agostinho, Lutero – tem sem dúvida algo de repugnante
para quem os considere de muito perto). Nietzsche o sabia: não
gostava de vê-los; e, contudo, todo seu esforço de pensador se
cumpriu com o desígnio constante de compreender-se a si
mesmo (JASPERS, 2000, p. 63)

Enfim, o reformador traz em si todas as contradições que formam o protótipo do


novo homem alemão, aquele que, no entender de Heine, tem forte duplicidade: “O
mesmo homem que podia xingar como uma vendedora de peixes, também podia ser
afável como uma virgem terna” (HEINE, 1991, p. 40). A relação de Nietzsche com
Lutero é fortemente marcada pela ambiguidade, e, ao mesmo tempo que se desenha
como uma grande crítica, é curioso também notar dadas afinidades. Julgamos que tal
ambiguidade com a religião e, notadamente com o protestantismo, parece um traço
característico dos pós-hegelianos. O protestantismo caracteriza-se fortemente por
um único argumento para defender a fé: a defesa da Bíblia como livro inspirado,
verdadeiro e no qual se crê pela própria fé. Logo, a idéia protestante de autoridade,
ao menos nos seus primórdios, fundamenta-se no exame das Sagradas Escrituras.
Contudo, em decorrência do livre exame das Escrituras – e da própria idéia de livre
exame – pode-se partir para a crítica da própria idéia de autoridade. Parece ter sido
exatamente este é o caminho escolhido por diversos pensadores do século XIX e por
esse mesmo motivo a discussão histórica ganha força. Por isso, não parece fortuito
que Kierkegaard, outro pensador deste século, na sua tentativa de defender valores
do cristianismo, tenha se preocupado tanto em afirmar a importância do conceito de
autoridade na interpretação das Sagradas Escrituras28 e, ao mesmo tempo, mostrou-
se como severo crítico de interpretações históricas para dissertar acerca do
cristianismo. Curiosamente, Nietzsche também parece ter, num dado momento de
sua obra, críticas a um dado tipo de interpretação histórica:

Certamente precisamos da história, mas não como o passeante


mimado no jardim do saber, por mais que este olhe com
desprezo para as nossas carências e penúrias rudes e sem graça.
Isto significa: precisamos dela para a vida e para a ação, não
para o abandono confortável da vida ou da ação ou mesmo para
o embelezamento da vida egoísta e da ação covarde e ruim.
Somente na medida em que a história serve à vida queremos
servi-la (NIETZSCHE, 2003, p.05).

Feito tal ressalva, a concepção nietzschiana de Humano, demasiado humano até


O Anticristo parece agora se encaminhar em outra direção. Tal compreensão aponta a
Reforma Protestante enquanto um evento inibidor ou que, ao menos atrasou a
Renascença. Como já podemos notar, tal diagnóstico parece ser presente em vários
pensadores do século XIX. Nietzsche pontua tais questões, Feuerbach vê o
protestantismo como uma espécie de republicanismo religioso29, Troeltsch o
compreende como algo que flerta entre a modernidade e o medieval. Heine enaltece o
catolicismo como um sistema de concessões necessárias. Sua visão, fortemente marcada
pela ironia, é um curioso relato sobre Lutero e um elogio do catolicismo.

Com efeito, se me sondassem interiormente, confessaria que no


fundo o Papa Leão X era muito mais razoável que Lutero e que
este de forma alguma compreendeu os fundamentos últimos da
Igreja Católica. Pois Lutero não compreendeu que a idéia do
cristianismo, a destruição da sensualidade, estava

28
Tal discussão é feita especialmente numa obra de Kiekegaard denominada Livro sobre
Adler.
29
Tal afirmativa é feita no texto Necessidade de uma transformação, citado em nossa
bibliografia final.
demasiadamente em desacordo com a natureza humana para ser,
um dia, plenamente realizada na vida; não compreendeu que o
catolicismo era como uma concordata entre Deus e o Diabo, isto
é, entre o espírito e a matéria... um sábio sistema de concessões
que a Igreja fez em favor da sensualidade... Podes dar ouvidos
às ternas inclinações do coração e tomar uma bela moça em teus
braços, mas depois terás que confessar que isso foi um pecado
vergonhoso e pagar penitências por eles. Que essas penitências
pudessem ser feitas através do dinheiro, isso era tão benéfico
para a humanidade como útil para a Igreja. A Igreja, por assim
dizer, deixava que se pagasse indulto por cada gozo carnal... O
comércio de indultos não era um abuso, era uma conseqüência
de todo o sistema eclesiástico e, ao atacá-lo, Lutero atacou a
própria Igreja, que teve que condená-lo como herege. (HEINE,
1991, p. 34-35).

