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2003 Art Iafbarreira PDF
2003 Art Iafbarreira PDF
S e existem muitas
maneiras de contar
uma história é por-
que as narrativas são fios
DE CÉu REGINA JARDIM PINTO
te é caracterizada por manifestações da impren- começam a lutar nos postos de saúde, nas esco-
sa feminista alternativa, sob a ação de mulheres las, nas creches e nos serviços públicos em ge-
cultas tais como professoras, escritoras e jorna- ral. Essas organizações de bairro tiveram apoio
listas. As mulheres, através da imprensa, busca- da Igreja Católica, principalmente através das
vam formar uma opinião a favor das suas idéias Comunidades Eclesiais de Base.
de libertação. Eram mulheres precursoras de A singularidade do movimento feminista
valores alternativos à moral dominante, que pro- estava no fato de que, por um lado, se organiza-
feriam discursos relacionados a temas como di- va a partir do reconhecimento de que ser mulher,
vórcio e sexualidade, configurando em seus tanto no espaço público como privado, acarreta
protestos a face menos comportada do movi- conseqüências definitivas para a vida, havendo,
mento A terceira tendência, de natureza mais portanto, uma luta específica, baseada na trans-
politizada, é manifestada através da presença do formação das relações de gênero. Por outro lado,
Partido Anarquista e Partido Comunista, no existia a compreensão de que no Brasil questões
movimento feminista. como a fome, a miséria e a desigualdade social
O novo feminismo que ocorreu nas déca- não eram um problema menor, externo às lutas
das de 1960 e 1970 esteve relacionado à específicas. Principalmente na luta de mulheres e
efervescência política do contexto mundial à negros, questões ligadas à condição de classe
época. O movimento revolucionário em curso estiveram fortemente presentes na conformação
colocava em cheque os valores conservadores e especificidade das demandas.
da organização social, questionando hierarquias O movimento feminista no Brasil tanto
vigentes nos âmbitos público e privado. Foi nesse lutava por autonomia, em um espaço marcado
momento que emergiu o livro de Simone de pela política, como defendia a especificidade da
Beauvoir, O Segundo Sexo, irrompendo também, condição dominada da mulher. O ano de 1975 é
no período, manifestações ritualizadas de con- considerado como momento inaugural de
testação, tal como a "queima de sutiãs", feita expressividade do movimento feminista, saindo
por americanas lideradas por Beth Friedman. da condição de grupos específicos fechados e
O cenário no Brasil era, no entanto, dife- intelectualizados para incorporar segmentos so-
rente do quadro mundial. A ditadura no país ciais que se fizeram presentes em eventos mai
tornava as lutas sociais articuladas a uma dimen- amplos que marcaram a participação da mulher
são mais ampla de demanda pela democracia. na esfera pública.
O movimento de mulheres, do mesmo modo, O Centro de Desenvolvimento da Mulher
abrangia outras esferas de manifestação tais como Brasileira, criado nesse momento, tinha como
luta contra a carestia, movimento de mães pela objetivo "combater a alienação da mulher em
liberdade, anistia ete. Distinguia-se, assim, de todas as camadas sociais para que ela possa
outros movimentos feministas vigentes em ou- exercer o seu papel insubstituível e até agora
tros países. não assumido no processo de desenvolvimen-
Desde o final dos anos 40 e início da dé- to". O Centro teve um papel importante, abri-
cada de 50, do século XX, mulheres de diferen- gando diferentes tendências do feminismo.
tes classes sociais e ideologias lutavam contra a enfrentando, no entanto, resistência das femi-
carestia. Eram mulheres associadas à Federação nistas radicais, que priorizavam a centralidade
de Mulheres do Brasil, fortemente influenciadas da questão da mulher e dos problemas ligado
pelo Partido Comunista que, em 1953, realiza- ao corpo e à sexualidade.
ram a passeata da panela vazia. Esse tipo de A partir de 1976, o Centro abrigava três
organização manteve-se até início de 1970, prin- grandes tendências: a marxista, a liberal e a ra-
cipalmente nos bairros pobres, onde mulheres dical. As duas primeiras tinham uma natureza
mais política, para além da luta específica da Congresso Nacional, sobre o direito das mulhe-
mulher. A terceira posição colocava a questão res, englobando as reivindicações do movimen-
da mulher no centro da discussão, expondo a to feminista.
