Você está na página 1de 11

Tobias Peucer e as

origens do jornalismo
Orlando Tambosi*

Resumo: Abstract
O artigo procura relacionar o estudo pioneiro de Tobias This article establishes a relationship between Tobias
Peucer sobre jornalismo (publicado em 1690) com o Peucer’s pionner study on journalism, published in
“espírito da época”, mostrando que a atividade jorna- 1690, and that era’s frame of mind, showing that jour-
lística se desenvolve no contexto da revolução científi- nalism developed in the context of a scientific revolu-
ca e que, já no século XVII, não por acaso também cha- tion. In the XVII century, there was a newspaper boom
49
mado o “século dos periódicos”, ocorre uma verdadeira that helped to establish some fundamental professio-
“explosão do jornalismo”, que fixaria alguns conceitos nal concepts still employed today.
fundamentais da profissão ainda hoje vigentes.

Palavras-chave: Keywords
jornalismo – história – revolução científica – filosofia. journalism, history, scientific revolution, philosophy
1. Tobias Peucer, considerado o autor da (1642-1727), o pai da física moderna, e no
primeira tese doutoral sobre jornalismo1, mesmo ano em que vieram à luz o Ensaio
publicada no final do século XVII, teve o sobre o intelecto humano e Dois tratados
mérito de sistematizar os principais con- sobre o governo, do filósofo John Locke
ceitos da recém-nascida imprensa periódi- (1632-1704), fundador do empirismo e teóri-
ca, mas não deve ser visto como precursor co do liberalismo. Na Alemanha de Peucer,
ou fundador de uma “teoria do jornalis- o filósofo e lógico Wilhelm Leibniz (1646-
mo”. Na verdade, os pressupostos teóricos 1716) estabelecia as diferenças entre a in-
e regras técnicas que ele enuncia corres- vestigação científica e a pesquisa filosófico-
pondem à “cultura da notícia”2 que come- metafísica, criticava Descartes (1596-1650)
çava a se consolidar nos principais centros e polemizava com Newton sobre a primazia
da Europa (principalmente na Holanda) na criação do cálculo diferencial. A revo- 1
Peucer, Tobias, De relationibus
novellis, Leipzig, 1690 (Os relatos
em função da expansão do comércio e da lução científica , que já varrera boa parte
4
jornalísticos, tradução de Paulo da
proliferação de periódicos. Peucer remete, da Europa, lentamente começa a mudar a Rocha Dias, São Bernardo do Campo,
Pós-Com-Umesp, 1999, publicada na
portanto, às origens do jornalismo (o pró- imagem do mundo, solapando a concepção Revista Comunicação e Sociedade, 33,
aristotélico-cristã do universo. pp. 199-214).
prio termo “jornalista” passou a ser utili-
50
zado em francês, inglês e italiano somente É no século XVII que irrompe este gran- 2
A expressão é de Giovanni Gozzini
em Storia del giornalismo, Milão,
por volta de 17003). Filho da modernida- dioso movimento de idéias que transforma- Bruno Mondadori, 2000.
de tal como as ciências, o jornalismo seria rá profundamente não só a ciência e a filo-
3
Cfr. Peter Burke, Uma história so-
decisivo, no século XVIII, à difusão das sofia, mas a própria con-cepção do mundo cial do conhecimento (de Gutenberg a
e da vida: a obra de Galileu Galilei (1564- Diderot), Rio de Janeiro, Jorge Zahar
idéias do Iluminismo – só então assumin-
Editor, 2003, p. 34.
do características político-ideológicas mais 1642) lhe fornecerá as características de-
4
Em geral, considera-se como período
nítidas que desembocariam na formação terminantes; Francis Bacon (1561-1626) e da revolução científica o tempo trans-
da chamada “opinião pública” e na Revo- René Descartes, cada qual à sua maneira, corrido entre a publicação de Sobre
as revoluções das órbitas celestes, de
lução Francesa de 1789. serão seus arautos filosóficos. Desfecho: “a Nicolau Copérnico (1543), e dos Prin-
imagem new-toniana do universo concebido cipia mathematica, de Newton (1687);
Vale a pena reconstituir os traços his-
a referência básica, no entanto, per-
tórico-filosóficos mais marcantes da-quela como uma máquina, ou seja, como um reló- manece sendo o século XVII.

