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Tobias Peucer e As Origens Do Jornalismo PDF
Tobias Peucer e As Origens Do Jornalismo PDF
origens do jornalismo
Orlando Tambosi*
Resumo: Abstract
O artigo procura relacionar o estudo pioneiro de Tobias This article establishes a relationship between Tobias
Peucer sobre jornalismo (publicado em 1690) com o Peucer’s pionner study on journalism, published in
“espírito da época”, mostrando que a atividade jorna- 1690, and that era’s frame of mind, showing that jour-
lística se desenvolve no contexto da revolução científi- nalism developed in the context of a scientific revolu-
ca e que, já no século XVII, não por acaso também cha- tion. In the XVII century, there was a newspaper boom
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mado o “século dos periódicos”, ocorre uma verdadeira that helped to establish some fundamental professio-
“explosão do jornalismo”, que fixaria alguns conceitos nal concepts still employed today.
fundamentais da profissão ainda hoje vigentes.
Palavras-chave: Keywords
jornalismo – história – revolução científica – filosofia. journalism, history, scientific revolution, philosophy
1. Tobias Peucer, considerado o autor da (1642-1727), o pai da física moderna, e no
primeira tese doutoral sobre jornalismo1, mesmo ano em que vieram à luz o Ensaio
publicada no final do século XVII, teve o sobre o intelecto humano e Dois tratados
mérito de sistematizar os principais con- sobre o governo, do filósofo John Locke
ceitos da recém-nascida imprensa periódi- (1632-1704), fundador do empirismo e teóri-
ca, mas não deve ser visto como precursor co do liberalismo. Na Alemanha de Peucer,
ou fundador de uma “teoria do jornalis- o filósofo e lógico Wilhelm Leibniz (1646-
mo”. Na verdade, os pressupostos teóricos 1716) estabelecia as diferenças entre a in-
e regras técnicas que ele enuncia corres- vestigação científica e a pesquisa filosófico-
pondem à “cultura da notícia”2 que come- metafísica, criticava Descartes (1596-1650)
çava a se consolidar nos principais centros e polemizava com Newton sobre a primazia
da Europa (principalmente na Holanda) na criação do cálculo diferencial. A revo- 1
Peucer, Tobias, De relationibus
novellis, Leipzig, 1690 (Os relatos
em função da expansão do comércio e da lução científica , que já varrera boa parte
4
jornalísticos, tradução de Paulo da
proliferação de periódicos. Peucer remete, da Europa, lentamente começa a mudar a Rocha Dias, São Bernardo do Campo,
Pós-Com-Umesp, 1999, publicada na
portanto, às origens do jornalismo (o pró- imagem do mundo, solapando a concepção Revista Comunicação e Sociedade, 33,
aristotélico-cristã do universo. pp. 199-214).
prio termo “jornalista” passou a ser utili-
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zado em francês, inglês e italiano somente É no século XVII que irrompe este gran- 2
A expressão é de Giovanni Gozzini
em Storia del giornalismo, Milão,
por volta de 17003). Filho da modernida- dioso movimento de idéias que transforma- Bruno Mondadori, 2000.
de tal como as ciências, o jornalismo seria rá profundamente não só a ciência e a filo-
3
Cfr. Peter Burke, Uma história so-
decisivo, no século XVIII, à difusão das sofia, mas a própria con-cepção do mundo cial do conhecimento (de Gutenberg a
e da vida: a obra de Galileu Galilei (1564- Diderot), Rio de Janeiro, Jorge Zahar
idéias do Iluminismo – só então assumin-
Editor, 2003, p. 34.
do características político-ideológicas mais 1642) lhe fornecerá as características de-
4
Em geral, considera-se como período
nítidas que desembocariam na formação terminantes; Francis Bacon (1561-1626) e da revolução científica o tempo trans-
da chamada “opinião pública” e na Revo- René Descartes, cada qual à sua maneira, corrido entre a publicação de Sobre
as revoluções das órbitas celestes, de
lução Francesa de 1789. serão seus arautos filosóficos. Desfecho: “a Nicolau Copérnico (1543), e dos Prin-
imagem new-toniana do universo concebido cipia mathematica, de Newton (1687);
Vale a pena reconstituir os traços his-
a referência básica, no entanto, per-
tórico-filosóficos mais marcantes da-quela como uma máquina, ou seja, como um reló- manece sendo o século XVII.
época. O opúsculo de Peucer (cons-tituído gio”.5 De agora em diante, a ciência (...) não 5
Giovanni Reale e Dario Antiseri,
de 29 parágrafos) surge três anos depois é mais a intuição privilegiada do mago ou História da filosofia, São Paulo, Edi-
ções Paulinas, 1990, vol. II, p. 185.
da publicação de Princípios matemáti- astrólogo iluminado, individualmente, nem
o comentário a um filósofo (Aris-tóteles)
6
Ibidem, p. 187.
