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A CATEDRAL DA LEI E AS FALAS DO DESEJO – EMBATES DISCURSIVOS EM LAVOURA ARCAICA, DE

RADUAN NASSAR.
 
 
Bruno Cursino MOTA (Mestrado – UFU)
 
 
ABSTRACT: This work aims at analysing the dialogical tensions, through utterances in Raduan Nassar’s Lavoura Arcaica.  The
intercourses of Libido, from body, with the autoritarian discourse of the Father.  Our  analysis  is  based  in  Bakhthin  and  Authier­
Revuz on the “re­search” of the concept of “other” in the discourse effects.
 
KEYWORDS: Discourse; Dialogism; Parody; Law; Desire.
 
 
0. Introdução
 
 
                                Neste  trabalho  analisaremos  o  romance  LAVOURA  ARCAICA,  de  Raduan  Nassar,  à  luz  de  teorias  sobre  o
texto/linguagem  que  abarquem  problemas  das  formações  ideológicas  e  discursivas  que  subjazem  a    toda  palavra  quando
materializada  num  enunciado,  incluindo  aí  a  palavra  literária.  Ou  seja,  não  nos  interessará  simplesmente  a  concatenação  morfo­
sintática e lexical do texto, mas o que Mikhail Bakhtin (1997:183) chama de reações dialógicas que permeiam os discursos é o que
investigaremos  através  dos  personagens  principais  do  livro  de  Raduan.  O  dialogismo  tão  manifesto  deste  texto  da  literatura
brasileira contemporânea[1] o faz um verdadeiro campo de tensões ideológicas, uma representação viva de conflitos entre lugares
sociais. E se estamos corretos em enxergar no livro, através da sua composição mesma, uma imagem dinâmica  da luta do sujeito
frente  aos  ditames  da  civilização,  e  visto  que  não  se  trata  de  embates  só  do  homem  moderno,  ser­nos­ão  úteis  também  algumas
contribuições de Freud na análise da constituição do sujeito enquanto consciência psíquica e social. De Freud, de discípulos seus,
ou de teóricos da linguagem que, trilhando caminhos abertos pela Análise do Discurso, fazem uma ligação producente    entre as
contribuições do Marxismo (em Bakhtin sobretudo), da Psicanálise e da Lingüística.
 
 1. Romance – lugar privilegiado do dialogismo
 
L. A., justamente por se tratar de uma composição romanesca ­ o principal tema do romance segundo Bakhtin (1998:135)
“é o homem que fala e sua palavra” ­ oferece­nos uma mostra formidável da consciência artística de Raduan na manipulação de
estratégias  discursivas  que  plasmam  ao  mesmo  tempo  as  lutas  atemporais  e  universais  do  homem  (libido  x  superego  /  sujeito  x
sociedade / desejo x lei) e, sobretudo, que revelam pela linguagem mesma o caráter clivado, meândrico do homem e das palavras
pelas quais se constitui.
                Estória do filho adolescente que abandona a casa paterna em busca de sua “vera  forma”, de sua “própria voz”, de seu
lugar na mesa do mundo, L. A. oferece­nos  um sem­número de exemplos de dialogismo. E não porque apresente uma galeria de
personagens com distintos registros de linguagem figurando grupos sociais diferentes. Segundo Bakhtin (1997:159­160), para que
surjam    reações    dialógicas  não  é  imprescindível  que  se  explicitem    diferenças    sociolingüísticas.  Qualquer  palavra  de  outrem
tomada  e  inserida  no  fluxo  de  nossas  palavras  já  se  faz  revestir  de  uma  entonação  própria  que  pode  significar  o  endosso  ou  a
refutação  da  palavra  alheia,  ou  seja,  mesmo  que  em  graus  diferentes  toda  palavra  (por  não  haver  uma  original,  fundante)  é,  por
natureza, dialógica. Em L.A.,  justamente por que os  personagens são tão próximos, tão afins (vivem quase que isolados no seio de
uma  família  única),  é  que  ressoarão  mais  complexas,  mais  polêmicas,  as  retomadas,  com  acentos  diversificados,  da  palavra  do
outro.
         O  outro que fala no livro ­ retomado quase sempre de forma paródica ­ é múltiplo. É principalmente a palavra do pai, mas
essa, por sua vez, reflete os textos dos mais antigos (as tradições mediterrâneas, a Bíblia, o Alcorão...). Procuraremos demonstrar
que, mesmo refutando o discurso autoritário, as falas de André se acham irremediavelmente contaminadas pelos valores veiculados
nas palavras paternas. Se tomarmos a obra como palavra do Autor, o que na verdade ela é em última análise, e portanto veiculadora
de  sentidos  mais  amplos  que  as  falas  de André,  por  mais  que  estas  sejam  centrais,    poderemos  apontar  ainda  outras  vozes  que
permeiam  o  texto  nassariano  são  diálogos  textuais  não  só  com  autores  do  modernismo  brasileiro[2],  como  Graciliano  Ramos  e
Jorge  de  Lima,  o  poeta  de  “Invenção  de  Orfeu”  mais  notadamente,  mas  também  com  a  mitologia  grega  e  com  algumas
investigações  de  Freud.  Interessa­nos,  neste  trabalho,  as  referências  bíblicas  e  pontos  do  arcabouço  freudiano  no  que  ele  tem  de
simbólico.
 