época. O opúsculo de Peucer (cons-tituído gio”.5 De agora em diante, a ciência (...) não 5
Giovanni Reale e Dario Antiseri,
de 29 parágrafos) surge três anos depois é mais a intuição privilegiada do mago ou História da filosofia, São Paulo, Edi-
ções Paulinas, 1990, vol. II, p. 185.
da publicação de Princípios matemáti- astrólogo iluminado, individualmente, nem
o comentário a um filósofo (Aris-tóteles)
6
Ibidem, p. 187.
cos de filosofia natural, de Isaac Newton
7
Citado por Paolo Rossi, Os filósofos e
Estudos em Jornalismo e Mídia, as máquinas, São Paulo, Companhia
Vol. I Nº 2 - 2º Semestre de 2004
que disse “a” verdade, isto é, não mais artes através da colaboração”. Tal objetivo
um discurso sobre “o mundo de papel”, é destacado no prefácio da primeira edição
mas sim investigação e discurso sobre o (1666) das Philosophical Transactions, re-
mundo da natureza (...). Trata-se de um vista da Royal Society, assinado por Henry
processo verdadeiramente com-plexo, que Oldenburg, um seguidor de Bacon e secre-
(...) encontra seu resultado na fundamen- tário da associação: “estas Transactions
tação galileana do método científico e, são publicadas para que se possa aumentar
portanto, na autonomia da ciência em re- ainda mais a aspiração a um conhecimen-
lação às proposições de fé e às concepções to sólido e útil (...) e para que os pesqui-
filosóficas. (...) A ciência é ciência expe- sadores sejam convidados e encorajados a
rimental. É através do experimento que procurar, experimentar, encontrar coisas
os cientistas tendem a obter proposições novas, transmitir mutuamente seus conhe-
verdadeiras sobre o mundo. 6
cimentos e contribuir no que possam para o
É também no século XVII que surgem grande fim de fazer progredir a ciência da
as primeiras academias e sociedades natureza”.7
científicas, expressamente destinadas a
51
promover a colaboração sistemática en- 2. A pequena Holanda se tornará, no de-
tre cientistas, pesquisadores e eru-ditos correr do século - graças à abertura aos
(Accademia del Cimento [Academia do estrangeiros e ao princípio de tolerância,
Experimento], em 1657, na Itália; Royal funcional ao desenvolvimento econômico e
Society, em 1662, na Inglaterra; e Aca- científico, o refúgio de comerciantes, cien-
démie des Sciences, em 1666, na França; tistas, filósofos e técnicos perseguidos em
na Alemanha, a Academia de Ciências de seus países por motivos religiosos. A fuga
Berlim não surgiria antes de 1700, funda- de cérebros e capitais dos países da Contra-
da por Leibniz, seu primeiro presidente). Reforma transforma Amsterdã no principal
Independentes das universidades, em centro capitalista da Europa e, conseqüen-
geral controladas pelo poder eclesiástico temente, no principal mercado de informa-
e mais voltadas a uma filosofia escolás- ção.
das Letras, 1989, p. 86.
tica, essas associações – como observa P. Num estudo sobre a gênese do capitalis-
8
Luciano Pellicani,Saggio sulla genesi Rossi - tinham justamente por objetivo “o mo, o sociólogo italiano Luciano Pellica-
del capitalismo, Milão, SugarCo, 1992,
p. 276. Observe-se, entretanto, que avanço e o progresso das ciências e das ni aponta a república holandesa como um
a tolerância holandesa não impediu
“verdadeiro laboratório” em que se podia 850 títulos)10. Mas as primeiras notícias
observar a sociedade capitalista-burguesa impressas só surgem entre o final do sécu-
em estado bruto: “laica, industriosa, tole- lo XV e o início do século XVI, a princípio
rante”, com a economia na linha de frente, com periodicidade bastante irregular, ca-
“subordinando às suas específicas exigên- racterística que se prolongará até o início
cias a política e neutralizando a religião”.
