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ORIENTE?
[in C. Jung, "O Segredo da Flor de Ouro": Petropólis, 1983]
Este texto faz parte do Comentário de Carl. G. Jung sobre o Livro de Richard
Wilhelm, O Segredo da Flor de Ouro (Petrópolis: Vozes, 1983), manual Taoísta
de práticas esotéricas do pensamento e da vida. Jung, renomado psicanalista e
estudioso da Cultura Oriental, costumava prefaciar algumas obras de Wilhelm, tal
como o I Jing (O Livro das Mutações), e neste pequeno estudo ele se dedica a
analisar as características do pensamento Oriental e Ocidental.
Disse um antigo adepto: "se o homem errado usar o meio correto, o meio correto
atuará de modo errado”. Este provérbio chinês, infelizmente muito verdadeiro, se
contrapõe drasticamente à nossa crença de "correto", independentemente do
homem que o emprega. No tocante a isso, tudo depende do homem e pouco ou
nada do método que se emprega. Este último representa apenas o caminho e
direção escolhidos pelo indivíduo: é o modo pelo qual o indivíduo atua nesse
caminho que exprime verdadeiramente o seu ser. Se assim não fosse, o método
não passaria de uma afetação, de algo construído artificialmente, sem nariz e sem
seiva, servindo apenas à meta do legítimo auto engano. Além disso, poderia
representar um meio de o indivíduo iludir-se consigo mesmo, fugindo talvez a lei
implacável do próprio ser. Tudo isto está muito longe da consistência e da
fidelidade a si mesmo do pensamento chinês. À diferença deste, tratar-se-ia, na
hipótese acima formulada, de uma renúncia ao próprio ser, de uma traição a si
mesmo e de uma entrega a deuses estranhos e impuros, artimanha pusilânime no
sentido de usurpar uma superioridade anímica e tudo aquilo que é justamente o
contrário do "método" chinês. Essas instituições surgiram da vida mais plena,
autêntica e verdadeira, da vida arcaica da cultura chinesa, que cresceu lógica e
organicamente a partir dos instintos mais profundos. Tudo isso é para nós
acessível e inimitável.
A imitação Ocidental é trágica, por ser um mal entendido que ignora a psicologia
do Oriente. É tão estéril como as escapulidas modernas para o Novo México, para
as ilhas beatíficas dos Mares do Sul ou para a África central onde o homem culto
pode brincar de "primitivo", a fim de fugir disfarçadamente de suas tarefas
imediatas, de seu Hic Rhodus hic salta. Não se trata de macaquear o que é
visceralmente estranho a nós, ou de bancar o missionário, mas de edificar a
cultura Ocidental que sofre de mil males; isso deve ser feito, no entanto, no lugar
adequado, em busca de um autêntico europeu, em sua trivialidade ocidental, com
seus problemas matrimoniais, suas neuroses, suas ilusões político sociais e enfim,
com sua total desorientação diante do mundo.
Seria melhor confessar que não compreendemos este texto esotérico, ou então
não queremos compreende-lo. Acaso não pressentimos que uma tal colocação
anímica, que permite olhar fundo e para dentro, desprendendo-se do mundo, só é
possível porque esses homens satisfizeram de tal modo as exigências instintivas
de sua natureza, que por pouco ou nada mais os impede de ver a essência
invisível do mundo? E acaso a condição de possibilidade da libertação de nossos
apetites, dessas ambições e paixões que nos detêm no visível, não reside
justamente na satisfação plena de sentido das exigências instintivas, em lugar de
uma repressão prematura determinada pela angústia? E não se liberta o olhar
para o espiritual quando a lei da terra tiver sido obedecida? Quem conhecer a
História dos costumes chineses ou então o I Jing através de um estudo minucioso
saberá que esse livro sapiencial impregnou o pensamento chinês há milhares de
anos. Alguém assim preparado não deixará de lado tais questões. E
compreenderá também que as idéias do nosso texto não representam algo de
extraordinário para a mentalidade chinesa, mas são conclusões psicológicas
inevitáveis.
L E N D A S , M I T O S E D I N A S T I A S P R I M I T I VA S
[ i n W. W a t s o n " C h i n a A n t i g a " : L i s b o a , 1 9 6 9 ]
Lendas e Mitologia
A história da China é, no fundo, a história de um único povo, com uma única língua
e um sistema de escrita que, em princípio, não mudou desde o início, há cerca de
três mil anos. Ninguém se impressionou tanto com a Antigüidade da sua tradição
cultural como os próprios Chineses. Os confucionistas reivindicavam ter baseado
a sua filosofia política e moral no caráter e nas leis dos primitivos reis da dinastia
Chou. A lista ortodoxa de governantes chineses que se supõem terem governado
todo o país começa com um ano do calendário que corresponde ao ano 2852 a.C.
Vem primeiro o período dos Cinco Chefes. Muitos dos reis têm um caráter
plenamente lendário, sendo-lhes atribuídos reinados inverossimilmente longos. A
idéia que hoje formamos da história primitiva e lendária e da mitologia primitiva da
raça chinesa é, em grande parte, resultante dos comentários e interpretação dos
confucionistas. A sua grande preocupação foi a de projetar o sistema dinástico
para tempos o mais recuados possível. Se a existência de imperadores
governando toda a China na mais remota Antigüidade justificou o papel de Shih
Huang Ti, o primeiro unificador da China e dos imperadores que se lhe seguiram
da Casa de Han, a função dos seus ministros e de outros servidores era poderoso
precedente a justificar o monopólio do serviço civil, finalidade dos confucionistas.
Por isso, o ingênuo encanto que geralmente encontramos no mito e na lenda
desvanece-se, na China, nos corredores climatizados de uma burocracia
imaginária. Só se consegue uma imagem corrigida dessa construção fictícia do
passado através do exame rigoroso das numerosas alusões aos heróis e aos
notáveis que sobreviveram na vasta literatura e escaparam à distorção
confucianista, e pela avaliação dos textos alusivos e por vezes crípticos de obras
como o Shan hai ching (Clássico das Montanhas e Mares) e do Ch´u ts´u (Poesia
do Estado de Ch´u).
De toda a rica mitologia que aí se nos depara apenas podemos dar aqui alguns
exemplos sugestivos. À cabeça dos Três Soberanos era geralmente colocado Fu
Hsi, que, no período Han, fora canonizado como o mais antigo. Chegou a ser
descrito com corpo de dragão e cabeça de homem; o seu nascimento, à
semelhança do dos fundadores de grandes dinastias, foi miraculoso: a mãe
concebeu-o colocando-se sobre a pegada de um gigante. Inventou os Oito
Trigramas, nos quais se baseava um sistema de adivinhação que os
confucionistas adotaram no seu cânone (I Ching); igualmente inventou as redes e
ensinou o seu uso na caça e na pesca. Em exame mais cuidadoso não se
encontra, porém, prova concreta de uma genuína origem mitológica de Fu Hsi,
conforme é descrito. É possível que tenha sido invenção dos confucianistas com a
intenção de sufocar o clamor dos taoistas. Na sua filosofia estes fizeram largo uso
do mito natural e dos conceitos animistas, sendo sérios competidores dos
confucianistas nos cargos e influência no governo. Nü Wa, uma mulher posta ao
lado de Fu Hsi como irmã ou esposa, usava cinza de juncos para secar uma
inundação e pedras de cinco cores para tapar um buraco no céu; e fixara o
firmamento em quatro pilares feitos das pernas de uma tartaruga gigantesca.
Seria, provavelmente, uma deusa cujos atributos estavam ligados ao domínio da
chuva e das inundações. Dos Cinco Chefes, Shen Nung ensinou as artes da
agricultura, do comércio e da medicina, tendo inclusivamente inventado uma cítara
de cinco cordas (ch´in). Yen Ti tem as marcas de um antepassado tribal. Huang Ti,
que aparece em primeiro lugar nas maioria das listas dos Cinco Chefes, escreve-
se com caracteres que significam “imperador amarelo” e, como tal, é
provavelmente uma criação dos taoistas. Mas Huang Ti, escrito de outra maneira,
era o nome do deus supremo que dominava sobre os deuses venerados no
período Shang.
Ao interpretar tais fragmentos mitológicos, os investigadores sugeriram que muitas
das personagens teriam como origem antepassados ou divindades locais, depois
absorvidas pelas histórias e crenças do povo Han, à medida que se formou pela
junção das tribos aparentadas e, posteriormente, à medida que se formou pela
junção das tribos aparentadas e, posteriormente, à medida que estendia os seus
domínios unindo-se a tribos, de parentesco menos chegado, que habitavam os
territórios do Sueste e do Sul. São três os pontos característicos da mitologia: a
recorrência e a semelhança das histórias das inundações, a ausência de qualquer
conceito de mundo subterrâneo e a falta de um mito da Criação que pertença
claramente à China Central e ao povo Han em sentido estrito. É lógico procurar na
bacia inferior do rio Amarelo a origem e as alusões locais às lendas das
inundações. Pensa-se que histórias de inundações ligeiramente diferentes ligadas
à lendas dinásticas das Casas de Hsia e de Shang se explicam por serem
oriundas, respectivamente, das regiões ao sul e ao norte do delta do rio Amarelo,
em regiões tradicionalmente associadas com os começos das duas linhas
dinásticas. Yü, sucessor de Shun, o último favorito confucionista dos Cinco
Chefes, recebera ordem para dominar uma terrível inundação que seu pai não
conseguira controlar, incorrendo na condenação pelo imperador Yao. Yü foi bem
sucedido e fundou, mais tarde, a dinastia de Hsia. No entanto, existem alusões a
Yü, de caráter totêmico tribal e de culto local, pelo que persiste certa ambigüidade
no que respeita aos papéis que pai e filho teriam desempenhado na inundação.
Igualmente um herói de inundações não menos famoso, Kung Kung, é
mencionado em diversos textos, breves e dispersos, que nos deixam na incerteza
se ele teria provocado a inundação, se a teria intencionalmente agravado ou se
apenas a sustara, o que, aliás, principalmente se lhe atribui. Foi Kung Kung quem
lutou contra Chuan Hsiu (um dos Cinco Chefes, normalmente colocado em
segundo lugar) pelo governo do império. Foi derrotado, não sem primeiro ter
dobrado a montanha de Pu Chou, que sustentava o céu, batendo-lhe com a
própria cabeça, do que resultou terem os céus ficado descaídos no noroeste,
originando, para as estrelas, movimento de oriente para noroeste e, para os rios,
um curso em sentido oposto.
O único mito autêntico da Criação, conservado na antiga literatura chinesa, parece
ter sido adotado da área meridional de povos não chineses, cuja assimilação à
cultura Han se processava gradualmente desde os tempos mais remotos e que
até hoje ainda não se completou. A história refere-se à P´an Ku, descrito como
“um cão de muitas cores” que se diz ter nascido do caos primitivo e que, ao
morrer, teria dado origem à China e ao universo que a rodeia. A lenda dos serviços
prestados por P´an Ku ao imperador Kao Hsin (também chamado Ti K´u, um dos
Cinco Chefes) na derrota dos bárbaros do Sul, e do seu casamento com a filha do
imperador, registra mitologicamente a mais remota penetração chinesa no Sul,
enxertando assim uma significativa tradição local no mito Han.
As dinastias primitivas
Aos primitivos e lendários chefes seguem-se as dinastias de Hsia, Shang e Chou.
A primeira é nebulosa, referida apenas nos textos mais discutíveis, e a verdade da
sua existência tem sido posta em dúvida pelos historiadores. A história respectiva
parece ter sido refeita (se não feita) depois da época de Confúcio, inclusive, a
citação de um verdadeiro eclipse do Sol no quinto ano do terceiro rei Hsia (2186
a.C. pela cronologia confucionista) testemunhará apenas a precisão dos
astrônomos Han ou Chou, tardios, em cálculo retrospectivo. É, no entanto,
geralmente aceite que certa dose de verdade está incorporada na lenda e na
tradição relativas a Hsia, pelo menos quanto à existência de tal casa reinante e à
sua localização na parte sul do curso inferior do rio Amarelo. Mas, se Hsia existiu,
a sua relação no tempo com a primeira e verdadeiramente histórica dinastia, a
Shang, é incerta. Terá sido apenas contemporânea. Não é possível também
atribuir qualquer material arqueológico a um “período Hsia”. É só com Shang que
o trabalho do arqueólogo se junta ao do historiador para iluminar o brilhante
primeiro capítulo da história da China. O caráter histórico da dinastia Shang foi
dramaticamente provado, há uma geração, pela escavação da capital, em Anyang,
no Honão Setentrional. Os primeiros séculos da dinastia Chou, que reinou a partir
de 1207 a.C. (ou 1122 a.C., segundo a cronologia ortodoxa), são conhecidos
principalmente através de escritos históricos, e a partir de 842 a.C. os seus
acontecimentos são datados com exatidão. A primeira e a última dinastias Han
(207 a.C. – 220 d.C.) governaram uma China unida de extensão quase igual à do
território atual.
