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br 2016 • Ano 13 • nº 88

Exemplar do Assinante

A vez do A caminho do segundo


ano seguido de contração
econômica, o Brasil não
gasto tem escolha: precisa tomar
decisões para atingir, enfim,

público o crescimento sustentável.


A solução passa pelo debate
sobre a Previdência Social
eficiente e políticas públicas

Nos tempos do II PND Entrevista: Paulo Mendes da Rocha América do Sul


Lançado há quatro décadas, o II Plano Nacional O mais importante arquiteto brasileiro em atividade Região tem pouca complementaridade produtiva,
de Desenvolvimento definiu e completou a cadeia fala dos dilemas da arquitetura, da engenharia mas há potencial para maior integração, aponta
industrial brasileira. Mas é objeto de polêmica até hoje e dos atuais problemas urbanos do país uma pesquisa do Ipea em parceria com a Cepal
Carta ao leitor
O tema de capa desta edição intitula‑se “A vez do gasto público
PRESIDENTE Ernesto Lozardo eficiente”. A reportagem parte do pressuposto de que, ao vislumbrar em
http://www.Ipea.gov.br
2016 o segundo ano seguido de contração econômica na faixa dos 3%,
o Brasil deve empreender esforços para gastar com mais equilíbrio. O
ponto central da matéria é a Reforma da Previdência, tema que desperta
amplo interesse dos brasileiros – uma população cada vez mais idosa – e
que, em breve, passará por uma definição no Congresso. Com pesquisas
atuais e decisivas sobre o tema, o Ipea tem muito a contribuir para esse
www.desafios.Ipea.gov.br debate e para a avaliação e monitoramento de outras políticas públicas
que também são citadas na reportagem.
DIRETOR‑GERAL João Cláudio Garcia
CONSELHO EDITORIAL André Zuvanov, Antonio Lassance, Bárbara Marguti,
A entrevista principal é com Paulo Mendes da Rocha, o mais premiado
Claudio Amitrano, Elaine Marcial, Estêvão Bastos, Fabiano Pompermayer, Félix arquiteto brasileiro em atividade. Caudatário da chamada escola paulista,
Garcia Lopez, Guilherme de Oliveira Schmitz, Lucas Mation, Maria da Piedade, Mendes da Rocha denota grande preocupação com o contexto dos projetos
Marina Nery, Walter Desiderá
arquitetônicos que elaborou e implantou em sua carreira de mais de seis
REDAÇÃO décadas. Na conversa com Desafios do Desenvolvimento, ele destaca a
DIRETOR‑EXECUTIVO Francisco Alves de Amorim necessidade de se repensar o espaço público e os meios de transporte de
COORDENADOR DE PESQUISA Gilberto Maringoni
REPÓRTERES Carla Lisboa, Carol Arantes, Gilberto Maringoni
nossas grandes cidades.
FOTOGRAFIA João Viana, Shlo OO, Agência Brasil, Dollar Photo Club
A violência contra a mulher é tema que, nos últimos anos, ganhou
EDITOR DE ARTE/FINALIZAÇÃO Elton Mark
REVISÃO Carla Lisboa justa relevância na agenda nacional. Preconceito, prepotência e machismo
formam o caldo de cultura que expõe as mulheres a diversas ordens de
COLABORAÇÃO
Adriana Sandoval‑Moreno, Adriana Hernández‑García, Jean Marlo Pepino de constrangimento, por vezes fatais, tanto no plano doméstico como na vida
Paula, José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho, Juliano Medeiros, Rebecca Lima profissional e pública. Nos 10 anos da Lei Maria da Penha, uma reportagem
Albuquerque Maranhão
mostra que elas ainda enfrentam muitos obstáculos na tentativa de fazer
CARTAS PARA A REDAÇÃO valer seus direitos – como nos episódios de revitimização protagonizados
SBS Quadra 01, Bloco J, Edifício BNDES, sala 1517 por agentes públicos.
CEP 70076‑900 – Brasília, DF
desafios@Ipea.gov.br A pauta internacional traz a questão das incipientes cadeias produtivas
IMPRESSÃO Gráfica e Editora Qualidade
sul‑americanas. Uma pesquisa do Ipea, em parceria com a Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), revela que a região
tem um potencial quase inexplorado de complementaridade produtiva.
Na seção “História”, aproveite uma rara oportunidade, na imprensa
nacional, de entender o mais ousado projeto econômico e social já delineado
no Brasil, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), que vigorou
entre 1974 e 1979. Por meio de decididas e polêmicas intervenções estatais,
AS OPINIÕES EMITIDAS NESTA PUBLICAÇÃO SÃO DE EXCLUSIVA E o governo da época conseguiu completar a cadeia produtiva brasileira e
DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES, NÃO EXPRIMINDO,
NECESSARIAMENTE, O PONTO DE VISTA DO INSTITUTO DE PESQUISA
modernizar a indústria aqui instalada.
ECONÔMICA APLICADA (Ipea), OU DO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO,
O Perfil desta edição foca o ex‑deputado Ulysses Guimarães, que
ORÇAMENTO E GESTÃO.
completaria 100 anos em outubro. Personalidade de primeira grandeza na
É PERMITIDA A REPRODUÇÃO DA REVISTA,
DESDE QUE CITADA A FONTE luta contra a ditadura, sua trajetória conheceu ponto alto quando dirigiu
DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO (ISSN 1806‑9363) É UMA PUBLICAÇÃO
os trabalhos da Constituinte de 1988, que resultaram na mais avançada
DO IPEA PRODUZIDA PELO INSTITUTO BRASILEIRO DE ADMINISTRAÇÃO e democrática Carta Magna que já tivemos.
PÚBLICA – IBAP, EM COLABORAÇÃO COM TÉCNICOS DO IPEA
A edição se completa com reportagem sobre uma experiência
bem‑sucedida de coleta de resíduos sólidos no Rio Grande do Sul, nossas
tradicionais seções e vários artigos de opinião.

IBAP
INSTITUTO BRASILEIRO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
INSTITUTO BRASILEIRO DE
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Esperamos que você tenha uma excelente leitura!

SEDE: SCLN 104 – Bloco D – Sala 104 – Cep: 70.733‑540 – Brasília‑DF João Cláudio Garcia,
Telefax.: (61) 3201 6018 – 9972‑6018
diretor‑geral da revista Desafios do Desenvolvimento
10

Sumário
10 | ENTREVISTA | Paulo Mendes da Rocha

18 | REFORMAS | O desafio de gastar com mais eficiência 18


30 | VIOLÊNCIA | L ei Maria da Penha enfrenta novos desafios ao
completar 10 anos

42 | HISTÓRIA | A maior e mais ousada iniciativa do


nacional‑desenvolvimentismo

58 | INTERNACIONAL | Cadeias produtivas têm potencial na


América do Sul
30
72 | MELHORES PRÁTICAS | A coleta seletiva que traz dignidade,
renda e proteção ambiental

Artigos
Seções
17 Desencontros das políticas públicas
para as infraestruturas brasileiras 6 Giro Ipea 42
Jean Marlo Pepino de Paula 8 Giro
29 Setor agropecuário brasileiro: 64 Perfil
perspectivas internacionais 82 Circuito
Rebecca Lima Albuquerque Maranhão
84 Estante
José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho
86 Humanizando o desenvolvimento
41 Corrupção, transparência
e participação popular
Juliano Medeiros

57 Desafios das comunidades


de pescadores e o papel dos
governos na América Latina
72
Nidia Piñeyro
Adriana Sandoval‑Moreno
Adriana Hernández‑García
GIRO Ipea
MEIO RURAL
Mulheres atuam
Agência Brasil

para a diminuição
da pobreza
Agência Brasil
Um dos pontos importantes para
a discussão sobre a pobreza rural é
a questão de gênero. Isso pelo fato tado em seminário realizado pelo
de que a participação feminina nas Ipea e pelo Fundo Internacional
zonas rurais tem sido, nos últimos de Desenvolvimento Agrícola
tempos, fator determinante para (Fida) no qual foram analisados
uma melhor qualidade de vida para os impactos de políticas públicas
a família. De acordo com Sergei para a redução da pobreza rural.
Soares, do Ipea, nas áreas urbanas, Outro fator apontado como
PEDAGOGIA 10% das mulheres em famílias ricas importante para a diminuição da

Educação é a saída chefiam a casa. Já entre as pobres,


esse número sobe para 20%. Sergei
pobreza rural é o acesso a programas
sociais, como o Bolsa Família, o
para a redução ressaltou também que, entre as Programa de Aquisição de Alimentos
famílias agrícolas, a pobreza tende (PAA) e o Programa Nacional de
de homicídios a ser menor nas famílias chefiadas Fortalecimento da Agricultura
A relação entre qualidade das escolas por mulheres. Esse dado foi apresen‑ Familiar (Pronaf).
brasileiras e o número de homicídios
nos municípios em que se localizam Freepik

foi analisada por estudo do Ipea. PERSPECTIVAS


A pesquisa aponta a educação como
fator determinante para a redução Brasil tem condições
dos assassinatos. Um dos principais de voltar a crescer
pontos da análise mostra que a cada
1% a mais de jovens entre 15 e 17 anos Albert Fishlow, um dos maiores
que frequenta a escola, a diminuição especialistas estrangeiros em economia
na taxa de homicídios é de 2%. Há brasileira e professor da Universidade “algo que foi perdido nos últimos anos”.
também uma focalização desses crimes. Columbia, nos Estados Unidos, parti‑ Nesse sentido, o professor disse que
Nos 81 municípios estudados, a cipou, em junho, de uma conversa o Ipea tem muito a contribuir, mas
concentração de homicídios se deu sobre a atual conjuntura econômica do será preciso recuperar o prestígio e a
em poucos bairros. O Rio de Janeiro Brasil com os técnicos de Planejamento capacidade de influenciar diretamente
é um exemplo disso: 50% dos homi‑ e Pesquisa do Ipea e com o represen‑ na elaboração dos planos econômicos,
cídios aconteceram em apenas 17 tante da Comissão Econômica para a bem como na organização das políticas
bairros. “Um quarto dos homicídios América Latina e o Caribe (Cepal) no econômicas e fiscais. “Embora o Brasil
no país está localizado em 470 bairros”, Brasil, Carlos Mussi.  não tenha alcançado a condição de
destacou o autor do estudo, o técnico Na opinião de Fishlow, o Brasil precisa economia desenvolvida, ainda confio
de Planejamento e Pesquisa do Ipea ser reconstruído e isso necessitará de que essa transformação poderá acon‑
Daniel Cerqueira. um forte planejamento da economia, tecer”, afirmou.

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DEBATE
Seminário discute
políticas de inovação
Quais os desafios e as oportunidades
para os governos, locais e estaduais,
criarem políticas de negócios em apresentados pela diretora de Estudos e
ciências voltadas para a solução de Políticas Setoriais de Inovação, Regulação ACERVO
desafios do desenvolvimento local e e Infraestrutura (Diset), do Ipea, Fernanda
com potencial de impactar no mercado De Negri. No livro Sistemas Setoriais de Biblioteca é
mundial?
Esse foi um dos questionamentos
Inovação e Infraestrutura de Pesquisa no
Brasil, recentemente editado pela Diset,
reinaugurada
lançados durante a oficina de trabalho um dos estudos aponta o sistema de Após mais de um ano em
internacional Creating local prosperity inovação no setor aeronáutico do país reforma, a biblioteca do Ipea
through world-class science based busi- como um dos exemplos de sucesso reabriu suas portas no início
ness development, realizada pelo Ipea e brasileiro. Essa indústria é considerada de julho. O espaço agora conta
pela Fundação de Amparo à Pesquisa estratégica por gerar e se apoiar em com salas coletivas, estantes
do Estado de São Paulo (Fapesp). uma engenharia altamente qualificada, deslizantes, novo mobiliário,
As análises e os casos de sucesso em base do processo de desenvolvimento cabines individuais, salas de
Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) foram tecnológico e de inovação. estudo mais silenciosas e banheiros
com acessibilidade a cadeirantes.
“Conseguimos modificar toda a
Divulgação
parte de instalação e softwares”,
DESENVOLVIMENTO destacou a coordenadora, Lúcia
Regina Pontes Lemos. A nova
Ipea debate estrutura conta com 60 mil títulos
desenvolvimento regional disponíveis, com publicações nacio‑
nais e estrangeiras, além de software
A necessidade de o Brasil formular novo de gerenciamento da base de
uma política nacional para o desen‑ dados. “A preservação de um acervo
volvimento regional levou o Ipea, por políticas públicas sociais, fortalecimento de uma instituição de pesquisa
meio da Diretoria de Estudos e Políticas institucional, relações internacionais, é importante para que a gente
Regionais, Urbanas e Ambientais expansão das receitas tributárias, conheça, efetivamente, o histórico
(Dirur), a organizar, em Brasília, no conjuntamente com a capacidade de do país. Temos aqui pesquisas
início de agosto, a Oficina de Trabalho o Estado levar à frente diversas outras desenvolvidas há 50 anos sobre
Elementos para uma Agenda de Estudos políticas que impactaram o território. o Brasil”, disse Elaine Coutinho
e Políticas para o Desenvolvimento “Identificar e propor uma agenda de Marcial, coordenadora‑geral de
Regional Brasileiro. temas para a compreensão do desen‑ Planejamento, Gestão Estratégica
O evento reuniu diversos especia‑ volvimento regional brasileiro, bem e Orçamento. A biblioteca está
listas em uma série de apresentações como para a formulação de políticas aberta durante os dias de semana,
que servirão de base para a formulação de desenvolvimento territorial, é o das 8h30 até as 17h, tanto para os
de uma política nacional para o setor. nosso objetivo”, explicou Aristides funcionários do Ipea como para
Nos últimos 10 anos, o Brasil Monteiro, técnico de Planejamento o público externo.
passou por intensas mudanças nas e Pesquisa e organizador da oficina.

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GIRO
MMA

CLIMA
Brasil e Argentina
APPA
estreitam laços
ambientais
Ações de enfrentamento às Filho, define a Floresta Amazônica
mudanças climáticas são pauta como fundamental para as questões
comum entre os governos do Brasil da mudança do clima tanto no que se
e da Argentina. Os países estão em trata dos recursos hídricos como em
negociação para definir o papel de relação à biodiversidade encontrada
cada um em acordo climático que nela. Brasil e Argentina pretendem
aproximará ainda mais as relações continuar atuando em áreas como
entre essas nações. O ministro do a Antártica, a biodiversidade e a
Meio Ambiente do Brasil, Sarney proteção dos recursos hídricos.
ESTOCAGEM
FAB Antonio Cruz/ABr

Brasil aumenta
a capacidade de
armazenar grãos
No segundo semestre de 2015, a
capacidade de estocagem de grãos
no país cresceu 3,3%, o que significa TRABALHO HUMANITÁRIO MONITORAMENTO
aproximadamente 166 milhões de
toneladas de cereais armazenadas em Força Aérea realiza Drones utilizados
7.918 depósitos. Os dados divulgados
pelo Instituto Brasileiro de Geografia
transporte de órgãos pela Força Nacional
e Estatística (IBGE), no primeiro Em junho deste ano, a Presidência da A Força Nacional de Segurança
semestre de 2016, apontam ainda o República publicou o Decreto nº 8.783, Pública passou a utilizar drones –
crescimento de 0,8% no número de que determina a disponibilização de aviões dispositivos voadores ativados por
armazéns ativos; desses, 79,9% são da Força Aérea Brasileira (FAB) para controle remoto – para monitorar
de propriedades privadas e 17,4% missões específicas do Ministério da Saúde os complexos penitenciários da
pertencem a cooperativas de produ‑ (MS), especialmente as solicitações feitas região metropolitana de Fortaleza
tores, enquanto 2,1% estão em terras pela Central Nacional de Transplantes (CE). O uso dessa tecnologia permite
do governo. Mais da metade desses (CNT). O decreto assegura ainda que que as tropas federais façam, por
depósitos é destinada à agropecu‑ a FAB mantenha, permanentemente modo aéreo, o mapeamento de áreas e
ária (28,6%) ou presta serviços de disponível, no mínimo, uma aeronave consigam identificar a movimentação
armazenagem (28,3%). O grão mais exclusivamente para essa finalidade. dentro e fora de unidades prisionais. O
armazenado foi o milho, com 10,1 A primeira ação foi o transporte de recurso permitiu que uma fuga fosse
milhões de toneladas no segundo um órgão humano entre as cidades de evitada e o descobrimento de dois
semestre do ano passado. Salvador (BA) e Recife (PE). túneis em penitenciárias da região.

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Freepik

SAÚDE Agência Brasil

Adolescentes estão
fumando mais
Enquanto o número de fumantes
adultos diminuiu 33,8%, nos últimos
10 anos, a idade de experimentação que não moram com os pais tiveram
do cigarro caiu. Dados do Ministério maior contato com o tabaco. Meninas
da Saúde mostram que 18,5% (ou estudantes de escolas públicas (5,7%)
1,8 milhão) dos adolescentes brasi‑ fumam mais do que as de escolas
leiros de 12 a 17 anos já experimen‑ privadas (3,7%).
MEIO AMBIENTE
taram cigarro. As capitais com maior
proporção de jovens fumantes são
No entanto, quando comparado com
o ano de 2009, o estudo mostra que
Práticas
Campo Grande (26,8%), Porto Alegre houve uma redução nesses números. sustentáveis
(26,5%), Florianópolis (25,1%) e
Curitiba (23,4%), e as com menos uso
Naquele ano, a Pesquisa Nacional de
Saúde Escolar (PeNSE) mostrou que
na Amazônia
são Natal (14,8%), Teresina (14,6%), 24% dos adolescentes de 13 a 15 anos, Agricultores, produtores e
Salvador (12,5%) e Aracaju (12,2%). nas capitais brasileiras, já haviam tido técnicos rurais da Amazônia
Outro dado mostra que adolescentes ao menos um contato com o cigarro. e da Mata Atlântica receberão
auxílio para reduzir as emissões
de carbono e aumentar a susten‑
CULTURA tabilidade de suas propriedades.
O projeto Rural Sustentável,
Municípios aderem ao Sistema Nacional realizado pelo Ministério
da Agricultura, Pecuária e
Com o objetivo de aprimorar a Abastecimento (Mapa) em
gestão cultural, 15 municípios brasi‑ parceria com o governo do
leiros aderiram ao Sistema Nacional de Reino Unido, irá beneficiar 70
Cultura (SNC) criado pelo Ministério municípios e 3,5 mil pequenas e
da Cultura (MinC) para a gestão médias propriedades nos estados
compartilhada de políticas públicas de Mato Grosso, Pará, Rondônia,
de cultura entre a União, estados, Bahia, Minas Gerais, Paraná e
municípios e a sociedade civil. parte do SNC, além de todos os estados Rio Grande do Sul. O objetivo
Para fazer parte do sistema, o e o Distrito Federal. é auxiliar esses produtores a
município ou estado precisa, entre Os mais recentes a aderirem ao transformarem suas áreas em
outras coisas, providenciar um órgão sistema são: Arantina (MG), Canelinha unidades demonstrativas de
gestor de cultura e um conselho de (SC), Céu Azul (PR), Cocal do Sul agricultura de baixo carbono, com
política cultural deliberativo, promover (SC), Dionísio Cerqueira (SC), Dona tecnologias como a integração
conferências e criar um plano estadual Eusébia (MG), Figueirópolis D’Oeste lavoura-pecuária‑floresta, a
ou municipal de cultura. (MT), Itaqui (RS), Leoberto Leal (SC), recuperação de áreas degradadas,
O SNC é uma das 53 metas do Sampoema (PR), Santa Mariana (PR), o plantio florestal comercial e o
Plano Nacional de Cultura (PNC) a Santa Rita de Jacutinga (MG), São manejo sustentável de florestas
serem cumpridas até 2020. Dos 5.570 João do Arraial (PI), Tabuleiro (MG) nativas.
municípios brasileiros, 2.191 já faziam e Tanguá (RJ).