8
do século seguinte. Tratam-se das gazetas,
Tolerância religiosa e florescimento inte- assim chamadas por tomarem de emprés-
lectual, de fato, caminhariam juntos na timo o nome da moeda veneziana gazzetta,
ascensão da burguesia mercantil holande- utilizada para comprá-las.
sa, retra-tada nas pinturas de Vermeer e Burke observa que panfletos sobre even-
Rem-brandt. Impulsionado pela diáspora tos da atualidade já eram vendidos no sé-
de protestantes e calvinistas, tal processo culo XVI, mas são os jornais e revistas
desencadeará a “explosão do jornalismo”. 9
publicados depois de 1600 que melhor ilus-
Os “relatos jornalísticos”, porém, não tram o comércio da informação: “as notícias
nascem na Holanda. A progressiva expan- já eram vistas como mercadorias no século que também lá houvesse limites à
liberdade de expressão. O Tratado
são dos mercados exigiu, já a partir do XVII11.” O fato é reconhecido também por teológico-político, do filósofo Baruch
52
século XV, uma rede de informações cada Peucer, no parágrafo VIII de seu escrito. Espinosa (1632-1677), ele próprio um
holandês (segregado pela comunidade
vez mais articulada. Notícias manuscritas “As causas da aparição dos periódicos im- judaica de Amsterdã aos 24 anos de
idade), foi banido em 1674. Os teólo-
relatando a situação político-econômica pressos com tempestiva freqüência hoje em
gos consideravam o grande filósofo um
e as transações comerciais e financeiras, dia”, diz ele, “são em parte a curiosidade ateu e blasfemo, nocivo aos valores da
república.
celeremente reproduzidas por copistas humana e em parte a busca de lucro, tanto
em poucas centenas de exemplares, abas- da parte dos que confeccionam os periódi-
9
P. Burke, obra citada, p. 149.

teciam as elites das principais cidades. cos, como da parte daqueles que os comer- 10
Ibidem, p. 147. Só no século XV, diz
Burke, “mais livros foram impressos
Veneza era então o centro editorial da ciam, vendem.”
em Veneza do que em qualquer outra
Europa (a impren-sa, recordese, fora in- cidade da Europa (aproximadamente
4.500 títulos, o que chega a algo como
ventada por Gutten-berg em 1438), posi- 3. A verdadeira imprensa periódica apa- 2 milhões de cópias)”.
ção que preservaria durante todo o século rece no início do século XVII, em Antuér- 11
P. Burke,idem, p. 152.
XVI: funcionavam ali apro-ximadamente pia, nos Países Baixos, com a publicação se-
500 casas impressoras, que publicaram manal da folha As últimas notícias (Nieuwe
milhares de livros (um só editor, Gabriel Tydinghen), a partir de maio de 1605. Nos
Giolito, chegou a imprimir em torno de anos seguintes, novas publicações semanais

Estudos em Jornalismo e Mídia,


Vol. I Nº 2 - 2º Semestre de 2004
surgem quase ao mesmo tempo na Basi- primeiro pode ser ordenado “como um fio
léia, em Estrasburgo, Frankfurt, Berlim, contínuo, conservando a sucessão precisa
Ham-burgo, Praga, Colônia e Amsterdã. dos fatos históricos”, o segundo “contém a
Lon-dres terá seu primeiro jornal em notificação de coisas diversas acontecidas
1622; Paris, em 1631; Florença, em 1636; recentemente em qualquer lugar”, limi-
Roma, em 1640; e Madri, em 1661. tando-se a uma “simples exposição”, para
Vale mencionar que, na França, The- reconhecimento dos fatos mais impor-tan-
ophraste Renaudot, editor da Gazette e tes, ou mesmo misturando “coisas de temas
médico do rei Luiz XIII, já antecipava na diferentes, como acontece na vida diária ou
década de 1630 alguns pontos importan- como são propagadas pela voz pública, para
tes em relação aos jornais, tratando das que o leitor curioso se sinta atraído pela va-
fontes e estabelecendo a diferença entre riedade de caráter ameno e preste atenção”
história e relato jornalístico. “A história”, (parágrafos III e IV). O relato periodístico,
dizia ele, “é o relato das coisas aconteci- em suma, trata de “coisas singulares”, tais
das, a gazeta é somente a voz corrente. como inundações, tempestades, terremotos,
A primeira é tida por dizer sempre a ver- “as obras ou os feitos maravilhosos e insóli-
53
dade, a segunda já faz muito se impede a tos da natureza ou da arte” etc. (parágrafo
mentira. E não mente nem mesmo quan- XV).