O nosso rei Zu Yi veio e escolheu Geng para sua capital. Fê-lo por profunda
preocupação com o nosso povo, porque não queria que eles morressem todos
num sítio onde não podiam ajudar-se uns aos outros a conservar a vida. Eu
consultei a carapaça da tartaruga e obtive a resposta: «Este não é lugar em que
se viva.» Quando os reis meus antepassados tinham assuntos importantes,
prestavam atenção reverente às ordens do Céu. Num caso como este não
hesitavam; não ficavam para sempre na mesma cidade. Se não seguirmos o
exemplo dos antigos, estaremos a recusar-nos a reconhecer que o Céu está a pôr
termo à nossa dinastia. Como é pequeno o respeito que temos pelo que faziam os
nossos antigos reis! Tal como uma árvore cortada pela base deita novos rebentos,
também o Céu há-de outorgar-nos renovada força numa nova cidade. A grande
herança do passado será continuada e a tranquilidade encherá os quatro cantos
do nosso reino.
A religião antiga
Por trás da megalomania funerária dos reis Shang, inteiramente corrente na idade
do bronze, estava um corpo de ideias e práticas de culto que mais tarde o
confucianismo transformou na religião oficial da China. É que a linha de
continuidade entre as eras dos Shang e dos Primeiros Zhou e o resto da história
da China até à abolição do império, em 1911, assenta nos ritos de culto dos
antepassados praticados por um rei-sacerdote. Já no fim do século xix, os
visitantes europeus reparavam na forma zelosa como a dinastia Qing, a última a
reinar na China, protegia os seus mausoléus com uma força permanente de
tropas, para se manter nas boas graças dos espíritos dos imperadores falecidos.
A religião dos Shang estava intimamente associada à justificação divina do estado
Shang. Acreditava-se que Shangdi, o deus supremo do Céu, concedia benefícios
aos seus descendentes sob a forma de boas colheitas e vitórias nos campos de
batalha e, pela via da adivinhação, era possível procurar o conselho dos
antepassados directos do rei sobre quais os actos que mais agradariam à
suprema divindade. Daí a preocupação de Pan Deng em não deixar que o seu
povo se conformasse a viver numa capital infeliz. Durante o reinado de Di Xin
poucos foram os dias em que o soberano não esteve ocupado com um ou outro
sacrifício para oferecer aos seus espíritos ancestrais. Era destes rituais que
deveria ter obtido respostas para os problemas que o atormentavam, pelo menos
enquanto os seus especialistas em rituais não fugiram para o lado dos Zhou. Daí
que, no seu auge, a monarquia dos Shang se apoiasse numa constante
comunhão entre os vivos e os mortos.
Todo o poder terreno emanava do Primeiro Homem, o rei que era Filho do Céu; só
ele possuía a autoridade para pedir as bênçãos ancestrais, ou enfrentar as
maldições ancestrais, que afectavam a sociedade. O poder político estava
inextricavelmente ligado ao poder espiritual, e o soberano, pelo seu
relacionamento harmonioso com o reino espiritual, assegurava a felicidade do
estado — conceito que na teoria confuciana se tornou a base do direito a impor
obediência. A falta de qualidade de um monarca teria sempre reflexos na atitude
do Céu, como aconteceu nos últimos anos de Jie e Di Xin, em que «a Terra
tremeu» e «os rios secaram». Neste contexto encontra fácil explicação o posterior
interesse imperial pela sismologia; o cientista Zhang Heng inventou para o palácio,
por volta de 130 d. C., o primeiro sismógrafo prático de que há conhecimento.
Para a consulta aos espíritos ancestrais sobre o futuro, os Zhou utilizavam dois
métodos de adivinhação.
A IDADE CLÁSSICA
[in A. Cotterell, "História Cultural da China": Lisboa, 1986]
O declínio feudal
Quando as pessoas vivem bem, são felizes nas suas aldeias e dão valor às suas
casas. Satisfeitas com a suas aldeias e dando valor às suas casas, respeitam os
seus superiores e receiam cometer crimes. Quando respeitam os seus superiores
e receiam cometer crimes, são fáceis de governar. Quando são pobres, provocam
distúrbios nos campos e mostram pouco respeito pelas suas casas. Quando os
campos estão agitados e as pessoas não estão preocupadas com as suas casas,
ousam mostrar desrespeito pelos superiores e infringem as leis, são difíceis de
governar. É por isso que os estados bem ordenados são sempre prósperos, ao
passo que os estados desordenados são sempre pobres. Portanto, o bom
governante é aquele que começa por enriquecer o povo para depois lhe impor o
seu governo.
Garantir a subsistência do povo constituía uma das acções essenciais do governo,
porque era ele a base de sustentação do estado. Ao contrário dos pensadores
legistas, Guan Zhong não desprezava a gente comum nem acreditava que fosse
necessário recorrer a terríveis castigos para manter a situação controlada, mas
esperava obediência completa aos desejos do poder.
O próprio duque Huan, admitia Guan Zhong, não estava isento de censura moral.
A sua avareza, alcoolismo e lascívia eram bem conhecidos, «porém não eram
faltas cruciais», na medida em que não afectavam a sua capacidade de reinar. Até
o severo Confúcio disse aos seus discípulos, cerca de um século depois, que as
campanhas do hegémon contra os nómadas do Norte tinham salvo a civilização
chinesa. «Mas, se dependesse de Guan Zhong», dizia, «estaríamos agora a usar
roupa abotoada ao lado e cabelo a cair pelas costas abaixo.» Podia ter
acrescentado que Huan era um protector da cultura e a sua capital, Linzi, um
agradável local de residência de letrados. Mas poucos estados podiam ombrear
com a magnificência de Qi. Muitos deles limitavam-se a pouco mais do que um
grande palácio feudal, situado na cidade fortificada que albergava o templo
ancestral. Em territórios maiores, a casa reinante partilhava o poder com os seus
principais apoiantes, a quem conferia terras e cargos, e tinha ao seu serviço uma
classe de cavaleiros, os shi, cujos antepassados eram altos funcionários ou
nobres. Os shi recebiam a mesma formação que os seus superiores,
nomeadamente os Seis Saberes: maneiras, música, manejo do arco, condução de
carro de guerra, escrita e aritmética. Eram normalmente pequenos proprietários
que ocupavam cargos menores. O crescimento desta classe a partir de 770 a. C.,
em consequência do apagamento das distinções feudais e do desaparecimento de
muitos estados, alterou o equilíbrio da sociedade e conduziu a que, no império, os
shi se tornassem, conjuntamente com os agricultores (nong), o esteio da
civilização chinesa. Nos ensinamentos de Confúcio, ele próprio, sem dúvida, de
família shi, o orgulho e a lealdade da classe eram glorificados como as virtudes
morais que enformavam o essencial do carácter do homem educado.
A luta familiar pela sucessão, em 642 a. C., arruinou Qi e permitiu que a
hegemonia passasse primeiro para o vizinho Song e depois, em 636 a. C., para
Jin, o maior estado de todos até que, em 403 a. C., as perturbações internas
vieram dividi-lo em três unidades separadas: Han, Wei e Zhao. Jin englobava
vastas partes das actuais províncias de Shenxi, Hebei e Henan e o seu duque
sentiu-se com força suficiente para convocar e demitir sem cerimónia o rei Zhou.
Idêntica falta de respeito pelas hierarquias se manifesta na intriga e violência que
campeavam no seio dos próprios estados concorrentes, numa tendência para a
desordem que se tornou ainda mais pronunciada durante o período dos Reinos
Combatentes que se seguiu.
Um dos primeiros registos de batalha é a derrota infligida a Chu pelo hegémon
Wen, duque de Jin, em Chengpu, no ano de 632 a. C. Durante o Inverno de 633 a.
C., o exército de Chu tinha sitiado Shangqiu, capital dos Song, na altura aliado dos
Jin, e na Primavera seguinte Wen comandou uma força constituída por soldados
de diversos estados do Norte contra os sitiantes. Na povoação fronteiriça de
Chengpu, Wen aplicou um golpe estratégico que fez cair o comandante Chu numa
posição de perigoso avanço, após o que apanhou as tropas deste,
desguarnecidas, num movimento de tenaz feito pela infantaria e os carros de
combate. A táctica vitoriosa foi executada a coberto duma nuvem de poeira
levantada pelos carros que arrastavam árvores. O registo histórico põe ênfase no
cerimonial e na adivinhação, ritual que antecedeu o início da batalha, se bem que
a qualidade do comando militar tenha evidentemente desempenhado um papel
fundamental na vitória arrasadora. Depois Wen deu conta da sua boa sorte ao rei
Zhou, em Luoyang, presenteando-o com 1000 prisioneiros Chu e 100 carros.
O aparato de guerra da época continha o equivalente chinês da cavalaria. Sem
prejuízo de respeitar procedimentos previamente definidos ao entrar em batalha,
os nobres recorriam à adivinhação para determinar se deviam ou não lutar.
Acreditava-se que tudo se passava sob as vistas dos antepassados, sem cuja
ajuda nunca se podia ter a certeza da vitória. Há registos de peças votivas
ancestrais levadas para o campo de batalha e sabe-se que era costume, antes da
batalha, invocar «os espíritos dos antigos governantes», pedindo-lhes protecção
contra as armas inimigas. Uma vez tomada a decisão de entrar em guerra, os
nobres desencadeavam surtidas arrojadas e envolviam-se em duelos de arco e
flecha de cima de bigas velozes. Antes da batalha de Pi, em 595 a. C., três heróis
Chu provocaram as linhas Jin: um conduzia a biga, o segundo lançava as flechas,
o terceiro, com uma lança comprida, protegia os cavalos contra os soldados
apeados. Perseguidos por um esquadrão de bigas Jin, os aventureiros Chu
encetavam uma retirada arriscada quando um veado se lhes atravessou na frente
e eles trespassaram-no com a última lança que tinham. Acto contínuo pararam e
presentearam com o animal os seus perseguidores, que aceitaram o presente e
cancelaram a perseguição. Ao consentir que a biga Chu fugisse, os nobres Jin
reconheceram a bravura e o cavalheirismo do inimigo.
Mas não iriam durar muito estas escaramuças amaneiradas. O abandono da biga
perante as setas mortíferas disparadas pelas bestas veio no século iv a. C.
destruir os laços entre a aristocracia e a guerra. As batalhas transformaram-se em
grandes confrontos de infantaria, grossas colunas de homens protegidos por
armaduras e apoiados por besteiros, cavalaria e bigas. As escavações feitas a
partir de 1976 no monte Li, local onde se encontra o túmulo do Primeiro
Imperador, vieram revelar o ponto a que chegou a sofisticação do armamento e
das armaduras. Vários milhares de guerreiros de terracota em tamanho natural aí
foram colocados, entre 221 e 209 a. C., em câmaras subterrâneas, aparentemente
dispostos em formação de batalha. Colunas de soldados de infantaria
apresentam-se modeladas envergando cotas de malha de ferro, indo ao pormenor
de se ver a cabeça dos rebites. Esse tipo de protecção representa um progresso
notável em relação aos capotes acolchoados ou às peles curtidas de tubarão ou
de outros animais que se usavam em vida do hegémon Huan. Mas o mais
significativo de tudo é a vanguarda do exército de terracota — três filas de
besteiros cujas armas tinham um alcance estimado em 200 metros. As pesadas
setas que disparavam teriam rapidamente transformado em passadores os
escudos dos soldados macedónios ou romanos seus contemporâneos.
Durante os dois séculos anteriores à unificação da China, em 221 a. C., a guerra
era um assunto não só profissional e sério, mas também muito caro, e os estados
mais importantes, para absorver os seus vizinhos mais pequenos, tinham de
desviar mais recursos para fins militares. Os poderosos estados dos Qin e dos
Chu conseguiam pôr em campo para cima de 1 milhão de soldados cada um.