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ENTREVISTA

Paulo Mendes da Rocha


“Não existe espaço privado, só
existe o público. O único espaço
privado é o cérebro humano”
Gilberto Maringoni – São Paulo

O mais importante arquiteto brasileiro em atividade, premiado interna-


cionalmente, fala dos dilemas da arquitetura e da engenharia no difícil
momento que o Brasil atravessa. E alerta: “O planeta, por si, não é habi-
tável. Se você abandonar um indivíduo em qualquer lugar da natureza, ele
não dura 10 dias. No mar, não dura nada. Nem na floresta. Há tsunamis,
vulcões etc. A habitabilidade tem de ser construída pela humanidade”

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Marco Antonio Sá

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Desafios – O senhor descende de dois homens
que tinham na ideia do espaço público a sua razão PERFIL
de ser. Seu avô dirigiu o serviço de navegação do rio
São Francisco e, mais tarde, a Biblioteca Nacional Paulo Archias Mendes da Rocha, Seus projetos sempre provocaram
do Rio de Janeiro. Seu pai era engenheiro naval e 87, é, possivelmente, o mais impor‑ intensa polêmica pela ousadia de
professor da Escola Politécnica da Universidade de tante arquiteto brasileiro em atividade. soluções. É o caso da marquise de
São Paulo (USP). Esse lastro familiar teve alguma Em 2006, recebeu o principal prêmio metal sobre a Praça do Patriarca,
influência em sua concepção de arquitetura? da arquitetura mundial, o Pritzker. da reforma no histórico prédio da
Mendes da Rocha – Deve ter influenciado Dez anos depois, foi laureado na Pinacoteca, construído em 1900, ou
muito. Meu pai não fazia apologia Bienal de Veneza com o Leão de do Museu Brasileiro da Escultura,
de nada, mas me fazia ver. Tanto que Ouro, pelo conjunto de sua obra. todos em São Paulo.
eu, muito pequeno, conheci, por Natural de Vitória (ES), Mendes A partir de 1961, tornou‑se
exemplo, a inauguração do Porto da Rocha chegou com a família professor da Faculdade de Arquitetura
de São Sebastião, nos anos 1930. Do à capital paulista em 1940. Toda e Urbanismo da Universidade de
ponto de vista da América, se você sua carreira está estreitamente São Paulo (FAUUSP), atividade
imaginar, a navegação interior é toda vinculada à cidade. que desempenhou até ter seus
fluvial, portos, rios e canais. Havia Juntamente com João Batista direitos políticos cassados, em
uma iniciativa fantástica. O governo Vilanova Artigas (1915‑1985) e 1969, por força da ditadura militar.
Vargas transformou um pequeno outros, compõe o que se denominou Só voltaria às salas de aula 11 anos
navio estatal de 60, 75 mil toneladas de escola paulista de arquitetura, depois, com a conquista da anistia.
em embarcação de cabotagem. Logo derivada do modernismo e marcada Sua obra é composta por edifí‑
fez daquilo um escritório, botou alguns pelo uso do concreto, do aço, e cios públicos, residências, mobi‑
engenheiros especialistas lá dentro, pela busca da integração da obra liário e reformas que redefiniram
incluindo aí meu pai, para navegar na com o espaço público. projetos de terceiros.
costa brasileira, entrar nos pequenos
portos e ver os entrepostos de amparo
à pesca que deveriam ser feitos. Meu
pai me levou nessa viagem. Assisti a que esse é um trabalho do homem. projeto. Qual é a projeção que você
coisas incríveis. Passei – 10 dias no Hoje, penso a arquitetura como forma faria para desenhar determinada
mar, frequentei esses portos. E meu de conhecimento. A natureza não é coisa? Para configurar aquilo como
pai fazia isso sabendo que estava me simples paisagem, mas um conjunto uma construção? Ou seja, aprendi
educando. Onde estaria o estímulo de fenômenos que envolve mecânica também que estamos condenados,
à educação? Está na confiança de dos solos, mecânica das águas etc. o gênero humano, a transformar a
que o homem pode fazer de acordo ideia em coisa. Ninguém pode saber
com projetos e ideais. A engenharia Desafios – Moldou‑se aí sua visão profissional? qual é a sua ideia se você não fizer
é capaz de realizar desejos humanos Mendes da Rocha – Abriu os horizontes. disso uma coisa. Seja uma colher,
de interesse social, de interesse amplo. Aqui reside a grande dificuldade na uma barragem hidrelétrica, uma
O confronto das terras com as águas vida que é você ter a liberdade de dança ou um discurso. O planeta,
é algo espantoso. Fui compreendendo decidir o que fazer. Isso só se faz com por si, não é habitável. Você tem de

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Marco Antonio Sá

construir. A natureza, por si, é um


desastre, não é? Se você abandonar “Hoje, penso
um indivíduo em qualquer lugar da a arquitetura
natureza, ele não dura 10 dias. No mar,
como forma de
não dura nada. Nem na floresta. Há
tsunamis, vulcões etc. A habitabilidade
conhecimento. A
do planeta tem de ser construída. O natureza não é simples
confronto das águas com a terra, em paisagem, mas um
território firme, foi sempre um grande conjunto de fenômenos
problema porque o desejo – haja Veneza que envolve mecânica
como exemplo! – é estar ali porque dos solos, mecânica
os navios chegam. E como fazer? Eis
das águas etc.”
toda a evolução da muralha de cais e
da atracação. Antigamente, os navios
ficavam fora, tinham de descarregar
tudo com escaler. A interlocução da
água com a terra foi sempre, para o
homem, um problema. Portanto, o
confronto da terra com as águas é um
lugar de construção por excelência, Desafios – Por quê? com desejos humanos. No caso, por
seja fluvial, seja marítima, da neces‑ Mendes da Rocha – Porque a ideia da exemplo, da Praça do Patriarca, onde
sidade de desejo de forma explícita, arquitetura não é produzir objetos é muito nítida essa concomitância
como manifestação da arquitetura. A para o mercado. Não é produzir algo de necessidades e desejos, não fui eu
construção de necessidade de desejos para você vender. quem determinou o que tinha de ser
humanos. feito. Havia uma cobertura, muito
Desafios – O sr. realizou dois projetos extremamente deteriorada, da passagem subterrânea
Desafios – A chamada escola paulista de arqui‑ ousados em São Paulo. Um é o da marquise sobre da praça para o Vale do Anhangabaú.
tetura, que vem do modernismo, parece carregar a Praça do Patriarca. Ele está articulado com um Ela não existe mais. A praça tinha
muito essa articulação entre o projeto com seu lugar histórico da cidade, com algo que já estava uma abertura para baixo, que a ligava
meio. No caso da cidade, o meio é o espaço público. lá antes de sua intervenção. E outro é a reforma da ao vale. A antiga marquise protegia
A maior parte de seus projetos é feita para espaços Pinacoteca do estado, um prédio histórico de Ramos a caminhada na escada, às vezes,
públicos. Como o senhor concebe a relação da de Azevedo (1851‑1928). São duas interferências debaixo de chuva. Chamaram‑me
arquitetura com seu entorno? em áreas que já têm história. Como o senhor lida para refazer a cobertura. Não é um
Mendes da Rocha – A arquitetura ou com as críticas dos que defendem a manutenção projeto meu. Tudo estava lá, desde a
um edifício não pode ser um fato de uma espécie de pureza da concepção original? praça, tão antiga, como a passagem
isolado. Integra a cidade. Ninguém Mendes da Rocha – Você falou uma para o Vale do Anhangabaú, que tem
vive isolado. Então, a cidade tem as coisa muito interessante, que aquilo uma importância enorme como eixo
suas razões fundamentais e é isso que já estava lá, ou muita coisa já estava lá. de transporte público etc.
anima a imaginação do que possa Mas o homem nunca conseguiu fazer
se chamar arquitetura. É claro que nada diante de alguma coisa que não Desafios – Qual era o projeto?
você pode concluir, imediatamente, estava lá. É justamente por isso que ele Mendes da Rocha – Ali se tratava de
que o arquiteto é um infeliz porque pode pegar uma pedra aqui e outra ali, fazer uma cobertura nova. Imaginei
o resultado que está aí é um desastre. e fazer outra coisa arrumando aquilo. que possibilitar a visualização da praça
É que o resultado que está aí não tem Tudo é a realização de necessidades, toda seria sempre muito mais interes‑
nada que ver com arquitetura. mas, de um modo concomitante sante do que ficar colocando pilares e

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Marco Antonio Sá

fazer uma tampa de laje etc. Projetei


em metal, pois assim se podem fazer
coisas levíssimas. Imaginei aquilo mais
ou menos como uma asa de avião,
aquele vazio, que não pesa nada. São
uma, duas, três, quatro, cinco aletas,
como nervuras de uma asa, uma capa
superior e uma capa inferior, apoiadas
em uma suspensão que resulta em dois
pilares – os engenheiros avaliam 80
toneladas, ou seja, 40 toneladas em
cada parte. As peças são feitas fora.
Imagine que é possível transportar em
carretas e que uma grua é capaz de se
movimentar no local porque transporta
tudo de madrugada e não atrapalha o
trânsito da cidade. Ou seja, por mais
que a obra pareça extraordinária, ela
é feita para não ser muito vista. Para “Naquele museu do Rio, lá. Porque a ideia era fazer ver aquele
o pedestre, a praça está livre. você não é capaz de dizer prédio tombado pelo patrimônio. Mas
era para se ver também com uma certa
por que diabos o camarada
Desafios – No caso da Pinacoteca, o senhor visão crítica de que aquilo não deveria
introduziu o aço em um ícone do neoclassicismo
fez um dinossauro de estar lá porque aquilo foi construído
paulista e eliminou uma escadaria. É uma ousadia metal. Aquele é o local em 1900. Se você examinar a arqui‑
e tanto, não? onde atracavam os navios, tetura do [holandês Gerrit] Rietveld
Mendes da Rocha – Troquei o endereço. principalmente de passageiros. (1888‑1964), na Europa, verificará que
A porta de entrada mudou de rua. Tive Não é necessário se fazer ninguém fazia mais aquilo na época.
uma emoção em uma ocasião na qual uma construção que é um É uma manifestação de atraso você se
entrei lá na Pinacoteca, talvez até antes obrigar a ficar lixando tijolo para fazer
verdadeiro navio encalhado”
de me encomendarem esse projeto. Vi, pilar circular e realizar uma arquitetura
naqueles pátios, as andorinhas passando neoclássica, que, na América, não
de lá para cá com uma liberdade que o precisava. Acho uma porcaria.
traçado daquele negócio, rigidamente se abriga logo na varanda e, nas cinco
montado sobre quatro eixos, dois eixos, portas que havia, poderia se deixar Desafios – Como o senhor avalia uma intervenção
não possuía. É uma arquitetura que uma de entrada e transformar duas como a do Museu do Amanhã, na zona portuária
te obriga a caminhar num percurso de cada lado em guichê para venda de do Rio de Janeiro, uma obra que, aparentemente,
que não lhe dá liberdade. Tinham bilhetes, guarda‑volumes e informa‑ não dialoga com a paisagem?
também alargado a avenida em frente ções. Estava tudo feito. Por um lado, Mendes da Rocha – Naquele museu do
e constrangido a entrada da escadaria geralmente, vejo o projeto todo de uma Rio você não é capaz de dizer por que
original. Era incômodo. Havia na vez só e, depois, ele vai se realizando. diabos o camarada fez aquele dinossauro
outra face duas varandas, chamemos Por outro lado, usar a tecnologia do de metal. Não faz nenhum sentido
assim, de frente para a Estação da Luz. metal também lá faz com que as peças num lugar em que deveriam aparecer
Era algo simétrico, igual ao que havia possam ser descarregadas com gruas, os navios. Aquele é o local no qual
nos fundos, voltado para o jardim. e desmontadas, muito facilmente, sem atracavam os navios, principalmente de
Pareceu‑me a entrada ideal porque você você estragar aquilo tudo que estava passageiros. Não é necessário se fazer

14 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Marco Antonio Sá

uma construção que é um verdadeiro


navio encalhado. É tudo o que não se
deve fazer na frente das águas.

Desafios – O senhor citou o caos em que estão


imersas nossas grandes cidades. Elas poderiam
ser diferentes?
Mendes da Rocha – Temos cidades
desenhadas para o mercado, divididas
em lotes destinados a casas. Se, em
seguida, você tira as casas e transforma
aquilo em prédio, na mesma matriz
do lote da casinha, é claro que você
vai produzir um desastre. Você tem
de redesenhar o chão. Você tira quatro
casas e faz um prédio de 10 andares.
São quarenta onde havia quatro. Sem
um transporte público e sem um
traçado novo em relação à matriz
anterior, você não pode transformar
a cidade naquilo que você deseja que
ela venha a ser. A arquitetura não foi
feita para ser objeto de mercado. Isso
não faz sentido.

Desafios – Sim, mas estamos em uma sociedade


capitalista em que o mercado regula a maioria das do ponto de vista da arquitetura, o construo. O privado me faculta essa “liberdade”,
atividades humanas. conceito de “espaço” pressupõe público. que é a liberdade de poder acabar com o entorno.
Mendes da Rocha – Você não pode Não existe espaço privado. Mendes da Rocha – Não faculta. A enge‑
vender uma máquina que pesa 700 nharia é uma forma de conhecimento
quilos como transporte individual para Desafios – Sim, mas se eu compro lotes, se me complexo. Falta aí o ingrediente ético
um camarada que pesa 60, 70 quilos. é facultado o poder de comprar um lote… porque isso não se faz. Se abolirmos
Principalmente, se ele é movido a motor Mendes da Rocha – Mas não devia ser a possibilidade de um consenso de
a explosão, que contamina tudo. Esse facultado. Como é que você pode vender grupo, estamos condenados a um
conflito, ou confronto, entre o público um pedaço do planeta, sabendo o que desastre enorme.
e o privado é uma idiotice inventada. é o planeta hoje? Um pequeno calhau
desamparado girando no espaço. E você Desafios – Falo isso por andar em bairros antigos
Desafios – Por quê? vai vender um pedaço para alguém? de uma metrópole, de ruazinhas estreitas, onde
Mendes da Rocha – Porque não existe Não faz sentido! havia casinhas com 60, 70 anos e hoje há três ou
espaço privado. Todo espaço deve ser quatro edifícios de 20 andares com 60 famílias.
ligado a um valor, a uma dimensão Desafios – Isso é o que a gente pode achar. E a circulação do entorno é impossível. O sujeito,
pública. O único espaço privado que Mas eu compro um pedaço e, teoricamente, faço para sair de casa e chegar a uma via expressa
você pode imaginar é o cérebro humano. o que eu quero. Se quiser construir uma casinha próxima, demora 40 minutos. Essa liberdade do
Mas também se você não publicar o com duas arvorezinhas, eu construo. Se quiser privado se sobrepor ao público acaba com a cidade
que pensa, ele não existe. Portanto, construir um monstrengo de 40 andares, eu como espaço solidário, não?

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 15


Marco Antonio Sá

Mendes da Rocha – Não vejo razão


para defender o privado, uma ameaça
aos interesses hoje da população e
do mundo. Os erros que existem na
cidade ou da iniciativa individual
em relação ao interesse da sociedade
fazem ver que a questão é política.
É uma questão que está em discussão.
Não é algo dado. Temos de ver o que
queremos com isso. Por que diabos
você vai fazer isso ou aquilo? E temos
que discutir juntos.

Desafios – Com isso tudo, o senhor é otimista


com o futuro das cidades, da sociedade, do
convívio possível?
Mendes da Rocha – Ouço palavras como
otimismo, esperança ou amor. Não
entendo nenhuma delas. Acho que não
têm mais significado nenhum. Você
pode ter projetos, que são formas de
esperança. De algum modo, vamos
continuar. E é justamente, até certo
ponto, essa imprevisibilidade da vida
que nos encanta. A única coisa que
sei é que temos liberdade e podemos
aprender técnicas. Portanto, se você, “A arquitetura ou um Portanto, projeto é uma ideia muito
tecnicamente, sabe fazer isso e não sabe edifício não pode ser um fato interessante. Se o fato feito, às vezes, é
fazer aquilo, ou seja, fritar um bife ou isolado. Integra a cidade. um desastre, como a bomba, enquanto
arrumar um pedaço de pau para que projeto, antes que se faça, pode ser
Ninguém vive isolado. Então,
ele vire uma colher, um instrumento, sempre discutido. Observe que o
você tem que decidir por que razões
a cidade tem as suas razões martelo não tem utilidade nenhuma
ou com que cara você vai fazer aquilo. fundamentais e é isso que se você se puser a martelar a torto e
Porque, a rigor, o objetivo de tudo é anima a imaginação do que a direito. Tem de ter um prego. E, de
amparar justamente a imprevisibili‑ possa se chamar arquitetura” preferência, o prego tem de ter uma
dade da vida. cabeça, com uma ponta aguda. Ou seja,
projetamos antes o que queremos fazer
Desafios – O senhor não vê sentido em algumas é a ideia de projeto, uma projeção na expectativa de ter sucesso. Ora, o
palavras, mas vê em outras. Qual o sentido da de desejos. Mesmo as piores coisas sucesso nunca pode ser medido pela
palavra “projeto”? têm projetos. Portanto, podem ser vontade individual. O sucesso vem
Mendes da Rocha – A ideia de projeto discutidas. Há um exemplo clássico: a da recepção do outro sobre aquilo.
significa uma projeção na mente, bomba atômica. Com o que se conhece Ou seja, estamos condenados a tentar
portanto, anterior a algo que você da constituição da matéria, o mundo sempre seduzir o outro com algo que
faria. Uma ponte, por exemplo, foi pode se transformar de uma maneira o encante, como é o caso da ponte,
pensada antes de ser construída. Essa maravilhosa. Já a bomba é um desastre. por exemplo.

16 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


ARTIGO Jean Marlo Pepino de Paula

Desencontros das políticas públicas


para as infraestruturas brasileiras

C
om a criação do Programa de exemplifica a limitação dos benefícios a que Ao mesmo tempo em que essa inovação
Aceleração do Crescimento (PAC), esses investimentos ficam sujeitos. reconhece a importância da interdependência
o país presenciou um aumento Sobressai dos exemplos a importância da de atividades antes contratadas individual‑
significativo dos investimentos em interdependência nos segmentos de energia, mente pelas instituições, direciona os esforços
infraestrutura. Os dados da Pesquisa Anual logística e mobilidade para as respectivas políticas públicos para os estudos preliminares do
da Indústria da Construção, elaborada pelo públicas alcançarem os objetivos desejados – projeto. Essa fase inicial deve priorizar
IBGE, mostram que entre 2006 e 2012 os motivo pelo qual o timing de implementação os requisitos, os resultados e os impactos
investimentos no setor cresceram 131,5%, de ações complementares também deve ser desejados com determinado investimento,
superando os valores da década de 1990. considerado para definir prioridades. atividades que devem considerar outros tipos
Com esse resultado, o setor nacional de Essas e outras intervenções visam a fomentar de interações pouco valorizadas até então e
infraestrutura mostrou sua autonomia ao os desenvolvimentos regional e nacional, que, reconectar as iniciativas operacionais aos
contrariar o desempenho das maiores firmas por sua vez, dependem de outras iniciativas objetivos estratégicos.
de projeto e de construção que atuam no e políticas. Assim, reconhece-se que as Na medida em que essa prática amadu‑
cenário internacional, as quais vivenciaram infraestruturas não são, por si só, indutoras recer, espera‑se ficar evidente a necessidade
um período adverso devido à crise e ao do desenvolvimento. de acompanhamento e priorização de inicia‑
desenvolvimento dos mercados locais de A entrega isolada de ativos pode atender às tivas interdependentes. A value engineering
construção. Contudo, os frequentes atrasos expectativas orçamentárias e à temporalidade e a engenharia territorial são exemplos de
nas entregas desses ativos evidenciaram de cada governo, mas resulta na limitação dos abordagens mais sistêmicas e exitosas desses
fragilidades brasileiras para alcançar os impactos e na subutilização dos recursos. investimentos. No primeiro caso, privilegia‑se
resultados desejados. Considerar essas interações no desenho das os resultados ao longo da operação do ativo
O esforço para diversificar a matriz políticas públicas é fator preponderante para e, no segundo, ampliam‑se os elementos de
energética esbarrou na falta de linhas de uma maior eficiência dos investimentos. Esse um projeto para outras variáveis impactantes
transmissão para conectar usinas recém­ é o principal preceito para uma abordagem nos resultados desejados.
construídas ao sistema nacional de energia. sistêmica dos “problemas” mais complexos A dificuldade para representar o mundo
Ademais, esse sistema convive com a baixa no segmento público dado o maior número real nas iniciativas públicas representa
eficiência das indústrias e residências, o que e tipos de interações, incorporando aspectos o embaraço do planejamento do Estado
realimenta a necessidade de investimentos abstratos e subjetivos aos resultados estratégicos. apontado por especialistas. Isso porque
no setor. O Plano Nacional de Logística e Tal dificuldade também está presente subestima o número e o tipo de interações
Transportes indica aspectos institucionais e na esfera operacional das políticas públicas, envolvidas na implementação de uma obra
tecnológicos importantes para disponibilizar em que a implementação de obras convive pública, representados pelas diversas esferas de
uma infraestrutura de transportes adequada, com a precariedade dos projetos de enge‑ governo, instituições e disciplinas. Fomentar
extrapolando a simples necessidade do país nharia. Embora pouco exploradas na Lei a definição de políticas e contratações a
por obras de infraestrutura. 8.666/1993 (nas contratações do tipo global), partir dos seus impactos diretos esperados
A dificuldade para operar, simultaneamente, as contratações mais abrangentes de obras pode reconectar os investimentos públicos
as pistas do Aeroporto Internacional de Brasília, públicas ganharam fôlego com o Regime aos interesses estratégicos da sociedade.
por exemplo, mostra que as disponibilidades de Contratações Diferenciadas – RCD. Ele Entretanto, exigirá do Estado capacidades,
físicas e tecnológicas estão subutilizadas por permitiu delegar, integralmente ao contratado, atributos e insumos específicos para desen‑
questões operacionais. Na esfera metropoli‑ a responsabilidade pela interação entre diversos volver as instituições e, assim, qualificar os
tana, a pequena permeabilidade do serviço requisitos deste a fase de projeto, passíveis de gastos públicos.
oferecido pelo Metrô de Salvador em razão da serem controlados por ele e que impactam
falta de integração com outras regiões também diretamente na execução do projeto. Jean Marlo Pepino de Paula é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 17