do refere notícias falsas que lhe foram co- Quanto às fontes, Peucer parece sugerir
municadas como verdadeiras. Só a men- a pluralidade. Diz ele no parágrafo XIV
tira difundida conscientemente como tal que “é preciso averiguar se quando um fato
pode torná-la digna de reprovação.”12 Ain- acontecido recentemente é anunciado ime-
da que a solução proposta por Renaudot diatamente em locais diversos, é confirma-
fosse desculpar de antemão o gazetier de do pelo testemunho de muitos”. Se houver
boa fé, eximindo-o de qualquer responsa- discordância, conferese “uma credibilidade
12
G. Gozzini, obra citada, p. 25; ver bilidade, não resta dúvida de que ele foi provável às coisas narradas, de sorte que
também Jean-Noël Jeanneney, o primeiro a suscitar o problema das fon- afinal ao mais sério, pode suceder-lhe que
Storia dei media, Roma, Riuniti, 1996,
p. 31 (original francês: Une histoire des tes, essenciais ao trabalho jornalístico. algumas vezes se lhe misture coisas falsas
médias, Paris, Seuil, 1996)., Roma, Peucer também comentará a diferença com coisas verdadeiras sem culpa sua.” So-
Riuniti, 1996, p. 31 (original francês: entre relato histórico e relato jornalís- bretudo, “não se pode mentir nem dizer coi-
Une histoire des médias, Paris, Seuil,
1996). tico em seu estudo de 1690. Enquanto o sas falsas de sorte que o outro forme uma
opinião falsa ou seja enganado”. lica no século XVI: o Index Librorum Pro-
Segundo o historiador dos media Jean- hibituorum (Index dos Livros Proibidos).
neney, é exatamente no século XVII que Concebido para se contrapor à Reforma
se desenham alguns traços da imprensa (e à imprensa), incluía não só obras de te-
moderna: já é amplo o leque de gêneros, ologia protestante, mas livros sobre outros
e a nova profissão começa a ampliar sua assuntos escritos por “hereges”. Na lista fi-
própria liberdade, apesar das interferên- guravam nomes famosos como Copérnico,
cias dos governos e da corrupção . Exce-
13
Galilei, Bacon, Descartes, Locke, Espinosa,
tuando-se a liberal Holanda, no entanto, Voltaire, Rousseau – para ficar apenas nos
haveria censura prévia e férreo controle mencionados neste artigo. Atualizado re-
da imprensa por parte das monarquias gularmente até a 32a. edição, de 1948 (com
européias até o século seguinte. O rei Fre- uma relação de 4 mil livros), o Index foi um
derico Guilherme I da Prússia, por exem- obstáculo à circulação do conhe-cimento
plo, permitiria a existência, durante seu no mundo católico: fora das bibliotecas dos
reinado (1713-1740), de apenas dois jor- grandes centros, era difícil encontrar exem-
nais, a cargo de funcionários por ele pró- plares de livros proibidos.15
54
prio designados: um, oficial, dedicado a Sobre a censura, o que tem a dizer Peu-
assuntos da realeza; outro, literário, dedi- cer? O parágrafo XVIII, a propósito das
cado exclusivamente aos livros escolhidos “precauções” para a seleção da matéria dos
pelo rei (a situação na Alemanha e Áus- relatos jornalísticos, certamente não ex-
tria só mudaria com a ascensão de Frede- pressa a visão de um iluminista:
rico II, iluminista, amigo dos filósofos, que Eis a terceira precaução: que não se in-
desenvolve uma concepção menos grossei- sira nos periódicos nada que prejudique os
13
Cfr. J. N Jeanneney, obra citada, pp.
ra do mundo cívico ). Basta lembrar, por
14
bons costumes ou a verdadeira religião (...).
20-22.
fim, que livros ainda eram queimados em É por isso que em algumas cidades se esta- 14
Ibidem, pp.40-1.
praça pública em pleno século XVIII, en- beleceu com uma prudente decisão que não
15
Por outro lado, o Index foi um chamariz
para os editores e livreiros laicos, gerando
tre eles as Cartas filosóficas, de Voltaire seja permitido imprimir peri-ódicos sem
uma espécie de mercado negro para os livros
(obra publicada em 1733), e o Emílio, de que estes tenham sido apro-vados pela cen- proibidos que mais atraíam a curiosidade
Rousseau (1762). sura. Dá-se, com efeito, a honesta discipli- (ver P. Burke, obra citada, p. 130. O autor
chama atenção também para a censura
O sistema de censura mais abrangente, na, para que os espíritos inocentes não se-
protestante, menos centralizada que a
contudo, foi o instituído pela Igreja cató- jam ofendidos com esta espécie de páginas católica, mas não menos perniciosa).