Como o núcleo duro dos exércitos dos Reinos Combatentes era constituído por
tropas regulares, oficiais e soldados altamente treinados e bem equipados, os
soberanos preocupavam-se em proteger aquilo que era um investimento
considerável. A Arte da Guerra (Zhanshu), de Sun Zi, o mais antigo tratado militar
que se conhece no mundo, relata quão severo era o código de disciplina do século
v a. C. Quando um oficial dos Chu cometia a proeza de cortar um par de cabeças
dos Qin antes de um ataque, era ele próprio decapitado por ter agido sem ordens.
Como salientava o general Chu: «Estou certo de que é um oficial capaz, mas é
desobediente.» No entanto, foi o estado dos Qin o primeiro a interromper o poder
da aristocracia hereditária dentro do exército ao promover apenas os bravos e os
capazes aos mais altos postos de 350 a. C. em diante. A partir daí, o exército
passou a ser apenas uma máquina de guerra sem quaisquer propósitos de
demonstração de nobreza. A sua crueldade era agora indisfarçável: «o sangue
para os tambores» deixou de ser a execução cerimonial de meia dúzia de
prisioneiros no fim da batalha quando, em 260 a. C., em Chang Ping, os generais
Qin ordenaram a chacina de 400 000 prisioneiros Zhao. Por muito horroroso que
este acto de violência tenha parecido na altura, a degradação máxima do estatuto
dos militares na sociedade chinesa só iria acontecer mais tarde pelas mãos do
confucianismo, nomeadamente no tempo dos imperadores da Primeira Dinastia
dos Han.
na abundância das suas plantas em flor e em fruto, a mais fértil das nove regiões.
Nas suas barreiras naturais de protecção e defesa é o refúgio mais inexpugnável
que há. Por isso a sua influência se estendeu em seis direcções, pelo que foi por
três vezes a sede do poder imperial.
As três dinastias a que Ban Gu se refere são a dos Zhou, que daí lançou o
derrube vitorioso da dinastia dos Shang; a dos Qin, que criou o império unificado;
e a dos Han, cujos primeiros 200 anos de reinado se centraram em Chang’an,
cidade situada do outro lado do Wei, em frente da antiga capital dos Qin,
Xianyang. A última dinastia que teve a sua capital no vale do rio Wei foi a dos Tang
(618-906).
No relato da construção do canal de Cheng Kuo é interessante notar que o rei dos
Han assumiu a vontade dos Qin de adoptar obras públicas a uma escala maior do
que qualquer outro estado. A fama de inovação deve ter sido uma herança do
ministério de Shang Yang, de que se falará a seguir; mas não se deve perder de
vista que o projecto era tão vasto que até o rei dos Qin hesitou ao ter
conhecimento da conspiração, mas quem o convenceu a continuar foi o
engenheiro, que talvez só no decurso do trabalho se tenha apercebido do que ele
poderia significar para os Qin, uma vez concluído. Outra versão da entrevista
atribui a Cheng Kuo as seguintes palavras: «Com este expediente prolonguei por
alguns anos a vida do estado dos Han, mas estou a concluir um sistema que irá
sustentar o estado dos Qin por dez mil gerações.»
Como o ensino praticamente não existia no primitivo país dos Qin, os seus
governantes tiveram de ir procurar fora de fronteiras os talentos de que
precisavam. Cheng Kuo foi apenas um de uma longa lista de distintos
conselheiros estrangeiros, entre os quais se incluía Shang Yang, eminente
ministro que exerceu funções de 356 a 338 a. C., e também o arquitecto da vitória
definitiva do Primeiro Imperador, Li Si. Oriundos dum pequeno feudo situado nas
terras altas do rio Wei, a oeste do antigo domínio feudal dos Zhou, os Qin viram-se
com a responsabilidade de defender a fronteira ocidental, depois de em 770 a. C.
a capital ter sido transferida para Luoyang. Segundo certa tradição, a casa dos Qin
descendia dum negociante de cavalos, o que provavelmente implicaria
ascendência não chinesa, e já em 266 a. C. um nobre de Wei notava que «os Qin
têm os costumes das tribos Jong e Di. Têm o coração dum tigre ou dum lobo. São
gananciosos e indignos de confiança. São ignorantes das boas maneiras, das
relações correctas e do recto comportamento. Mal surge uma oportunidade de
ganho, tratam os familiares como se simples animais fossem». Mas as origens
bárbaras não bastam para explicar a relutância da corte dos Qin em adoptar a
etiqueta feudal. Aparentemente, os próprios dinastas Zhou comandaram um povo
meio bárbaro, meio civilizado contra os Shang, mas, enquanto o reino dos Zhou se
caracterizou pelo cerimonial, embora pouco mais do que um arremedo durante a
estada em Luoyang, o estado dos Qin eximia-se às pretensões aristocráticas e
concentrava-se nas tarefas práticas, como o aperfeiçoamento da agricultura e da
metalurgia. Talvez a experiência da fronteira tenha estado na origem desta atitude
mais terra-a-terra, já que a casa dos Qin herdou as terras dum monarca caído em
desgraça e a necessidade de dominar os bárbaros intrusos. Construir uma base
de poder não era apenas uma necessidade premente, era a própria condição de
sobrevivência, que não deixava tempo para mais nada. Os Qin viram-se reduzidos
aos seus próprios recursos e por isso o seu soberano recebeu de braços abertos
as reformas que Shang Yang se propunha introduzir para delas tirar o máximo
partido em favor do estado.
Mas foi o extremo rigor das reformas de Shang Yang que suscitou a admiração e o
terror dos seus contemporâneos, não a intenção fundamental dessas reformas.
Um novo espírito de governo, uma obsessão pela eficiência sem atender à
moralidade tradicional, presidiram já às acções dos príncipes na agitação
crescente do século iv a. C. O seu advento é normalmente relacionado com Shen
Buhai (c. 400-337 a. C.), homem de origem humilde que durante muitos anos foi o
principal conselheiro de Han. Os seus escritos fragmentários versam sobre a
eficiência na administração e apontam no sentido de um estado burocrático. Um
século depois, o filósofo Han Fei Zi resumia a teoria de governo de Shen Buhai na
nomeação de funcionários em função da sua competência, na exigência de que
estes cumprissem as obrigações inerentes ao cargo, na apreciação da valia de
todos os ministros e no controlo da justiça. Embora salientasse o papel do
governante, Shen Buhai não advogava o uso do poder irrestrito nem os castigos
severos, ao contrário do sanguíneo legista Shang Yang, mas, mesmo assim, o
rigor com que as punições eram aplicadas em Hanan ainda hoje causa arrepios.
Quando, uma vez, o rei se embriagou e adormeceu num lugar frio, o guarda da
coroa pôs-lhe um casaco por cima. Ao voltar a si, o rei perguntou quem o tinha
coberto e, perante a resposta, castigou o guarda da roupa, mas mandou matar o
guarda da coroa, na observância do princípio de que ultrapassar as funções dum
cargo era pior do que ser negligente.
Chegado ao país dos Qin vindo de Wei, onde Gongsun Yang ou Shang Yang
nascera, neto duma concubina real, este candidato a reformador encontrou em
356 a. C. um rei disposto a operar mudanças de longo alcance. Quando, cinco
anos antes, o rei Xiao chegara ao trono, convidara para a corte homens capazes,
mas os conselhos que lhe davam não pareciam trazer nada de novo.
Apercebendo-se da impaciência do rei em relação a conselhos que insistiam nas
tradições, usos e costumes, Shang Yang recomendou uma completa ruptura com
o passado. «Um homem sábio», dizia ele, «cria as leis, mas um homem inútil é
dominado por elas; um homem de talento reforma os ritos, mas um homem inútil é
escravizado por eles. Com um homem controlado pelas leis é inútil discutir
mudanças; com um homem escravizado pelos ritos é inútil discutir reformas. Que
Vossa Alteza não hesite.» Impressionado pelo intelecto e pela determinação de
Shang Yang, o soberano dos Qin concluiu: «Devemos ser orientados nos nossos
planos pelas necessidades do momento — disso não tenho qualquer dúvida.»
Investido de pulso livre, Shang Yang introduziu um novo código de leis com o
objectivo de reforçar o poderio militar dos Qin. Procurou reduzir a influência da
aristocracia, desmembrar os clãs poderosos e libertar os camponeses da servidão;
em lugar dos vínculos tradicionais instituiu a responsabilidade colectiva como
método de manutenção da ordem. Foi assim que Shang Yang
ordenou que o povo se organizasse em grupos de cinco e dez famílias, que
mutuamente vigiavam o comportamento de cada uma. Aqueles que não
denunciassem os culpados seriam cortados ao meio; aqueles que denunciassem
os culpados recebiam a mesma recompensa que era dada a quem decapitava um
inimigo; aqueles que encobrissem um culpado recebiam o mesmo castigo que era
dado a quem se rendia a um inimigo. Famílias com dois ou mais filhos crescidos
que não vivessem em casas separadas tinham de pagar imposto a dobrar. Quem
se distinguisse em batalha recebia do rei títulos, por estrita ordem de mérito.
Quem se envolvesse em conflitos privados era punido de acordo com a gravidade
da ofensa. Toda a gente tinha de colaborar nas tarefas fundamentais da
agricultura e da tecelagem e só quem produzisse uma grande quantidade de
cereal ou de seda ficava isento de trabalhar nas obras públicas. Aqueles que se
ocupavam do comércio eram escravizados, juntamente com os miseráveis e os
preguiçosos. Os de linhagem nobre que não tivessem valor militar perdiam o
estatuto de nobreza. A hierarquia social estava claramente definida e a cada
estrato era dada a sua quota-parte de campos, casas, criados, concubinas e
roupas. Quem tivesse valor era distinguido com honrarias, ao passo que quem
não tivesse valor algum, mesmo que fosse rico, não tinha direito a qualquer
distinção.
A aplicação destas regras não foi de modo algum fácil, mas a contestação cessou
quando o próprio herdeiro do trono delas foi vítima. Quando o príncipe herdeiro
transgrediu uma das leis, Shang Yang defendeu que ele devia sofrer pelo menos
um castigo simbólico. Por isso, o rei Xiao aceitou que o guarda do príncipe fosse
despromovido e a cara do tutor do príncipe tatuada, presumivelmente com base
em que estes nobres tinham partilhado com o príncipe a responsabilidade pelo
mau comportamento.
Tal fanatismo custou caro a Shang Yang. Detestado, e temido tanto pelos nobres
como pela gente comum, esteve seguro enquanto o seu protector se manteve no
trono, mas, depois da morte de Xiao, em 338 a. C., os inimigos de Shang Yang
rapidamente o acusaram de sedição e mandaram oficiais para o prender. Há na
história da sua tentativa de fuga uma maravilhosa ironia. O ex-primeiro ministro
começou por tentar esconder-se numa obscura estalagem, mas o estalajadeiro,
ignorando a sua identidade, disse-lhe que com as novas leis não se atrevia a
aceitar um homem sem autorização, com medo de ser punido. Foi assim que
Shang Yang sentiu na pele a dureza do seu próprio código de leis. Percebendo
que a sua fuga do país dos Qin era igualmente impossível por causa da fama que
tinha, regressou às terras dos Shang que lhe tinham sido dadas em recompensa
pelo serviço militar prestado contra o seu reino natal de Wei e aí se preparou para
resistir. A derrota e a desonra iriam ser o seu destino, porque, para servir de
exemplo aos rebeldes, o cadáver de Shang Yang foi despedaçado por bigas e
todos os membros da sua família sofreram morte violenta.
O confucianista Sima Qian achou que «o mau fim que Shang Yang finalmente
encontrou em Qin foi simplesmente o que ele merecia». No seu Livro da História
(Shiji), o historiador enumera as faltas do reformador legista como sendo a
desonestidade, a manha, a incapacidade de aceitar os pontos de vista dos outros
e a desumanidade. Mas, como historiador honesto que era, Sima Qian regista os
feitos do ministério de Shang Yang:
Ao cabo de dez anos o povo de Qin estava calmo. Nada que se perdesse na
estrada era apanhado e guardado, os montes estavam livres dos ladrões, todas as
famílias prosperavam, os homens batiam-se com bravura no campo de batalha,
mas evitavam rixas de portas adentro, e as vilas e aldeias eram bem governadas.
