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CONSIDERAÇÕES SOBRE PLANEJAMENTO URBANO, VIOLÊNCIA E

URBANISMO MILITAR NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Autores:

Juliana Cardoso Marques

Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais

André Vaillant

Graduando em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Resumo:
Nesse trabalho são elencadas algumas considerações teóricas a respeito da
relação entre o militarismo e o desenho urbano, bem como quais serias seus significados
no imaginário urbano dentro do contexto brasileiro, com ênfase na cidade do Rio de
Janeiro, palco de uma atual intervenção militar. São propostas algumas discussões sobre
relações entre a violência urbana e o autoritarismo como agente urbanizador, através de
um breve histórico de algumas ações de intervenção urbana feitas por meio da violência
estatal na capital carioca.

Palavras-chave: Urbanismo, Violência, Política

1| Introdução

São diversas as possibilidades teóricas e metodológicas para análise da questão


da violência, do espaço urbano, e das tendências em torno ao militarismo que se
apresentam no Brasil em 2018, especialmente na cidade do Rio de Janeiro em meio a
uma intervenção militar. O primeiro desafio que se apresenta, portanto, é qual a
abordagem e forma de se aproximar de tal objeto. Nesse trabalho partimos da proposta

1
para uma análise crítica feita por Soja no seu artigo The City and Spatial Justice (SOJA,
2009):
Critical spatial thinking today hinges
around three principles:
a) The ontological spatiality of being (we are
all spatial as well as social and temporal
beings)
b) The social production of spatiality (space is
socially produced and can therefore be
socially changed).
c) The socio-spatial dialectic (the spatial
shapes the social as much as the social shapes
the spatial)

Para Soja, portanto, os pontos de partida para um pensamento especial (ou um


pensamento sobre o espaço construído) hodiernos consistem primeiramente, numa
concepção ontológica desse espaço, na produção social dessa espacialidade e numa
dialética sócio espacial. Para tanto, portanto, devemos considerar que: existe uma
relação histórica entre nossas questões contemporâneas e as formas de produção do
espaço que se desenvolveram na metrópole brasileira e latino-americana, e essas formas
de produção também se relacionam com nossa forma de compreender o espaço, não
podemos deixar de nos ater as questões materiais que são atores no planejamento das
grandes cidades e por fim que esse espaço tanto se transforma pela ação dos diversos
atores, mas também modifica as formas de vida de seus usuários.

2| Uma ontologia do ser urbano numa cidade latino americana

Se somos “seres espaciais”, ou seja, nos relacionamos com o mundo também


através da nossa relação com o espaço, qual seria esse devir brasileiro que entende que
no espaço urbano se liga, intimamente, com o aparato militar? Recorremos aqui, então,
a um breve histórico da força estatal como agente na construção de nossas cidades, bem
como a formação de uma cidade colonial.

2
O processo de construção desse mundo é um processo que se apóia
simultaneamente na violência e na esperança de um Eldorado. O Descobrimento da
América por Colombo, em 1492, inaugura um novo sistema mundial que envolverá uma
nova forma de se lidar com a produção econômica, com o território e com o outro.
Edmundo O’Gorman, em La Invención de La America (2010), afirma que não se pode
imaginar o surgimento da América como um mero aparecimento físico de um vasto
pedaço de terra, mas como uma invenção do Ocidente. Invenção essa que será
fundamental, como aponta Aníbal Quijano ao tratar do significado de colonialidade,
tanto para o surgimento da própria modernidade Européia, por meio do
desenvolvimento propiciado pelo grande afluxo de capital gerado pela colonização,
quanto para a fundamentação da noção de um outro “inferior”, passível de ser apagado e
escravizado, outro esse que será representado pelos povos indígenas e africanos.
O ser americano, portanto, se funda sobre essa dupla operação: a de ser signo do
desenvolvimento e signo da violência, tanto a física, quanto a do sistemático
silenciamento de saberes e culturas que não se inserem no sistema moderno. Tal
movimento de modernização e violência se torna uma constante no processo histórico
das Américas, ao longo dos quinhentos anos que seguem à chegada de Colombo, ainda
que perpassem diversos ciclos que possuem especificidades sócio-econômicas relativas
aos desenvolvimentos internos às Américas e às mudanças em escala global1. Nesse
processo de invenção imagética e mitológica de proporção tão imensa surge, inclusive, a
idéia de utopia. Thomas Morus2, em 1516, ao criar a palavra utopia, a forma a partir do
prefixo grego de negação justaposta a palavra lugar: o não-lugar. E o lugar inexistente é
uma cidade ideal, a Cidade do Sol, no novo mundo — cidade na qual se escapa dos
defeitos que Morus percebe em seu próprio país..