Estudos em Jornalismo e Mídia,


Vol. I Nº 2 - 2º Semestre de 2004
impuras espalhadas aqui e ali, ou que, por do da França, começa a publicar em 1684
outro lado, os que são propensos ao mal, as Nouvelles de la République des Lettres
não venham a ser incitados por esse tipo [Notícias da República das Letras], cujo
de escritos. sucesso foi imediato17. Cresciam agora as
publicações eruditas e culturais, a exem-
4. Amsterdã passa a ocupar no século plo das revistas das academias científicas
XVII o lugar que Veneza ocupara no sé- (como a citada Philosophycal transactions,
culo anterior como centro de infor-mação da Royal Society inglesa). Em Paris, o
e de produção e comercialização de livros. Journal des Savants (1665), mantido pela
Gazetas de notícias eram ali im-pressas Academia de Ciências, cultiva em suas 12
regularmente em diversas lín-guas, como páginas semanais um modelo mais cultural
é o caso dos primeiros jornais publicados e literário que seu congênere inglês, logo
em inglês e francês, em 1620: The Cor- seguido pelo romano Giornale de’ Letterati
rant out of Italy, Germany etc. e Courant (1668), de circulação mensal. Em Leipzig,
d’Italie, Alemaigne etc. [Atu-alidades da as Acta Eruditorum (1684), editadas em la-
Itália, Alemanha etc.]. Mais de 270 livrei- tim, se transformariam numa das revistas
55
ros e impressores atuavam na cidade, im- mais famosas do século (foi em suas pági-
primindo também bíblias, mapas, Atlas, nas, por exemplo, que Leibniz expôs o cál-
dicionários, enciclopédias e relatos de via- culo diferencial).
gens em vários idiomas, do latim ao fran- Nesse meio-tempo, a Leipzig de Peucer se
cês, do inglês ao alemão, além de russo, afirma como um dos centros do jornalismo
iídiche, armênio e georgiano. Contam os europeu. E é precisamente em Leipzig que
historiadores que os mari-nheiros ingleses se edita o primeiro jornal diário, experiên-
dependiam dos editores holandeses para cia que só foi possível devido ao sistema
informações e orientações “até mesmo so- conjunto de serviços postais e tipográficos.
bre as costas da Ingla-terra”. 16
Tanto se O Neueinlauffende Nachricht von Krieg-
16
Ver P. Burke, obra citada, p. 148.
publicava (e não só na Holanda) que, ao sund Welthandeln [Notícia corrente dos
17
Impressionado com a proliferação de
gazetas e outros tipos de periódicos, Bayle, final do século, surge também a resenha fatos da Guerra e do mundo] foi publica-
autor de um importante Dicionário de livros. do quotidianamente durante mais de uma
histórico-crítico, já na época reivindicava
É ainda em Amsterdã que o filósofo cal- década pelo tipógrafo e livreiro Timotheus
uma história da imprensa (Cfr. J.M.
Jeanneney, obra citada, p. 33. vinista Pierre Bayle (1647-1706), exila- Ritsch. Ainda que essa experiência perma-
18
Cfr. G. Gozzini, obra citada, p.36-37.
necesse como um fato isolado por algum nas dos jornais, silenciosamente, na própria
tempo, estava aberto o caminho para casa.19
uma presença cada vez mais forte do jor-
nalismo. 5. Abolida a censura prévia, em 1695,
A profissão de jornalista, de fato, am- também a Inglaterra passa a se distinguir
plia sua autonomia em relação aos ofícios no campo do jornalismo diário. Em Lon-
de impressor e editor, dissemi-nando al- dres floresceriam as iniciativas mais dura-
gumas regras técnicas que cons-tituirão a douras, como a do Daily Courant, editado a
“cultura da notícia” do jornal moderno. 18
partir de 1702, e a do The Evening Post, o
A imprensa começaria a tomar o lugar do primeiro vespertino inglês, lançado quatro
púlpito, como lembra Eisenstein em seu anos depois. É então que a “cultura da no-
belo estudo sobre “as revoluções do livro”. tícia” dá o salto que, mudanças tecnológicas
De agora em diante, a seleção e circulação à parte, caracteriza o jornalismo ainda hoje.