O que isto significava, no entanto, era a sujeição do estado às necessidades do
rei, um ideal totalitário. «Antigamente», comentava Shang Yang, «quem conseguia
pôr o reino na ordem era quem considerasse sua principal missão pôr na ordem o
seu próprio povo; quem conseguia vencer o mais forte dos inimigos era quem
considerasse sua principal missão conquistar o seu próprio povo.» Está aqui
patente o pressuposto legista de um antagonismo entre governados e governante,
entre o povo e o estado. Shang Yang acreditava que era preciso que fosse pior
para as pessoas cair nas mãos da polícia do que ir para a guerra.
Ao acentuar a tendência da época para a governação autoritária e o despotismo,
Shang Yang transformou os relativamente atrasados Qin num dos mais poderosos
estados feudais. E a queda de Shang Yang não implicou a abolição das suas
reformas, porque os reis Qin não desconheciam as vantagens políticas e militares
do poder centralizado, duma burocracia disciplinada e dum exército forte. O facto
de lhes ter sido possível comportar-se de forma cada vez mais totalitária, até
acabarem na autoridade irrestrita do Primeiro Imperador, deverá significar, no caso
dos Qin, que a falta duma tradição feudal desenvolvida excluía qualquer oposição
autêntica ao trono. Ao regressar duma visita ao reino dos Qin, cerca de 246 a. C.,
o filósofo confuciano heterodoxo Xun Zi escreveu que o povo tinha medo dos
funcionários, não se viam ritos e cerimónias humanizantes, não se tocava música
e não havia qualquer espécie de actividade intelectual. «Os simples e toscos
habitantes», diz Xun Zi, «só podem obter benefícios dos seus superiores
distinguindo-se em combate. E as recompensas aumentam na proporção do feito.
Assim, um homem que regresse da batalha com cinco cabeças de inimigos é feito
senhor de cinco famílias nas suas redondezas.» Esta dedicação inequívoca aos
objectivos legistas alcançou a sua máxima vitória em 221 a. C., com pesados
custos. Como Aristóteles sensatamente referiu a propósito do patético fracasso de
Esparta na política grega após a derrota de Atenas em 404 a. C., um treinamento
exclusivamente militar não constitui preparação para a paz e, em última análise,
foi em si mesma causa da derrota. Os Espartanos «não apreciam o lazer e nunca
se entregam a qualquer tipo de actividade superior à guerra ... aqueles que, como
os Espartanos, se especializam numa e ignoram as outras na sua educação
transformam os homens em máquinas.» De idêntica maneira, as insuficiências
duma hierarquia militar perturbaram o império Qin, uma vez desaparecido o pulso
forte do seu fundador. O Segundo Imperador viu-se em 209 a. C. ameaçado por
súbditos empurrados para a rebelião aberta pelo comportamento prepotente dos
governadores provinciais dos Qin.
A experiência dos rivais dos Qin no Sul, durante o período dos Reinos
Combatentes, foi menos satisfatória. Apesar de ser o último estado feudal a ter um
hegémon entre 613 a. C. e 591 a. C., Chu não pôde evitar envolver-se numa luta
longa e desgastante com Wu e Yue. Wu, em particular, fazia trabalhar a cabeça
dos Chu, sabido como era que os opositores exilados instruíam as suas forças
armadas nas mais modernas técnicas da guerra. Há de facto vários relatos nas
histórias sobre nobres que se tinham posto em fuga para as montanhas a sul do
delta de Yangzi e ajudavam os não chineses a organizarem-se politicamente.
Descobertas recentes de bronzes de estilo Zhou em locais situados ao longo da
fronteira da província de Anhui reforçam a ideia de que o desenvolvimento cultural
terá sido estimulado pela chegada de uma classe superior vinda do norte. Um
exilado Chu se destaca como arquétipo da vingança: Wu Zixu. Fugido à ira injusta
do rei Chu, que lhe tinha morto o pai e o irmão, Wu Zixu devotou todas as suas
energias a provocar uma guerra entre Wu e Chu. Em 506 a. C. teve a satisfação
de ver as tropas de Wu saquearem Ying, a capital do reino Chu, mas o seu
verdadeiro prazer chegou quando testemunhou a humilhação do rei Chu, que foi
obrigado a implorar a ajuda duns incrédulos Qin para conseguir rechaçar a força
invasora dos Wu.
Inovador foi o recurso dos Wu a um ataque fluvial, seguindo o curso sinuoso do rio
Yangzi até às portas de Ying. Nos sítios onde a linha de progressão não coincidia
com a direcção das linhas de água naturais, como aconteceu no ataque dos Wu a
norte, contra os pequenos estados de Song e Lu, em 486 a. C., foi aberto um
canal de transporte para o abastecimento de equipamento militar. Esta via fluvial,
ligando os sistemas dos rios Huai e Yangzi, acabou por ficar a constituir a secção
de Han Kou do Grande Canal, que em finais do século vi d. C. foi construído para
norte até ao rio Amarelo. Talvez exaustos por estas aventuras, os Wu caíram em
473 a. C. às mãos duma súbita invasão dos Yue, a potência do vale do baixo
Yangzi que em 333 a. C. foi derrotada pelos Chu.
As dificuldades não bastam para explicar o facto de os Chu terem ficado para trás
na luta pela supremacia. Apesar de o reino Chu ser dotado dum clima temperado,
ideal para a agricultura intensiva, não houve uma exploração deliberada desse
recurso, ao contrário do que aconteceu no seu impiedoso rival, Qin. É bem
possível que o terreno de loess do estado do Norte, com a consequente
importância da irrigação, contivesse em si a alavanca com que o rei dos Qin fazia
mover o seu povo como uma força unida, enquanto o rei dos Chu não precisava
de tanta coesão social para produzir um confortável excedente agrícola. Outro
factor a contrariar a centralização terá sido uma evidente escassez de cidades.
Embora as vilas e cidades descobertas no reino dos Chu sejam melhores do que
as dos estados do Norte, até agora muito poucas foram localizadas. Mas dos
achados tumulares resulta à evidência que o estado possuía uma economia
avançada, que incluía o trabalho em bronze e ferro; a descoberta de armas entre
estes artefactos funerários confirma o receio expresso nas histórias quanto às
lanças de ponta de ferro dos Chu, «aguçadas como ferrão de abelha». Sendo
embora os Chu indubitavelmente atrasados, a absorção de tantos territórios
feudais garantiu-lhes que o progresso material nunca fosse demasiado lento. Uma
organização feudal de alicerces tão pouco profundos como os dos Qin dava aos
Chu a propensão natural para as doutrinas legistas, mas não apareceu nenhum
Shang Yang que conferisse a este estado disperso uma organização
suficientemente robusta para suportar as tempestades políticas que na altura
grassavam. Embora só com a conquista dos Chu, em 223 a. C., os Qin pudessem
ter a certeza da vitória final, o poder crescente das suas forças armadas ficou
demonstrado numa série de derrotas infligidas ao exército Chu durante as
primeiras campanhas de 280 e 278 a. C., que resultaram na anexação de vastas
áreas do vale do médio Yangzi.
O contraste mais flagrante entre os Chu e os Qin residia na promoção de obras
públicas; além dos seus vastos sistemas de irrigação, a segunda é conhecida por
se ter empenhado num extenso programa de construção de estradas e pontes,
bem como no levantamento de muralhas defensivas. Muitos dos estados com
fronteiras confinantes com as estepes construíram muralhas como forma de
resolver o problema das incursões a cavalo. A ameaça era tão séria para os Zhao
que, no século iv a. C., o seu rei, indiferente à chacota de outros reis, mandou que
o seu povo adoptasse o modo de trajar dos Bárbaros, pois passou a usar não só
as tácticas de cavalaria dos Hu, mas também as calças usadas por estes velozes
tribais da Mongólia. A solução adoptada pelos Qin pouco depois de 300 a. C. foi
uma extensa muralha, precursora da Grande Muralha, construída por ordem do
Primeiro Imperador.
Muitas vezes se tem chamado a atenção para a ubiquidade das muralhas na
civilização chinesa. Todas as cidades da China têm a sua muralha circundante,
não havendo hoje praticamente aldeia do Norte da China, qualquer que seja o seu
tamanho, que não tenha pelo menos um muro de terra batida à volta das casas e
dos estábulos. Dentro da cidade histórica havia muros que dividiam as casas em
lotes e ilhas, secções e bairros, com portões, por vezes inseridos em grandes
torres de vigia, que controlavam os meios de acesso duma parte para outra. As
cidades obedeciam a planos e a disposição dos muros reforçava o poder das
autoridades — o nobre e seus funcionários. Se até os antigos nómadas asiáticos
rodeavam os seus acampamentos dum muro de terra, não surpreende que a
cultura agrária da China levantasse muros à volta das suas primeiras povoações.
A paisagem rural sempre foi dominada pela cidade murada, que continha os
celeiros do estado que recolhiam o tributo ou imposto em espécie de que o
governo dependia. Esta reserva alimentar mantinha o exército e alimentava a
mão-de-obra recrutada para as obras de aproveitamento da água. À medida que
se tornavam mais complexos e se generalizavam os canais e os projectos de
irrigação, particularmente a partir do império dos Han, a cidade fortificada no meio
do campo tornava-se a sede efectiva de governo e administração locais. Como o
estrume humano era o principal adubo, dado que os Chineses não mantinham
rebanhos de animais de pastagem, era inevitável que a agricultura intensiva se
desenvolvesse nos campos adjacentes às muralhas das cidades.
Daí que, na mente do Primeiro Imperador, a Grande Muralha, que mandou
construir em 214 a. C., mais não fosse do que uma versão aumentada duma
muralha urbana, destinada a isolar o mundo ordenado da China das atenções dos
povos não civilizados que vagueavam pela estepe. Sem paralelo na história da
humanidade é a extensão de 3000 quilómetros que a Grande Muralha acabou por
atingir, fazendo dela a única obra do homem que é visível pelas tripulações em
órbita no espaço. Não menos impressionante para os seus contemporâneos foi a
rede de estradas que os Qin começaram a construir para tirar partido dos
territórios acabados de conquistar. E não pode haver qualquer dúvida quanto à
superioridade destas estradas em relação às romanas. Enquanto uma estrada
romana se pode descrever como um muro pesado que com dificuldade foi deitado
de lado, a antiga estrada chinesa era essencialmente uma fina e convexa camada
impermeável assente em subsolo normal. Ao usar este piso de estrada leve e
elástico, os engenheiros chineses evitavam o problema das mudanças de
temperatura e antecipavam-se dois milénios à técnica de John McAdam. Outra
vantagem em termos de tracção parece ser o facto de o arnês chinês se adaptar
melhor ao animal do que o de atar ao pescoço e à barriga, usado no Ocidente,
que dificulta a respiração do cavalo.
Embora ainda não se disponha de informação suficiente sobre a construção de
pontes, o crescente interesse dos Qin pelo vale do baixo rio Amarelo está bem
patente na localização de duas grandes pontes, uma sobre o Wei e outra sobre o
Amarelo. A ponte sobre o Wei, perto de Xianyang, em funcionamento a partir de
290 a. C., era constituída por 68 lanços de 9 metros cada, dando-lhe um
comprimento superior a 600 metros. Embora todas as vigas fossem de madeira,
formando um tabuleiro com 12 metros de largura, alguns dos pilares perto das
margens eram de pedra. A ponte sobre o rio Amarelo era inteiramente feita de
barcaças, método em que os reis Zhou foram pioneiros. Sabe-se que esta ponte
de pontões, lançada em 257 a. C. junto à confluência dos rios Wei e Amarelo, foi
utilizada durante vários séculos.
O triunfo dos Qin esteve intimamente ligado à tecnologia. Embora o Primeiro
Imperador já antes da conquista dos estados feudais tivesse patrocinado projectos
de grande porte, estes tornaram-se indispensáveis a partir de 221 a. C. O
imperador ficou a braços com um exército enorme, além de inúmeros prisioneiros
e dos nong, camponeses libertados do antigo feudalismo. Para ocupar todos estes
braços ociosos e aniquilar o que restava da anterior estrutura social, a política
imperial ampliou grandemente o programa de obras públicas.
Na base de todo o movimento no sentido dum estado centralizado, bem
organizado, com vista à implantação na China duma civilização perfeitamente
capaz de sobreviver independentemente de outras partes do mundo antigo, esteve
uma revolução no trabalho com os metais. Apesar de o aparecimento do bronze
na China ter sido tardio, os artífices Shang atingiram um nível técnico muito
superior ao de outros utilizadores do bronze. Os avançados fornos da indústria
cerâmica, mais antiga, deverão ter desempenhado um papel importante neste
desenvolvimento, facilitando um salto em frente sem precedentes na metalurgia do
ferro durante o período dos Reinos Combatentes (481-221 a. C.). Referências
recuadas no tempo apontam para uma sofisticada fundição do ferro em Qi, mas a
arqueologia sugere o século vi a. C. como início da metalurgia do ferro enquanto
indústria fundamental para o fabrico de ferramentas, se bem que as técnicas
avançadas só tenham provavelmente sido aperfeiçoadas e tornadas de uso
generalizado no século seguinte.