REFORMAS

18 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


O desafio de gastar
com mais eficiência
Resolver o quebra-cabeça da previdência social e limitar o gasto público sem
provocar danos aos indicadores sociais são o desafio do momento para o Brasil

Da Redação

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 19


O
Brasil deve fechar 2016 com de todo o PIB e chegarão a 20% em

3%
mais uma contração econô‑ 2060, se não houver mudanças. É o
mica, provavelmente na casa que diz o especialista em políticas
dos 3%. Em 2015, a queda de públicas e gestão governamental
3,8% no Produto Interno Bruto (PIB) Rogério Nagamine, lotado na Diretoria
já havia confirmado o que especialistas
previam a partir do resultado de de queda no PIB de Estudos e Políticas Sociais (Disoc)
do Ipea.
2014 (crescimento de apenas 0,1%): é a previsão de contração econômica para 2016 Segundo ele, a previdência social
a economia do país entrara na UTI e – aí incluídos os regimes geral e
precisaria passar por uma profunda próprio e o Benefício de Prestação
reestruturação para se recuperar. Hoje, Continuada (BPC Loas) – compro‑
não há divergências significativas em Nesse cenário, duas questões ganham mete 55% do orçamento primário da
relação ao diagnóstico, mas sim quanto relevância na agenda nacional: a neces‑ União. Isso significa que essa despesa
à forma de enfrentar os problemas sidade de reduzir e qualificar o gasto reduz a margem de investimento do
provocados pela mais grave recessão público e a reforma da previdência Estado em outras áreas consideradas
desde a década de 1930: quais ajustes são para equacionar aquilo que o sistema essenciais, em especial as de saúde e
necessários para permitir que o Brasil arrecada com contribuições e o que educação – as mais sensíveis do ponto
volte a crescer com sustentabilidade, gasta com benefícios. As projeções de vista social –, além das obras de
dentro da capacidade de arrecadação preocupam. As despesas com o sistema infraestrutura. “Essa é uma escolha
e reduzindo as desigualdades sociais? previdenciário representam hoje 12% que a sociedade vai ter de fazer e ela

Divulgação / Ipea
“Claro que a previdência
é fundamental do ponto
de vista social, de garantir
renda para quem perdeu
a capacidade de trabalho,
seja por idade avançada,
doença ou outros motivos,
mas efetivamente já
temos uma despesa
elevada para o nosso
padrão demográfico”

Rogério Nagamine, especialista


em políticas públicas e gestão
governamental do Ipea

20 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Elza Fiuza/Agência Brasil

não está nada satisfeita com a área


de saúde”, exemplifica o especialista.
“Claro que a previdência é funda‑
mental do ponto de vista social, de
garantir renda para quem perdeu a
capacidade de trabalho, seja por idade
avançada, doença ou outros motivos,
mas efetivamente já temos uma despesa
elevada para o nosso padrão demo‑
gráfico”, ressalta Nagamine. Segundo
ele, embora o Brasil ainda tenha uma
população jovem, o nível de despesa
do país com previdência é típico de
países com proporção de idosos até
mais que o dobro da nossa, caso dos
integrantes da Organização para a Marcelo Caetano, secretário de Previdência do Ministério da Fazenda: a diferença entre o que entrou e o que saiu
Cooperação e o Desenvolvimento mais do que dobrou. E o déficit teria atingido R$ 85,8 bilhões. “A reforma é matemática. A conta tem de fechar”

Econômico (OCDE), cujo gasto com


previdência é de 9% do PIB, e dos da total), recenseados em 2010, para 66,5 também começa a diminuir em 2035. E,
União Europeia (11,3% do PIB). milhões (29,36% do total) em 2050, o do mesmo jeito que está difícil nascer,
Estudiosos advertem que, do ponto que implicará mudanças profundas nas está difícil morrer. Porque aumentou a
de vista demográfico, nossa previdência políticas públicas de saúde, assistência expectativa de vida. Então, vamos ter
é uma bomba‑relógio. Estudo lançado social e previdência, entre outras. um prato da balança que vai cair, que
no dia 29 de agosto pelo Instituto “Daqui a 20 anos, a população começa são os que trabalham e contribuem, e
Brasileiro de Geografia e Estatística a diminuir, porque não está nascendo outro prato que vai subir”, avalia Ana
(IBGE) projeta que a população de gente suficiente. E esse declínio vai Amélia Camarano, autora do livro
idosos do Brasil vai triplicar em 40 anos, ocorrer durante pelo menos 30 anos. E Novo regime demográfico: uma nova
passando dos 19,6 milhões (10% do aí o que acontece? A força de trabalho relação entre população e desenvolvi-
mento econômico.
Na verdade, o prato da balança já
dá mostras de desequilíbrio. Dados
No livro Novo regime demográ- do INSS e da Pesquisa Nacional por
fico: uma nova relação entre popu- Amostra de Domicílios (PNAD)
lação e desenvolvimento econômico, revelam que, computados os regimes
a autora Ana Amélia Camarano geral e próprio, a relação que se tem
avalia que o crescimento demo‑ hoje é de 2,2 contribuintes para cada
gráfico vai começar a diminuir beneficiário da Previdência Social.
daqui a 20 anos porque não está “Essa relação vai piorar muito. Por
nascendo gente suficiente. A força volta de 2040 podemos chegar, no
de trabalho também vai diminuir a INSS, a uma relação de um contri‑
partir de 2035. A população idosa buinte para um beneficiário. E em
será maior devido ao aumento da 2060 chegaremos a uma situação
expectativa de vida e da queda da em que teríamos mais beneficiários
taxa de natalidade. de aposentadorias e pensões do que
contribuintes”, estima Nagamine.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 21


Divulgação / Ipea
“Se fosse jovem, eu estaria com
uma bandeira na rua dizendo:
‘Quero a idade mínima aos 65
anos. Por quê? Para garantir a
aposentadoria dos idosos lá na
frente, porque senão não vai
ter. O Brasil é um dos poucos
países em que não se tem idade
mínima para se aposentar”

Ana Amélia Camarano, técnica de


Planejamento e Pesquisa da Diretoria de
Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea

DISTORÇÕES  Uma coisa é inegável: Por sua vez, a professora Denise A aposentadoria por tempo de
nossa previdência tem graves distor‑ Gentil, do Instituto de Economia da contribuição sem exigência de idade
ções que precisam ser corrigidas não Universidade Federal do Rio de Janeiro mínima é um dos pontos polêmicos
só para garantir a sustentabilidade do (UFRJ), garante que o sistema previ‑ do atual sistema. A regra pela qual o
sistema, mas para torná‑lo socialmente denciário é superavitário. Segundo ela, homem se aposenta aos 35 anos de
mais justo. Em uma década, segundo o governo federal desonerou R$ 157,6 contribuição e a mulher aos 30, inde‑
o Ministério da Previdência Social, a bilhões em 2015 em contribuições sociais pendentemente de idade, tem gerado
diferença entre o que entrou e o que saiu que financiam o sistema de seguridade. aposentadorias precoces para pessoas
mais do que dobrou. E o déficit teria “O governo abre mão de cifras enormes com plena capacidade laboral e de boa
atingido R$ 85,8 bilhões. “A reforma da Cofins, CSLL e PIS‑Pasep, renuncia situação socioeconômica. Em 2015,
é matemática. A conta tem de fechar”, a receitas que estariam a serviço da a idade média dos aposentados por
avaliou o secretário de Previdência do população na saúde, na assistência tempo de contribuição foi de 54,7 anos
Ministério da Fazenda, Marcelo Caetano. social e na previdência”, argumenta. (55,7 para homens e 53 para mulheres).

O número de idosos do Brasil 2050 Porcentagem de idosos


vai triplicar em 40 anos na população brasileira
2010
10% do total
2010

29,36% do total
Fonte: IBGE

19,6 milhões 66,5 milhões 2050

Dos 22,9 milhões de idosos brasileiros,

78%
22 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nºdos
88 que se aposentam com 35, 30 anos de 6,6 milhões estavam em atividade em
junho de 2015
29,36% do total

Fonte: IBGE
19,6 milhões 66,5 milhões 2050

Dos 22,9 milhões de idosos brasileiros,

78% dos que se aposentam com 35, 30 anos de


contribuição e se mantêm ocupados no mercado
6,6 milhões estavam em atividade em
junho de 2015
de trabalho estão entre os 30% mais ricos

60 anos
50 anos
Fonte: IBGE

Média de idade
de aposentadoria
de acordo com a

+ POBRES
+ RICOS
renda financeira

“Pela pesquisa que fizemos, cerca Está crescendo o número mudanças tecnológicas. Então, precisa
de 78% dos que se aposentam com 35, haver um pacote. O sujeito não pode
de homens de 50 a 65
30 anos de contribuição e se mantêm ser motorista de ônibus aos 65 anos.
anos que não trabalham,
ocupados no mercado de trabalho Precisa ter uma política de saúde para
estão entre os 30% mais ricos. Estes não procuram trabalho ele faltar menos. Inclusive melhoria de
se aposentam por tempo de contri‑ e não são aposentados transporte urbano, porque o sujeito
buição na faixa dos 50 anos. E os mais com mais de 60 anos não pode ficar
pobres se aposentam na faixa dos 60 duas horas no ponto do ônibus de
por idade ou pelo BPC Loas. Então, Para garantir a aposentadoria dos idosos manhã e duas horas à noite”, destaca.
não é que não haja a idade mínima. lá na frente, porque senão não vai ter. Ana Amélia Camarano lembra que
Há idade mínima para os que ganham O Brasil é um dos poucos países em está crescendo o número de homens
menos e não há para os que ganham que não se tem idade mínima para de 50 a 65 anos que não trabalham,
mais. Essa situação é inadequada do se aposentar”, reforça Ana Amélia não procuram trabalho e não são
ponto de vista da sustentabilidade Camarano. Mas, embora considere aposentados. “Porque são de baixa
da Previdência e do ponto de vista essa mudança essencial do ponto qualificação, de baixa escolaridade, e
distributivo”, avalia Rogério Nagamine. de vista estrutural, a especialista em existe o preconceito do empregador.
Dessa forma, a regra do tempo de estudos sobre o envelhecimento da Pois, quando ele é qualificado, a idade
contribuição sem idade mínima faz população brasileira defende o que trabalha a favor. Você vai ter um
com que o benefício deixe de ser um ela chama de “pacote amortecedor” médico mais experiente, um professor
mecanismo de substituição de renda para evitar o impacto que a reforma mais experiente, um advogado mais
para se tornar uma complementação terá em setores sensíveis da sociedade. experiente”, justifica.
de renda de pessoas com boa condição Caso, por exemplo, das pessoas de
socioeconômica. Dos 22,9 milhões de idade avançada.
idosos brasileiros, segundo o IBGE, “É o que vai garantir a emprega‑ GORDURAS  O sistema, segundo ela,
6,6 milhões estavam em atividade em bilidade, pois o empregador ainda tem gorduras que poderiam ser enxu‑
junho de 2015. tem muito preconceito em relação ao gadas de forma imediata. É o caso, por
“Se fosse jovem, eu estaria com trabalhador mais velho. Porque ele falta exemplo, da duplicidade de benefícios.
uma bandeira na rua dizendo: ‘Quero mais, por conta de doenças, porque “Tenho colegas de trabalho que estão
a idade mínima aos 65 anos. Por quê? tem mais dificuldade de acompanhar as se aposentando, mas, como dão aula e

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 23


Essa diferença está diminuindo. Por
isso, temos de reduzir a diferença de
Uma em idade. Mas veja: ela está no gerúndio.
Está diminuindo. Então, a diferença de
cada quatro
idade (para aposentadoria) tem de ir
mulheres que se no gerúndio, tem de ir diminuindo. E
aposentaram em temos de trabalhar para ter igualdade
2014 por tempo de gênero no salário”, sugere a técnica
de contribuição do Ipea.
tinha menos Nagamine lembra que o modelo
de 50 anos de aposentadorias por tempo de
contribuição sem a idade mínima
abriu brechas para um conjunto de
tratamentos diferenciados dentro
do sistema previdenciário. São as
chamadas aposentadorias especiais,
como, por exemplo, as dos professores
e policiais, que se aposentam aos 30
anos de contribuição (homens) e aos
25 anos (mulheres) e as daqueles que
trabalham expostos a agentes nocivos e
descontam INSS, vão se aposentar pelo Outro ponto em debate é a diferença a situações de risco, como os mineiros
teto do INSS. E vão se aposentar pelo de idade para a aposentadoria entre no subsolo. “Esse é outro debate que
setor público também. Existem viúvos e homens e mulheres. Segundo Nagamine, a sociedade terá de fazer”, sugere o
viúvas que acumulam pensão por morte uma em cada quatro mulheres que se especialista.
com o benefício da aposentadoria. E aposentaram em 2014 por tempo de A previdência rural entra como mais
ainda tem a triplicidade, porque o contribuição tinha menos de 50 anos. uma particularidade que merecerá
sujeito pode ter duas aposentadorias Ana Amélia Camarano defende uma uma análise profunda. “A política de
e uma pensão de viuvez. Se fosse fazer igualdade progressiva, tendo em vista a previdência rural não pode ser enca‑
uma reforma da previdência, começaria persistência de situações de desigualdade rada apenas pelo enfoque de receitas e
por aí. Na Inglaterra você tem de optar”, de gênero no mercado de trabalho. despesas porque ela é estratégica. É a
compara Ana Amélia. “Isso ainda subsiste, mas nem tanto. maior política pública direcionada às

“Imaginar que será possível preservar os programas


sociais como vinham sendo aquinhoados é algo
Divulgação

fora do contexto. No curto e médio prazo, vamos


ter de enfrentar turbulências na área social e esses
cortes ocorrerão, por mais que se diga que não”

José Matias Pereira, professor de Administração


Pública da Universidade de Brasília (UnB)

24 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Rafael Neddermeyer/ Fotos Publicas

populações do campo no Brasil, muito


além do programa Bolsa Família. Na
medida em que o benefício aumentou,
por conta da valorização do salário
mínimo, nos últimos anos, as famílias
rurais se tornaram menos sujeitas
a um mercado de trabalho que é o
pior do Brasil, o mais degradante, o
que tem maiores índices de trabalho
escravo e que tem os maiores índices de
terceirização”, afirma Marcelo Galiza,
especialista em políticas públicas
e gestão governamental, lotado na
Diretoria de Estudos e Políticas Sociais
(Disoc) do Ipea.
Segundo ele, a previdência rural
reflete‑se em várias dimensões da vida
social no campo, como na redução do Mais além da previdência, sobre a folha de salários e sobre o lucro;
trabalho infantil. O estudo Previdência as contribuições dos trabalhadores
este e os futuros governos
rural: contextualizando o debate em torno e demais segurados; a contribuição
do Brasil precisarão atentar
do financiamento e das regras de acesso, sobre a importação e também sobre
feito por Marcelo Galiza e Alexandre para a qualidade e a concurso de prognósticos.
Arbex, técnico de Planejamento e razoabilidade do gasto público “Importa observar também que
Pesquisa do Ipea, mostra evidências do como um todo. Sem isso, o a tributação destinada ao sistema
papel estratégico da previdência rural. objetivo da sustentabilidade de seguridade social tem finalidade
Segundo o estudo, a taxa de pobreza econômica poderá acabar específica, ou seja, ela deve necessaria‑
no campo, que era de 63%, em 2005, mente ir para seu orçamento próprio
frustrado mais uma vez
caiu para 49% em 2014, fenômeno e, assim, alcançar seus propósitos.
atribuído à expansão da previdência Entretanto, com as alterações poste‑
articulada com a regra de valorização taxa de natalidade. Mas ressalta que a riores ao texto constitucional, 20%
do salário mínimo. Se os benefícios reforma previdenciária não pode se desses recursos têm sido desviados,
fossem reajustados sem a vinculação à basear apenas no déficit financeiro e através da Desvinculação das Receitas
regra do aumento do salário mínimo, nas mudanças demográficas. Para a da União (DRU), para outros fins,
nesses dez anos o índice de pobreza advogada, a previdência social deve principalmente para o pagamento
teria aumentado em 5%. ser mantida como um instrumento de juros da dívida pública”, esclarece
capaz de proporcionar bem‑estar e a advogada.
justiça social. Mais além da previdência, este e os
CONSTITUIÇÃO  A advogada Thais Riedel, Thais lembra que, para garantir futuros governos do Brasil precisarão
mestre em Direito Previdenciário, direitos sociais como saúde, assistência atentar para a qualidade e a razoa‑
presidente da Comissão de Seguridade e previdência social, a Constituição de bilidade do gasto público como um
Social da OAB e do Instituto Brasiliense 1988 indicou formas de financiamento todo. Sem isso, o objetivo da susten‑
de Direito Previdenciário (IBDPREV), destinadas a um orçamento próprio da tabilidade econômica poderá acabar
admite a necessidade de ajustes no seguridade social, com várias fontes de frustrado mais uma vez. “É importante
sistema, tendo em vista o aumento custeio: a contribuição do empregador entender que o limite do Estado é o
da expectativa de vida e a redução da sobre o faturamento, sobre receita, quanto ele arrecada. E quando você se

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 25


João Viana / Ipea

O Instituto propôs a criação de cinco


grupos de trabalho nesta etapa inicial:
um sobre educação – para analisar
tópicos como o Pronatec e o Fies –;
um sobre saúde (que deve abarcar
temas como o Farmácia Popular e a
questão da margem de preferência);
um relativo a mercado de trabalho,
desigualdade e pobreza – áreas nas
quais o Ipea conta com bastante
conhecimento acumulado –; um que
tratará de reforma fiscal, e o último
dedicado à previdência.
“É fato que uma agenda de reformas
está na mesa neste momento, e o Ipea
possui técnicos que podem contribuir
com o debate”, afirma o diretor de
Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e
depara com uma situação como essa, “Programa de transferência Ambientais do Ipea, Alexandre Ywata.
cabe a um governante responsável de renda não tira as pessoas Será preciso cautela na avaliação
adotar medidas no sentido de tentar das políticas públicas para reduzir
da pobreza de forma
reorganizar as finanças públicas. riscos de deterioração significativa
duradoura, emancipatória.
E é exatamente isso o que estamos dos indicadores sociais – embora essa
assistindo nesse momento”, destaca o É uma assistência social consequência já deva se refletir nas
professor de administração pública da para quem está precisando. É pesquisas realizadas em 2016, como
Universidade de Brasília (UnB) José proteção aos desamparados. reflexo da grave situação econômica de
Matias Pereira. É o direito social que está 2014 e 2015. Nesse sentido, o técnico
“Imaginar que será possível preservar na nossa Constituição” do Ipea no Centro Internacional de
os programas sociais como vinham Políticas para o Crescimento Inclusivo
sendo aquinhoados é algo fora do Rafael Osório, técnico do Ipea do Programa das Nações Unidas para
contexto. No curto e médio prazo,
vamos ter de enfrentar turbulências
na área social e esses cortes ocorrerão, por meio de portaria interministerial,
por mais que se diga que não. Agora, é em abril deste ano.
importante que os governantes comecem O Ipea está, desde o início, Só em 2013 a União
a priorizar o sistema de controle e de envolvido nos trabalhos do comitê, gastou R$ 83 bilhões na
avaliação desses programas com compe‑ que também conta com a partici‑ área de saúde, que foram
tência e sensibilidade para evitar que pação de técnicos do Ministério da destinados a ações e
serviços públicos, e R$ 25,4
as pessoas que mais precisam sejam Transparência, Fiscalização e Controle,
bilhões deixaram de ser
prejudicadas”, continua Pereira. Uma do Ministério da Fazenda, da Secretaria arrecadados
das iniciativas que visam a auxiliar do Tesouro Nacional, do Ministério
o governo a definir as políticas que, do Planejamento, Desenvolvimento e
de fato, estão fazendo a diferença é o Gestão e do Banco Mundial. Em um
Comitê de Monitoramento e Avaliação primeiro momento, o Ipea trabalhará
de Políticas Públicas (CMAP), criado transversalmente com o Banco Mundial.