1
O trabalho do historiador José Luis Romero, a ser tratado neste projeto de tese, por exemplo, propõe sete ciclos de
desenvolvimento.
2
Thomas Morus na grafia latina, ou Thomas More, na grafia inglesa, foi chanceler de Henrique VIII e escreve
Utopia (1516), sua concepção de sociedade ideal, a partir do seu amplo conhecimento do funcionamento do estado.

3
A construção da cidade latina poderia ser a construção de uma utopia, porém o
processo nos fala do oposto, de um processo que age metodologicamente no ato de
ruptura, como coloca o antropólogo chileno Alejandro Haber (2011, p.29):

“La violencia nos constituye, constituye al mundo. ¿Pero de qué


maneras? Seccionando las relaciones constitutivas del mundo,
separando las partes seccionadas, y ensamblándolas de acuerdo a las
reglas del colonizador. Codificando estas reglas en conocimiento
hegemónico (religión, ciencia, leyes, etc.). El carácter hegemónico de
ese conocimiento nos hace partícipes de la violencia, que nos
constituye inmanentemente.”

Haber explicita algumas das formas de como o conhecimento hegemônico se


torna imanente à constituição do sujeito, sendo o sujeito colonizado, portanto,
impregnado da violência que disciplina corpos em espíritos em prol da visão
epistemológica dominante.
Como postula Antonio Carlos Robert Moraes (2000, p.1):

“A determinação colonial se inscreve nos padrões de organização do


espaço, na conformação da estrutura territorial, nos modos de
apropriação da natureza e de usos dos recursos naturais, na fixação de
valor ao solo e nas formas de relacionamento entre os lugares.”

Moraes fala de uma determinação colonial, ou seja, uma forma de organização


que se impõe à colônia e nela toma contornos fixos. Essa cosmogonia do ser-colônia é
determinante na organização, e portanto na produção do espaço.
Um dos principais estudos sobre a história da cidade latino americana, sem
dúvida, é o livro do historiador argentino José Luiz Romero América Latina, as
cidades e as idéias (2009). A obra abarca informações sobre o desenvolvimento das
cidades no continente desde a chegada dos europeus até o século XX, e, numa
impressionante quantidade de informações tanto demográficas, históricas e artísticas, o
autor propõe um panorama do desenvolvimento urbano em toda a extensão de países
iberoamericanos. Sua escrita metodologia derivada dos historiadores da escola dos

4
Annales3, mantém a história em relação com as ciências sociais, com informações e
relações admiráveis. Romero identifica, ao longo da obra, sete períodos de
desenvolvimento urbano na América Latina: a) América Latina na expansão européia
(processo de chegada dos espanhóis e portugueses); b) o ciclo das fundações (primeiras
décadas do século XVI); c) as cidades fidalgas das índias (meados do século XVI até
meados do século XVIII) d) as cidades criollas (segunda metade do século XVIII às
primeiras décadas do século XIX); e) as cidades patrícias (primeiras décadas do século
XIX até 1890), f) as cidades burguesas (1880-1930); e g) as cidades massificadas (a
partir de 1930). O autor cria os marcos temporais a partir de eventos econômicos e
culturais que mudam os hábitos e o desenvolvimento das cidades.
A cidade do Rio de Janeiro passa, em sua história, por todos esses ciclos de
desenvolvimento. Porém é interessante ressaltar, aqui, especialmente, os ciclos pós
processo de independência, que o autor chamaria de “cidades patrícias” e,
posteriormente, de “cidades burguesas”. Essas cidades, segundo Romero, se conformam
a partir do fortalecimento de aristocracias locais, que, no século XIX, já se posicionam
como tradicionais dos países (e não mais imigrantes da Europa) e que estabeleceram
poderio econômico e também moral, ditando costumes. Essas elites são responsáveis
pelos processos de independências, que lhes institui também poder político. A partir do
final do século XIX, porém, o capital internacional industrial passa a exercer um papel
fundamental nas economias locais, surgindo novos atores que detém poder econômico,
não necessariamente vindo das famílias que constituem as aristocracias locais. Para
Romero, no final no século XIX, surge um pacto entre essas duas elites — a tradicional
patrícia e a nova burguesa global/industrial — e nesse pacto se dão mudanças nos
hábitos e também as formas de se entender o espaço urbano. Esse período marca um
período de crescimento exponencial de diversas cidades, especialmente as portuárias,
devido às relações internacionais. É um período no qual serão fundadas, também,
cidades que se opõem ao passado colonial e propõem um futuro republicano, bem como
3
Movimento historiográfico desenvolvido a partir da publicação francesa Annales d'histoire économique et
sociale.