Com efeito, segundo Nietzsche, o protestantismo nada mais é do que uma


tentativa desesperada de restabelecer o mundo medieval que se encontrava em ruínas.
Tal protestantismo se caracteriza por um notório mal-estar e contrasta com o júbilo
típico do catolicismo italiano. Segundo o pensador, o pior do protestantismo é ter
gerado, como seu antagonista, a Contra-Reforma. Tal coisa acaba por exterminar a
união do espírito antigo com o moderno, que era um dos objetivos da Renascença.
Desse modo, o resultado de tudo isso é que o espírito medieval alemão impede a
Renascença ou a adia como preconiza Nietzsche. Tal como salienta Jaspers o
cristianismo criticado por Nietzsche parece sempre exterminar qualquer
restabelecimento de valores de antiguidade e a redescoberta do homem:

Descreve com espanto a situação tal como se apresenta: um dos


efeitos do cristianismo é ter tornado inútil a grande antiguidade
grega; o cristianismo destruiu o ‘imperium romanum’, aniquilou
o triunfo do Islã, e outra vez por sua culpa (pela de Lutero) o
Renascimento, essa grande ressurreição do homem verdadeiro,
tornou-se inútil (JASPERS, 2000, p. 27)
Curiosamente, cabe ressaltar que toda reforma não deixa de ser um retorno a
algo e, nesse sentido, pode revelar-se como algo profundamente conservador, como a
crítica nietzschiana parece pensar sobre Lutero. Contudo, a proposta de um
renascimento, mesmo que visto sobre outro prisma e registro, também não parece imune
a problemas futuros. Por isso, segundo julgamos, o que Mann aponta sobre a Reforma,
talvez também valha para alguns aspectos do Renascimento:

Que o cristianismo mesmo, aquele que Lutero ‘reformou’ tenha


sido uma reforma, por assim dizer, um retorno a um religioso
ancestral e um restabelecimento anímico dele; que as ‘reformas’
em geral, por sua própria natureza, tem muito pouco a ver com o
progresso, pois, em um tempo se instala, se restabelece o antigo,
o antiquíssimo, se restabelece com sentido sumamente
conservador (MANN, 2000, p. 140-141)

Lutero termina por servir ao objetivo dos príncipes e do Papa, pois ambos
terminam por utilizá-lo em suas disputas políticas. O mais curioso de tudo isso é que a
história parece repleta de acasos, pois se não fosse assim o reformador poderia ter
terminado na fogueira, tal como muitos dos seus antecedentes. Logo, o que parece
tomar força aqui é a tese do ressentimento no cristianismo e a crítica dos seus valores
morais. Caberia, entretanto, investigar aqui, a partir de Nietzsche, mas para além dele,
se a religião é, de fato, tão fortemente marcada por sua relação com a moral ou se há um
excesso na avaliação nietzschiana de tal fenômeno. Não se trata de negar tal traço, mas
de pensá-lo criticamente e avaliar em que sentido ela também pode ser explorada em
outras fronteiras.

3) À guisa de conclusão: Feuerbach e Lutero como leitores da Reforma de Lutero

Uma primeira grande diferença parece saltar aos olhos na compreensão de Lutero
que Feuerbach e Niezsche possuem. Se para o autor da Essência do Cristianismo, o
reformador protestante era, de certo modo, alguém que prenunciava o espírito ateu e
científico, visto que na sua teologia já se encontra o germe da descrença e a afirmação
da primazia do antropológico sobre o teológico, para Nietzsche, Lutero carrega em si
todos os instintos de um monge fracassado e, nesse sentido, representa uma clara
ruptura com o espírito do Renascimento.
Feuerbach também é um entusiasta dos ideais do Renascimento e o compreende
como um avanço do espírito científico, mas não enxerga Lutero como oposto a ele. De
igual modo, compreende que a subjetividade, tão cara ao pensamento moderno alemão,
também se afirma muito fortemente na Reforma luterana e, nesse sentido, ela é de
fundamental importância para a filosofia posterior. A despeito da diferente leitura no
que concerne ao Renascimento, Feuerbach e Nietzsche parecem concordar acerca do
diagnóstico, tão típico dos pós-hegelianos, de que a filosofia moderna alemã é, de certo
modo, uma continuidade da proposta da Reforma luterana, mas agora com linguagem
filosófica. Entretanto, Nietzsche tem severas críticas a um dos principais pilares da
subjetividade: Sócrates. Para ele, o pensador ateniense já representa um problema no
próprio modo grego de pensar e sentir. Diferentemente dele, Feuerbach chega a
enunciar que o propósito de sua obra é uma busca socrática pelo auto-conhecimento, tal
como se pode atestar na Essência do Cristianismo.

Se para Nietzsche, cabe pontuar a alternativa ao cristianismo e, dentro dele ressaltar


tipos psicológicos como da figura de Cristo, Feuerbach deseja demonstrar, de modo
argumentativo, a falácia do cristianismo e, por isso, provar logicamente a sua
impossibilidade. Ambos os autores parecem sugerir uma pista bastante hegeliana, que
reside exatamente na superação do cristianismo, mas seus focos parecem divergentes.
Para Nietzsche, o ponto que afirma a moral do cristianismo é, de certa forma, uma
retomada de uma decadência já presente em Sócrates, e que também ultrapassa o
próprio cristianismo, configurando-se agora em novas formas como, por exemplo, os
consensos democráticos e afins. Há em Feuerbach uma certa esperança com os avanços
dos homens esclarecidos e, em Nietzsche, uma eterna suspeita da criação de novas
mitologias.

Julgamos que, não fortuitamente, ambos os autores foram fundamentais para a


crítica da religião e da política nos séculos seguintes. Por isso, muito ainda há para ser
explorada nessa relação tão significativa.

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