26 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Divulgação / Ipea

o Desenvolvimento (IPC‑IG), Rafael


Osório, considera o Programa Bolsa
Família uma ferramenta necessária.
“Programa de transferência de
renda não tira as pessoas da pobreza
de forma duradoura, emancipatória. É
uma assistência social para quem está
precisando. É proteção aos desampa‑
rados. É o direito social que está na
nossa Constituição. Porta de saída do
programa de transferência de renda
é o aumento da produtividade da
economia, o crescimento econômico,
redução da desigualdade, emprego.
Porque essas pessoas, afinal de contas,
estão no trabalho informal, têm renda
incerta, não têm ocupação definida.
Enquanto não saem da pobreza, a O técnico de Planejamento mas com foco na melhora da gestão.
gente dá Bolsa Família. E se depois e Pesquisa do Ipea Carlos Temos levantamentos importantes de
de dois anos a família não tiver resol‑ distorções que, se corrigidas, podem
Ocké‑Reis (foto) defende
vido o problema dela? Vamos jogá‑la gerar ganhos consideráveis. A medida
na miséria porque não conseguiu
a redução progressiva dos mais importante é uma boa gestão do
emprego?”, questiona. subsídios do Estado destinados gasto público.”
O desafio é colocar as contas em aos planos privados de O técnico de Planejamento e Pesquisa
ordem e, ao mesmo tempo, promover saúde, que cada vez mais do Ipea Carlos Ocké‑Reis lembra que,
avanços sociais. O ministro da Fazenda, se concentram, centralizam nos cinco primeiros meses deste ano,
Henrique Meirelles, assegura que isso e internacionalizam 788 mil pessoas perderam os planos
será possível com a Proposta de Emenda de saúde em razão do aumento do
à Constituição 241/2016, que limita desemprego, segundo dados divul‑
o teto dos gastos públicos federais gados pela Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS). Ocké
por 20 anos. Segundo o ministro, o defende a redução progressiva dos
Legislativo terá a opção de colocar subsídios do Estado destinados aos
mais recursos nas áreas que considerar planos privados de saúde, que cada
necessário, como saúde e educação, vez mais se concentram, centralizam
desde que corte em outras para manter e internacionalizam. Estudo feito pelo
o orçamento equilibrado e dentro dos técnico, divulgado em junho, revela
limites definidos pela PEC. que 30,5% dos gastos na área de saúde
“Foi muito discutida com parla‑ representam renúncia de arrecadação
mentares a questão da qualidade do de impostos.
gasto público. Os problemas que temos Segundo a pesquisa, que abrange
na saúde e educação mostram que a o período de 2003 a 2013, só em 2013
alocação de recursos não é problema”, a União gastou R$ 83 bilhões, que
afirma. “Faremos uma alocação com foram destinados a ações e serviços
crescimento de acordo com inflação, públicos, e R$ 25,4 bilhões deixaram

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 27


Divulgação
“Enquanto não conseguirmos Políticas Públicas, organizado pela
colocar a educação como técnica Enid Rocha e pela bolsista
espinha dorsal do projeto Rosana Botelho, trata dos desafios
para a ampliação do acesso dos jovens
de desenvolvimento
à educação superior e à inserção no
do país, a gente vai ter mercado de trabalho. Um dos capítulos
sempre essa situação de analisa a questão do tempo dedicado
vulnerabilidade muito alta” a atividades como frequentar escola
ou universidade, trabalhar, realizar
Priscila Cruz, presidente‑executiva tarefas domésticas e deslocar‑se. A
do Movimento Todos pela Educação publicação, que também pode ser
encontrada no Portal Ipea (www.ipea.
gov.br), tem o objetivo de fornecer
de ser arrecadados. As renúncias Há uma relação direta da educação insumos à elaboração de políticas
fiscais se referem a despesas com com a redução da violência, com a públicas voltadas à juventude.
médicos, dentistas, clínicas, exames redução da gravidez precoce, com o A prova de fogo do governo passou
e planos de saúde, deduzidas da base aumento da prevenção de saúde. A a ser equacionar esse complexo sistema
de cálculo do Imposto de Renda de população é mais saudável quanto composto por uma previdência social a
Pessoas Físicas. Empresas também mais educação ela tem, e temos mais caminho da inviabilidade em um país
abatem os gastos de saúde realizados distribuição da renda. É uma série de que envelhecerá rapidamente, uma
com seus empregados do imposto benefícios. Ou o Brasil enfrenta, de sociedade que requer investimentos
devido. A indústria farmacêutica e uma vez por todas, o desafio de colocar pesados e planejamento em educação e
os hospitais filantrópicos integram a a educação no centro de sua agenda, saúde, além de uma gama de programas
lista da renúncia fiscal. ou passaremos a vida remendando o sociais para famílias em situação de
No que se refere à educação, prio‑ país”, conclui. vulnerabilidade. Isso sem abrir mão
rização adequada e investimentos Um dos livros mais recentes lançados do equilíbrio das contas públicas, com
qualificados nessa área poderiam pelo Ipea, Dimensões da Experiência o indicador de emprego em alta e a
ter amenizado os impactos da atual Juvenil Brasileira e Novos Desafios às inflação em baixa.
turbulência econômica, de acordo com
Priscila Cruz, presidente‑executiva
do Movimento Todos pela Educação.
“Enquanto não conseguirmos colocar O livro Dimensões da Experiência
a educação como espinha dorsal do Juvenil Brasileira e Novos Desafios
projeto de desenvolvimento do país, às Políticas Públicas, organizado
a gente vai ter sempre essa situação de pela técnica Enid Rocha e pela
vulnerabilidade muito alta”, pondera. bolsista Rosana Botelho, trata dos
A educadora lembra que, além desafios para a ampliação do acesso
dos benefícios estruturantes para a dos jovens à educação superior e à
economia, a educação cria um ambiente inserção no mercado de trabalho.
social mais favorável em outras dimen‑ Um dos capítulos analisa a questão
sões. “Tem um dado interessante do do tempo dedicado a atividades
Ipea, que tem repercutido bastante, como frequentar escola ou univer‑
o qual diz que a cada um por cento a sidade, trabalhar, realizar tarefas
mais de matrículas de jovens se reduz domésticas e deslocar‑se.
em dois por cento a taxa de homicídios.

28 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Rebecca Lima Albuquerque Maranhão
ARTIGO José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho

Setor agropecuário brasileiro:


perspectivas internacionais

O
Brasil se tornou um dos líderes a exportação agrícola. Em meados de 2000, setorial, dentre os quais se destacam dois:
na economia agrícola do mundo, com a retomada do crescimento da economia educação voltada aos problemas do campo e
ao lado da União Europeia e chinesa, cujos reflexos foram importantes adequação da infraestrutura logística. Com
dos Estados Unidos, em razão para os países emergentes, incluindo o Brasil, relação ao primeiro ponto, os sistemas de alta
do grande investimento em tecnologia e do fomentou‑se o comércio internacional de produtividade requerem investimento em
rápido crescimento da demanda por bens bens agropecuários. capital. Para transferir tecnologia e, conse‑
agropecuários (alimentos, fibras e energia). O avanço da pesquisa, em especial da quentemente, aumentar a produtividade, é
Diante da revolução agrícola que ocorreu no Embrapa e de universidades, baseada nas necessário investir em treinamento, educação
país desde a criação da Embrapa, nos anos características específicas do território brasi‑ e qualidade do ensino rural, aperfeiçoando
1970, até o presente, há espaço para cresci‑ leiro, produziu pacotes tecnológicos adaptados o capital humano e os serviços prestados
mento da produtividade por causa de dois e responsáveis pela grande tropicalização da aos produtores. O retorno é traduzido no
fatores: melhorias em gestão e investimento agricultura no país. Algumas tecnologias aumento da capacidade de absorção de
em infraestrutura logística. responsáveis por impactos significativos nos conhecimentos externos. A inovação em
O país atende ao mercado interno com sistemas de produção de alimentos foram o gestão depende da qualificação do agricultor.
80% da sua produção e exporta o excedente plantio direto, a fixação biológica de nitrogênio, No que diz respeito ao segundo ponto,
para mais de 180 países. Seus parceiros o melhoramento genético de animais e a as exportações de grãos pelos portos não
comerciais são a União Europeia, a China, os biotecnologia, que impulsionou o intercâmbio tradicionais do Norte e Nordeste – Itacoatiara
Estados Unidos, o Japão, a Rússia e a Arábia de germoplasma dos principais cultivos e (AM), Santarém e Vila do Conde (PA), Itaqui
Saudita. Em 2014, o PIB brasileiro atingiu aumentou a resistência genética das plantas (MA) e Salvador (BA) – cresceram de 13
US$ 2,2 trilhões, o que posicionou o país ao clima tropical, inclusive com a introdução milhões para 20 milhões de toneladas entre
na sétima maior economia do mundo e a de organismos geneticamente modificados. 2014 e 2015. O cenário revela a importância
mais influente na América Latina. O setor Em 2015, o cenário de recessão no país da execução de projetos viáveis ao escoamento
contribuiu substancialmente para a obtenção e de redução no ritmo de crescimento da produção por novas rotas, promovendo
de divisas, sendo 22,5% do PIB brasileiro da demanda mundial, influenciado pela a melhoria das estradas e a expansão da
provenientes do agronegócio. O saldo do desaceleração da economia chinesa, causou oferta dos modais hidroviários e ferrovi‑
comércio internacional do agronegócio desconfiança aos investidores e queda da ários. O investimento em infraestrutura é
passou de aproximadamente US$ 11 bilhões, receita das exportações do agronegócio. O essencial para o crescimento e a integração
em 1989, para US$ 83,9 bilhões, em 2013, valor da receita foi 10,8% inferior ao regis‑ econômica das Regiões Norte e Nordeste
exibindo uma taxa de crescimento anual de trado no mesmo período de 2014. Apesar com o resto do país.
8,8% no período. da frágil situação política e econômica, o O planejamento da educação e da infra‑
Embora a primeira metade dos anos 1990 Brasil é um importante ator no mercado estrutura reduzirá não somente os custos
tenha sido extremamente instável para o agro‑ de produtos agrícolas. Sua agroindústria produtivos como, também, ampliará a
negócio, a segunda metade foi representada é bem desenvolvida, o que contribui para competitividade do agronegócio, notadamente
pela estabilização macroeconômica, o que tornar o cenário agropecuário dinâmico num período de forte ajuste financeiro, como
contribuiu para alavancar o setor. A expansão e competitivo. Já no ano de 2016, tem‑se vivenciado pela economia brasileira.
dos mercados proporcionou acesso ao crédito e uma retomada do crescimento, colocando
incentivos governamentais, tais como isenções o agronegócio novamente no topo da lista
fiscais, financiamento da pesquisa agrícola e dos setores mais exportadores. Rebecca Lima Albuquerque Maranhão é mestre em Geografia pela
Universidade de Brasília (UnB) e bolsista PNPD, Ipea
melhorias no desenvolvimento dos canais de Entretanto, muitos fatores ainda são
José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho é técnico de Planejamento e Pesquisa
comercialização e infraestrutura, incentivando apontados como barreiras ao desenvolvimento da Diretoria de Estudos Regionais, Urbanos e Ambientais (Dirur) do Ipea

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 29


VIOLÊNCIA

30 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Lei Maria da Penha
enfrenta novos desafios
ao completar 10 anos
O país evoluiu muito na prevenção e condenação das agressões de gênero
nesse período. Mas o machismo e a mentalidade patriarcal ainda impedem
que serviços de atendimento funcionem de forma eficaz nessas ocorrências

Carla Lisboa – de Brasília

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 31


A
Lei Maria da Penha completou por exemplo, no caso da funcionária

40%
10 anos em 2016, mas ainda são terceirizada do Ipea Marcela Aragão,
muitos os desafios no combate assassinada pelo marido em 2011,
à violência contra a mulher no com requintes de crueldade, na frente
Brasil. Ana Cristina Santiago, titular da do filho de um ano e meio. Apesar
Delegacia Especial de Atendimento à
Mulher (Deam) do Distrito Federal, diz
das denúncias dos testemunhos e das evidências, o
acusado está solto.
que, embora o número de denúncias de violência contra mulher são Márcia Aragão, irmã de Marcela,
tenha aumentado nos últimos 10 anos, notificadas pelas delegacias conta que, à época, a polícia teria
por causa da lei, as notificações ainda cometido uma série de equívocos,
estão longe de expressar a realidade. dentre eles o de não coletar as provas
Elas correspondem, atualmente, a e não fotografar o corpo no local do
40% dos casos. minutos uma denúncia de violência crime. No Instituto Médico Legal, a
A delegada afirma que os principais é registrada no país e a cada 11, uma situação, segundo ela, continuou: a
motivos são o medo, a vergonha e a mulher é estuprada, segundo dados da medicina legal não teria registrado
revitimização pelos agentes públicos Secretaria Especial de Políticas para em laudo os ferimentos que levaram
– um reflexo da violência praticada as Mulheres (SPM). Marcela à morte. Em virtude dessas
por ação e/ou omissão nas instituições O atendimento precário muitas e de outras falhas, a Justiça de Goiás
prestadoras de serviços públicos. O vezes oferecido às mulheres agredidas não reconheceu as provas e não viu
país ainda tem muito a caminhar. acaba sendo um fator de promoção motivos para condenar o marido.
Prova disso é o fato de que a cada sete da impunidade. Foi o que se viu, Mais recentemente, neste ano, um
estupro coletivo contra uma adoles‑
cente de 16 anos, no Rio de Janeiro,
Divulgação / Ipea
reacendeu o debate nacional sobre a
violência de gênero e pautou a discussão
sobre as dificuldades de o Estado

“(A Lei Maria da Penha)


Nasceu de movimentos sociais,
discutida pelos operadores
do Direito, e quando chegou
ao Congresso Nacional já
havia sido debatida em
vários órgãos do Estado”

Daniel Cerqueira, técnico de


Planejamento e Pesquisa do Ipea

32 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Divulgação / Ipea

atender as mulheres vulneráveis a


tais ocorrências. Um vídeo, divulgado
nas redes sociais, mostrava detalhes
da agressão. O Ministério Público do
Rio de Janeiro recebeu mais de 800
denúncias contra o crime. O vídeo
postado e a revelação da adolescente
de que teria sofrido revitimização na
delegacia trouxeram à tona o despreparo
de agentes públicos na abordagem da
violência contra as mulheres.
A advogada da garota, Eloísa Samy,
pediu a saída do delegado Alessandro
Thiers do caso porque, segundo ela,
o titular da Delegacia de Repressão
aos Crimes de Informática (DRCI)
tentou culpar a vítima pelo crime. Por
que motivos o Brasil não consegue
conter esse tipo de crime, depois de ter “Entre 2005 e 2008, houve um A Lei do Feminicídio complementa
criado e ampliado, entre 2006 e 2015, crescimento de mais de 1.700% essa diretriz”, afirma a pesquisadora.
equipamentos, novas leis e serviços de
no total de atendimentos
combate à violência contra a mulher?
O estudo do Ipea intitulado realizados (pelo Ligue 180), NÚMERO DE REGISTROS  A partir de 2003,
Avaliando a efetividade da Lei Maria que passaram de quase 15 houve avanços significativos com a
da Penha dá conta do impacto da mil, no primeiro ano de instalação da Secretaria Especial de
legislação sobre homicídios num funcionamento do serviço, para Políticas para Mulheres (SPM), do
momento em que ainda não havia cerca de 271 mil, em 2008” Pacto Nacional pelo Enfrentamento
norma legal sobre o tema. Para Daniel à Violência contra as Mulheres, da
Cerqueira, técnico de Planejamento Luana Simões Pinheiro, coordenadora Casa da Mulher Brasileira, da Central
e Pesquisa do Instituto, um dos de Igualdade de Gênero e Raça da Diretoria de Atendimento, além da própria Lei
autores do estudo, a norma é um de Estudos e Políticas Sociais (Disoc/Ipea) Maria da Penha.
marco na história do país. “Nasceu Luana Pinheiro também realizou
de movimentos sociais, discutida uma análise, em conjunto com outros
pelos operadores do Direito, e quando de feminicídios e como a ação do técnicos do Ipea, sobre o número de
chegou ao Congresso Nacional já Estado tem possibilidade de impactar reclamações registrado no Central da
havia sido debatida em vários órgãos diretamente esse tipo de crime. A Lei Mulher – Ligue 180. A análise, apre‑
do Estado”, pondera. extrapolou os limites das punições e sentada em um artigo durante o XIV
Luana Simões Pinheiro, coor‑ estabeleceu o debate nacional sobre Congresso Brasileiro de Sociologia,
denadora de Igualdade de Gênero desigualdade de gênero, além de uma mostra que, “entre 2005 e 2008, houve
e Raça da Diretoria de Estudos e série de discussões sobre medidas um crescimento de mais de 1.700% no
Políticas Sociais (Disoc/Ipea), por preventivas nunca vistas no Brasil. total de atendimentos realizados, que
sua vez, aponta várias características “Isso não quer dizer que com a passaram de quase 15 mil, no primeiro
interessantes do estudo e ressalta o Maria da Penha esse crime começou ano de funcionamento do serviço,
fato de ele ter mostrado que a Lei a cair, mas, se estava crescendo muito, para cerca de 271 mil, em 2008”. O
Maria da Penha conteve o aumento após a lei, parou de crescer em 10%. aumento no número de registros

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 33


Divulgação / Ipea

também evidenciou a necessidade de


rever as classificações adotadas, bem
como a carência de um trabalho sobre
organização, atribuições e compe‑
tências de cada um dos serviços que
compõem o aparato da segurança
pública para o setor.
Trata‑se, contudo, de problema
complexo e, por isso, as respostas que
o Estado pode dar também não podem
ser simples. “Nos últimos anos, a criação
da SPM e dos instrumentos de proteção
e de combate à violência colocou em
pauta esse tema”, reconhece Luana.
Até então, a violência era entendida
como um problema de segurança
pública. “A gente pode colocar toda
a polícia do mundo na rua que isso
não vai impedir a continuidade desse
tipo de violência”, ressalta. “Em mais de 70% dos casos para que a cultura da violência seja
A Organização Mundial da Saúde de estupro registrados no combatida. “É muito importante
(OMS) revelou que 35% das mulheres Sinan, há envolvimento termos leis e podermos responsabilizar
do mundo sofreram agressão física um criminoso, mas, para existir uma
de familiares, amigos ou
e/ou sexual cometida por parceiro ação efetiva, esse problema passa,
conhecidos das vítimas.
íntimo ou por não parceiro. Ou seja, necessariamente, pela educação”.
uma a cada três mulheres no mundo Isso leva muitas delas a não Segundo ela, o país precisa que
sofreu de agressão verbal e outras denunciarem e nem buscarem todas as delegacias, dentro das suas
formas de abuso emocional, passando atendimento por vergonha, limitações e peculiaridades, consigam
pela violência física ou sexual, com temor de serem julgadas ou prestar um mínimo de atendimento
expressão máxima no feminicídio. estigmatizadas, ou ainda medo às vítimas. É o caso da 21ª Delegacia
Levantamento da SPM mostra de Polícia, em Planaltina, no Distrito
de uma reação mais violenta
que habitantes de cidades menores, Federal. Lá, uma antiga delegada titular
do agressor denunciado”
afastadas dos grandes centros, têm criou uma sala especial, destinada ao
dificuldades para acessar os serviços. atendimento feminino. Ao saber da
Leila Posenato Garcia, técnica de inovação, o diretor da Polícia Civil
A delegada Ana Cristina Santiago,
Planejamento e Pesquisa do Ipea
da Deam‑DF, lembra que “temos o replicou a iniciativa e pediu que os
problema da cultura patriarcal e da delegados procurassem ter uma expe‑
desigualdade de gênero no Brasil, riência parecida em suas unidades.
que naturalizam e sustentam a cultura fechou as pernas na hora do estupro”. Segundo a delegada Ana Cristina, a
da violência contra a mulher. Se não Segundo a delegada, tais abusos têm polícia precisa oferecer um serviço de
atacarmos isso, estaremos sempre base acentuadamente cultural e se qualidade logo no momento em que
enxugando gelo”, afirma. Ela cita um originam em uma formação patriarcal a vítima chega à delegacia e mandar
exemplo de mau atendimento por e machista, derivada da escravidão. para o juiz um relato o mais completo
parte de agente público. “Uma juíza Para Ana Cristina, a discussão de possível para que se possa definir a
perguntou à vítima por que ela não gênero na sociedade é fundamental medida condizente com a situação.