5
cidades destinadas à produção industrial e as grandes modernizações ou remodelações
urbanas dos grandes centros. Esse é o período em que se dá a Reforma Pereira Passos, a
primeira grande remodelação urbana ao qual o Rio de Janeiro irá ser submetido. O
modelo da Reforma Pereira Passos dita a forma como será conduzida, até hoje, a
questão estado-cidade: em nome do embelezamento e do progresso, ela promove
inúmeras remoções, apagamentos de culturas locais, mudança estratégica de populações
de classes menos abastadas para valorização imobiliária. Os grandes conceitos que
norteiam essa proposta são: a higienização, o embelezamento, e um suposto
espelhamento com metrópoles européias, em especial Paris, que, como cidade símbolo
de uma nova ordem política moderna que substitui a monarquia pela república inspirará
também o afastamento da identidade colonial para a criação da identidade de um país
independente.

Fica claro porém que essa operação possui uma contradição interna: ao rejeitar o
antigo colonizador (Portugual) para abraçar ou outro exemplo também igualmente
colonizador (França), e em plena expansão imperialista, demonstra ainda uma
subserviência metrópole européia. Nessa ausência de ruptura com o passado colonial no
que tange à organização espacial, promovemos, portanto, espécies de colônias
independentes, cujas metrópoles são fundadas internamente, e cujos processos de
exploração se dão tanto dentro do sistema do capital global mas também nas relações
internas. Ou seja, cidades que possuem suas centralidades e suas periferias em relação
de dominação e exploração tão intrínseca quanto na antiga relação colônia-metrópole.

3|A produção social da espacialidade: a partilha da cidade neolibral brasileira

“(...) se você trabalha oito horas por dia (...) a fadiga


que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a
sua forma, e você acha que está se divertindo em
Anastácia quando não passa de seu escravo”.

6
CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p. 164.

A tradição do projeto urbano no Brasil conta com alguns exemplos concebidos


nas pranchetas de engenheiros e urbanistas: Belo Horizonte, Aracaju, Palmas, Brasília,
Goiânia. Exceto no caso de Brasília, em que um tombamento de seu desenho exila
aqueles que não cabem em sua malha, todas as outras excederam os limites de seu
traçado e começaram a compor um todo que reduziu a cidade planejada a um centro,
dois bairros, uma região. Talvez também por isso Harvey (2013, p. 29) chame as
cidades neoliberais de “fragmentos fortificados”. “Fragmentos” porque de
desenvolvimento assimétrico, configurando regiões em tudo distintas entre si, e
“fortificados” porque cada vez mais objeto de disputas territoriais. Essa cidade é
chamada neoliberal porque atende, sobretudo, a um mecanismo de apropriação (rentista)
da mais-valia pela produção do espaço urbano. A diferenciação entre áreas, tanto pelo
investimento (público) em umas, quanto pelo descaso com outras, gera valorizações
proporcionais ao contraste – e a cidade não é somente produzida como um bem, como
apropriada e vendida como tal (HARVEY, 2005 e 2008).

Segundo Negri e Hardt (2014, p. 23-25), na fase atual do capitalismo, o controle


sobre o trabalho foi descentralizado: não se dá mais na coerção direta no chão de
fábrica, mas através do endividamento progressivo, na ausência dos serviços estatais. O
acúmulo da riqueza, por sua vez, deixa de ocorrer pelo lucro puro e simples e se desloca
para a renda – produto de uma gestão unilateral do lucro socialmente produzido. Aqui, a
fórmula liberal do “Estado mínimo” mostra-se particularmente útil à essa forma de
escravidão pela culpabilidade: a dívida.Assim, a cidade de investimentos concentrados
gera bens de mais-valia rentáveis à classe que detém o solo ou os empreendimentos

4
Ou ainda: “Nessas circunstâncias [neoliberalismo global], ao contrário, a produtividade fica cada vez
mais escondida conforme as divisões entre tempo de trabalho e tempo de vida se tornam gradativamente
indistintas. A fim de sobreviver, o endividado deve vender todo o seu tempo de vida. Dessa maneira,
aqueles sujeitos à dívida aparentam ser, até para si mesmos, consumidores e não produtores” (NEGRI, T.
e HARDT, M. 2014, p.25).