Muito surpreendente é o facto de a fundição do ferro ter sido praticada quase logo
que o ferro foi conhecido, enquanto no Ocidente a metalurgia do ferro ficou
dependente da forja até cerca de 1350. Também o aço poderá ter sido produzido
no final do período dos Reinos Combatentes. Entre as razões possíveis para o
rápido progresso na tecnologia do ferro e do aço está o alto teor de fósforo dos
minérios de ferro chineses, que têm um ponto de fusão baixo; bons barros
refractários, que permitiam a construção de bons fornos e bons cadinhos; a
invenção dos foles de pistão de dupla acção, que produziam um sopro forte e
contínuo para os fornos, mantendo as temperaturas altas; a aplicação do vapor a
esses foles; o uso do carvão para fazer fogueiras muito quentes à volta dos
cadinhos; e a experiência derivada das indústrias da olaria e do bronze.
O ferro foi pois uma dádiva essencial para os camponeses da China. Fundido em
machados, enxós, cinzéis, pás, foices, enxadas e arados, a eficiência do metal
conjugou-se com a irrigação para fazer aumentar a produção agrícola ao ponto de
tornar desnecessária a escravatura rural da Grécia e de Roma. Exactamente
quantos escravos havia numa dada altura é impossível de calcular com base nos
testemunhos que sobreviveram, mas há acordo geral quanto ao facto de ser
pequena esta classe inferior. Todavia, no ano 44 da nossa era havia 100 000
escravos do governo, a maioria dos quais a tratar dos animais propriedade do
estado. A trabalhar na extracção e produção do ferro só há referência a
condenados; ao contrário dos escravos, eram alvo de sentenças de servidão por
um período determinado de tempo. Os funcionários queixavam-se com frequência
da inutilidade dos escravos do estado que «preguiçam de mãos pousadas», em
contraste com os camponeses, que trabalhavam no duro. Também havia escravos
privados, mas, em flagrante contraste com Roma, os direitos civis do escravo
doméstico não eram despiciendos. O dono não podia matar um escravo sem mais
nem menos; até o usurpador Wang Mang foi em 3 a. C. obrigado a ordenar que
um dos seus filhos se suicidasse por ter morto um escravo. A polí-tica do governo
orientava-se sempre pela redução da escravatura, pelo que eram regularmente
publicados éditos a libertar quem tivesse sido escravizado por razões de pobreza
e fome. Na história da China não há qualquer equivalente à galera de guerra do
Mediterrâneo movida a remos por braços escravos. Quando, no século i a. C., foi
conhecida a azenha, foi recebida de braços abertos por ser mais humana e mais
barata de operar do que os mecanismos movidos pela força de homens ou de
animais.
Na guerra, o papel do ferro começa por não ser muito claro, a não ser no fabrico
das cotas de malha. No monte Li, os guerreiros de terracota que guardam o
túmulo do Primeiro Imperador são apresentados com sete estilos de armadura
diferentes, com cotas de malha feitas de inúmeras lâminas de ferro montadas de
tal maneira que as de cima apertam as de baixo. Só se descobriram restos de
uma cota de malha autêntica, e isso aconteceu em 1965 na província de Hebei.
Raros são também os vestígios de armas de ferro relativos ao período dos Reinos
Combatentes, nada tendo vindo à luz nas escavações do monte Li. A espada mais
afiada aí encontrada era feita por um processo raro, em que o bronze era
revestido de crómio. Quando, ao cabo de mais de dois milénios, foi desenterrada
do chão, a lâmina ainda estava tão afiada que cortava um cabelo.
Com a chegada de Zheng à maioridade, em 238 a. C., o estado dos Qin preparou-
se para a batalha final. Demitido Lu Buwei, que tinha sido fundamental para
garantir a subida do seu pai ao trono, o jovem rei voltou-se para outro estranho, Li
Si (280-208 a. C.), antigo discípulo de Xun Zi, cuja firmeza de pensamento deverá
ter contribuído para que o novo ministro se mantivesse imune ao entusiasmo
supersticioso do futuro primeiro imperador pela magia tauista. A queda do «Tio» Lu
veio a ser engrinaldada de lendas depreciativas por historiadores empenhados em
denegrir o nome de Zheng. Numa sociedade que adorava os antepassados era
irresistível a tentação de representar a rainha mãe como uma pega e o filho desta
como um bastardo. Além da poderosa posição que granjeara durante a
menoridade do rei, Lu Buwei pode ter sido olhado como um obstáculo à vontade
do trono, por causa dos 3000 letrados que mantinha na capital. Este influxo de
opiniões dos outros estados feudais não era do agrado do jovem rei e só a
eloquência de Li Si lhe evitou ser banido juntamente com os outros estrangeiros
em 237 a. C. A carreira de Lu Buwei é caso único na China antiga: é o único
exemplo dum comerciante a ocupar um alto cargo. Não era costume os
comerciantes (shang) serem autorizados a entrar para o funcionalismo, o que
significava que a sua riqueza de nada lhes valia para os fazer sair dum baixo
estrato social. O legismo era particularmente crítico em relação às actividades dos
homens de negócios, havendo uma lei de 214 a. C. (com toda a probabilidade,
obra de Li Si) que os obrigava a incorporar-se em expedições militares que
partiam da China do Sul. Esta prática de mandar actuais e antigos mercadores,
bem como os filhos e netos de mercadores, juntamente com os condenados,
como tropas de guarnição e guardas de fronteira foi mais tarde relançada por Wu
Di, imperador Han. Iremos encontrar ecos desta atitude tão antiga no desterro
para o interior de jovens pertencentes a famílias abastadas durante a Grande
Revolução Cultural Proletária, de finais dos anos 60 do
O D E S P E R TA R D A R E F L E X Ã O M O R A L E P O L Í T I C A
[in J. Gernet, "Mundo Chinês": Lisboa, 1969]
Confúcio, mestre da escola de letrados.
Aqueles que na época dos Han foram considerados como pertencendo à escola
dos letrados (rujia), proclamavam-se continuadores de um sábio de nome Kong
Qiu, que os missionários jesuítas do século XVII iriam latinizar em Confucius
(Kong fuzi, mestre Kong). O que dele ficou limita-se a algumas tradições mais ou
menos autênticas e a uma pequena antologia dos seus dicta, o Lunyu, cujo texto
foi estabelecido pelos discípulos depois da sua morte. O que, em rigor, se poderia
chamar a “tradição confuciana”, é formada por um conjunto de textos,
relativamente heterogêneos pela sua natureza e conteúdo, que engloba os
clássicos, os seus comentários mais antigos, os Exercícios de Confúcio e obras
do século III a. C. que revelam orientações originais, típicas desta época de
profundas perturbações sociais e políticas. Se o termo confucionismo, forjado
pelos ocidentais, tem um sentido, é evidente que ultrapassa em muito a própria
personalidade do grande sábio.
Sem dúvida que podemos datar de Confúcio e da sua época o início de uma
reflexão moral que parece ter sido provocada pela crise da sociedade nobre e pelo
declínio dos ritos. O lugar reservado no seu ensino aos escritos da Antigüidade
revela que Confúcio se liga aos centros tradicionalistas de escribas e analistas.
Chocados pelos atentados cada vez mais freqüentes aos usos e regras antigas,
estes centros iriam ser tentados a regressar à correção ritual, tanto nas práticas
como no emprego dos termos (o que e confirmado pelo desenvolvimento ulterior
de um ritualismo arcaizante, naturalmente utópico, e da teoria da correção dos
nomes, zheng-ming). Também parece natural que nestes centros se tenha feito
um esforço para definir o homem de bem (junzi) independentemente das situações
já adquiridas. Tal é, pelo menos, a orientação geral que podemos entrever. Mestre
de uma pequena escola que se propunha formar homens de bem, Confúcio (datas
tradicionais: 551-479) liga uma grande importância aos exercícios de celebração
ritual, princípio de um aperfeiçoamento individual que permite o domínio dos
gestos, das ações e dos sentimentos. A sua moral, que é fruto de uma reflexão
permanente sobre os homens, desconhece qualquer imperativo abstrato. É prática
e ativa, e o mestre tanto atenta em cada circunstância particular como no caráter
próprio de cada um dos seus discípulos. Assim, as qualidades que fazem o
homem perfeito, e em particular o ren, que podemos definir como uma disposição
de espírito afetuosa e indulgente, não podem ser definidas de uma vez para
sempre, mas, pelo contrário, são objeto de aproximações sucessivas, consoante
os casos e os indivíduos. A sabedoria só pode ser adquirida como conseqüência
de um esforço de todos os momentos e de toda uma vida, orientado para o
controle dos mínimos pormenores do comportamento, para a observação das
regras de vida em sociedade (yi), para respeito do próximo e de si mesmo, para o
sentido da reciprocidade (shu). O que o mestre tem em vista não é uma ciência
abstrata do homem, mas sim uma arte de viver que abrange a psicologia, a moral
e a política. A virtude é fruto de um esforço pessoal e não mais uma qualidade
intrínseca das linhagens nobres. Ao espírito de competição que anima a alta
nobreza da sua época, Confúcio opõe a probidade, a confiança e o bom
entendimento que lhe parecem ter regulado outrora as relações humanas.
Identifica cultura pessoal e bem público.
Assim surgem as idéias novas de um ensino que. antes de mais, queria ser fiel à
tradição. Serão desenvolvidas e tomarão novas significações, num outro contexto
histórico, com Mengzi (Mêncio), que viveu na segunda metade do século IV, e
Xunzi (por volta de 298-235). A razão da glória que o mestre conheceria durante o
período Han, ainda maior a partir da época dos Song (séculos X a XII), está no
contributo teórico e doutrinal que posteriormente veio enriquecer o conjunto das
suas idéias.
Sessenta anos depois de Confúcio, surgia Mozi (por volta de 480-390) como
mestre de uma seita de pequenos fidalgos (shi) que, contrariamente à humilde
escola de Confúcio, iria ter um enorme êxito nos séculos IV e III. Emocionado
pelos conflitos da sua época, hostil ao espírito de clã cujos efeitos desastrosos são
cada vez mais sensíveis, Mozi procura criar uma nova sociedade igualitarista,
fundamentada no sentido do auxílio mútuo e do devotamento ao bem comum
(jianli). Condena o espírito de lucro, o luxo, a acumulação das riquezas, o
desenvolvimento do poderio militar, a guerra que, segundo ele, no passa de uma
forma de pilhagem, e propõe como remédios para os males da sua época, um
ideal de frugalidade universal, uma regulamentação uniforme das despesas, um
respeito rigoroso das leis e a crença nos deuses e nos espíritos. Crendo que o
egoísmo familiar é a causa principal das querelas e dos conflitos, preconiza um
altruísmo generalizado (jian’ ai). Os seus adeptos, animados de uma fé sectária,
vivem na miséria e intervêm no sentido de evitar as guerras e defender pelas
armas cidades injustamente atacadas (fato curioso, o de serem estes pacifistas
convictos quem dão as informações mais precisas sobre a arte militar da época
dos Reinos Guerreiros). A obra atribuída a Mozi é formada, na sua maior parte, por
sermões moralizantes cujos temas eram sem dúvida objeto de prédicas: “da
frugalidade”, “contra a agressão”, “a vontade do céu”, “da existência dos espíritos”,
“contra os letrados”, etc. Partidário de um poder autoritário que se apoiaria nos
pequenos fidalgos, Mozi desejaria que fosse imposto a todos uma espécie de
conformismo moral.
Esta estranha seita que parece ter feito numerosos adeptos no decurso dos dois
séculos que precederam a unificação imperial, não iria, no entanto deixar a sua
existência gravada na história do pensamento chinês. O seu contributo mais
notável refere-se à arte do discurso: Mozi e os seus discípulos cultivaram a
retórica com fins de pregação, contribuindo assim para um progresso no
encadeamento das idéias e para uma simplificação da frase. Propuseram-se
ilustrar os seus sermões com exemplos e ampliá-los usando a analogia.