34 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


AQUÉM DA REALIDADE   O Sistema de
Informação de Agravos de Notificação
(Sinan), ligado ao Sistema Único de
Saúde (SUS) e ao Ministério da Saúde,
OS NÚMEROS
DA VIOLÊNCIA
aponta que, em 2015, foram regis‑
trados 17.871 atendimentos a casos
de estupros contra pessoas do sexo
feminino e em 71% deles as vítimas
eram crianças entre zero e 12 anos, ou
adolescentes entre 13 e 19 anos. “Isso
corresponde a uma média de 49 aten‑
dimentos por dia ou mais de dois por
hora”, informa Leila Posenato Garcia,
técnica de Planejamento e Pesquisa do
Ipea e doutora em epidemiologia. O
levantamento do Sinan também mostra
que 56.036 crianças e adolescentes do

17.871
sexo feminino foram estupradas no atendimentos de casos de estupros
Brasil entre 2011 e 2015. contra pessoas do sexo feminino
Apesar do aumento das notificações foram registrados em 2015
a cada ano nos registros do Ligue 180,
da Segurança Pública (Boletins de
Ocorrência) e do Sinan, ela avalia que
os números estão aquém da realidade.
“Os registros de estupros de 2015 são
preliminares porque 40% dos municípios
ainda não notificaram os atendimentos
56.036
crianças e adolescentes do sexo
ao Sinan. Nos municípios onde é feminino foram estupradas no Brasil
realizada a notificação, nem todas as entre 2011 e 2015
vítimas chegam a ser atendidas pelos
serviços de saúde”, explica Leila. Há
uma barreira moral, pela vergonha e
humilhação, além da econômica, diz
a técnica do Ipea.
O Ministério da Saúde considera que
os casos de notificação correspondem
a apenas 10% das ocorrências. Sendo
71%
assim, o número de estupros no Brasil
seria, hoje, 10 vezes maior do que o
registrado no Sinan, correspondendo
a cerca de 500 por dia ou mais de 20
a cada hora. O Anuário de Segurança
dessas vítimas eram crianças entre zero e 12 anos
Pública indica que, em 2014, foram
ou adolescentes entre 13 e 19 anos
registrados 47.646 estupros, com subno‑
Fonte: Sinan
tificação estimada em 35%. Segundo

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 35


Divulgação
“A lei diz que a vítima pode
e deve ir até uma delegacia
para denunciar. Ela vai
lá. Mas, do outro lado, na
delegacia, muitas vezes, ela
se depara com um agente
público contaminado pela
cultura machista. Assim,
o atendimento, muitas
vezes, não responde ao
que a lei preconiza”

Olgamir Amância, ex‑secretária da Mulher


do Distrito Federal e professora da UnB

uma pesquisa do Fórum Brasileiro de adolescentes, ocorrido na noite de 27 de um morro de 10 metros de altura.
Segurança Pública, do mesmo ano, de maio de 2015, foi “cruel e muito Atendida no Hospital de Urgência de
90% das mulheres revelaram ter medo bárbaro”. Os cinco criminosos, dos Teresina (HUT), uma das adolescentes
de serem vítimas de agressão sexual. quais quatro eram menores, após morreu 10 dias depois. As outras sobre‑
Estudos indicam que um dos prin‑ violentarem as meninas, cortaram viveram. O caso ocorreu dois meses
cipais problemas que alimentam a os pulsos das vítimas, furaram os após a sanção da Lei do Feminicídio.
subnotificação é o fato de essa violência mamilos e os olhos e as arremessaram Mas o delegado não o classificou
ser definida pela invisibilidade. “Ocorre,
principalmente, no âmbito privado e
é, em grande parte, perpetrada por
familiares e conhecidos. Em mais
de 70% dos casos de estupro regis‑
trados no Sinan, há envolvimento de
familiares, amigos ou conhecidos das
vítimas. Isso leva muitas delas a não
denunciarem, nem buscarem atendi‑
mento por vergonha, temor de serem
julgadas ou estigmatizadas, ou ainda
medo de uma reação mais violenta do
agressor denunciado”, afirma Leila.
Assim, nem todas as ocorrências
ganham visibilidade e isso só ocorre
em casos extremos.
É o caso, por exemplo, do estupro
coletivo ocorrido em Castelo do Piauí,
a 190 km de Teresina. O delegado do
município, Laércio Evangelista, disse,
à época, que o crime contra quatro

36 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Divulgação

como tal. Só foi entendido assim após


Anadine Gasman, representante da
ONU Mulheres no Brasil, publicar
nota afirmando que o crime deveria
ser enquadrado na nova legislação.
Ao classificar crimes de femini‑
cídio, bem como ao implantar medidas
para conter tal violência, o estado do
Piauí avançou. Margarete Coelho (PP),
vice‑governadora, afirma que, agora,
“aquela lesão corporal grave contra
a mulher não será mais considerada
crime comum, e sim tentativa de crime
hediondo, de feminicídio”. A ex‑secretária
da Mulher do Distrito Federal e profes‑
sora da Universidade de Brasília (UnB)
Olgamir Amância avalia que essa atitude
servirá de exemplo para outros juízes. muitas vezes, não responde ao que a lei “Em meados do século XX e
“A lei diz que a vítima pode e deve ir preconiza”, sublinha. até cerca de 40 anos atrás,
até uma delegacia para denunciar. Ela
a sociedade e os códices
vai lá. Mas, do outro lado, na dele‑
gacia, muitas vezes, ela se depara com GRANDE PASSO   Para Leila Posenato perdoavam o assassino
um agente público contaminado pela Garcia, todos os equipamentos e da própria esposa se ela
cultura machista. Assim, o atendimento, leis existentes no Brasil constituem o houvesse traído, porque
um grande passo para resolver a entendiam que o ato
violência de gênero. Contudo, nenhum violento de lavar a honra
Pixabay Images
instrumento de combate a esse tipo justificava o crime”
de violência será eficiente e eficaz
enquanto existir o tratamento desigual
Maria da Graça Sousa, advogada
A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz em todas as fases da vida da mulher,
que 35% das mulheres do mundo sofreram
agressão física e/ou sexual cometida por em todas as áreas, nos âmbitos social,
parceiro íntimo ou por não parceiro. Ou seja, familiar, trabalho, empresas privadas, Leila Posenato. O Instituto Brasileiro
uma a cada três mulheres no mundo sofreu
de agressão verbal e outras formas de abuso setor público. “Na política, essa desi‑ de Geografia e Estatística (IBGE)
emocional, passando pela violência física ou gualdade é muito evidente porque mostrou, recentemente, que, entre
sexual, com expressão máxima no feminicídio
nós, mulheres, somos a maioria da pessoas empregadas e com trabalhos
população e temos uma representação semelhantes, a mulher recebe em
política em torno de 10%”, lamenta. O média 80% do valor recebido pelo
Brasil é o 16º país da América Latina homem. O Brasil precisa de políticas
a sancionar a Lei do Feminicídio. públicas em todas as fases do ciclo
“Quando se comparam os indicadores de desigualdade de gênero, que está
de desigualdade de gênero, ficamos atrelado ao ciclo de violência.
muito atrás no ranking de igualdade “Em outros países houve indução
e um dos aspectos que mais pesam do Estado. As mulheres lutaram e
nesse indicador são a representação tiveram o respaldo do poder público.
política e a diferença salarial”, afirma Isso requer vontade política e inves‑

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 37


timento em atividades de redução Maria da Graça Sousa, advogada de esse problema social sem a educação
das desigualdades de gênero”, avalia a mulheres vítimas de violência domés‑ e sem o combate à desigualdade de
técnica do Ipea. Olgamir Amância, da tica e militante da causa feminista no gênero. Ele atua na Casa da Mulher
UnB, acredita que não se pode falar em Distrito Federal, diz que, “até os anos Brasileira, administrada pelo Governo
enfrentar a violência contra a mulher 1960, a lei culpabilizava a mulher”. do Distrito Federal (GDF) e apoiada
sem estrutura, aparato policial, sem Ela lembra que, em meados do século pelo governo federal.
mecanismos de punição que coíbam XX e até cerca de 40 anos atrás, a No DF, os serviços de enfrentamento
essa ação violenta. “Mas isso não basta. sociedade e os códices perdoavam o à violência contra a mulher são desen‑
Precisamos de mais políticas públicas, assassino da própria esposa se ela o volvidos nos Centros de Atendimento à
precisamos de uma educação que se dá houvesse traído porque entendiam Mulher; nos Núcleos de Atendimento à
no ambiente da escola, mas também que o ato violento de lavar a honra Família e Autores de Violência Doméstica
em outros espaços, mais ampla e justificava o crime. O psicólogo Carlos (NAFAVD); na Casa Abrigo; na Casa
de desconstrução desses valores da Frederico de Macedo Coelho, por sua da Mulher Brasileira; na Delegacia de
cultura patriarcal”. vez, acha que não há como enfrentar Atendimento à Mulher; e no setor de

Uma iniciativa da professora Gina “A ideia do projeto começou O Mulheres Inspiradoras ofereceu
Vieira, do Distrito Federal, comprova quando observei, pelas redes sociais, outros referenciais. O trabalho de
que a desigualdade e a violência de que as estudantes tendiam a repro‑ classe fez com que os estudantes
gênero podem ser combatidas na duzir o referencial de mulher objeto lessem seis obras de autoria feminina.
escola. Trata‑se do Projeto Mulheres sexual, o mais celebrado pelas Eles também conheceram histórias
Inspiradoras, criado por ela. É um grandes mídias”. De acordo com de mulheres da própria comunidade
dos vencedores do Prêmio Nacional a professora, muitas delas, para com atuação expressiva em favor
de Educação em Direitos Humanos, sentirem-se valorizadas, percebidas da coletividade e, por fim, foram
em 2014, e primeiro lugar no Prêmio e aceitas, copiavam esses modelos. orientados a escolher a mulher
Ibero‑Americano de Educação em “Era comum postarem fotos e vídeos inspiradora da vida de cada um. A
Direitos Humanos. Foi aplicado com comportamentos erotizados e maioria escolheu a mãe, a avó ou a
com 150 estudantes de uma escola incompatíveis com a idade delas”, bisavó. Após entrevistá‑las, escreveram
pública de Ceilândia. declara Gina Vieira. textos, nos quais contaram a história

38 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


assistência social para um atendimento vezes, dificultam o rompimento desse “Muitas vezes, a capacitação se restringe
mais genérico, como os Centros de universo de violência”, ressalta Gina a uma palestra de uma tarde para
Referência Especializada em Assistência Vieira, professora da rede pública de falar sobre gênero ou sobre como
Social (Creas). ensino do Distrito Federal, autora do lidar com a violência doméstica. E em
“O trabalho nesses equipamentos projeto Mulheres Inspiradoras, que uma tarde não se aprende nada. Falta
visa ao fortalecimento da mulher, combate crimes cibernéticos contra investimento. Falta vontade política
orientação para que ela busque algum as mulheres, o qual conquistou o também”, completa. A reportagem de
tipo de ação do Estado para romper primeiro lugar no Prêmio Ibero- Desafios do Desenvolvimento procurou
com o ciclo de violência doméstica. Na Americano de Educação em Direitos a Secretaria Especial de Políticas para
Casa da Mulher Brasileira e nos CEAM, Humanos promovido pela Organização Mulheres (SPM) para obter mais infor‑
a gente sugere os encaminhamentos de Estados Ibero-Americanos (OEI). mações sobre a estrutura e o preparo do
adequados, mas sabe muito bem que há O psicólogo Carlos Coelho aponta Estado no combate à violência contra
uma série de fatores socioeconômicos, a falta de preparo dos agentes públicos a mulher, mas não obteve retorno até
psicodinâmicos e emocionais que, às também como uma falha do Estado. o fechamento desta edição.

Divulgação
“Na maior parte das histórias,
identificamos as marcas do
machismo, como casos de mulheres
vítimas de violência doméstica,
do trabalho infantil, expulsas
de casa por terem engravidado,
situações em que os homens as
abandonaram para não assumir
a paternidade. Em todos os
episódios, as mulheres mostraram
uma enorme capacidade de
resiliência e de superação”

Gina Vieira, professora

de vida dessas mulheres e narraram homens as abandonaram para não meninos também se sensibilizaram
o que as torna inspiradoras. assumir a paternidade. Em todos os com os resultados.
“Na maior parte das histórias, episódios, as mulheres mostraram Os textos foram transformados em
identificamos as marcas do machismo, uma enorme capacidade de resili‑ livro, com o mesmo nome do projeto.
como casos de mulheres vítimas de ência e de superação. Tornaram‑se Muitas mães e avós confessaram que,
violência doméstica, do trabalho os sustentáculos de suas famílias e até a ocasião da entrevista, ainda não
infantil, expulsas de casa por terem contribuíram decisivamente para tinham se dado conta de que pode‑
engravidado, situações em que os a manutenção delas”, conta. Os riam ser uma “mulher inspiradora”.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 39


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ARTIGO Juliano Medeiros

Corrupção, transparência e participação popular

N
o último dia 2 de maio, o Ipea federal, foram constituídos ou aprimorados política, ampliando a quantidade de lugares,
recebeu o presidente da Associação nos últimos anos diferentes mecanismos de atores e funções da representação, que já não
Brasileira de Ciência Política, interação entre Estado e sociedade. Existem se resume ao Parlamento e se insere de modo
Leonardo Avritzer, para debater hoje 35 Conselhos Nacionais temáticos relativamente autônomo na própria estrutura
os impasses da democracia brasileira, que contam com a presença da sociedade administrativa do Estado. Há uma crescente
da participação popular e do combate à civil, além de outros mecanismos como as demanda por controle social e participação
corrupção. Para o presidente da ABCP, o 98 Conferências Nacionais sobre os mais da sociedade no controle e na fiscalização
Brasil possui um sistema político imune à diversos temas, realizadas desde o começo das instituições do Estado. Apenas no Portal
participação social. Tomando como ponto dos anos 2000. Esses mecanismos ampliaram da Transparência, mantido pelo governo
de partida as considerações do pesquisador o alcance da participação sem, no entanto, federal, foram mais de 11 milhões de visitas
da Universidade Federal de Minas Gerais e o assegurar a implantação efetiva de políticas apenas em 2013. Como destaca Avritzer, em
complexo momento político que vive o país, públicas reivindicadas por esses espaços. seu estudo sobre o Ministério Público e a
é válido perguntar: a participação popular Um bom exemplo é a Conferência Polícia Federal, apesar do grande número de
pode contribuir no combate à corrupção e Nacional de Comunicação, que reuniu instituições voltadas à promoção da prestação
no aumento da transparência? diferentes representantes da sociedade civil de contas – disseminado na Ciência Política
O conceito de participação surgiu no âmbito ligados ao tema e cujas iniciativas por ela pelo conceito de accountability –, como a
da teoria democrática em contraposição aos aprovadas nunca se transformaram em Controladoria Geral da União (CGU), os
limites da ideia clássica de representação, políticas públicas, como a regulamentação tribunais de contas e as mais de 270 ouvi‑
historicamente associada à defesa de modelos dos artigos constitucionais que tratam dorias federais, a forma pela qual se dão o
minimalistas ou estritamente eleitorais de das finalidades educativas e culturais controle e a fiscalização é essencialmente
democracia. Ao contrário, a participação da programação, da regionalização e da horizontal, isto é, são os órgãos de Estado que
vertebraria a crítica a tais modelos e serviria presença da produção independente no se fiscalizam mutuamente. Para estimular a
para elaborar propostas de democracia mais rádio e TV (Art. 220); ou que asseguram fiscalização vertical, aquela que permite que
ambiciosas.1 a proibição do monopólio e oligopólio no a sociedade exerça seu controle diretamente
No Brasil a participação deu um salto setor (Art. 221). Nesses casos, nada foi feito sobre as instituições de Estado, é que entra
na década de 1980 a partir da difusão das efetivamente para promover a posição da a participação popular.
novas teorias, do surgimento de novos sociedade civil aprovada na Conferência. Essa, no entanto, não é tarefa fácil. Apesar
movimentos sociais e da implantação de Apesar disso, um estudo do Instituto dos diversos estudos que comprovam que
programas específicos, criados com o Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro quanto mais participação social, maior a
propósito de democratizar a gestão do Estado (Iuperj), que procurou medir o impacto da transparência e, consequentemente, menor
e de aperfeiçoar as formas de interação participação popular na atividade legislativa, a corrupção, há ainda grande resistência
entre o poder público e a sociedade. Essa constatou que um quinto dos projetos de lei à ampliação do controle social sobre as
ampla mobilização origina várias formas e quase metade das propostas de emenda instituições de Estado. A resistência entre
de participação local, com destaque para a constitucional que tramitavam no Congresso, muitos legisladores ao Decreto nº 8.284, que
experiência do Orçamento Participativo, que em outubro de 2009, apresentavam forte instituiu a chamada Política de Participação
chegou a ser adotada por 192 municípios, convergência com deliberações de alguma Social, é apenas uma prova das dificuldades
administrados por vários partidos. conferência. de aprofundar os mecanismos de partici‑
Portanto, os mecanismos de participação Mas, apesar dessas limitações, o que mais pação na perspectiva de ampliar o alcance
popular não são novidade no Brasil. No âmbito chama a atenção em relação às políticas de do controle social.
participação é a forma como elas têm se
transformado, estimulando processos de Juliano Medeiros é doutorando em Ciência Política pelo Ipol/UnB e presidente
1 GURZA LAVALLE, A.; ISUNZA VERA, E. Representación y participación em la
critica democratica. Desacatos, n. 49, setembro‑dezembro 2015, pp. 10‑27. diferenciação e pluralização da representação da Fundação Lauro Campos.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 41


HISTORIA

42 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


A maior e mais
ousada iniciativa do
nacional‑desenvolvimentismo

Lançado em 1974, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) buscou enfrentar a crise
internacional da época sem levar o país à recessão, definindo uma série de investimentos em
setores-chave da economia. Combinava ação do Estado, da iniciativa privada e do capital externo.
Sua execução foi seriamente comprometida pelo aprofundamento da contração internacional. Mesmo
assim, foi capaz de dotar o Brasil de uma cadeia produtiva completa, algo inédito na periferia

Gilberto Maringoni – São Paulo

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 43


O
cenário era simétrico, opaco O país começava a vivenciar II Plano Nacional de Desenvolvimento
e nada televisivo. De um um período de desaceleração [II PND], julguei necessário referir‑me
lado, estava a bandeira e, ao cenário de perplexidade e obstá‑
paulatina da atividade
de outro, um panteão com culos pelo qual vem se arrastando a
o brasão da República. Um púlpito
econômica, um ano depois economia mundial, desde fins de 1973”.
de madeira escura, dois microfones de o presidente anunciar a Não havia retóricas de marketing,
e uma parede revestida com madeira mais ousada intervenção efeitos especiais ou fundo musical.
marrom emolduravam o personagem, articulada do Estado na Pelos 44 minutos seguintes, na véspera
um senhor de cabelos brancos, terno atividade econômica. O II do Natal de 1975, o presidente da
escuro e aparência grave. A voz era PND priorizava o aumento República Ernesto Geisel (1974‑1979),
monocórdia e sem emoção, ao ler um em rede nacional de rádio e televisão,
da capacidade energética
maço de papeis que trazia nas mãos: faria algo impensável nos dias de hoje.
“Brasileiros. Em diferentes oportuni‑
e da produção de insumos Leria um consistente diagnóstico da
dades, particularmente por ocasião do básicos e de bens de capital situação brasileira e mundial e daria

Portal Memorial da Democracia

Troca de guarda: Emílio Garrastazu Médici e


seu sucessor, Ernesto Geisel, em fins de 1973

44 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Presidência da República

ciência das iniciativas de sua gestão mais elaborado plano econômico do


perante tal quadro. ciclo desenvolvimentista.
“A verdade é que não estamos diante Para o cientista político José Luís
de uma simples crise, aguda embora, de Fiori, “o governo Geisel, navegando
reajustamento econômico em larga escala. contra uma maré ideológica e econô‑
Enfrentamos uma mudança estrutural mica internacional desfavorável, foi
de toda a economia mundial. O Brasil o último dos desenvolvimentistas
está conseguindo evitar a estagnação latino-americanos e, certamente, o
e a recessão”, dizia com formalismo o mais acabado realizador da proposta
quarto general da ditadura. industrializante da Comissão Econômica
Dois meses antes, em 25 de outubro, para a América Latina (Cepal) do fim
boa parte da opinião pública se dos anos 1940”.
chocara com a notícia do assassinato O plano vinha de uma tradição de
– propagado como suicídio – do ordenamento econômico que vicejou
jornalista Vladimir Herzog numa especialmente a partir dos anos 1930.
cela dos órgãos de repressão polí‑ Na época, a ação dos Estados nacionais
tica, em São Paulo. Politicamente, foi decisiva para tirar vários países
o governo estava em meio a uma da depressão e estabelecer eficazes
queda de braço entre o presidente “O plano foi montado em políticas anticíclicas alavancadas por
e os setores mais duros do regime. grande parte pelo Ipea, com investimentos públicos que estimularam
A censura prévia havia acabado na algumas ideias que eu tinha a demanda agregada para reverter a
imprensa. Disputas intestinas de poder rota descendente dos mercados.
exposto na primeira reunião
resultariam em um recrudescimento
ministerial, e contou com
e quase descontrole da repressão
política nos meses seguintes. a colaboração de todos os A PALAVRA DE GEISEL  No início dos
Geisel alternava o olhar entre o texto ministros. Foi muito discutido, anos 1990, o general Geisel, em
e a câmera e falava de subsídios à agri‑ inclusive no Congresso, que longo depoimento a Maria Celina
cultura e de “setores sem dinamismo”. o aprovou com algumas D’Araujo e a Celso Castro, do Centro de
Detalhava investimentos nas áreas de emendas, entrando em vigor Pesquisa e Documentação de História
bens de capital e de infraestrutura. Contemporânea do Brasil (CPDOC),
em dezembro de 1974”
Comentava a situação delicada do da Fundação Getúlio Vargas (FGV‑RJ),
balanço de pagamentos e saltava para falou de sua biografia e destacou
Ernesto Geisel, ex‑presidente da República
um tema que lhe era caro: a política as ações de seu governo. O II PND
energética. mereceu foco especial.
“O plano foi montado em grande
planejamento como métrica e uma parte pelo Ipea, com algumas ideias
DESACELERAÇÃO PAULATINA  O país combinação de capital privado, estatal que eu tinha exposto na primeira
começava a vivenciar um período de e externo nos papeis de motores do reunião ministerial, e contou com
desaceleração paulatina da atividade crescimento. O II PND priorizava o a colaboração de todos os minis‑
econômica, um ano após o presidente aumento da capacidade energética e tros. Foi muito discutido, inclusive
anunciar a mais ousada intervenção da produção de insumos básicos e de no Congresso, que o aprovou com
articulada do Estado na atividade bens de capital. algumas emendas, entrando em vigor
econômica. Tratava‑se de um ambi‑ Engendrado e concretizado em em dezembro de 1974”.
cioso projeto de investimentos e meio a uma forte contração da Nas palavras do ex‑presidente, “o II
estímulos coordenados, que tinha o economia mundial, aquele foi o PND não era rígido. Era uma diretriz