2. Intertexto com a Bíblia – paródia e corrosão
 
                A própria divisão  da obra em duas partes nomeadas ­ 1. A partida e 2. O retorno ­ e a subdivisão em capítulos sem
títulos, remete­nos  diretamente ao texto bíblico; mais precisamente, à conhecida parábola do filho pródigo que tem sua versão mais
comentada em Lc. 15.                 
          A paródia em relação a essa parábola é bem clara. No evangelho temos a mensagem moralizante do custo da desobediência e
da  necessidade  de  humildade  e  arrependimento.  O  filho  perdulário  e  ingrato  logo  se  viu  metido  em  privações  e  volta  contrito
aspirando à misericórdia paterna. É bem recebido, menos pelo irmão mais velho que, enciumado e invejoso, deplora tanta atenção
para  com  o  caçula  rebelde.  No  entanto,  este  último  é  perdoado  e  a  estória  finaliza  em  festa.  Em  L.A.  a  inversão  começa  pela
estrutura  da  narrativa,  visto  que  o  romance  não  tem  a  mesma  linearidade  do  texto  bíblico.  Nas  páginas  iniciais,  André  já
abandonara a casa e o vemos numa cena bastante profana (frente ao texto “inspirador”) e simbólica para a análise de todo o livro. O
personagem experimenta uma espécie de devaneio pós­masturbação, numa vertigem que é do corpo e é da mente. É a partir daí que
teremos em flash­backs toda a narração dos motivos pelos quais esse filho pródigo abandonara sua casa. É um discurso pulsante,
palavras  de  repúdio  violentamente  proferidas,  “imagens  saídas  como  que  diretamente  do  corpo”,  um  delírio    in­consciente,  um
jorro­ejaculatório­verbal. Em busca da “ovelha tresmalhada” ­ outra referência bíblica ­ está Pedro, o irmão mais velho e guardião
da lei paterna. Este será mesmo a personificação da figura do pai ali diante de André e contra o qual o filho desgarrado cuspirá sua
revolta.
Através  do  reencontro  e  de  tudo  que  será  dito  pelos  irmãos,  o  leitor  entende  os  motivos  pelos  quais  André  refugiou­se
naquele “quarto catedral” ­ espaço da liberação de sua libido. Mais da metade do livro é constituída das falas tensas, do desfiar de
imagens da infância e adolescência recuperadas agora numa outra cena. É notório dizer, portanto, que o tempo (cronológico, das
ações) não passa. É o tempo da memória, próximo do sonho, tempo no qual o Eu fragmentário de André tenta reconstruir a unidade
de sentido de sua existência. Tal como a própria narrativa (fragmentária, processada em quadros e rupturas), a unidade não é nunca
recuperada, “algo partiu­se”, não há volta. A impetuosidade das falas de André, a força imagética das cenas do passado são como
petardos projetados contra os muros da Lei, encarnada nos momentos iniciais na figura de Pedro[3].
É  interessante  como  André  vê/ouve?  esse  irmão  mais  velho  ­  o  que  encabeçava  a  fileira  dos  filhos  obedientes  que  se
sentavam à direita de Iohána, posição dos eleitos  num intertexto com a Bíblia.
 
... era meu irmão mais velho que estava na porta...
... e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família inteira....(p.11)
e foram seus olhos plenos de luz em cima de mim... (p.17)
... era uma oração que ele dizia quando começou a falar (era o meu pai) da cal e das pedras da nossa catedral.(p.18)
               