Os teóricos do Estado
De todas as correntes de pensamento dos séculos IV e III sem dúvida que a mais
importante é a representada pelos pensadores posteriormente qualificados de
legistas (fajia). É, pelo menos, aquela que com mais eficácia contribuiu para as
transformações do Estado e da sociedade, nesse período. No entanto, a história
desta corrente é mal conhecida. O Shangzi, ou Shangjunshu, obra atribuída a
Shang Yang, autor das reformas de Qin nos meados do século IV, passa por ser
um documento falso, forjado vários séculos depois; uma obra compósita redigida
na época dos Reinos Guerreiros e atribuída a Guang Zhong, ministro do príncipe
Huan de Qi no século VII, levou os bibliógrafos da época dos Han a fazer desta
personagem semi- lendária o primeiro dos legistas; desconhece-se quem eram
Shen Buhai e Shen Dao, incluídos no grupo dos legistas do período Han, e cujas
concepções são mal conhecidas. Somente a obra do eminente pensador que foi
Han Fei, Fei de Han (280?-234), o Hanfeizei, parece ser autêntica na sua maior
parte. O pensamento legista aparece aí na sua forma mais elaborada, como
resultado de uma síntese e de uma reflexão que se aplicou a toda uma série de
experiências relativas ao governo e à organização do Estado. Estas experiências
interessam tanto à diplomacia, à guerra e à economia, como à administração e
respondem aos cuidados postos, sobretudo nos séculos V a III, no reforço do
poderio econômico e militar dos reinos. Mas o mérito dos legistas consiste em ter
compreendido que o poderio do Estado residia nas instituições políticas e sociais,
a sua originalidade é a de ter querido submeter o Estado e os seus súditos à
soberania da lei.
Segundo Han Fei, o que importa é que o príncipe seja a única fonte de
benfeitorias e de honras, de castigos e de penas. Se delega a menor parte que
seja do seu poder, corre o risco de criar rivais, que cedo tentarão usurpar-lhe esse
poder. Do mesmo modo, é necessário que as atribuições dos funcionários do
Estado sejam estritamente definidas e delimitadas para que não surja nenhum
conflito de alçada e para que os funcionários não se aproveitem da imprecisão dos
seus poderes para se arrogarem uma autoridade ilegítima. Mas, acima de tudo, o
que deve assegurar o funcionamento do Estado é a instituição de regras objetivas,
imperativas e gerais. Nas suas tendências filosóficas, a corrente representada
pelos legistas caracteriza-se por um constante intento de objetividade. Não só
deve a lei ser pública, conhecida por todos, não consentindo qualquer
interpretação divergente, mas também a sua própria aplicação deve ser
independente dos juízos incertos e variáveis dos homens. Medir os méritos
conquistados na guerra, calcular o grau de bravura pelo número de cabeças
cortadas ao inimigo, pode parecer um processo um pouco fruste, mas no entanto
tem a vantagem de eliminar qualquer discussão sobre questões que, na ausência
de um critério objetivo de medida, estariam unicamente dependentes da opinião.
Todo o espírito do direito chinês ficará marcado pela orientação inicial que o
legismo lhe deu. O papel do juiz, chefe administrativo, não é pesar os prós e os
contras, ou apreciar no tribunal da sua própria consciência e aplicar as penas de
modo arbitrário, mas sim definir corretamente o delito. O seu trabalho limita-se a
isto, porque esta definição conduz automaticamente à sanção correspondente
prevista pelo Código. Na administração, a execução rigorosa das ordens deve ser
assegurada pelo recurso à escrituração (relatórios de gestão, inventários, resumos
diários), aos cálculos e ao uso de provas objetivas (selos ou insígnias partidos em
duas partes, cujo encontro é suficiente para revelar a sua autenticidade, devido à
coincidência dos sinais). O valor das instituições e dos funcionários do Estado
deve ser julgado pelo seu rendimento efetivo (gongyong).
O problema da escolha dos homens, muito importante para os moralistas
partidários de um governo inspirado pelo exercício da virtude, não tem importância
para os legistas. O príncipe não precisa de homens de exceção e não corre
quaisquer riscos: qualquer um lhe serve porque os mecanismos montados devem
assegurar necessariamente o bom funcionamento do Estado e da sociedade. As
qualidades morais são inúteis e até perniciosas pois podem levar o Estado à ruína
dando aos homens virtuosos um poder que põe em perigo a soberania do príncipe
e da lei. Tal como o proclama o Shangzi, que a despeito da sua data tardia
continua fiel à tradição legista dos séculos IV e III a.C., a política nada tem a ver
com a moral. Ela é unicamente o conjunto dos meios positivos e dos estratagemas
que asseguram e mantém a predominância do Estado.
As disposições legislativas, além de terem como objetivo reformar de maneira
radical a organização política, visam também uma remodelação de toda a
sociedade. A instituição de uma escala de delitos e de uma escala de graus
honoríficos, que formam um conjunto indissociável, iria conduzir à criação de uma
hierarquia social contínua, que em qualquer momento pode ser revista, e que
orienta toda a atividade dos súditos e os põe ao serviço do Estado, favorecendo
aqueles cujas atividades são consideradas úteis (guerreiros e produtores de
cereais) e penalizando os outros (vagabundos, parasitas, fabricantes de objetos
de luxo, polemistas e filósofos). As condições históricas – evolução dos exércitos
aos quais o campesinato acabaria por fornecer a maioria dos combatentes;
necessidade de reservas suficientes para efetuar campanhas muito duradouras –
levaram a que se desse uma prioridade absoluta à produção agrícola. A agricultura
é então considerada como a fonte (ben: a raiz ou o tronco) de todo o poderio
econômico e militar, por oposição às atividades secundárias e acessórias (os
ramos, mo), artesanato e comércio, cujo desenvolvimento desordenado pode
conduzir ao enfraquecimento e ruína do Estado. É indispensável pôr um freio a
todas as atividades que desviam a população das suas tarefas essenciais, lutar
contra os especuladores, controlar o preço dos artigos de primeira necessidade
bem como a moeda. Desde os séculos IV e III assiste-se ao nascimento de uma
economia política que, no mundo chinês, conheceu um grande e precoce
desenvolvimento.
Embora o príncipe seja a única fonte das sanções e das honras que determinam a
hierarquia social, isso não implica que possa dispor desse poder ao sabor da sua
fantasia. O seu poder limita-se a criar instituições e critérios objetivos conhecidos
por todos. A sua imparcialidade é total, semelhante à da ordem natural, e, neste
ponto, é muito notória a influência dos taoístas e de Han Fei.
Outras influências atuaram na formação do legismo. Antes mesmo que se
afirmasse uma teoria do Estado baseada na autoridade do príncipe e da lei,
aqueles que desejavam triunfar nas relações diplomáticas procuravam tirar partido
das ocasiões e situações favoráveis (shi), servindo-se de processos mantidos
secretos (shu). Esta concepção da ação polida fundamentada na idéia de tempos
e espaços concretos e singulares parece ter sido a primeira que se impôs quando
os chefes dos reinos quiseram tirar partido das transformações da sociedade
nobre para se libertarem das grandes famílias aristocráticas e tentarem alcançar a
hegemonia. É aos legistas que se deve, além do conjunto de leis destinadas a
assegurar o funcionamento do Estado e a organização geral da sociedade, esta
noção de processos e estratagemas secretos, e por isso o príncipe deve-lhes uma
parte do seu poder pessoal.
Por fim, a mentalidade dos grandes e ativos mercadores, alguns dos quais
serviram de conselheiros aos chefes dos reinos do século V ao III (Fan Li em Yue,
cerca do ano 500, um dos primeiros a preconizar o enriquecimento do Estado e o
fortalecimento dos exércitos, fuguo qiangbing; Bai Gui em Wei no século IV; e Lü
Buwei conselheiro do príncipe de Qin no fim do século III), influenciou também a
formação do legismo. O recurso a cálculos e a processos objetivos de prova, a
própria idéia dos estratagemas secretos são comuns a legistas e a mercadores.
O que, das concepções dos legistas, mais impressionou os seus contemporâneos
e os homens da época dos Han, foi a igualdade perante a lei que propunham
impor a todos. Eles não distinguem, escreveu Sima Tan no século II a.C., os
próximos dos estranhos, não diferenciam os nobres dos vilãos e a todos julgam
pela lei, de modo que foram abolidas todas as relações baseadas na amizade e no
respeito. Mas, a despeito das transformações posteriores que o mundo chinês
sofreu, a contribuição dos legistas foi fundamental no domínio dos direito e da
organização política, social e administrativa. O legismo não deixou de inspirar o
pensamento político chinês até aos nossos dias.
Mêncio
Xunzi
A “Escola dos Letrados” (Rujia) teve sua origem nos ensinamentos de Confúcio e
seus discípulos. Confúcio (também chamado Kongqiu ou Zhongni – datas
tradicionais: -551 a -479) pretendeu regenerar, pelo ritual e pela moral, a
sociedade de sua época. Ele ligou-se aos meios tradicionalistas dos escribas e
analistas das cortes feudais. Sua origem era nobre, pois aparentava-se aos reis da
dinastia Shang- Yin (-1557 a -1050). A doutrina que pregou dava grande
importância aos exercícios de atitude ritual, bases de um aperfeiçoamento
individual capaz de permitir o controle absoluto dos gestos, das ações e dos
sentimentos. A moral confuciana é fruto de uma reflexão permanente sobre os
homens. Ela é pratica e dinâmica e as qualidades de um homem realizado (a
primeira delas, a virtude “ren”, que supõe uma disposição afetuosa em relação ao
próximo) não se definem de modo absolutamente igual para todos, mas admitem
uma grande maleabilidade, segundo o caso e o indivíduo. A sabedoria adquire-se
pelo esforço de toda uma vida, através do governo dos mínimos pormenores da
conduta, pela observação das regras de agir em sociedade (li), pelo respeito ao
próximo – enfim, pela absoluta compreensão do princípio da reciprocidade. A
virtude é um valor incorporado e não uma qualidade intrínseca do nascimento
nobre, embora o desejo de Confúcio fosse o retorno a uma idealizada “Idade de
Ouro” feudal dos primeiros reis Zhou, pessoas perfeitas, Wenwang e Wuwang. A
tradição, entretanto, deveria ser redimida através do revivescimento e não pela
estagnação. Confúcio nada escreveu. Seu ensinamento foi oral e imediato. O que
dele temos de mais diretamente oriundo é uma coletânea de máximas ou
aforismos, registrados por escrito pelos discípulos após sua morte: o “Lunyu”, que
poderíamos traduzir por “Conversações” ou “Analectos”. Em sua escola, Confúcio
teria utilizado um certo número de obras antigas e tradicionais, que conhecemos
hoje sob a denominação genérica de “Jing” (Clássicos ou Cânones),
principalmente o “Yijing” (Yi Ching) (Clássico das Mutações), o “Shujing” (Clássico
ou Anais da História), o “Shijing” (Clássico das Poesias ou “Livro das Odes”),
“Chunqiu” (Anais do Estado de Lu, pátria de Confúcio), o “Cânon dos Ritos” (Li),
do qual temos três coletâneas (Zhouli, Yili, Liji), todas posteriores a Confúcio, e o
“Cânon da Música” (Yue), muito fragmentário em nossos dias. As recensões de
todos esses “Clássicos” são de época tardia e serão tratadas em outro capítulo.
Na escola de Confúcio dava-se importância a discursos de antigos reis, a hinos
religiosos e a poemas da corte, a manuais de adivinhação e a anais dos remos.
Dessa miscelânea de escritos veneráveis, procurava-se extrair o Saber Total,
suficiente formação de um “Junzi” – cavalheiro ou homem de bem. À guerra não
se atribuía valor maior. Na verdade, procurava-se mesmo opor ao espírito de
competição e combate, típicos da época, a virtude da probidade e da mútua
tolerância, que Confúcio julgava características dos tempos antigos. A Antigüidade
igualava-se à “Era Perfeita”, a qual cabia tomar por modelo. Confúcio não
pretendeu inovar. Desejava apenas conservar as tradições do passado. Todos os
chamados “Clássicos” já existiam antes de sua época e ele foi o defensor de uma
herança cultural que havia sido o fundamento da educação aristocrática dos
primeiros séculos dos Zhou. Ele transmitiu tal patrimônio; fazendo-o, originou,
porém, algo novo, pois dava suas próprias interpretações aos textos. Assim,
quando declarou, segundo o “Lunyu”, “Sou um transmissor, não um criador” (“Shu
er bu zao”), na verdade não estava atingindo o alcance que teria a própria obra. A
doutrina de Confúcio estabeleceu os princípios filosóficos básicos da civilização
chinesa até o século XX, delimitou a fronteira entre chineses e “não- chineses” (ou
“bárbaros”), cimentou os parâmetros da Cultura e isolou-a da Ignorância. Ser
civilizado (Isto é, ser chinês), eqüivalia a seguir os Ritos (Li). A China não media os
valores através de leis, nem aceitou dogmas religiosos. Eram os Ritos que
marcavam a linha divisória entre o superior e o inferior, entre o certo e o errado, e
dirigiam a vontade e a liberdade, que não deviam manifestar-se a não ser através
de convenções. As emoções eram naturalmente regradas e os sentimentos, uma
vez condicionados a formas petrificadas, podiam ser expressos de uma maneira
purificada e adequados à verdadeira natureza humana. A dignidade era tudo e os
Ritos, uma Linguagem que deveria ser usada para o equilíbrio social. Através
deles, os homens poderiam viver em harmonia com a ORDEM NATURAL.