de notícias seriam geridas por laicos, o Já em seu primeiro número o Daily Cou-
que contribuiria para o processo de secu- rant anuncia as regras técnicas e as nor-
larização (ou dessa-cralização) da cultura, mas éticas que pautariam sua conduta. A
56
essencial ao avanço do espírito científico. cobertura do noticiário estrangeiro deveria
A partir do século XVIII, de fato, citar as fontes, evitar “qualquer acréscimo
o púlpito foi definitivamente suplantado de circunstâncias falsas a um evento”, rela-
pela imprensa periódica, e o dito “nada é tando tudo “correta e impar-cialmente”. “No
sagrado” acabou por caracterizar a car- início de cada artigo”, prossegue a apresen-
reira do jornalista. Frente à “furiosa cobi- tação, “o Autor citará o jornal estrangeiro
ça de novidade” e “sede generalizada de em que se baseou, de modo que o Público 19
Elizabeth L. Eisenstein, Le rivoluzioni
notí-cias”, os esforços dos moralistas cató- (...) possa julgar com maior conhecimento
del libro. L’invenzione della stampa e
la nascita dell’età moderna, Bolonha, Il
licos e dos evangélicos protestantes (...) se a credibilidade e imparcialidade do relato.” Mulino, 1995, p. 106. A autora faz uma
reve-laram pouco úteis. O jornal mensal Dispensando “comentários ou suposições interessante análise das imbricações entre
foi substituído pelo semanal e este, enfim, subjetivos”, serão noticiados apenas “dados
o Renascimento, a Reforma protestante
e a revolução científica, profundamente
pelo quotidiano. Surgiam cada vez mais de fato.” E o jornal conclui: “este Courant influenciados pela invenção da imprensa
jornais de província (...). Os bisbilhoteiros (como mostra o título) será publicado dia- (há tradução brasileira: A revolução da
freqüen-tadores de igreja já podiam saber riamente: sendo pensado para dar todas as
cultura impressa, São Paulo, Ática,
1998).
dos assuntos locais percorrendo as colu- notícias tão logo cheguem com o correio: e 20
G. Gozzini, obra citada, pp.42-43.
21
Ibidem, p. 43.
Estudos em Jornalismo e Mídia,
Vol. I Nº 2 - 2º Semestre de 2004
se limita à metade do espaço, para poupar grande importância”. E, no parágrafo XXI,
o público pelo menos metade das imperti- acres-centa que [no relato] “caberá ater-se
nências dos jornais comuns”. 20 àque-las circunstâncias já conhecidas que
Credibility and fairness (credibilidade e se costuma ter sempre em conta em uma
imparcialidade) – eis, segundo Gozzini, “a ação, tais como a pessoa, o objeto, a causa,
primeira formulação de uma deontologia o modo, o local, e o tempo.”
profissional do jornalista” , que depois se
21 Peucer está atento também à neces-sida-
traduziria na clássica distinção entre fa- de de concisão, clareza e atenção aos fatos.
tos e opiniões. A carta de apresentação do O estilo dos periódicos, sublinha o parágra-
Daily salienta a exigência de atualidade fo XXII, não haverá de ser “nem oratório
e enuncia sinteticamente algumas dire- nem poético”, pois “aquele distancia o lei-
trizes que se tornariam fundamentais na tor desejoso de novidade”, e “este lhe causa
profissão e hoje figuram em qualquer ma- confusão, além de não expor as coisas com
nual de redação: fidelidade aos fatos, pre- clareza suficiente.” Os relatos jornalísticos
ocupação com a verdade, rigor na apura- devem seguir o fato tal “como sucedeu”, e
ção e seleção, além de exatidão e concisão. para isso “o narrador se faz servir uma lin-
57
Delineia-se aqui a fórmula dos “cinco W”, guagem por um lado pura, mas por outro,
isto é, o lead da notícia, que o jornalismo clara a concisa”, evitando “as palavras obs-
inglês consa-graria: who (quem), what (o curas e a confusão na ordem sintática.” No
que), where (onde), when (quando), why parágrafo XXIV, finalmente, Peucer conclui
(porquê). Não satisfeitas as condições do que “a finalidade dos novos periódicos é
lead, ou o texto está mal elaborado ou não mais própria para o conhecimento de coisas