aberta condição de opressão. Enquanto o movi- O Conselho Nacional dos Direitos da Mu-
mento feminista em outros países era influenci- lher foi presença fundamental durante os traba-
ado por uma democracia que expunha de forma lhos de preparação da Assembléia Nacional
aberta a especificidade das lutas sociais das Constituinte, reunindo em Brasília grupo de fe-
mulheres, no Brasil o paradoxo estava na di- ministas que elaborou a "carta das mulheres". A
mensão da luta unitária contra a ditadura e a Constituição de 1988 consagrou conquistas im-
busca de um feminismo mais autônomo. Se, nos portantes no espaço do direito das mulheres,
estados Unidos e na Europa, os negros e as sendo decisiva a presença de militantes, duran-
mulheres expunham com força as formas de te os trabalhos constituintes.
dominação, no Brasil a luta dividia-se em dois Na década de 80, registra-se a presença de
campos: a democracia contra a ditadura e o pro- novos temas no interior do movimento feminis-
letariado contra a burguesia. Uma oposição en- ta, não restritos à temática política. Emergem,
tre lutas gerais e lutas específicas emergia nesse então, a violência e a saúde como bandeiras de
momento. As reivindicações gerais referiam-se luta e espaço de atuação. Surgem em tais circuns-
à anistia, eleições livres, assembléia constituinte tâncias Na década de 80 surgem inúmeras orga-
e fim da carestia. As específicas abrangiam a cri- nizações de apoio à mulher vítima da violência.
ação de creches em bairros, áreas de lazer, es- Nesse momento, a temática da violência contra a
colas, igualdades salariais etc. mulher vai tornar claro a diferença entre catego-
A época de redemocratização no Brasil ca- rias sociais, fazendo com que a militância femini-
racteriza a vigência de novos rumos para o movi- na tome outra forma, passando a organizar-se com
mento feminista. Ao longo da década de 1970, assessoria da área jurídica. Registra-se, ainda, nesse
surgem grupos feministas temátícos, marcados por período, a presença de mulheres na delegacia,
novas divisões entre as feministas que lutavam pela vista antes como espaço exclusivamente mascu-
institucionalização do movimento e as autonornistas lino, dando visibilidade a agressões antes restrita
que viam na aproximação com as esferas estatais à área privada. O tema da saúde extrapolou as
um risco de cooptação. De todo modo, segundo a políticas do Estado, questionando tabus ligados
autora, percebe-se nesse momento a conquista de à sexualidade e ao aborto. Também nesse plano
espaços institucionais tais como a criação de con- houve criação de grupos com efeitos diretos na
selhos e delegacia da mulher. A ligação orgânica construção de políticas públicas.
entre conselhos e partidos traduz a tensão entre as O feminismo acadêmico constitui um
tendências que definem a relação do movimento outro espaço de atuação que caracterizou o
com o Estado. O Conselho Estadual da Condição movimento de mulheres. Nele destacaram-se
Feminina, por exemplo, traduzia a busca de alar- pesquisas, publicações e eventos que consoli-
gamento da participação, a partir do recrutamento daram uma dimensão importante de visibilida-
de representantes. de do movimento feminista. Os estudos sobre a
A participação de mulheres na esfera mais mulher e os financiamentos para pesquisa so-
ampla da representação política constitui outra bre o tema redundaram em livros e revistas, con-
frente de luta. Mesmo que as mulheres eleitas solidados como veículos com forte poder de
não pertencessem ao movimento feminista, pois difusão de idéias. As associações científicas cri-
muitas delas faziam parte de partidos tradicio- aram, por outro lado, grupos de trabalho sobre
nais, a chamada bancada feminina teve atua- as questões de gênero, legitimando um novo
ção relevante. Apresentou 30 emendas, ao campo de estudos.
BARREIRA, IRLYS ALENCAR FIRMO: UMA HISTÓRIA 00 FEMINISMO NO BRASIL. P. 135 A 138 137
RESENHA