Voltamos aqui à questão, tantas vezes mencionada neste livro, da conformidade
entre macrocosmo e microcosmo, obsessão da China, fundamento de sua
estrutura cultural e, talvez, o segredo de sua extraordinária sobrevivência e
vitalidade. O ideograma para “Rei” bem o consigna (1): três traços horizontais
paralelos, cortados por um vertical – o Céu, o Homem e a Terra, Intermediados
pelo Soberano (representado pelo único traço vertical). O Rei liga o Céu à Terra,
passando pelo Homem, o menor dos três traços horizontais. Confúcio considerava
duas virtudes como básicas em todo indivíduo: em primeiro lugar, a virtude “ren”,
que poderíamos traduzir pela palavra “benevolência”, tomada no sentido primitivo,
isto é, “querer bem” (ao próximo). O Ideograma para “ren”, vocábulo, aliás,
homófono de “pessoa”, consiste no radical “homem” ao lado do número “dois” —
um homem ao lado de seu próximo. Trata-se da Virtude, por excelência, do
confucionismo, que leva à prática do amor ao semelhante. No “Lunyu” (XII, 22),
Fan Chi, um discípulo, perguntou a Confúcio sobre a virtude “Ren”. A resposta foi
a seguinte: “Ai ren” (“É amar as pessoas”). E como amá-las? O “Lunyu” explica: “Ji
suo bu yu, wu shi yu ren” (“O que não se deseje para si não deve ser feito aos
outros”), frase que naturalmente se prestou a uma certa identificação do
confucionismo com o cristianismo e muito perturbou os missionários ocidentais
cristãos na China do século XIX e da primeira metade do XX, pois era difícil atacar
um “paganismo” que professava a mesma crença de uma religião que se dizia
única e verdadeira ... Assim, um homem que possua a virtude “Ren” deve sempre
considerar os outros e de si mesmo fazer um paralelo para tratar o próximo. Desse
modo, estará imbuído de uma “consciência em relação aos semelhantes” (Zhong)
e de “altruísmo” (Shu).
A segunda virtude fundamental chama-se “Yi”, que é costume traduzir por
“Justiça”, mas seria melhor dizer “Imperativo da Retidão de Conduta”. Certas
coisas devem ser feitas, na sociedade humana, porque são moralmente certas e é
necessário que cada um procure agir de acordo com um dever natural. Isso
unicamente porque é correto agir de tal ou tal maneira e não de outra. Rejeita-se a
idéia de lucro ou retribuição. A pessoa de retidão moral não pede recompensas
por seguir uma conduta correta. No “Lunyu” (IV, 16), Confúcio diz: “Junzi yu yu yi,
xiao ren yu yu li” (“O Homem Superior – Junzi – compreende a Retidão de
Conduta (Yi); o homem inferior compreende o lucro (Li)”). O cultivo da virtude Yi é,
pois, um imperativo para o Junzi (Homem Superior) e assim o é pela exclusiva
razão de enquadrar-se numa moral que harmoniza macrocosmo e microcosmo.
Por outro lado, o confucionismo é uma doutrina fatalista. A conduta deve ser reta e
a vida em sociedade, governada pelos Ritos, mas isso sem qualquer intenção de
mudar o Destino (Ming), que é decretado pelo Céu, concebido esse na doutrina
original como uma força dotada de razão, um agente com objetivos próprios e
definidos. Confúcio foi um céptico e um agnóstico e recusava-se a tratar de
prodígios e espíritos, mas invocava com freqüência o Céu, como Juiz Supremo,
embora pessoalmente parecesse considerá-lo menos como uma divindade
pessoal e mais como uma força abstrata, “regente natural da Ordem Cósmica”,
conceito que, por obra dos confucionistas posteriores, iria evoluir para o de um
“regulador mecânico dos fenômenos do Universo”. Conhecer o Destino (Ming) é
reconhecer a inevitabilidade do mundo tal como ele existe e, assim, não dar
qualquer importância ao sucesso ou à derrota pessoais. O Homem Superior
cumpre seu dever social, eis tudo; querer mudar o Destino, por magia ou qualquer
outro meio, é vulgar e vão. Como escreveu Max Kaltenmark, o confucionismo
considera que o “Destino limita certamente o poder do homem, mas esse possui
um domínio independente do mundo exterior: o de seu livre arbítrio, potencial da
prática da virtude “ren”. O Sábio é aquele que reconhece a divisão entre essas
duas esferas”. O “Lunyu” (VII, 36) diz: “Junzi tan tang tang, xiao ren chang qi qi” (O
Homem Superior (Junzi) está imutavelmente em paz; o homem inferior (Xiaoren:
pessoa menor) está sempre em agonia”. O sucesso ou a ruína individuais não
interessam o Junzi, pois portar-se como deve o ser humano é o bastante e o
resultado é a felicidade, identificada sempre com uma Vitória interior.
A sociedade da época de Confúcio encontrava-se em transição. O feudalismo
desmoronava, mas nenhuma outra ordem sólida o havia ainda substituído.
Usurpadores chamavam-se reis e perturbavam, assim, a correspondência entre o
nome dado a um fato e a realidade desse fato. É preciso não esquecer, como já
registramos, ser o chinês um idioma em que as palavras pretendem suscitar o
real; cada nome contém certas implicações que o ligam à essência de algo
determinado. Chamar de rei a um usurpador é tentar criar uma falsa realidade,
que desequilibra a Ordem Natural das coisas do universo. O objetivo principal da
filosofia na China é justamente Impedir toda discrepância entre o que o homem faz
e as leis imutáveis da Verdade. Um exemplo concreto da importância dada por
Confúcio à “retificação dos nomes” (Zheng Ming) encontra-se no “Lunyu” (XIII, 3).
Um discípulo de Confúcio, Zilu, fora empregado pelo Duque Chu do Estado de
Wei, que desejava também obter os serviços do próprio Confúcio. Zilu perguntou a
Confúcio qual seria a primeira providência a ser tomada na administração de Wei.
Ora, o Duque de Chu havia passado à frente de seu pai no Governo de Wei,
rompendo a subordinação que o descendente deve ter diante do progenitor.
Assim, a relação pai- filho estava em desequilíbrio e os nomes, mal dados, pois
um pai eqüivale, de direito, ao soberano, que era, de fato, o filho. Confúcio
respondeu: “O que é necessário é retificar os nomes” (Zheng Ming). E
acrescentou: “Se os nomes não estão corretos (bu zheng), nada poderá
funcionar”.
O desenvolvimento do Confucionismo
Mengzi (Mêncio) e o problema da natureza humana
Confúcio foi considerado pela China como o “Sábio Completo”, o “Primeiro Mestre
que atingiu a Santidade” (Zhi Sheng Xian Shi). Mengzi (Mêncio) (-371? a -289?) foi
o “Segundo Santo” (Yasheng), a quem coube o mérito de desenvolver as idéias
básicas do confucionismo. Após a morte de Confúcio, a doutrina manteve-se
sobretudo nos limites geográficos da atual província de Shandong, nos Estados de
Qi e Lu. Mengzi nasceu no Estado de Zou, situado na parte meridional do
Shandong moderno. Os reis de Qi tornaram-se mecenas e, perto da porta
ocidental de sua Capital, estabeleceram um centro de estudos a que deram o
nome de Jixia (“Sob a Porta de Ji”). Mengzi ensinou na instituição durante algum
tempo, mas empreendeu depois viagens a outros Estados feudais, tentando
converter governantes. O ensinamento de Mengzi está contido em sete livros. A
obra tornou-se mais tarde um dos “Quatro Clássicos” (Sishu) sagrados do
confucionismo. Mengzi representa o lado idealístico do confucionismo, em
contraste com Xunzi, realista, como veremos além.
Confúcio pregava a conduta humana baseada nas virtudes máximas, “ren”
(benevolência, amor ao próximo) e “yi” (retidão imperativa da conduta), mas não
deixou muito claro o porquê dessa obrigação. Mengzi completou-o, argumentando
que as virtudes “ren” e “yi” e, consequentemente, os Ritos, que levam à prática
dessas virtudes, se fundamentam no fato de ser a natureza humana
essencialmente boa. Mengzi entretanto, não foi um ingênuo. Ele reconhecia que,
embora a natureza humana fosse originalmente boa, nem todo homem poderia
tornar-se um Sábio, em virtude da coexistência, ao lado da pureza essencial, de
outros elementos, os quais não são bons nem maus, mas, se não governados,
podem mostrar-se nocivos. Seriam elementos que o homem compartilha com
outros seres vivos, uma espécie de “parte animal” da existência humana. Portanto,
estritamente falando, são aspectos animalescos e, na verdade, não poderiam ser
vistos como integrantes da natureza humana específica. O argumento principal de
Mengzi em favor do fundamento bom do homem está consignado no Livro II, parte
1, capítulo VI, da obra do filósofo. Segundo ele, todos os homens têm
basicamente um coração que não suportaria ver o sofrimento alheio (Ren jie you
bu ren ren zhi xin). Prova-o o fato: diante de uma criança que vá cair num poço,
qualquer pessoa se sentirá alarmada e ansiosa. Tal sentimento, segundo Mengzi,
não será devido a uma eventual recompensa que poderia ser oferecida pelos pais
da criança, nem a um possível elogio de vizinhos ou amigos, nem a outro fator
ligado a um interesse qualquer. O que leva alguém ao sentimento de alarme e
ânsia, nesse caso, é unicamente a comiseração pelo próximo, emoção que
pertence à essência da natureza humana e se mostra instintiva no momento do
iminente afogamento de uma criança. Um ser incapaz de piedade não é humano
(fei ren). A compaixão identifica-se, de acordo com o filósofo, com a virtude da
Benevolência (Ren), pregada por Confúcio. Paralelamente, a capacidade de
envergonhar-se e o livre arbítrio são expressões da virtude “Yi” (Retidão
Imperativa de conduta); o altruísmo e a renúncia são as bases dos Ritos (Li), a
possibilidade de distinguir entre o Bem e o Mal é o começo da Sabedoria (Zhi).
Todo homem possui inatas essas quatro qualidades (Ren, Yi, Li, Zhi), assim como
possui dois braços e duas pernas; é necessário apenas que as aperfeiçoe sem
obscurecer-lhes o desenvolvimento. O progresso no cultivo dessas virtudes é
indispensável, a fim de que o homem não possa dar vazão a instintos baixos e se
diferencie dos animais. O que desses separa o ser humano é, reconhece-o
Mengzi, apenas um nada” (Ji Xi), uma partícula insignificante que a massa do
povo rejeita, mas o Homem Superior conserva.