Nestas citações em que aparece Pedro ­ seu homônimo na Bíblia recebeu a incumbência do próprio Cristo de pastorear o
rebanho  ­  Igreja  ­  após  sua  assunção  aos  céus  ­  outras  dicotomias  surgem.  A  luz  versus  trevas,  a  saúde  versus  doença,  a
tranqüilidade versus possessão. O Um  só  se  afirma  no  contraste,  mas  mesmo  assim  não  é  cristalino.  Se  atentarmos  criticamente
para  as  falas  de  André,  veremos  que  seus  movimentos­tentativas  de  individuação  são  já  uma  demonstração  do  quanto  se  acha
embebido  nos/dos  discursos  do  Pai.  André  não  fala  a  ideologia  das  tradições,  é  praticamente  falado  por  elas.  Gerido
ideologicamente no seio dos mandamentos paternos ­ que usam a rigidez e assepsia corporal, a tonalidade firme mas tranqüila da
voz    e  sobretudo  a  inquestionabilidade  dos  saberes  assentados  na  tradição  ­  André,  por  mais  que  tente  se  emancipar,  ver­se­á
enredado  nas  armadilhas  do  discurso  que  procura  combater.  Seus  critérios  de  julgamento  do  mundo  são  “involuntariamente”
tomados  do  arcabouço  discursivo  do  Pai.  Daí  que  a  corrosão  do  universo  da  Lei  se  dá  em  duas  frentes,  concomitantes  e
complementares.  Através  dos  atos  ­  na  relação  incestuosa  com  a  irmã,  André  abalará  decisivamente  os  alicerces  da  família
patriarcal e autoritária. No plano discursivo, que é a narração dos caminhos desviantes que levaram aos atos, predomina o riso, o
escárnio, a paródia como forma de desconstruir a “catedral de pedras e cal” erigida pelo Pai nos seus sermões insuportáveis.
 
3. A maturação ideológica – o sujeito entre as palavras
 
                Observemos outra mostra inequívoca da tomada do discurso do Pai por André.  Trata­se da parábola do faminto, que
integra um longo e pesado sermão do Pai reproduzido nos capítulos nove e treze. As palavras de Iohána são colocadas entre aspas ­
uma das formas de citação do discurso de outrem, na tentativa de delimitar os lugares discursivos. Esta parábola é  uma prédica de
fundo moral pela qual o Pai pretende mostrar as vantagens da espera e da humildade. Um faminto que procura alimento num rico
palácio  é  submetido  a  um  verdadeiro  ritual  para  provar  sua  paciência.  O  rei  que  o  recebe  oferece­lhe  iguarias  mil,  vinhos  e
sobremesas, todas imaginárias, a fim de testar­lhe a resignação. Na versão do Pai, por manter­se pacífico durante tão dura prova, o
faminto  teria  recebido  depois  não  só  o  alimento  verdadeiro,  mas  sido  aceito  como  hóspede  do  palácio.  É  o  discurso  prescritivo,
ordenador, lastreado nas tradições e costumes dos mais velhos; ditado em tom de sermonário, é um discurso autoritário. Como diz
Bakhtin (1998:143), é uma palavra que “já encontramos unida à autoridade... que exige reconhecimento e assimilação. Ela ressoa
numa alta esfera... é a palavra dos pais.”
                A paródia da versão paterna ocorre no final do capítulo treze, num fenômeno bem interessante para corroborar nossa tese
acerca do alto grau de tensão dialógica que atravessa o livro de Raduan. Há uma pausa após a fala (reproduzida) do Pai, inclusive
graficamente ­ espaço em branco e circunscrição entre parênteses ­ estabelecendo na letra mesmo o distanciamento. Diz  André:
( Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto?
Como podia o pai, Pedro, ter omitido tanto  nas vezes que contou aquela história oriental?...)  (p.86)
               
André dirá que o encontro entre o soberano e o faminto terminou numa confusão terapêutica; que  antes de ter recebido o
elogio pela espera pacífica, o faminto teria desfechado um murro violento contra o ancião soberano de barbas brancas (prefiguração
de Deus? da sabedoria inquestionável? das verdades eternas?). A atitude peremptória é ironicamente justificada:
 
(... Que queres, senhor, o espírito do vinho subiu­me à cabeça e não posso responder pelo que fiz quando ergui a mão
contra o meu benfeitor.) (p.87)
 
O interessante é que esta última citação, com algumas frases do faminto que a antecedem, estão também (como toda a fala
do Pai) entre aspas. Num estudo de Sabrina Sedlmayer (1997), descobrimos que tal parábola foi tomada dAs mil e uma noites que,
se não é um texto sagrado, ocupa um lugar canônico na cultura árabe. Iohána e André falam palavras de outros, mas cada qual as
retoma segundo seus desejos. O do Pai, de garantir­se como esteio da família, o de André, de dar vazão aos impulsos libertários.
Assim fica claro que esse Pai  não fala uma palavra original; em última instância, ele não é a fonte do seu próprio dizer; ele fala o
texto (já fragmentado, rasurado) dos mais velhos. Recuperando as contribuições da Psicanálise, sobretudo Freud em Totem e Tabu,
podemos dizer que o Pai é antes uma ausência, um lugar a ser preenchido. A verborragia de Iohána, é a tentativa de preencher a
vacuidade. André, espírito perspicaz, notara isso e contrapõe ao Pai a figura do avô, já morto. Este último sempre parecera­lhe mais
íntegro na guarda das tradições:
 