7
urbanos, enquanto as classes C e D se esforçam para pagar feirões da Caixa a perder de
vista. “A sociedade se tornou uma fábrica” anunciam os autores (idem, p. 24) e nela
persistem aqueles sistemas disciplinares fabris, mas não mais dentro do galpão e sim
nos limites gerais do território – cabe ao urbanista entender como.

O último grande episódio de urbanismo nacional foi, talvez, as obras do mundial


de futebol de 2014. Em 2010 no Rio de Janeiro, por exemplo, foi anunciado pela
Secretaria Municipal de Habitação que 671 famílias teriam de deixar o morro da
Providência, na zona portuária, para a execução de obras públicas vinculadas ao Porto
Maravilha5 (ANTUNES, 2013). Deram lugar a um museu, aos planos de um teleférico e
de um plano inclinado ainda não executados, uma praça. Ainda no pacote dos
preparativos para a Copa e as Olimpíadas, no mesmo ano os moradores de Metrô-
Mangueira, na zona norte e em frente ao estádio do Maracanã, também receberam seus
avisos de despejo – a primeira leva foi reassentada a duas horas de trem dali em
Cosmos6, pelo Minha Casa Minha Vida (MCMV)7. Ambas as intervenções se deram
com confrontos policiais com a população.A situação não foi muito diferente, por
exemplo, em São Paulo, na região da Luz apelidada de “cracolândia” e no bairro
Pinheirinhos, em São José dos Campos, em 2013. Ali, desocupações forçadas em nome
de terrenos sem uso e projetos de especulação e gentrificação(como é o caso do “Nova
Luz”) expulsaram moradores e frequentadores à bala de borracha (TELES, 2012 P.77-
79). Outras formas de ocupação também foram coibidas com violência: as passeatas de
2013, os protestos durante a copa, greves de professores e servidores da educação. Em
todos esses episódios, em diferentes capitais, assistimos à força policial como
coprodutora do espaço ao garantir um planejamento vertical e monológico.Se por um
lado a força policial é coprodutora de um certo urbanismo de que é arauto, por outro
5
Nesse artigo de Antunes (2013, p.22) o empreendimento é definido como “o mais caro e ambicioso
projeto urbanístico do Rio”.
6
No final da zona Oeste, depois de Campo Grande, ironicamente perto de Paciência.
7
Os restantes conseguiram ser reassentados na própria comunidade. Uma primeira leva de cerca de 300
no então já edificado condomínio Mangueira I e os demais, em número equivalente, em dezembro de
2012 no Mangueira II, ambos do MCMV. O custo do condomínio, ali, chega a R$100,00 – cerca de duas
vezes mais do que o gasto anterior dessas famílias, na comunidade (HODGE, E., 2014).

8
esse urbanismo precisa viabilizar seu trabalho. Sendo a ação das forças armadas
sobretudo guiada pela tática – de que outra maneira sobrepujariam a desvantagem
numérica inerente? –, o traçado urbano precisa seguir diretrizes lógicas previsíveis –
malha reta (“tabuleiro de xadrez”), vias largas, asfaltamento para impedir barricadas etc.
A relação entre o urbanismo haussmanniano e seus descendentes e o militarismo
da sociedade é de fácil percepção. Como isso chega ao Brasil, também – da cidade
fortificada às reformas de Pereira Passos (1903), no caso carioca, ou a malha de Belo
Horizonte de 1897. Rancière (2005) fala de uma “partilha do sensível” enquanto formas
de administração coletiva do Real que pode ocorrer, sobretudo, de duas maneiras: pela
política ou pela polícia8. Rancière define “a partilha do sensível” como aquilo que
evidencia o comum, ou seja, o que é compartilhado e suas partes. Esse sistema é
determinado tanto espacialmente, na medida das visibilidades e invisibilidades que se
dão no espaço comum, quanto nas competências para o exercício desse comum,
determinada por posicionamentos dentro da sociedade. Para o autor, sistema político
tem, portanto, uma estética que o fundamenta, e nesse ponto Rancière contrapõe a
estética da política ao que seria uma política estetizada: “essa estética não deve ser
entendida no sentido de uma captura perversa da política por uma vontade de arte, pelo
pensamento do povo como obra de arte”. (2005,p.16)
Em O Desentendimento (1996, p.21) ele iguala a partilha do comum justamente
ao que é o político: “O político começa onde justamente se pára de equilibrar lucros e
perdas, onde se tenta repartir as parcelas do comum(...)”. O comum é o palco do que é
visível e do que é compartilhado, do que é político e do que é arte, simultaneamente.
Retomando a questão das visibilidades e invisibilidades pode-se tomar a idéia de prática
artística para definir a prática do que é tornado visível, e, dessa forma, o regime
simbólico em que a arte se inscreve é o que politiza a arte. Dessa forma temos uma não