Mengzi foi igualmente um reformador político, extraordinariamente esclarecido
para uma época tão remota. Acreditava que o Governo deveria ser
responsabilidade dos Sábios e, para ele, a sucessão dinástica era errada. Um
Sábio, tornando-se Rei (Wang), deveria transferir o seu mandato a outro Sábio, a
exemplo do que fizeram os primeiros soberanos chineses, Yao e Shun. Para
Mengzi, havia dois tipos de Governo: o do Rei-Sábio (Wang), que se exerce
através da instrução moral e da educação, e o do Senhor-da-Guerra (Ba),
baseado na força e na coerção. O poder do “Wang” é moral; o do “Ba”, físico. No
Livro III, capitulo 3, lemos: “Quem usa da violência em lugar da virtude é um
Senhor-da-Guerra (Ba); quem tem qualidades e pratica a Benevolência (amor ao
próximo – Ren) é um Soberano (Wang). Quando os homens são dominados pela
repressão, haverá, enquanto o povo não tiver poder suficiente para resistir à,
tirania, a aparente submissão exterior, mas não a dos corações. Mas, quando se
ganham seguidores pela Virtude, eles estão intimamente satisfeitos e haverá
submissão real, como a dos setenta discípulos a Confúcio”. O germe da
democracia é evidente na seguinte citação do Livro III, parte 2, capitulo 27: “O
povo é o tesouro máximo; os deuses da terra e da colheita vêm em seguida e o
soberano é o menos importante de todos. Assim, satisfazer aos camponeses é
tornar-se rei”. Segue-se que, se um soberano não possui as qualidades morais
para governar, cabe ao povo revoltar-se e substituí-lo. Nesse caso, eliminar um
monarca não é um ato regicida, pois ele, na verdade, deixou sua condição de
dirigente e tornou-se “um simples homem”... Tais idéias de Mengzi fascinaram a
China durante perto de dois mil anos e mesmo a Revolução republicana de 1911
sofreu suas influências. É bem verdade que Mengzi, acreditando na desigualdade
de inteligências, assumiu uma atitude paternalista em relação ao povo. O que
advogava, entretanto, não era o governo por uma aristocracia de sangue, mas por
uma fidalguia de espírito. Justificava-se, por outro lado, existirem classes sociais,
porque “alguns trabalham com o espírito; outros, com os músculos”...
Mengzi foi igualmente um teórico da economia. No Livro III, parte 1, capitulo 3, há
a defesa de um sistema de distribuição comunitária de terras com o objetivo do
aumento e equilíbrio da produção agrícola. O método chama-se de “campo- poço”
(Jingtian). Segundo ele, cada “Li” quadrado (“Li” é medida equivalente ao terço de
milha) de terra deveria ser dividido em nove quadrados, cada um consistindo em
cem acres chineses (um acre (mou) – medida de cem passos). O quadrado
central era o “campo público” e os oito restantes, os “campos particulares” de oito
famílias de lavradores. O “campo público” era cultivado coletivamente e parte de
sua produção cabia ao Governo. Cada família plantava em seu quadrado e
guardava o produto do mesmo. O arranjo em quadrados lembra o ideograma
“Jing” (1) (poço). O poço ficava no quadrado central e era de uso comum. O
sistema não foi propriamente criado por Mengzi, uma vez que ele próprio
menciona métodos semelhantes de cultivo de terra durante as dinastias Xia e
Shang- Yin. O que diferia era a parte da lavoura do campo central dada ao
Governo. Durante os Zhou, entregava-se um décimo (shi yi) da produção total e
assim pareceu justo a Mengzi.
Mengzi batia-se por um modo de Governo em que o Sábio ocupasse o ápice da
pirâmide hierárquica. Os letrados seriam os censores do soberano e controlariam
o despotismo. Por outro lado, Mengzi não abriu mão do caráter absoluto da
hierarquia familiar: a piedade filial (xiao) era para ele a base das “cinco relações
humanas” – aquelas entre pai e filhos, soberano e ministros, marido e mulher,
irmãos mais velhos e irmãos mais moços e amigos mais idosos e menos idosos.
Mengzi reconhecia que sua doutrina representava apenas um primeiro degrau de
aprimoramento da sociedade. Quando, “sem estar insatisfeito (com o Governo), o
povo puder alimentar-se e também chorar seus mortos” (isto é, ocupar-se da
rotina da vida sem abrigar razões de revolta), estaria a comunidade humana no
começo do que o filósofo chamou de o “Caminho Real” (Wang Dao). Mas só no
inicio desse “Caminho”, pois unicamente se atingiria a meta final da excelência,
quando o desenvolvimento geral da educação possibilitasse que as pessoas, num
plano superior de compreensão, seguissem, consciente e voluntariamente, as
regras do mútuo respeito humano.
A procura do equilíbrio como resultado da equação Homem + Universo, grande
constante nas buscas empreendidas pela Filosofia chinesa, revela-se na
afirmação de Mengzi de que era um “Cidadão do Céu” (Tianmin). Igualou-se,
assim, aos Sábios da Antigüidade, dos quais se dizia que, prezando uma conduta
harmônica com a Ordem Natural do mundo, tinham, por acréscimo, conquistado a
posição de “nobres entre os homens” (Xiu qi tian jue er ren jue cong zhi) (Livro VI,
1, 17). Para Mengzí, unicamente se o homem procurasse alcançar os valores
morais superiores (as virtudes Ren, Yi, Zhong (Lealdade) e Xin (Confiança)) e se
tornasse, por isso, um “Cidadão do Céu” (Céu = Ordem Natural), seriam
justificados os “valores da Terra” (posição, honra, riqueza...).
O grande rival de Confúcio e de sua escola foi o filósofo Modi (-480 a 390-),
fundador da Escola Moísta, cujas idéias se encontram registradas no “Mozi”,
coletânea heterogênea de 53 capítulos de autoria do próprio fundador e de seus
discípulos. Acredita-se que Modi fosse originário do Estado de Lu, pátria de
Confúcio, mas o Estado de Song (atuais Henan oriental e Shandong ocidental)
tem sido também indicado, por alguns autores, como o local de seu nascimento.
Geograficamente pertenceu à região de Confúcio e a herança literária que
recebeu foram os mesmos textos da antigüidade inspiradores do “Primeiro
Mestre”. Entretanto, acredita-se que as classes sociais dos dois filósofos fossem
diferentes. Reside aí, talvez, a explicação da profunda divergência entre os dois.
Confúcio era um aristocrata e simpático às instituições tradicionais, ao cerimonial
e à música. Tal legado de um passado nobre, ele racionalizou-o e justificou-o em
termos éticos. Modi, oriundo de um meio social de especialistas militares (segundo
Feng Youlan), classe conhecida pelo nome de “Xia” (“cavaleiros- andantes”), não
se sentiu ligado às tradições da nobreza; criticou-as por impróprias à época e
tentou substitui-las por um sistema mais utilitário e simples.
Modi atacou principalmente as concepções confucianas das virtudes “ren” e “yi”. A
virtude “ren” confuciana define-se como benevolência em relação ao ser humano,
mas a virtude “yi” é um imperativo da retidão de conduta que, na verdade,
discrimina entre os homens: a insistência confuciana na importância das “cinco
relações sociais” básicas (2) fazem com que o “amor ao próximo” se dirija
primordialmente àquela porção da sociedade ligada de maneira mais direta a cada
um de nós. Em outras palavras, devemos amar mais aos nossos pais do que aos
pais de nosso próximo, mais a nossos irmãos de sangue do que aos irmãos do
próximo, à nossa pátria mais do que aos outros países e assim por diante. Modi
via nessa tese uma limitação do amor, um sentimento de circunstâncias e,
portanto, discriminatório entre as pessoas no seu todo. Modi defendia, em
contrário, o “amor universal” (Jian ’ai), que não distingue entre as pessoas a quem
seria imperativo amar acima das outras em virtude de exigências de classe ou de
família. Em seu altruísmo generalizado, contraposto ao egoísmo familiar de
Confúcio, Modi dizia que um homem deveria considerar o seu semelhante como
absolutamente igual a si mesmo. O modelo de conduta deveria ser: “o que é
benéfico para todos seria o valor máximo a prezar”. Assim, inexestiriam as
guerras, pois o sofrimento do mundo origina-se no desejo dos fortes de
dominarem os fracos, na tendência da maioria de subjugar a minoria. O “amor
discriminatório” do confucionismo eqüivalia a uma calamidade e deveria substituir-
se pelo universalismo do amor.
A tese do “Amor Universal” (Jian ’ai) acompanhava-se de um igualitarismo
baseado na ajuda mútua e na devoção ao bem comum (jianli). Condenava-se o
espírito do luxo, o lucro, a acumulação de riquezas e o desenvolvimento do
poderio militar, pois, segundo Modi, um guerreiro e um assassino são idênticos.
Essa última teoria parece estranha no seio de uma doutrina oriunda, a que tudo
indica, de um contexto de especialistas de táticas militares. Entretanto, embora o
“Mozi”, obra fundamental da Escola, contenha nove capítulos sobre a arte bélica, o
que se desejava justificar era apenas a guerra defensiva e a construção de
aparatos para a proteção das muralhas das cidades. Exímios peritos militares, os
moístas foram, porém, pacifistas convictos, que só empregavam seus
conhecimentos no socorro às cidades ameaçadas e nunca em operações
agressivas. Feng Youlan acredita que, sendo uma filosofia das classes menos
abastadas e socialmente inferiores, o moismo foi mais crédulo no campo religioso
do que o confucionismo, doutrina de gente de melhor educação, cuja capacidade
de fé, na China de então como no mundo de hoje, têm sido sempre menor do que
a da plebe. Assim é que Modi considerava os confucionistas como ateus.
Realmente, Confúcio parecia não importar-se muito com os deuses e os espíritos.
Se era favorável ao culto dos ancestrais, suas razões foram muito mais ligadas a
um sentimento de respeito pelos parentes mortos do que a crenças religiosas. Um
discípulo de Confúcio perguntou-lhe: “O que é a Sabedoria?” Ele respondeu: “wu
min zhi yi, jing gui shen er yuan zhi” “Esforçar-se em ter uma conduta que sirva à
humanidade e, embora se respeitem os espíritos e os deuses, afastar-se deles”
(Lunyu VI, 20). Quando Confúcio estava muito doente, um dos discípulos
perguntou-lhe se desejava preces. Confúcio indagou: “You zhu?” (“Existirão
elas?”). O discípulo respondeu: “Existem”. No “Livro dos Louvores” (3) está escrito:
“Haverá rezas por ti aos espíritos do Céu e da Terra”. Confúcio acrescentou: “Há
longo tempo que faço minha oração”.(Lunyu VII, 34). Com tal afirmação, desejava,
significar que um homem digno, esforçado no cumprimento de seus deveres
unicamente humanos, já exprime, agindo dessa maneira, a única prece racional e
válida. O moismo considerou essa tendência de Confúcio para o racionalismo
como herética, pois Modi acreditava sem reservas numa divindade suprema, o
Céu ou Senhor do Alto (Shangdi) e nos espíritos. A crença estava, na verdade,
mais de acordo com a tradição chinesa primitiva do que o pensamento ateizante
confuciano e Modi procurou justificá-la principalmente com base no consenso
universal. O Céu seria um ente pessoal, onisciente e juiz onipotente das ações do
homem. O Céu cobre o mundo de benefícios e sendo, portanto, uma entidade do
Bem, deseja o amor entre os homens e não o ódio. Assim, a doutrina do Amor
Universal (Jian ’ai) é favorecida pelo Céu. O homem, entretanto, possui um total
livre arbítrio quanto a seus atos e escolhe seu próprio destino. O Céu e os demais
espíritos apenas recompensam os bons e punem os maus. A sanção é, pois, o
que deve compelir a humanidade a seguir o caminho do Bem (= Amor Universal).
Além do lado religioso da sanção, Modi imaginou também o seu aspecto político.
Não bastava o medo sobrenatural de uma punição para obrigar o Amor Universal.
Era igualmente necessário que o Estado fosse absoluto, para garantir a sua
prática. Modi advogou a teoria de um Estado politicamente forte, em que o
Soberano fosse investido de autoridade total, cuja fonte de legitimidade seria a
vontade do Céu e do povo. Na alta antigüidade o povo teria escolhido a criação do
Estado absoluto, porque a desordem reinante na sociedade sem chefe dos
tempos primitivos era maléfica para a vida: quando o poder não se concentra nas
mãos de um só governante, o resultado é que cada homem se julga com o direito
de impor sua própria vontade e, consequentemente, há o império do caos. Assim,
o Estado absoluto seria resultado da vontade do povo. Favorece-o o Céu, porque
deseja o mesmo objetivo desse Estado: a implantação do domínio do Amor
Universal. Tal é a doutrina da Escola Modi, cujos adeptos tinham grande
organização e disciplina e estavam sempre armados para a defesa dos fracos, o
que deveria dar-lhes um ar de verdadeiros cavaleiros- andantes. Multo importante
foi a ênfase dada pelo moismo à argumentação correta; desenvolvida no sentido
de angariar partidários e que resultou num grande progresso da dialética na
China. Como Modi se houvesse interessado pela construção de engenhos para a
defesa militar das cidades, posteriormente esse aspecto do moismo foi
desenvolvido por outros pensadores e trouxe, em conseqüência, um novo
Interesse no campo das pesquisas técnicas.