(...  o  avô,  ao  contrário  dos  discernimentos  promíscuos  do  pai  ­  em  que  apareciam  excertos  de  várias  geografias  ­,
respondia sempre com um arroto tosco que valia por todas as ciências, por todas as igrejas e por todos os sermões do pai:
“Maktub”.) (p.91)
               
Mais uma vez o arcabouço da Psicanálise pode nos ser útil na análise desse olhar de André. O adolescente de 17 anos,
premido  entre  os  desejos  pulsantes  e  a  palavra  autoritária  do  Pai,  projeta  em  suas  retinas  mentais  uma  imagem  do  avô  ­  figura
inteiriça, dono de um saber inquestionável, imagem recuperada certamente da infância em que o indivíduo, ainda não defrontado
com as incoerências do mundo e das pessoas, sente­se fascinado por determinadas imagens.  Queremos enfatizar que a eleição do
avô como parâmetro de conduta não é bem a aceitação dos seus valores, mas antes uma forma de desmerecer a onipotência do Pai.
Pensar o avô como fonte imaculada da cultura só pode ser mesmo uma ilusão acalentadora buscada na “idade da fascinação que é a
infância”, até porque, morto, esse avô deixa de ser uma ameaça tão palpável à rebeldia de André.
Nessa direção, pensemos o processo de evolução ideológica desse lúcifer nassariano. Bakhtin (1998:143) diz que é “um
processo (a evolução ideológica do homem) de escolha e assimilação de palavras de outrem.” O jovem que se acha às voltas com
seus conflitos na pensão interiorana é também um ser ideológico em evolução. Aprendeu a dizer não a todo um estado de coisas.
Há uma fala mais no final do romance, dirigida ao Pai, que bem demonstra a consciência de seu caráter clivado e uma busca de
coerência e unidade no discurso:
 
­ Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que  me empurram, mas estou lúcido, pai, sei
onde me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há farelo nisso tudo, posso assegurar,
pai, que tem também aí muito grão inteiro. Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo  pro  meu  uso os fios do que
estou dizendo.     (p.165)
 
Reconhecer que “há muito farelo” no seu discurso é a admissão do caráter fragmentário de suas falas; os grãos inteiros é o
máximo de individuação que este sujeito consegue alcançar no interior de uma lavoura tão arcaica quanto é a da semeadura dos
discursos  do  Pai.  Arcaica  porque  diz  respeito  aos  mais  antigos  códigos  de  proibições  erigidos  pela  sociedade.  Um  dos
fundamentais, a proibição do incesto, será abalado por André ao desviar suas fixações em relação à mãe na direção da irmã, Ana.
Mas  se  André  incendeia  (literalmente)  com  o  fogo  da  paixão  os  códigos  da  família  e  da  religião,  aquele  Iohána,  aparentemente
inabalável, há de também contradizer e , por que não dizer, desmoronar a catedral de pedras e cimento de suas verdades. Faz isso ao
contagiar­se das forças da paixão (desorbitadora da razão) quando descobre a relação incestuosa dos filhos e assassina brutalmente
a filha.
                Visto ser esta a cena final, é revelador o quanto valores, idéias, signos e símbolos se imiscuem no desfecho do livro.
André incendeia a lei com o fogo da libibo, Iohána o faz com a ira (intertextualidade com a ira de Jeová contra seu povo, Israel, na
Bíblia). Mas finalmente revelam­se, estes dois personagens, como rebentos cultivados numa mesma seara: a dos discursos arcaicos.
Como dito por André nas falas reproduzidas linhas atrás, cada um faz desse veio ancestral “distinções para o uso próprio”. André,
com  suas  artimanhas  não  só  discursivas,    mas  nos  atos  mesmos,  enredará  a  família  num  nó  inextrincável  de  contradições  cuja
saída(?) só pode ser a tragédia. Talvez seja equivocado falar em desfecho, o romance termina em aberto, com uma reprodução por
parte de André de uma fala do Pai:
 
...estamos indo sempre para casa.
...o gado sempre vai ao poço.
 