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 45


Sidney Murieta/ Ipea

quadra de apartamentos funcionais


em Brasília]. Eu passava lá os fins
de semana, escrevendo o plano com
base em ideias minhas, mas usando
os documentos que tinha recebido
do Ipea e com alguns subsídios do
Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES)”

DILEMAS DOS ANOS 1970  Maria da


Conceição Tavares, no artigo “A arran‑
cada da economia brasileira em tempos
de crise”, aponta a conjuntura em que
o leque de medidas foi concebido:
“Na primeira metade dos anos
1970, o sistema mundial foi abalado

para os diferentes órgãos do governo


“Na primeira metade dos anos
pautarem suas ações e, como tal, foi
sujeito a modificações ou a reduções, 1970, o sistema mundial foi O que era o II PND 
conforme a situação”. abalado por dois fatos que,
Partia da meta governamental de ao afetar o centro e também Espalhado em 136 páginas –
concluir a cadeia produtiva interna – a periferia, provocariam disponíveis na internet –, o texto do
bens de consumo leves, bens duráveis e recessão e obrigariam a II PND é dividido em quatro partes
bens de capital – por meio de pesados – “Desenvolvimento e grandeza: o
economia do mundo todo
investimentos em infraestrutura e na Brasil como potência emergente”;
a promover mudanças que “Grandes temas de hoje e de amanhã”;
indústria de bens de capital. Buscava,
com isso, superar a “industrialização levaram ao fim a chamada “Perspectivas: o Brasil no fim da
restringida”, expressão de João Manuel Era Dourada do capitalismo” década”; e “Ação para o desenvol‑
Cardoso de Mello, e criar um feito vimento” – em 15 capítulos. É um
inédito em economias periféricas: o Maria da Conceição Tavares, economista arrazoado sintético e direto, pelo
de tornar o Brasil uma potência até conjunto de ações ali propostas. Não
o fim do século. são definidas apenas iniciativas de
No depoimento, Geisel completava: investimentos, mas são esboçadas
“O II PND pretendia alcançar um O então ministro do Planejamento, suas fontes de financiamento e
desenvolvimento integrado, não apenas João Paulo dos Reis Velloso, em métodos de gestão.
econômico, mas também social. Além entrevista a esta revista, em 2008, Após traçar um breve quadro da
do aumento da produção nacional, lembrou que, “com o II PND, passamos situação econômica internacional,
nossa preocupação era, tanto quanto a dominar o paradigma industrial aquelas linhas se voltam para o
possível, assegurar o pleno emprego, da época, que eram metalurgia e cenário interno e buscam breve‑
evitando o agravamento de nossos indústrias mecânicas”. O ex‑ministro mente diagnosticar os principais
problemas sociais e promovendo assinala que o conjunto “foi escrito gargalos a serem vencidos.
melhorias na sua solução”. por mim lá na SQS 114 [então uma

46 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


por dois fatos que, ao afetar o centro de conter a especulação no mercado taram em mais de 300%, gerando déficits
e também a periferia, provocariam cambial, Nixon rompeu com o padrão nas balanças comerciais das nações
recessão e obrigariam a economia do estabelecido em Bretton Woods, pelo importadoras”, escreveu a economista.
mundo todo a promover mudanças qual a moeda norte‑americana tinha Diante de tal situação de desacele‑
que levaram ao fim a chamada Era sua conversibilidade em ouro”. ração econômica e de forte pressão nas
Dourada do capitalismo”. O chamado O segundo fato, aponta ela, decorreu contas de juros das dívidas externas,
“milagre econômico”, com taxas de do acirramento do conflito no Oriente os países da periferia foram pressio‑
crescimento acima de 10% ao ano, Médio, quando, depois da Guerra do nados a fazer rápidos e fortes ajustes
vivia seus estertores. Yom Kipur e do apoio explícito dos em suas economias. O Brasil resistiu.
A professora da Universidade Federal Estados Unidos a Israel, a Organização
do Rio de Janeiro (UFRJ) lembra que o dos Países Exportadores de Petróleo
primeiro desses fatos se deu quando o (Opep) impôs um embargo aos países do EXPANSÃO E CRISE  A ousadia do governo
governo de Richard Nixon, em agosto Ocidente, com forte redução da oferta brasileiro estava em não adotar medidas
de 1971, mudou drasticamente a estra‑ de óleo bruto no mercado mundial. restritivas, mas, ao contrário, de contar
tégia dos Estados Unidos em relação “Entre outubro de 1973 e março de com a possibilidade de um novo
à sua moeda. “Diante do enfraque‑ 1974, ante a redução da oferta em cerca ciclo de endividamento – enquanto
cimento do dólar e da incapacidade de 50%, os preços do petróleo aumen‑ os juros ainda não haviam subido

Seus eixos principais são a defi‑ urbano, planos de investimentos e de um modelo para a produção e
nição das estratégias, o traçado de financiamentos, emprego, programa comercialização agrícola.
uma política industrial e agrícola, a nuclear e espacial e a articulação com • O advento de um poderoso setor
discriminação das competências do a economia mundial. de bens de produção: indústrias
Estado e do mercado, as carências As alavancas centrais da ação do siderúrgica, química pesada,
demográficas, a integração nacional, governo Geisel, nessa perspectiva, metais não-ferrosos e minerais
a ocupação produtiva do Norte, do estavam centradas em três áreas não-metálicos.
Nordeste e do Centro-Oeste, os fundamentais: • Energia: petróleo e derivados,
investimentos em infraestrutura e • Infraestrutura: ampliação da energia hidroelétrica e fontes
energia, problemas de poluição e malha rodoferroviária, da rede de alternativas (etanol e energia
meio ambiente, desenvolvimento telecomunicações e da constituição nuclear).

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 47


Agência Brasil / Portal EBC

Embora a repressão não fosse tão aberta, como nos anos mais duros, Geisel combinou autoritarismo e desenvolvimento em seu projeto de completar a cadeia produtiva interna

significativamente – para manter o Entre o envio ao Congresso De forma um tanto rebuscada,


impulso desenvolvimentista. e a sanção da lei, em 4 de isso significava evitar uma profecia
O testemunho de Ernesto Geisel dezembro de 1974, o mundo autorrealizável.
deixa claro tal propósito: “A política Entre o envio ao Congresso e a
literalmente caiu para
de meu governo [...], apesar da alta do sanção da lei, em 4 de dezembro de
petróleo e dos males decorrentes de a ditadura. Nas eleições 1974, o mundo, literalmente, caiu
nosso balanço de pagamentos, visou de 15 de novembro, que para a ditadura. Nas eleições de 15
sempre a evitar a recessão”. renovariam um terço das de novembro, que renovariam um
Na mensagem que enviou ao cadeiras do Senado e a terço das cadeiras do Senado e a
Congresso Nacional, em 10 de setembro totalidade dos assentos da totalidade dos assentos da Câmara
de 1974, juntamente com o texto inicial Câmara dos Deputados, a dos Deputados, o regime conheceria
do plano, o mandatário parecia se uma derrota inesquecível.
ditadura conheceria uma
precaver contra possíveis acusações O governo, por meio da Aliança
de voluntarismo: derrota inesquecível Renovadora Nacional (Arena),
“É certo que não pode haver lugar elegeu 203 deputados e a oposição,
para otimismos exagerados, num abrigada no Movimento Democrático
universo de profecias sinistras que derrotista, seria refugar o esforço Brasileiro (MDB), obteve 161 vagas,
vão da estagnação inflacionária à construtivo que, com fé, tudo pode, e de um total de 364. Perdia assim a
depressão econômica arrasadora. Por aceitar, pela apatia e pelo desânimo, a maioria qualificada, que lhe facultava
outro lado, conformar‑se, a priori, generalizarem‑se em ondas sucessivas, realizar alterações constitucionais
ante tais expectativas sombrias de a realização, afinal, daqueles mesmos com tranquilidade. Das 22 vagas em
dias difíceis, com um pessimismo prognósticos negativos”. disputa no Senado, o MDB levou

48 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Antônio Cruz / Agência Brasil

16. Começava a longa decadência


do regime.
Nesse quadro complicado, o governo
decidira chutar o balde, em matéria
econômica.

DIFICULDADES EXTERNAS  O II PND foi


a principal ferramenta para a consti‑
tuição de uma economia moderna e
diversificada no Brasil. Apesar disso,
teve graves insuficiências em sua
execução. A maior delas foi a baixa
confiança inicial – seguida de aberta
oposição – do capital privado nacional.
O agravamento da situação externa
e a elevação unilateral dos juros nos
Estados Unidos foram fatais para os
Em 1977, o Congresso foi fechado por 14 dias, devido à decretação do recesso parlamentar pelo Pacote de Abril
objetivos oficiais.
A realização de um grande empuxo
desenvolvimentista lastreado em “Se o II PND não chegou Abril de 1977. Com aquela medida,
financiamentos externos e recursos a modificar a natureza Geisel determinou o fechamento
públicos mostrou sua fragilidade a do Congresso por 14 dias e baixou
da acumulação de capital
partir do segundo semestre de 1975. medidas artificiais para assegurar
É essa a tônica do longo pronuncia‑ no Brasil, que continuou maioria parlamentar. Protestos de rua,
mento presidencial em rede nacional. pautada pelo consumo de bens promovidos por estudantes, come‑
José Luís Fiori assinala que, “se o II duráveis, graças ao poder de çaram a se espalhar pelas principais
PND não chegou a modificar a natureza irradiação dos padrões de capitais e inéditas greves operárias
da acumulação de capital no Brasil, consumo dos países avançados, foram deflagradas a partir do Sul e
que continuou pautada pelo consumo entretanto, esse plano alterou do Sudeste, no ano seguinte.
de bens duráveis, graças ao poder de Mesmo assim, o II PND foi capaz
substancialmente as relações
irradiação dos padrões de consumo de dotar o país de uma cadeia indus‑
dos países avançados, entretanto, do país com o exterior” trial completa e postergar alguns
esse plano alterou substancialmente dos efeitos mais profundos da crise
as relações do país com o exterior”. José Luís Fiori, cientista político externa para os primeiros anos da
década de 1980.

CRÍTICAS ÀS DIRETRIZES OFICIAIS  O II PND clima de certa euforia com a elevação do


vem à luz na transição de um período consumo de bens duráveis, os anos do CRÍTICAS DE VÁRIOS LADOS  É extensa
de alta aprovação popular do regime, II PND foram marcados por crescentes a literatura voltada para a avaliação
nos primeiros anos da década, para contestações à ditadura. econômica daqueles anos.
sérios descontentamentos causados pela Além da derrota eleitoral, em 1974, Possivelmente, a reflexão mais
desaceleração nos anos seguintes. Se, nos e dos protestos contra o assassinato abrangente tenha sido feita por
anos do “milagre”, taxas de crescimento de Vladimir Herzog, o regime colheu Antonio Barros de Castro, em seu
da ordem de 10% ao ano geraram um o desgaste pela edição do Pacote de livro A economia brasileira em marcha

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 49


forçada, de 1985. Entre outros tópicos,
ele assinala que:
“Trata‑se de um plano cujas propostas
centrais encontram‑se profundamente “Trata‑se de um
marcadas pela consciência de que o plano cujas propostas
mundo se encontrava mergulhado centrais encontram‑se
em grave crise, que tornou patente a profundamente marcadas
vulnerabilidade da economia brasileira”. pela consciência de que
Segundo ele, “de 1974 a 1978,
o mundo se encontrava
estamos diante de uma economia
mergulhado em grave
em desenvolvimento que decidiu não
provocar uma recessão como meio crise, que tornou patente
de lidar com a adversidade externa”. a vulnerabilidade da
Apesar de sua opinião favorável ao economia brasileira”
elenco de iniciativas, Barros de Castro
ressalta um aspecto importante: a falta Trecho do livro A economia
de articulação e legitimidade social. brasileira em marcha forçada,
“O II PND cumpriu toda a sua contur‑ do economista Antônio Barros de Castro
bada trajetória, como um produto de
gabinete, incapaz de obter o apoio (e
muito menos a mobilização) de uma
sociedade que não participou de sua Documentadamente, tados. As respostas do regime militar
elaboração e não tinha como controlar o período Geisel foi de às crises externas que ele enfrentou
a sua execução”, destaca. retrocesso, houve uma enorme fizeram com que o Brasil perdesse
O economista e ex‑presidente do potencial de crescimento, virasse
queda da produtividade
BNDES Carlos Lessa avaliou o II uma economia hiperinflacionária e
por causa dessa insistência agravasse a concentração de renda”.
PND, ainda em 1978, como um caso
extremo de descolamento do Estado em produzir cada vez mais
de suas bases de sustentação. produtos para os quais não
estávamos capacitados ATAQUES VIA IMPRENSA  Houve uma
segunda ordem de críticas ao II PND,
SITUAÇÃO DE RETROCESSO  Com uma vindas de setores liberais do empre‑
visão ortodoxa, o economista Edmar estratégia de crescimento. No Brasil, sariado. A caixa de ressonância foi a
Bacha, um dos formuladores do Plano fizemos o contrário. Quando veio a imprensa.
Real e atual diretor da Casa das Garças, primeira crise do petróleo, a nossa O jornalista Elio Gaspari, em seu
assim avalia a política econômica de resposta, por meio do II PND foi livro A ditadura encurralada, conta:
Geisel, em entrevista concedida ao reafirmar o modelo de substituição de “Na segunda metade de fevereiro
jornal O Globo, em 2009: importações, o que acabou desembo‑ de 1975 o jornal [O Estado de S.
“Quando se abateu sobre a Coreia cando nessa loucura que foi a Lei da Paulo] publicou uma série de onze
do Sul a primeira crise do petróleo, Informática. E, documentadamente, reportagens intitulada “Os caminhos
em 1974, os coreanos mudaram de o período Geisel foi de retrocesso, da estatização”. Refletindo o clima da
rumo, trataram de poupar e investir houve uma enorme queda da produ‑ época e o tipo de relações do patronato
mais e começaram a enfatizar a busca tividade por causa dessa insistência com a ditadura, exaltava a iniciativa
do mercado externo, abandonando em produzir cada vez mais produtos privada, sem que houvesse em nenhum
a substituição de importação como para os quais não estávamos capaci‑ dos textos uma única frase de empre‑

50 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Freepik

Quando veio a primeira crise do petróleo, a nossa


resposta, por meio do II PND, foi reafirmar o modelo
de substituição de importações. O período Geisel foi de
retrocesso, houve uma enorme queda da produtividade
por causa dessa insistência em produzir cada vez mais
produtos para os quais não estávamos capacitados

sário defendendo seus interesses, rumo ao socialismo. Outros setores CRESCIMENTO EXPRESSIVO  O plano
muito menos criticando o governo. atacavam o caráter autoritário do garantiu taxas de crescimento expres‑
O Estado justificava o anonimato das plano e o próprio governo federal. sivas, embora menores que no período
fontes como um estímulo à franqueza, Mais adiante, Gaspari assinala que 1969‑1973. Em 1975, o PIB se expandiu
mas reconhecia: ‘A busca desse sigilo, “o Jornal do Brasil se juntou ao debate 5,1%; em 1976, 10,2%; em 1977, 4,9%;
por si só, é bastante representativa com um novo articulista, o almirante em 1978, também 4,9%; e em 1979, 6,8%.
da situação de dependência em que da reserva José Celso de Macedo Entre 1974 e 1979, a dívida externa
vivem esses empresários’”. Soares Guimarães, ex‑ superintendente passou de US$ 14,9 bilhões para US$
Na retórica do jornal, o governo do programa de Marinha Mercante 55,8 bilhões. No início do período,
trabalhava de forma aberta em um (Sunaman). Entrou batendo forte. havia crédito barato no mercado inter‑
objetivo de estatizar a economia e Num artigo intitulado ‘Comunismo e nacional, parâmetro que se reverteu
sufocar a iniciativa privada. Era algo seu novo nome: capitalismo de Estado’, no fim da década.
que uma simples leitura do texto iluminou o caminho que permitiria Segundo Vanessa Boarati, profes‑
aprovado pelo Congresso poderia ao empresariado criticar o governo sora do Insper, no artigo “A defesa da
desmentir. Mas o matutino insistia: sem desonrar o compromisso anti‑ estratégia desenvolvimentista do II
o Brasil estaria em marcha batida comunista do regime”. PND” (2005), “em meados de 1976,

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 51


A BUSCA PELA AUDIÊNCIA  Voltemos ao
pronunciamento televisivo de Ernesto
O plano garantiu taxas de crescimento expressivas, Geisel, mencionado no início. O ritmo
embora menores do que no período 1969‑1973. Em monótono seguiria dando o tom de toda
1975, o PIB se expandiu 5,1%; em 1976, 10,2%; em a intervenção.
O general falava da política energética,
1977, 4,9%; em 1978, também 4,9%; e em 1979, 6,8%
com absoluto destaque para o setor de
petróleo e álcool. Ao longo de infindá‑
veis minutos, ele seguiria comentando
a situação internacional, os perigos da
elevação dos juros e a necessidade de
se manter o nível de emprego interno.
Lamentava a redução do crescimento.
Uma inserção televisiva dessa natu‑
reza jamais seria feita numa atualidade
pautada pelo ritmo de videoclipe e por
efeitos especiais da propaganda polí‑
tica. O mandatário detalhou as ações
da Petrobras, diante das perspectivas
“pouco alentadoras” de redução ou
estabilização dos preços do petróleo.
Falou dos contratos de risco, associação
com empresas privadas. Prosseguiu,
externando uma meta:
“É intenção do governo evitar que a
estagnação de certas regiões do mundo
se propague pelo Brasil. Para tanto,
prosseguiremos com uma política antir‑
recessiva”. Ressaltava a importância de se
a acentuação dos desequilíbrios do “É intenção do governo evitar manter os programas de investimentos
balanço de pagamentos alterou sensi‑ que a estagnação de certas “que levam à solução dos problemas do
velmente todo o discurso oficial, e, a regiões do mundo se propague balanço de pagamentos, [possibilitam a]
partir desse ano, o governo é obrigado substituição intensiva de importações
pelo Brasil. Para tanto,
a rever os projetos de investimentos, e a manutenção do nível da atividade
reduzindo‑os significativamente”.
prosseguiremos com uma política econômica”.
Segundo ela, em declaração aos antirrecessiva. (...) Isso interessa No fim, parecia vocalizar uma intenção:
jornalistas em dezembro de 1976, fundamentalmente ao setor “Isso interessa fundamentalmente ao setor
Geisel ressalta que “os investimentos privado, ao qual cabe executar privado, ao qual cabe executar aqueles
públicos previstos pelo II PND para aqueles programas, ao qual cabe programas, ao qual cabe fornecer‑lhes
1977 teriam de ser reduzidos em 25% fornecer‑lhes equipamentos, equipamentos, matérias-primas e serviços”.
para evitar a escalada da inflação Embora favorecido por incentivos,
matérias-primas e serviços”
(estacionada em torno de 40%) e financiamentos e subsídios, ficaria claro
da dívida externa (cerca de US$ 31 que boa parte do setor privado preferia
Ex-presidente Ernesto Geisel,
bilhões) para controlar o déficit do não correr riscos. E logo começou a
em pronunciamento televisivo
balanço de pagamento”. se opor ao plano e ao governo.