se trata de notícia. novas acom-panhadas de uma certa utilida-
Essas questões não escaparam a Peu- de e atualidade”:
cer, que, no parágrafo XIII de sua tese,
relaciona com “a vontade do escritor de Com efeito, o afã de saber coisas novas é tão
periódicos” tanto “a credibilidade” quan- grande que cada vez que os cidadãos se encon-
to “o amor à verdade”. “Não seja o caso tram em encruzilhadas e nas vias públicas per-
que”, afirma ele, “preso por um afã parti- guntam: “o que há de novo?” A fim de satisfazer
22
J. N. Jeanneney, dário, misture ali temerariamente algu- esta curiosidade humana tem se imprimido
Storia dei media ma coisa de falso ou escreva coisas insu- de todo modo novos relatos jornalísticos em
, cit., p. 24. ficien-temente exploradas sobre temas de
diversos idiomas. E os que os lêem podem prensa, particularmente a periódica, aju-
satisfazer assim a sede de novidades dos dou a expandir o conhecimento. Ela não só
companheiros e dos grupos de amigos. facilitou a interação entre diferentes tipos
de conhecimento, mas estimulou o ceticis-
6. Diante das exigências da cultura da mo, permitindo que “a mesma pes-soa com-
notícia, então cada vez mais difusa, não parasse e contrastasse explicações alterna-
surpreende que o primeiro quotidiano in- tivas e incompatíveis do mesmo fenômeno
glês tenha manifestado, já em seu número ou evento”.23
de extréia, a intenção de se destacar das Embora mais conservador, em certos as-
publicações concorrentes, em geral menos pectos, que seus contemporâneos iluminis-
criteriosas. Afinal, não eram incomuns, à tas, Tobias Peucer soube captar as transfor-
época do Daily Courant e de Peucer, regis- mações vividas pela imprensa no século da
tros sensacionalistas de monstros e mara- revolução científica e dos periódicos. Como
vilhas, publicados lado a lado com relatos foi dito, De relationibus novellis teve o mé-
de cunho mais factual. Jeanneney cita rito de sistematizar conceitos e regras que,
como exemplo o jornal francês Mercure esparsos nas páginas de jornais e revistas,
58
galant, que em 1680 manteve seus leito- compu-nham o perfil de uma nova profissão
res em suspenso com a fantástica estória - a de jornalista.
da “serpente de La Tour du Pin”, animal
com “um maravilhoso rubi entre os den-
* Orlando Tambosi
O autor é professor de Filosofia, Ética e
tes” (sic), que aparecera várias vezes en-
Epistemologia do Departamento de Jorna-
tre os camponeses.22
lismo da UFSC, Doutor em Filosofia pela
Note-se que esse tipo de relato fanta-
Unicamp, é autor de O declínio do marxis-
sioso pouco preocupava as elites, os re-
mo e a herança hegeliana, Florianópolis,
ligiosos e governantes. Curiosamente, o
Editora da UFSC, 1999, e A cruzada contra
jornalista passou a ser mais criticado e
as ciências. FLN, Insular, 2004.
malvisto quando, já consolidada a cultura
da notícia, se torna mais objetivo, isto é,
Referências bibliográficas
quando segue mais de perto os fatos, des-
BURKE, Peter. Uma história social do 22
J. N. Jeanneney, Storia dei media
prezando os “comentários ou suposições
conhecimento (de Gutenberg a Diderot). , cit., p. 24.
subjetivos”. Mas foi desse modo que a im- 23
P. Burke, obra citada, p. 19.

Estudos em Jornalismo e Mídia,


Vol. I Nº 2 - 2º Semestre de 2004
Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2003.
EISENSTEIN, Elizabeth L. Le rivoluzio-
ne del libro. L’invenzione della stampa e la
nascita dell’età moderna. Bolonia: Il Mulino,
1995.
GOZZINI, Giovanni. Storia del giornalis-
mo. Milão: Bruno Mondadori, 200.
JEANNENEY, Jean-Noël. Storia dei me-
dia. Roma: Riuniti, 1996.
PELLICANI, Luciano. Saggio sulla genesi
del capitalismo. Milão: SugarCo, 1992.
PEUCER, Tobias. Os relatos jornalísticos.
Tradução de Paulo da Rocha Dias. Revista
Comunicação & sociedade, n. 33.
REALE, Giovanni, e ANTISERI, Dario.
59
História da filosofia (vol. II). São Paulo: Edi-
ções Paulinas, 1990.
ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Você também pode gostar