                Movimentos em torno de um mesmo ponto.  A busca do Um, na diversidade, é a mesma.  Cada ser  procura a “casa” , a
agregação/integridade (ilusão dela?) a seu modo e desesperadamente.  O pai, como é mais autoritário e obtuso, quer extirpar o que
considera desvio, excrescência, “broto maldito” – justamente a mulher, Ana / E(r)va eterna – de sua lavoura arcaica.   As palavras
de  André,  no  entanto,  não  soam  como  mera  aceitação  do  discurso  paterno,  são  enigmáticas,  no  mínimo  ambíguas.    Preferimos
pensar a casa como a ilusão fantasmática de centro que o sujeito necessita criar para si.  É o que teoriza Roudinesco, citada por
Autier­Revuz (1982:123)
 
“Todo sujeito é um sujeito fantasma e a ilusão do centro é sua ‘tendência’.  A prática do descentramento  inaugurada por
Freud e teorizada por Lacan não tem por efeito extrair um centro da essência humana para dar­lhe um conteúdo social ou
psicológico, em breve uma nova essência.  O que exprime a  clivagem do eu e o descentramento do sujeito, a barra que se
imprime sobre o seu ser, é o impossível do centro fora do lugar do fantasma.”
 
Depois da morte fatídica da filha/irmã, de todas as circunvoluções desse filho pródigo, depois de se tornarem todos órfãos
e pródigos como ele, entenderão que a possessão (de “espíritos”, de linguagem, do Outro, do estranho) é a única possibilidade de
vida mais autêntica? Que só a admissão disso libertaria a família da palavra autoritária do Pai morto que insiste em ressoar? Não
temos  mais  o  fio  narrativo  para  sabermos  disso.  Sobra  ao  leitor,  a  quem  em  última  análise  se  dirige  o  autor,  juntar­se  ou  não  ­
ideologicamente ­ a esses descentendes de Caim: Andrés, Faustos, Raskolnikovskis; todos “homens do subterrâneo”[4], porque é
no subterrâneo que vigem as verdades mais fundamentais do homem.
 
 
RESUMO: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, materializa tematicamente e na composição mesma dos enunciados um formidável
conflito de vozes. Temos o enfretamento do discurso do desejo frente à fala autoritária do Pai. Na verdade tentamos mostrar que
mesmo contrapondo­se, tais discursos “nascem” numa mesma lavoura – a dos discursos da tradição bíblica.
 
 
PALAVRAS­CHAVE: Discurso; Dialogismo; Paródia; Lei; Transgressão.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
AUTHIER­REVUZ,  J.  “Hétérogénéité  montrée  et  hétérogénéité  constitutive:  éléments  pour  une  approche  de  l’autre  dans  le
discours”. Paris: DRLAV, nº 26, p. 91­151.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoévski. 2ª Edição Revista. São Paulo: Ed. Forense, 1997.
__________. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Hucitec, 1998.
CHEVALIER, Jean (org.). Dicionário de Símbolos. Rio  de  Janeiro: José Olympio  Editora, 1992.
FERNANDES, Francisco. Dicionário de Sinônimos. Porto Alegre: Global, 1968.
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____. Entrevista in.: Cadernos de Literatura Brasileira. Poços de Caldas: Instituto Moreira Salles, 1996.
SEDLMAYER, Sabrina. Ao lado esquerdo do Pai.  Belo  Horizonte:  Ed.                                    UFMG, 1997.    
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
       

[1] NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica, Companhia das Letras, São Paulo, 1998. Usaremos de ora em diante,  para referir­nos à
obra, somente a abreviação L.A.; as páginas citadas são desta edição. L. A. é, ao lado de Um copo de cólera e Menina a caminho,
com três contos, um dos livros da parca mas não menos virulenta ou visceral obra do escritor paulista.
 
[2]  Raduan  Nassar  considera  a  obra  de  Graciliano  Ramos,  e  os  versos  religiosos  de  Jorge  de  Lima  como  sua  “matriz  de  pureza
lírica”.  Citado  por  Sabrina  Sedlmayer.    Do  primeiro  retira  a  busca  pelo  apuro  e  concisão  na  linguagem,  do  segundo  a  riqueza
imagética.
[3]  O  substantivo  Pedro  e  o  adjetivo  pétreo  são  etimologicamente  afins.  Pétreo,  segundo  Francisco  Fernandes  (1968:620)  é:
empedernido, duro, rijo, resistente... desumano, cruel, insensível. Nada muito distante das leis às quais estava submetido André.
[4]  Na  entrevista  dada  aos  Cadernos  de  Literatura  Brasileira  (ver  bibliografia  final),  Raduan  fará  uma  defesa  do  que  chama  de
literatura passional, visceral, deixando­se filiar na linhagem de escritores como Dostoiévski.

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