52 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


O PLANO EM LETRA DE FORMA
Veracel

Em seus principais trechos, o II


PND define uma linha anticíclica,
por meio do investimento público,
financiamento externo e prioridade
ao capital privado nacional
A legislação que define o II PND,
aprovada no Congresso no fim de
1974, afiançava:
“O Brasil deverá ajustar a sua estru‑
tura econômica à situação de escassez
de petróleo e ao novo estágio de sua
evolução industrial. Tal mudança implica
grande ênfase nas indústrias básicas,
notadamente o setor de bens de capital
e o de eletrônica pesada, assim como o
campo dos insumos básicos, a fim de
substituir importações e, se possível,
abrir novas frentes de exportação.
O plano também apontava para as
virtudes do setor rural: “A agropecu‑
ária, que vem tendo, em geral, bom
desempenho, é chamada a cumprir
novo papel no desenvolvimento brasi‑
leiro, com contribuição muito mais A agropecuária teve papel significativo para o desenvolvimento brasileiro e o crescimento do PIB
significativa para o crescimento do
PIB e mostrando ser, o Brasil, capaz
de realizar sua vocação de supridor “Na etapa dos próximos cinco anos, As áreas correlatas mereciam destaque
mundial de alimentos e matérias-primas o país realizará grande esforço de no texto, que culminaria com a criação
agrícolas, com ou sem elaboração reduzir sua dependência em relação a do CNPq:
industrial”. Diante dessas premissas, o fontes externas de energia”. A neces‑ “Em nenhuma outra época do
objetivo é assim sintetizado: “Espera-se sidade de se reduzir a dependência desenvolvimento brasileiro o progresso
consolidar, até o fim da década, uma em relação ao petróleo importado científico e tecnológico teve a função
sociedade industrial moderna e um era premente. A Petrobras ainda não básica que lhe é atribuída, no próximo
modelo de economia competitiva”. havia feito as grandes descobertas de estágio, com equilíbrio entre pesquisa
poços em alto-mar. Assim, o docu‑ aplicada e pesquisa fundamental, sob
mento apontava a necessidade de um a coordenação do Conselho Nacional
CIÊNCIA E TECNOLOGIA  Em tempos de “programa maciço de prospecção (na de Desenvolvimento Científico e
alta nos preços do petróleo, do qual o plataforma, em áreas sedimentares em Tecnológico (CNPq), em fase de criação”.
Brasil era dependente de importações, terra e no exterior) e de produção”, Como tópico adicional, essa parte
um dos focos essenciais estava no com elevação de 225% do valor dos apontava para a necessidade de se incre‑
capítulo de energia: investimentos em cinco anos. mentar os programas “nuclear e espacial”.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 53


MUNDO AO REDOR  O projeto elaborado externos e do investimento direto junto ao Mercado Comum Europeu
por João Paulo dos Reis Velloso também estrangeiro”. (hoje nosso maior mercado); desen‑
contemplava as relações internacionais: Mesmo sendo uma economia não volvido esquema da maior integração
“Na Integração com a economia completamente industrializada, o possível com a América Latina;
mundial, ganha mais importância Brasil, na visão dos dirigentes da época, tornada mais efetiva nossa política
a conquista de mercados externos, deveria abrir o leque de parcerias em relação à África e estabelecida
principalmente, para manufaturados externas e buscar formas de integração estratégia global de cooperação
e produtos primários não tradicionais continental: com os países árabes; fortalecida
(agrícolas e minerais). Procurar-se-á “No esforço dinâmico de mais a ponte já feita com o Japão, com
manter sob controle o déficit do balanço alto nível de intercâmbio com as seleção de áreas prioritárias para seus
de pagamentos em conta‑corrente áreas prioritárias definidas, será investimentos no país; formado um
(equivalente ao volume de poupança diversificada a nossa atuação de conjunto de novos mecanismos para
externa absorvido). Será continuada comércio dentro dos Estados Unidos a intensificação do comércio com a
a política de diversificação das fontes (Costa Oeste, Meio Oeste, Sul, Zona União Soviética e o Leste Europeu;
de financiamento, dos mercados do Caribe); consolidada a posição ampliada consideravelmente a frente

Cadeia produtiva
A política industrial apontada capital, da indústria eletrônica de base nacional; navios; automóveis, ônibus,
tinha como meta dotar o país da e da área de insumos básicos. (...) caminhões; motores e outros compo‑
cadeia produtiva completa: II — Abertura de novos campos de nentes da indústria automobilística;
A estratégia industrial, no período, exportação de manufaturados, com equipamentos agrícolas, rodoviários e
cuidará, principalmente, dos seguintes maior complexidade tecnológica, hidroelétricos; máquinas-ferramenta e
pontos: em complemento às exportações de instrumentos; produtos siderúrgicos,
I — Desenvolvimento dos setores indústrias tradicionais. Tais campos inclusive pela construção de usinas
de base e, como novas ênfases, parti‑ incluem os computadores de grande destinadas, principalmente, à produção
cularmente da indústria de bens de porte; minicomputadores de fabricação de semiacabados para exportação;

54 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Agência Petrobras

de relações comerciais com a China


Continental”.
Em relação ao Sul do mundo, a
dinâmica seria prioritária:
“O Brasil continuará preconizando a
maior abertura possível de cooperação
econômica entre os países da América
Latina, como o verdadeiro caminho para
a viabilização futura dos esquemas de
integração econômica. [...] Nossa política
em relação à África, e especialmente às
nações tornadas independentes a partir
dos anos 60, ganhou nova dimensão,
com o início de empreendimentos
conjuntos em vários países”.

A necessidade de se reduzir estatal. Algo assim seria realizado com


equipamentos e componentes de êxito pela Coreia do Sul, na década
a dependência em relação
bens de capital; relógios, aparelhos seguinte. E, surpreendentemente,
ao petróleo importado era
de precisão. (...) o texto apontava a “necessidade de
III — Maior impulso ao desen‑ premente. A Petrobras
compatibilizar tal orientação com
volvimento tecnológico industrial, ainda não havia feito as a política de distribuição de renda”.
inclusive com preocupação de grandes descobertas de
evitar dispêndios excessivos nos poços em alto‑mar
pagamentos por tecnologia. DIVIDIR O BOLO  Em sua “Estratégia de
IV — Impulso ao desenvolvi‑ desenvolvimento social”, o II PND
mento da indústria de alimentos, PODERES DO PODER PÚBLICO  No capítulo criticava diretamente uma frase atri‑
com continuação do esforço de sobre estratégia econômica ficava bem buída ao ex-ministro Delfim Netto:
modernização e reorganização delimitado o papel do Estado: “O governo não aceita a colo‑
de certas indústrias tradicionais. “Adoção de regime econômico de cação de esperar que o crescimento
V — Atenuação dos desníveis mercado, como forma de realizar o econômico, por si, resolva o problema
regionais de desenvolvimento desenvolvimento com descentra‑ da distribuição de renda, ou seja, a
industrial, evitando-se a continu‑ lização de decisões, mas com ação teoria de ‘esperar o bolo crescer’. Há
ação da tendência à concentração norteadora e impulsionadora do setor necessidade de, mantendo acelerado
da atividade industrial em uma público”. O capital externo deveria se o crescimento, realizar políticas redis‑
única área metropolitana. submeter a tal lógica: “Aqui se coloca, tributivas enquanto o bolo cresce”. A
Os bancos oficiais – em particular obviamente, o problema de ajustar as verdade é que, de um lado, o cresci‑
o então BNDE – teriam atuação multinacionais à estratégia nacional”. mento pode não resolver o problema
decisiva no financiamento e viabi‑ O governo Geisel buscaria concre‑ da adequada distribuição de renda,
lização das metas propostas não tizar uma meta cara aos desenvol‑ se deixado à simples evolução dos
apenas no setor industrial, como vimentistas: a criação de grandes fatores de mercado. E, de outro lado,
também no que toca à agropecuária. grupos empresariais privados, que a solução por meio do crescimento,
atuassem complementarmente à ação apenas, pode demorar muito mais do

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 55


Divulgação / Mercosul

metropolização tem levado, principal‑


mente no Grande Rio e na Grande São
Paulo, à presença forte do problema
da poluição industrial, que começa
a ameaçar outros grandes centros
urbanos.
[...]
O combate à poluição já é impor‑
tante, no Brasil. De um lado, já se
observam, principalmente em face
da excessiva concentração industrial
em certas áreas metropolitanas, sem
zoneamento adequado, assim como da
proliferação de veículos nos mesmos
aglomerados urbanos, manchas de
poluição agudas ou significativas, em
várias regiões do país, como os casos
que a consciência social admite, em “O Brasil continuará críticos óbvios da Grande São Paulo e
termos de necessidade de melhorar do Grande Rio. De outro lado, a devas‑
preconizando a maior
rapidamente o nível de bem-estar de tação de recursos naturais — de solo,
abertura possível de
amplas camadas da população”. vegetais e animais — assume propor‑
O programa envolvia ainda uma cooperação econômica ções inadmissíveis, em consequência
“estratégia de desenvolvimento social”, entre os países da América da construção da infraestrutura, da
que tinha por meta a criação em cinco Latina, como o verdadeiro execução de programas industriais e
anos de “cerca de 6,6 milhões de empregos caminho para a viabilização agrícolas, mas, principalmente, da ação
novos” (em um país de 110 milhões futura dos esquemas de predatória de interesses imediatistas.
de habitantes) e com uma política
integração econômica”
de salários “para permitir a criação
progressiva da base para o mercado DE ONDE VEM O DINHEIRO  O plano
de consumo de massa”. Ao mesmo não apenas apontava gargalos e
tempo, apontava para uma “política na educação, especialmente quanto definia soluções, como mostrava o
de valorização de recursos humanos, às universidades”. volume de investimentos e suas fontes
para qualificação acelerada da mão de internas de financiamento. Eram eles o
obra, aumentando sua capacidade de Orçamento da União, o Banco Nacional
obtenção de maior renda, por meio da POLUIÇÃO E MEIO AMBIENTE  O docu‑ de Desenvolvimento Econômico
educação, treinamento profissional, mento mostra uma preocupação (BNDE), Banco Nacional de Habitação
saúde, saneamento e nutrição”. Em cada positiva com o meio ambiente, num (BNH), a Caixa Econômica Federal.
um desses tópicos, o plano apontava os Brasil de quatro décadas atrás. Nesse “Atuação dos bancos oficiais, e
valores dos investimentos a serem feitos. ponto, destacam-se as atenções dadas das superintendências regionais, em
Além disso, apontava-se que “nas à urbanização desordenada: estreita articulação com os ministérios
áreas de saúde pública e assistência “Ao longo da década, o país se estará setoriais, para que sua ação financia‑
médica da previdência, cuidar-se-á caracterizando, cada vez mais, como dora, e na gestão dos incentivos fiscais,
da reforma de estruturas, para dar uma sociedade predominantemente seja integralmente consistente com as
capacidade gerencial a esses setores, urbana, em processo acelerado de prioridades do ministério responsável
a exemplo do que já se vem fazendo metropolização. [...] Essa prematura pela área.”

56 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Nidia Piñeyro
Adriana Sandoval‑Moreno
ARTIGO Adriana Hernández‑García

Desafios das comunidades de pescadores e


o papel dos governos na América Latina

A
s comunidades de pescadores trias exportadoras, loteadores de terras, Paraná podemos notar uma incipiente
artesanais ou comerciais na promotores imobiliários, fileteadores, diversificação de atores de capitais privado
América Latina, como outras coletores e embarcações turísticas. e estatal. O Estado assume a liderança no
tantas que praticam atividades Entretanto, o território e sua paisagem turismo baseado na pesca desportiva,
de escala e tradição familiar, estão em se fragmentaram no que diz respeito à sua na infraestrutura de grande escala e no
crise. Aproximadamente 90% dos pesca‑ função, acentuando os impactos sobre desenvolvimento de um parque indus‑
dores latino‑americanos são artesanais e os ecossistemas e espécies endêmicas, trial. O setor imobiliário pressiona pela
contribuem para o sustento nutricional bem como o acesso desigual à água, que construção de complexos residenciais
de milhares de famílias, além do que, previlegia as grandes cidades (como a área em locais próximos ao rio onde, devido
com a comercialização dos seus produtos, metropolitana de Guadalajara) e investi‑ ao encarecimento da terra, é previsível
contribuem para os gastos com saúde, dores agroexportadores, em detrimento o assentamento de residentes urbanos.
moradia e educação. Contudo, parado‑ das comunidades rurais, pescadores e A dimensão conflitante desses territórios
xalmente, não são participantes ativos pequenos agricultores. deriva da concorrência de diversos atores
nas políticas públicas, apesar de sua Nesse cenário, os pescadores e suas com diferentes usos, lógicas e interesses
importância para a segurança alimentar, famílias recorrem a estratégias para diver‑ sobre os seus recursos naturais, particu‑
as economias locais e o conhecimento dos sificar suas fontes de renda, empregando‑se larmente pesqueiros e paisagísticos. Cabe
ecossistemas. Uma revisão das situações em atividades não pesqueiras, como aos Estados responder ao processo de
adversas para a sustentabilidade da ativi‑ construção civil, serviços, trabalhadores desigualdade dos setores tradicionais frente
dade no México e na Argentina poderia rurais e emigrantes para os Estados aos modelos modernizadores das bacias
ser compartilhada por outros grupos na Unidos. Contudo, o ofício de pescador hidrográficas e territórios hidrossociais,
região: falta de projetos governamentais não se abandona se a pessoa continua e assim gerar capacidades democráticas
integrados que incentivem o pescador, o vivendo em uma comunidade ribeirinha, para a governança onde as desigualdades
encolhimento espacial (zonas de lance e especialmente para aqueles em que a idade, socioeconômicas e de acesso aos recursos
embarcadouros), redução temporal (pelo a falta de oportunidade ou o amor à terra hídricos se aprofundaram.
nível das águas), proibições naturais e e à pesca estão presentes. Uma tarefa pendente na América
políticas, intermediários, a perda de No caso das comunidades de pescadores Latina é institucionalizar mecanismos de
espécies e a contaminação, bem como a do nordeste argentino, que desempenham interação democrática entre atores com
precarização de suas condições de vida. o ofício nas margens do rio Paraná, na interesses conflitantes, a fim de desenhar,
O maior lago do México é o Chapala, altura do Chaco e de Corrientes, o pano‑ implementar, avaliar e reformular polí‑
localizado na região ocidental e perten‑ rama não é mais animador. A atividade ticas públicas de forma consensuada que
cente aos estados de Michoacán e Jalisco. está restringida por diversos mecanismos tendam a privilegiar a qualidade de vida
A pesca artesanal nesse lago foi a atividade políticos e condições naturais; tensões das comunidades locais e seus meios de
econômica mais representativa até o século e conflitos intra, inter e extragrupos; sustento, como é o caso dos pescadores
XX. No entanto, nas últimas décadas, os judicialização no Chaco e proibição em artesanais e das fontes de água em seus
pescadores têm enfrentado problemas quase toda a orla de Corrientes; forte territórios.
para viver exclusivamente da pesca. Por presunção de depredação, ilegalidade e
um lado, o mapa de atores locais exibe ignorância sobre o grupo por parte da Nidia Piñeyro, Adriana Sandoval‑Moreno e Adriana
Hernández‑García são membros da Área Temática Bacias e Territórios
uma nova complexidade que representa imprensa e órgãos públicos e uma forte Hidrossociais da Rede Waterlat‑Gobacit e pesquisadoras da Universidade
a diversidade de interesses sobre o lago pressão para a reconversão para outras Nacional do Nordeste, Argentina, Universidad Nacional Autônoma do México e
Universidade de Guadalajara, respectivamente. Traduzido do original em espanhol
e seus recursos: restaurantes, agroindús‑ atividades. Na zona ribeirinha do rio por Maria da Piedade Morais

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 57


INTERNACIONAL

58 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Cadeias produtivas
têm potencial na
América do Sul
Pesquisa realizada pelo Ipea, em parceria com
a Cepal, revela que complementaridade na região
ainda é muito baixa, mas há capacidade de expansão

Da Redação

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 59


V
ocê procura uma oficina cadeias produtivas no subcontinente

97%
para instalar ar‑condicionado ainda é muito incipiente e possui poten‑
no carro e imagina: “Para cial de desenvolvimento. Ou seja, em
quê perder tempo?” Acaba média, um país sul‑americano, como
deixando o serviço a cargo do profis‑ o Brasil, concentra, internamente, em
sional mais próximo de casa, sem
se preocupar tanto com o tempo de
do valor seu próprio território, grande parte
– quando não a totalidade – de um
entrega, o custo e a qualidade. Um adicionado (PIB), no Brasil, se processo produtivo. Em muitos casos,
pouco mais de pesquisa em outro bairro devem à produção interna encomendar parte do serviço para o
poderia lhe levar a uma oficina que vizinho pode ser a melhor alternativa.
cobra a metade do preço e tem mais O levantamento inédito da Matriz
experiência naquela atividade, o que de Insumo‑Produto da América do Sul
deixa o produto melhor e valoriza o e da Comissão Econômica para a – que pode ser encontrado no site do
veículo. A analogia é simplista, mas América Latina e o Caribe (Cepal), Ipea (www.ipea.gov.br) – revela que
ajuda a ilustrar uma estratégia de com o apoio da Agência Brasileira o Uruguai e a Bolívia são os países
atuação internacional ainda pouco de Desenvolvimento Industrial mais integrados da região. No caso
observada na América do Sul: a (ABDI), do Banco Interamericano de uruguaio, 4,97% do valor adicionado
complementaridade produtiva. Desenvolvimento (BID) e do Banco de no país (PIB) correspondem a produtos
Uma pesquisa do Instituto de Desenvolvimento da América Latina provenientes do Brasil e 4,19% de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) (CAF), concluiu que a integração das produtos vindos da Argentina. E 88,2%

Decomposição do valor adicionado total, por país (em %)

Argentina Brasil Bolívia Chile Colômbia Equador Paraguai Peru Uruguai Venezuela

Argentina 94,903 1,205 2,677 2,879 0,389 1,128 2,986 0,588 4,971 0,242

Brasil 3,929 97,333 3,221 0,832 1,120 1,839 2,708 0,822 4,190 1,167

Bolívia 0,207 0,158 90,137 0,054 0,156 0,188 0,086 0,119 0,018 0,079

Chile 0,362 0,816 0,901 94,719 0,383 0,462 0,100 0,670 1,271 0,211

Colômbia 0,036 0,032 0,556 0,109 95,806 2,076 0,006 0,978 0,017 1,369

Equador 0,005 0,021 0,318 0,164 0,200 92,266 0,002 1,358 0,037 0,038

Paraguai 0,352 0,053 0,500 0,111 0,008 0,072 93,969 0,064 0,157 0,013

Peru 0,054 0,221 0,960 0,989 0,565 0,703 0,018 94,518 0,170 0,205

Uruguai 0,117 0,079 0,257 0,053 0,030 0,060 0,101 0,009 88,269 0,027

Venezuela 0,035 0,081 0,474 0,090 1,343 1,206 0,024 0,873 0,900 96,647

60 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Divulgação / Ipea
do valor adicionado correspondem à
produção interna, sem participação de
outros países. Em relação ao Brasil,
97% do valor adicionado se devem à
produção interna.
“Há indícios de complementaridade,
menos do que eu desejaria, mas há
coisas acontecendo na América do
Sul. Há um potencial de complemen‑
taridade. Pode‑se aprofundar onde já
existe alguma semente. Cabe explorar
o potencial de criação dessas cadeias”,
afirmou Renato Baumann, técnico
de Planejamento e Pesquisa do Ipea
e coordenador do projeto. O estudo
inclui dez países: Argentina, Brasil,
Bolívia, Chile, Colômbia, Equador,
Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela
–, deixando de fora, na América do
Sul, somente Suriname, Guiana e
Guiana Francesa.
A tabela na página anterior traz a “Há indícios de (exceto maquinário elétrico). Apenas
decomposição do valor adicionado complementaridade, menos as exportações argentinas destinadas
total (PIB), por país, em porcen‑ do que eu desejaria, mas há ao setor automotivo do Brasil impul‑
tagem. Por exemplo, observa‑se que, coisas acontecendo na América sionam aproximadamente 10,6 mil
na Argentina, 94% do valor adicio‑ empregos no país vizinho.
do Sul. Há um potencial
nado correspondem à produção As exportações da Argentina, para
interna, sem participação externa. Ao de complementaridade. o setor agrícola brasileiro, por sua vez,
analisar o Brasil, depreende‑se que Pode‑se aprofundar onde são responsáveis por cerca de 6.400
a integração mais forte na América já existe alguma semente. postos de trabalho naquele país. Os
do Sul se dá com a Argentina (1,2% Cabe explorar o potencial principais setores beneficiados com
do valor adicionado) e com o Chile de criação dessas cadeias” esses empregos na Argentina são
(0,81%). A matriz é formada por 40 os de produtos químicos – exceto
setores, sendo 35 de bens e cinco de Renato Baumann, técnico de farmacêuticos –, agricultura e florestal
serviços. Os dados se referem a 2005, Planejamento e Pesquisa do Ipea e maquinaria e equipamentos (exceto
último ano para o qual foi possível maquinaria elétrica).
homogeneizar as informações sobre “A matriz revela a origem das
os dez países, e foram calculados em mil empregos. Segundo a análise, os compras e das vendas na economia.
dólares correntes a preços básicos setores mais beneficiados na Argentina É um formato contábil de informação
(sem impostos e subsídios). com postos de trabalho relacionados à relativa a atividades econômicas de um
Em um estudo realizado a partir dos demanda por bens intermediários no país e retrata as relações econômicas
dados da Matriz de Insumo‑Produto Brasil são veículos a motor, reboques entre setores industriais. Ela permite
da América do Sul, a Cepal concluiu e semirreboques, polpa de madeira, ver as transações de bens intermedi‑
que a demanda brasileira por bens papel, prensas e material editorial, ários e finais”, explicou José Durán,
intermediários gera, na Argentina, 145 têxtil, maquinário e equipamentos pesquisador da Cepal em Santiago.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 61