cos de filosofia natural, de Isaac Newton
7
Citado por Paolo Rossi, Os filósofos e
Estudos em Jornalismo e Mídia, as máquinas, São Paulo, Companhia
Vol. I Nº 2 - 2º Semestre de 2004
que disse “a” verdade, isto é, não mais artes através da colaboração”. Tal objetivo
um discurso sobre “o mundo de papel”, é destacado no prefácio da primeira edição
mas sim investigação e discurso sobre o (1666) das Philosophical Transactions, re-
mundo da natureza (...). Trata-se de um vista da Royal Society, assinado por Henry
processo verdadeiramente com-plexo, que Oldenburg, um seguidor de Bacon e secre-
(...) encontra seu resultado na fundamen- tário da associação: “estas Transactions
tação galileana do método científico e, são publicadas para que se possa aumentar
portanto, na autonomia da ciência em re- ainda mais a aspiração a um conhecimen-
lação às proposições de fé e às concepções to sólido e útil (...) e para que os pesqui-
filosóficas. (...) A ciência é ciência expe- sadores sejam convidados e encorajados a
rimental. É através do experimento que procurar, experimentar, encontrar coisas
os cientistas tendem a obter proposições novas, transmitir mutuamente seus conhe-
verdadeiras sobre o mundo. 6
cimentos e contribuir no que possam para o
É também no século XVII que surgem grande fim de fazer progredir a ciência da
as primeiras academias e sociedades natureza”.7
científicas, expressamente destinadas a
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promover a colaboração sistemática en- 2. A pequena Holanda se tornará, no de-
tre cientistas, pesquisadores e eru-ditos correr do século - graças à abertura aos
(Accademia del Cimento [Academia do estrangeiros e ao princípio de tolerância,
Experimento], em 1657, na Itália; Royal funcional ao desenvolvimento econômico e
Society, em 1662, na Inglaterra; e Aca- científico, o refúgio de comerciantes, cien-
démie des Sciences, em 1666, na França; tistas, filósofos e técnicos perseguidos em
na Alemanha, a Academia de Ciências de seus países por motivos religiosos. A fuga
Berlim não surgiria antes de 1700, funda- de cérebros e capitais dos países da Contra-
da por Leibniz, seu primeiro presidente). Reforma transforma Amsterdã no principal
Independentes das universidades, em centro capitalista da Europa e, conseqüen-
geral controladas pelo poder eclesiástico temente, no principal mercado de informa-
e mais voltadas a uma filosofia escolás- ção.
das Letras, 1989, p. 86.
tica, essas associações – como observa P. Num estudo sobre a gênese do capitalis-
8
Luciano Pellicani,Saggio sulla genesi Rossi - tinham justamente por objetivo “o mo, o sociólogo italiano Luciano Pellica-
del capitalismo, Milão, SugarCo, 1992,
p. 276. Observe-se, entretanto, que avanço e o progresso das ciências e das ni aponta a república holandesa como um
a tolerância holandesa não impediu
“verdadeiro laboratório” em que se podia 850 títulos)10. Mas as primeiras notícias
observar a sociedade capitalista-burguesa impressas só surgem entre o final do sécu-
em estado bruto: “laica, industriosa, tole- lo XV e o início do século XVI, a princípio
rante”, com a economia na linha de frente, com periodicidade bastante irregular, ca-
“subordinando às suas específicas exigên- racterística que se prolongará até o início
cias a política e neutralizando a religião”.
8
do século seguinte. Tratam-se das gazetas,
Tolerância religiosa e florescimento inte- assim chamadas por tomarem de emprés-
lectual, de fato, caminhariam juntos na timo o nome da moeda veneziana gazzetta,
ascensão da burguesia mercantil holande- utilizada para comprá-las.
sa, retra-tada nas pinturas de Vermeer e Burke observa que panfletos sobre even-
Rem-brandt. Impulsionado pela diáspora tos da atualidade já eram vendidos no sé-
de protestantes e calvinistas, tal processo culo XVI, mas são os jornais e revistas
desencadeará a “explosão do jornalismo”. 9
publicados depois de 1600 que melhor ilus-
Os “relatos jornalísticos”, porém, não tram o comércio da informação: “as notícias
nascem na Holanda. A progressiva expan- já eram vistas como mercadorias no século que também lá houvesse limites à
liberdade de expressão. O Tratado
são dos mercados exigiu, já a partir do XVII11.” O fato é reconhecido também por teológico-político, do filósofo Baruch
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século XV, uma rede de informações cada Peucer, no parágrafo VIII de seu escrito. Espinosa (1632-1677), ele próprio um
holandês (segregado pela comunidade
vez mais articulada. Notícias manuscritas “As causas da aparição dos periódicos im- judaica de Amsterdã aos 24 anos de
idade), foi banido em 1674. Os teólo-
relatando a situação político-econômica pressos com tempestiva freqüência hoje em
gos consideravam o grande filósofo um
e as transações comerciais e financeiras, dia”, diz ele, “são em parte a curiosidade ateu e blasfemo, nocivo aos valores da
república.
celeremente reproduzidas por copistas humana e em parte a busca de lucro, tanto
em poucas centenas de exemplares, abas- da parte dos que confeccionam os periódi-
9
P. Burke, obra citada, p. 149.
teciam as elites das principais cidades. cos, como da parte daqueles que os comer- 10
Ibidem, p. 147. Só no século XV, diz
Burke, “mais livros foram impressos
Veneza era então o centro editorial da ciam, vendem.”
em Veneza do que em qualquer outra
Europa (a impren-sa, recordese, fora in- cidade da Europa (aproximadamente
4.500 títulos, o que chega a algo como
ventada por Gutten-berg em 1438), posi- 3. A verdadeira imprensa periódica apa- 2 milhões de cópias)”.
ção que preservaria durante todo o século rece no início do século XVII, em Antuér- 11
P. Burke,idem, p. 152.
XVI: funcionavam ali apro-ximadamente pia, nos Países Baixos, com a publicação se-
500 casas impressoras, que publicaram manal da folha As últimas notícias (Nieuwe
milhares de livros (um só editor, Gabriel Tydinghen), a partir de maio de 1605. Nos
Giolito, chegou a imprimir em torno de anos seguintes, novas publicações semanais