8
A semelhança fonética denuncia a etimológica: ambas derivam do grego “πόλις” (polis). O que talvez
surpreenda é que não houve, inicialmente, diferenciação na derivação dos dois termos. Tanto “política”
quanto “polícia” vêm de “πολιτεία” (politéia) (que é inclusive o título em grego de “A República”, de
Platão).

9
dissociação entre o fazer artístico e o fazer político, havendo apenas diferenciações no
que esse fazer se propõe: na superfície simbólica, no simulacro ou no movimento
autêntico. Diana Agrest (2013, p. 585) transpõe essa noção das visibilidades no espaço
como um jogo político ao afirmar que a tradição ocidental da arquitetura se compõe
também por uma ideologia arquitetônica, cujo sistema “se define tanto pelo que inclui
quanto pelo que exclui. Entretanto, o que fica de fora, não é propriamente excluído, mas
reprimido”.

Grosso modo pode-se dizer que na segunda ocorre uma gestão disciplinar
marcada pela vigilância, regramento, coerção – entendida aqui como a tomada de
decisões pela força ou a chantagem institucional – e punição9. Que outra forma seria
possível a um urbanismo da desigualdade? Aqui os “fragmentos fortificados” de Harvey
(2013, p.29) parecem ganhar um novo sentido, em que o forte é a arquitetura militar por
excelência.

Essa forma de se planejar certamente não garante, para nenhum substrato, a


qualidade de vida. A classe média, se não é assolada por desocupações violentas, tem
seu cotidiano interrompido pelos conflitos, sua segurança depreciada pela violência que
irrompe da marginalização, e, do outro lado, sofre para manter-se em seus espaços
tradicionais com a inflação imobiliária. A zona sul do Rio de Janeiro é emblemática,
onde famílias de rendimentos acima de 5 salários mínimos têm de sublocar seus
apartamentos para cobrir aluguéis e condomínios insuflados pelo preço do metro
quadrado e dos serviços em geral ao redor. O que mantém coeso esse sistema urbano é,
sobretudo, o medo.

4| A dialética sócio-espacial: O Medo como Urbanista

9
Categorias também foucaultianas caras, dentre outras, à obra de 1975. FOUCAULT,2015 p. 261-613.

10
Jacobs(1992), logo no primeiro capítulo de “Vida e morte das grandes cidades
americanas”, fala da relação entre segurança e a vida das ruas de uma cidade. A fórmula
é assaz conhecida: quanto mais atraentes as ruas, mais pedestres e passantes, mais
segurança. Se, por outro lado, as ruas são tratadas como paredões murados e filmados,
como corredores de passagem enquanto todo lazer é transferido para o ambiente interno
da iniciativa privada, rapidamente se tornam desterros propícios à criminalidade. Assim,
existe uma retroalimentação no interior do urbanismo militarista: quanto mais
dispositivos de isolamento, quanto mais hostis as ruas, mais perigosas elas se tornam,
pedindo e justificando mais dessas medidas. A cidade repelente e árida produzida para o
comércio de bens, a especulação e a segregação social10 gera a violência que a justifica,
como o paranoico produz aquilo que teme (ZIZEK, 2010 p.31)11. A relação entre o
rodoviarismo e o militarismo, por exemplo, é orgânica: vai desde a política rodoviarista
do governo militar, amplamente focada em um desenvolvimentismo pela construção
civil (BONDUKI, 2008 p.74) em que as vias automobilísticas foram amplamente
privilegiadas, até a abertura irrestrita à instalação de multinacionais do ramo no país e a
venda de nossas montadoras12. A ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica são
exemplos disso. Outro caso a se mencionar foi o crescimento durante os governos de 60
e 70 da Engesa, empresa de engenharia militar fundada em 1958. Na década de 70 essa
empresa inteiramente brasileira chegou a ser uma das maiores exportadoras do mundo
de veículos blindados e de combate13.

10
E aqui nos referimos, respectivamente: aos automóveis e suas vias congestionadas, poluentes e desmatadas, cada
vez mais largas e inóspitas, como uma desertificação ao ronco de motor no interior das cidades, estrangulando rios e
pessoas; aos condomínios cada vez mais caros que simulam, no intuito de evita-los, os aparelhos urbanos públicos; à
criação de bolsões de desdém público no interior da cidade, que pelo desinvestimento vai criando espaços residuais
indesejáveis como uma “acupuntura negativa” na malha urbana.
11
Ou, mais especificamente: “Aí reside a verdade da postura paranoica: ela própria é a trama destrutiva contra a qual
está lutando” (ZIZEK, 2010 p.31).
12
A Vemag e a Fábrica Nacional de Motores (FNM), vendidas respectivamente à Volkswagen em 1967 e à Alfa
Romeo em 1968. No caso da segunda, uma empresa pioneira vendida em sigilo e sem concorrência pública em seu
auge.
13
Como uma fábula da gestão militar em geral, a Engesa cresceu em simbiose com as montadoras internacionais e
faliu em 1993, deixando uma dívida bilionária com o Estado (BNDES) não paga.

11
Ao mesmo tempo, a cidade brasileira enclausura-se em condomínios. Sejam
grandes conjuntos de apartamentos com áreas de lazer extensivas ou cinturões de casas
isolados dos centros urbanos, esses espaços mormente marcados pelo medo e o idílio –
vendidos ora como mais seguros, ora como não-cidade (campestres, espaçosos, abertos,
naturais)14 –, são invariavelmente produtores de ansiedade social (DUNKER, 2015).
Talvez porque impeçam a formação do que Negri e Hardt (2014 p.31) chamariam
“afetos políticos”, aquelas relações corpo-a-corpo formadas na coincidência de práticas
e desejos urbanos e de classe no território de construção da democracia – a cidade. Na
urbe policialesca a interação presencial entre classes é praticamente impossível. Vemo-
nos em trânsito, inseguros, mas não convivemos. Uma vez que a formação de afetos tais
não se dá pela simples circulação de informações, mas requer, como frisam os autores,
contato físico, ela não acontece de todo porque não pode ser virtualizada – por isso a
coincidência entre a polis e a política.

Quando uma intervenção militar na malha urbana de uma das principais capitais
do país comemora seus quatro meses com um saldo recordista de mortes, a pergunta
inevitável é o que justifica o silêncio apoiante. Negri e Hardt escrevem que “Todos os
tipos de injustiças podem ser justificados pelas aparições de um medo generalizado”
(2014 p.39). A resposta óbvia é a perspectiva de algo pior.

Zizek (2010 p.75) define a “fantasia” – no sentido lacaniano do termo – como “o


crivo que nos protege do encontro com o real”. Uma fantasia negativa, paranoica, da
violência onipresente, da ameaça do outro, não é diferente e, por definição, é aquilo que
não é realidade, ainda que parta e se baseie nela. As distopias sobre o Rio de Janeiro
recheiam os jornais, mas concretizam-se mesmo no enfrentamento a elas próprias.

Certamente é cedo ainda para se avaliar todos os efeitos da ocupação militar do


Rio de Janeiro, mas em linhas gerais pode-se desenha-la como, outra vez, unilateral,
focada nas comunidades mais pobres e violenta. Ainda assim, segundo pesquisa de 25 d

14
Encerram em sua propaganda uma flagrante contradição interna, uma vez que, como visto em Jacobs (1992), o mais
seguro é a cidade.

12
emarço de 2018 do DATAFOLHA (FRANCO E BARBON, 2018) conta com o apoio
de 76% da população Visa a um certo controle e gestão do espaço urbano, sobretudo de
seus fluxos e permanências, garantindo um modelo segregatício de participação. É a
apoteose da partilha policial do sensível onde a esfera política materializada na polis, e
que só pode ocorrer nela e através dela, é sitiada pelo próprio Estado. O processo
decisório, aqui, é completamente bloqueado pela barreira física à associação e à
demonstração, bem como a supressão dos fluxos extraordinários à vida do trabalho
colabora para o empenho integral do tempo em consumo e produção – o urbanismo
militarista nada mais é que urbanismo neoliberal.

5| Bibliografia

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13
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