PANORAMA  As exportações dos dez países Na avaliação do professor da FGV,
sul‑americanos impulsionam pouco dos 40 setores, 38 têm valor adicio‑ As exportações dos
mais de 25,6 milhões de empregos, nado em razão da participação dos dez países
mas as exportações intrarregionais demais nove países sul‑americanos sul-americanos
(para a própria América do Sul) são (PIB) inferior a 4%. “Para cada setor impulsionam pouco
responsáveis por 3,89 milhões de de um país, calculamos o quanto do mais de 25,6
postos. Das 25,6 milhões de vagas, 45% valor adicionado é devido à produção milhões de
estão alocadas no Brasil, 14% no Peru, de outros países. Isso é outra medida empregos, mas as
9% na Colômbia, 8% na Argentina e da integração. Fizemos isso para cada
exportações
8% na Venezuela. Os demais países país, para cada um dos setores”, informa.
somados (Uruguai, Paraguai, Equador, A Colômbia possui apenas um setor
intrarregionais
Chile e Bolívia) ficam com 16%. Ainda com mais de 10% de valor adicionado (para a própria
segundo a análise da Cepal, com base por outros países: máquinas e aparelhos América do Sul) são
na Matriz de Insumo‑Produto, esses elétricos. A Venezuela, por sua vez, tem responsáveis por
empregos ligados à exportação repre‑ três setores acima dos 10%: veículos 3,89 milhões de
sentam 15,4% do total da população automotivos, reboques e semirre‑ postos
ocupada na América do Sul (menos boques, calçados e outros alimentos
Guianas e Suriname). No Brasil, eles processados. Por essa metodologia, os
correspondem a 12,7% do total. países mais integrados da região são
Outra conclusão significativa é a de Uruguai, Bolívia e Paraguai.
que o emprego ligado a exportações No entanto, quando são estudados
para a América do Sul tem um peso somente os cinco setores de serviços,
maior na Bolívia (11% da população o Brasil apresenta o melhor desem‑
ocupada), Paraguai (9%), Uruguai penho da América do Sul em termos maior integração regional. “Por esse
(7%) e Argentina (5%). No Brasil, essa de integração. “O maior coeficiente é estudo, notamos que a região poderia
parcela equivale a 1%. “A matriz é uma o do Brasil. É o que tem mais ligações atrair mais investimentos e aumentar a
importante ferramenta para o desenho por serviços, o que dá certo respaldo. quantidade de postos de trabalho não
de políticas públicas. Ela contém A matriz é um instrumento de inves‑ só na indústria e no agronegócio, mas
informações sobre relações de usos de tigação. Ela dá pistas da integração do em setores de serviços de alto valor
bens e permite identificar a estrutura Brasil como fornecedor e da integração agregado, como transporte e logística,
vertical de produção compartilhada pelos serviços”, acrescentou Flores. infraestrutura, finanças e serviços
entre países”, afirmou Durán. Argentina e Uruguai também têm profissionais, se tirasse proveito de suas
Para o professor Renato Flores, do bom desempenho, e os demais países capacidades coletivas para competir
Núcleo de Prospecção e Inteligência estão menos conectados. globalmente”, afirmou Guang Zhe Chen,
Internacional da Fundação Getúlio Vargas diretor do Banco Mundial para África
(FGV), que participou do evento de do Sul, Botsuana, Lesoto, Namíbia,
lançamento da Matriz Insumo‑Produto ESTRATÉGIA  Os benefícios da comple‑ Suazilândia, Zâmbia e Zimbábue.
no Ipea, outra constatação a partir da mentaridade produtiva ganharam Acordos recentes de comércio, como
base de dados é que Brasil, Colômbia destaque, especialmente, desde que a Parceria Transpacífico (TPP, na sigla
e Venezuela representam as economias a Ásia passou a impulsionar esse em inglês), anunciada em 2015, elevam
menos integradas regionalmente. “O tipo de cooperação, tendo a China a pressão para que o mundo se adapte a
Brasil não tem, em nenhum dos 40 como epicentro. No começo do ano, o um período de novos artifícios destinados
setores integrantes da matriz, contra‑ Banco Mundial divulgou um relatório a baratear a produção. O TPP prevê o
partidas de valor adicionado estrangeiro alertando que países do sul da África fim ou a redução de até 18 mil tarifas
superiores a 10%”, afirmou. também poderiam se beneficiar da comerciais entre 12 países – Austrália,

62 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Das 25,6 milhões de vagas de empregos da américa do sul:

45% 14% 9% 8% 8%
estão estão estão estão estão
alocadas alocadas alocadas na alocadas na alocadas na
no Brasil no Peru Colômbia Argentina VENEZUELA

Brunei, Canadá, Chile, Estados Unidos, A partir do mapeamento da produtivas que podem ser incremen‑
Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Matriz de Insumo‑Produto tadas, visando à economia de recursos
Peru, Singapura e Vietnã. Para entrar e maior integração. O trabalho reali‑
da América do Sul, governos
em vigor, o texto precisa ser ratificado zado pelo Ipea e pela Cepal começou
da região passam a ter
até fevereiro de 2018 por, no mínimo, em 2013, envolvendo consultores dos
seis países que respondam por, ao subsídios para identificar 10 países sul‑americanos, técnicos
menos, 85% da economia do grupo. cadeias produtivas que da Cepal em Santiago, técnicos da
Nesse caso, Estados Unidos e Japão podem ser incrementadas, Organização para Cooperação e
são essenciais. visando à economia de Desenvolvimento Econômico em Paris,
No entanto, a construção de cadeias recursos e maior integração da Conferência das Nações Unidas
produtivas eficientes não é algo trivial sobre Comércio e Desenvolvimento
em um mundo onde o protecionismo (Unctad) e da Organização Mundial
cresce, onde as commodities não têm pré‑requisitos de infraestrutura para do Comércio (OMC). “Chegamos a
mais o peso do século passado e a que o trânsito de peças e produtos um produto estritamente compatível
demanda por diversos produtos cai. funcione a contento: portos, aero‑ com a matriz do projeto que é reali‑
E, sobretudo, onde os esforços pela portos, estradas e alfândegas prontos zado pela OCDE com a metodologia
manutenção de postos de trabalho para impedir barreiras à fluidez do Trade in Value‑Added (Tiva)”, explicou
se intensificam. Somem‑se a isso as comércio. Baumann. “A matriz transcende o
exigências crescentes por produtos A partir do mapeamento da Matriz âmbito nacional e regional e será,
sustentáveis e cuja cadeia atenda a de Insumo‑Produto da América do em algum momento, incorporada
padrões internacionais de condições Sul, governos da região passam a ter à matriz mundial. Demos um passo
de trabalho e qualidade, além dos subsídios para identificar cadeias significativo.”

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 63


Ulysses Guimarães PERFIL

64 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


A longa odisseia
pela Democracia
Símbolo da resistência contra a ditadura e da luta pela Constituição de 1988, combatida
pelos arautos do “mercado”, ex‑deputado deixou um legado político sem paralelo

Carol Arantes – São Paulo

S
e é verdade que algumas pessoas de vê‑lo se tornar um pianista e o de Direito da Universidade de São
vêm ao mundo predestinadas interesse pela política, alimentado Paulo, no Largo de São Francisco.
a cumprir uma missão, esse nas conversas com o pai, um homem Enquanto estudava, dava aulas de latim
foi, seguramente, o caso de sensível às causas populares. Com o e história em colégios da cidade. Nas
Ulysses da Silveira Guimarães, um dos teclado, veio a paixão pela literatura, folgas, frequentava a casa do escritor
homens públicos mais importantes estimulada por Alzira, a primeira Mário de Andrade, de quem foi aluno
do Brasil no século passado. Assim professora de piano. de piano. Em 1939, ganhou o título de
como o rei de Ítaca, do poema épico de A política, no entanto, haveria Maior Prosador das Arcadas em um
Homero, ele também enfrentou uma de se impor, naturalmente, na vida concurso promovido pela Academia
odisseia: a luta incansável, nas águas do ex‑deputado, que desde criança Paulista de Letras.
turbulentas da ditadura militar, para manifestava o dom da palavra. Em
que o país conquistasse as liberdades seu livro Dr. Ulysses, uma biografia,
democráticas. o jornalista A. C. Scartezini conta que A POLÍTICA  Após intensa militância estu‑
Primeiro dos cinco filhos do coletor o garoto costumava reunir os primos dantil, como vice‑presidente da UNE,
federal Ataliba Silveira Guimarães e da para exercitar a oratória. “Levava os no futebol, como presidente do Santos e
professora primária Amélia Correia meninos ao seu quarto, colocava‑os como secretário da Federação Paulista de
Fontes Guimarães, Ulysses nasceu como plateia para ouvir os discursos Futebol, ingressou na política no fim do
em Rio Claro, interior paulista, no que ia improvisando”. Estado Novo. Elegeu‑se deputado estadual
dia 6 de outubro de 1916. Estaria, Depois de formado na Escola Normal pelo PSD à Assembleia Constituinte de
portanto, completando neste ano de Lins, onde a família se radicara, São Paulo, em 1947, e destacou‑se pela
seu centenário. Dividiu a infância e Ulysses embarcou para a capital e defesa dos municípios contra o excesso
a adolescência entre o sonho da mãe passou no vestibular para a Faculdade de arrecadação de tributos estaduais.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 65


Célio Azevedo / Fotos Públicas
tores. Naquele momento, decidi que
não estava na política para ser um
despachante, nem o Estado que eu
imaginava tinha lugar para aquele tipo
de política. Não importava que aquela
fosse a medida de presunção brasileira
da eficiência dos parlamentares. [...]
O que queria da política era coisa
bem diferente. Nunca mais voltaria
àquelas peregrinações”.
Em fevereiro de 1955, casou‑se com
Ida de Almeida e Silva, a dona Mora,
irmã de um amigo. Mora era viúva
e tinha dois filhos: Tito Henrique e
Celina, ainda crianças. Brincalhona,
Tancredo Neves e Ulysses Guimarães em evento do PMDB, em 1984 dona Mora fazia humor sobre o noivo
na frente das amigas, às vésperas do
A projeção nacional veio em 1950, Mortes como as do jornalista casamento. “Fui casada com um homem
aos 34 anos. Eleito deputado federal, bonito, elegante e rico. Não sei como
Vladimir Herzog e do operário
Ulysses conquistou assento em uma será a vida com um homem feio, pobre
Câmara que tinha entre seus integrantes
Manuel Fiel Filho, após serem e que não liga para a elegância”.
veteranos como Afonso Arinos, Benedito torturados, comoveram
Valadares e Bilac Pinto. Juntamente com o país. Por outro lado, o
o baiano Antônio Balbino e os mineiros milagre econômico chegara TRAIÇÃO  Eleito presidente da Câmara
Lúcio Bittencourt e Tancredo Neves, ao fim e a crise alimentava dos Deputados no início do governo
atuou na Comissão de Constituição a insatisfação social de Juscelino Kubitschek (JK), Ulysses
e Justiça da Casa. Vivenciou um dos começou a se articular para disputar,
períodos mais turbulentos da História em 1958, o Palácio dos Bandeirantes,
republicana, que culminaria no suicídio eleitores. Ele conta como aconteceu primeiro passo para alcançar o sonho
de Getúlio Vargas, em agosto de 1954. o estalo que mudaria sua trajetória, de sua vida: a Presidência da República.
dentro de um Chevrolet preto, quando Enquanto isso, ele comandava um
tinha 38 anos. Parlamento dividido – de um lado,
TRANSFORMAÇÕES  O dia 2 de dezembro “De repente, tomei consciência do PSD e PTB, partidos da aliança gover‑
de 1954 marcou uma mudança profunda que fazia naquele táxi. Enfrentando nista; de outro, a UDN e sua Banda
no perfil político de Ulysses Guimarães. o calor do Rio de Janeiro de quase de Música, bloco parlamentar assim
Até então, como haveria de reconhecer meio‑dia, sobraçava minha pastinha chamado porque, embora em minoria,
mais tarde, fora um parlamentar inex‑ de documentos para mais uma ronda seus integrantes faziam muito barulho
pressivo, que vivia de pegar verbas e pelos ministérios e repartições públicas, na Casa. A Banda era liderada por
de fazer pequenos serviços para seus levando pedidos de prefeitos e elei‑ Carlos Lacerda. Ulysses integrava a

66 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Arquivo Agência Brasil

Ala Moça do PSD – um grupo aguer‑


rido de jovens deputados federais de
posições nacionalistas e aliados do
governo de Juscelino.
Por essa época, amargou uma
traição de JK. Para fazer média
com Jânio Quadros, candidato à
sucessão à Presidência da República,
Juscelino negou seu apoio a Ulysses,
que acabou desistindo da candidatura.
O episódio foi relatado pela esposa
do ex‑deputado ao jornalista Jorge
Bastos Moreno, que o transcreveu
em seu livro A História de Mora – A
Saga de Ulysses Guimarães. Dois anos
antes, Juscelino estimulara Ulysses a Em 2 de fevereiro de 1987 o deputado Ulysses Guimarães foi eleito para presidir a Assembleia Constituinte
disputar o governo paulista.
nescentes do PSD. Naquele momento, No ano seguinte, os militares
Ulysses apoiou um presidente – ele extinguiram os partidos políticos e
A DITADURA  Foi a partir do golpe mesmo repetia isso – cujo discurso instituíram o bipartidarismo para
militar de 1964 que Ulysses viveu de posse assinaria até hoje. Porque dar uma aparência de legalidade ao
os três grandes momentos de sua propunha a democracia, garantindo regime militar. A Aliança Renovadora
carreira. Não sem antes se envolver a sucessão pela via direta. Não era o Nacional (Arena) reunia os defensores
em uma polêmica: a suposta adesão à discurso de um ditador”, justifica o do regime e o Movimento Democrático
ruptura institucional. Em seu livro O jornalista Jorge Moreno, ex‑assessor Brasileiro (MDB) abrigava diversas
Governo Castello Branco, o ex‑senador de Ulysses. correntes políticas de oposição com
Luiz Viana Filho conta que Ulysses, Não houve volta à democracia. a proposta de lutar pela redemocra‑
juntamente com alguns notáveis Embora tivesse prometido, em seu tização do país. Era uma “oposição
do Congresso, teria redigido uma discurso no Congresso, entregar o consentida” para legitimar um poder
proposta para cassar direitos políticos comando de “uma nação coesa”, ainda discricionário.
da cúpula janguista por 15 anos. Além em 1965, a um sucessor “legitimamente
disso, votara em Castello Branco no eleito”, Castello cedeu às pressões da
Colégio Eleitoral do Congresso para linha dura das Forças Armadas. O país A ANTICANDIDATURA  Reeleito depu‑
presidir o país. começava a viver uma longa noite de tado federal em 1966 e 1970, Ulysses
“O doutor Ulysses morreu negando a obscurantismo. Mais de 400 políticos assumiu a presidência do MDB, em
participação naquele episódio. Atribuía tiveram os mandatos cassados, entre 1971, sucedendo o ex‑senador Oscar
isso a uma leviandade do Luiz Viana. eles João Goulart, Leonel Brizola e JK. Passos. Nesse meio tempo, os mili‑
Quanto ao Castello, ele foi eleito com os Muitos foram condenados a intermi‑ tares editaram o AI‑5 e endureceram
votos de praticamente todos os rema‑ náveis dias de exílio. ainda mais o regime. Com a imprensa

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 67


Bruno Martins
é a de Camões e sim a de Fernando
Pessoa ao recordar o brado: Navegar
é preciso. Viver não é preciso. Posto
hoje no alto da gávea, espero em Deus
que em breve possa gritar ao povo
brasileiro: ‘Alvíssaras, meu capitão.
Terra à vista!’. Sem sombra, medo
ou pesadelo, à vista a terra limpa,
abençoada da liberdade”.
Não houve terra à vista naquele
momento histórico. A chapa governista,
encabeçada pelo general Ernesto Geisel
(1974‑1979), venceu a eleição, como
estava previsto. Mas a anticandidatura de
Ulysses uniu e fortaleceu o MDB, que,
naquela época, estava dividido em duas
censurada, telefones eram grampeados “Não havia a menor chance correntes – moderados e autênticos –,
e opositores presos, torturados e de vencer, pois a Arena e encheu de esperanças os brasileiros
assassinados nos porões da ditadura. com a antevisão da democracia. Como
tinha mais de dois terços
Em protesto contra a farsa da eleição efeito colateral daquela anticandidatura,
do Colégio Eleitoral. Por
presidencial promovida pelos militares, o MDB venceu as eleições legislativas
prevista para janeiro de 1974, Ulysses isso ele se autodenominou de 1974. E ampliou ainda mais seus
lançou sua candidatura à sucessão de de anticandidato. Queria quadros no Congresso em 1978.
Garrastazu Médici (1969‑1974), tendo concorrer apenas para Naquela campanha eleitoral, Ulysses
como vice o jornalista Barbosa Lima denunciar o sistema ditatorial” virou símbolo da resistência à ditadura
Sobrinho. “Não havia a menor chance ao enfrentar fuzis, baionetas, os cães
de vencer, pois a Arena tinha mais de Elio Gaspari, jornalista, no da PM da Bahia e os cavalos das forças
dois terços do Colégio Eleitoral. Por livro A ditadura derrotada policiais de Recife. “Amigos, o MDB é
isso ele se autodenominou de anti‑ como a clara: quanto mais bate, mais
candidato. Queria concorrer apenas cresce. Os cães ladram, mas a caravana
para denunciar o sistema ditatorial”, desconhecido se desata à frente. No cais passa”, disse ele, na época.
observa o jornalista Elio Gaspari, no alvoroçado, nossos opositores, como o
livro A ditadura derrotada. velho do Restelo de todas as epopeias,
Na convenção do MDB, Ulysses com sua voz de Cassandra e seu olhar AS DIRETAS JÁ  A distensão “lenta,
emocionou os correligionários ao final derrotista, sussurram as excelências segura e gradual” de Geisel não evitou
de um discurso primoroso. “Senhores do imobilismo e a invencibilidade do os excessos do regime. Mortes como
convencionais, a caravela vai partir. As establishment. Conjuram que é hora as do jornalista Vladimir Herzog e
velas estão paridas de sonho, aladas de de ficar e não de aventurar. Mas, no do operário Manuel Fiel Filho, após
esperanças. O ideal está ao leme e o episódio, nossa carta de marear não serem torturados, comoveram o país.

68 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Célio Azevedo / Fotos Públicas

Por outro lado, o milagre econômico


chegara ao fim e a crise alimentava a
insatisfação social. Ressurgia o movi‑
mento sindical. Greves agitavam o
ABC paulista. O regime dava sinais de
exaustão. Ainda assim, Geisel conseguiu
fazer o sucessor no Colégio Eleitoral:
o general João Batista Figueiredo.
A recessão profunda e a ampliação
das liberdades democráticas marcaram
o governo Figueiredo. A imprensa
ganhou liberdade e os exilados voltaram
ao Brasil com a Lei da Anistia. Mesmo
assim, a linha‑dura militar reagiu à
distensão com sequestros e atentados a
bomba. O Congresso, com o objetivo de
barrar o avanço da oposição, aprovou a
Nova Lei Orgânica dos Partidos. MDB
e Arena foram extintos e deram lugar
ao PMDB e ao PDS. Surgiram novas
legendas e emergiram as diferenças
ideológicas. Mas ainda havia um
adversário comum: a ditadura militar.
Sob a liderança de Ulysses Guimarães,
presidente do PMDB, foram organi‑
zados comícios pelas eleições diretas
para presidente em todas as capitais,
com a participação dos partidos de Tancredo e Ulysses no plenário da Câmara, durante a campanha das Diretas Já, em abril de 1984
oposição, sindicatos e demais organi‑
zações sociais. O comício do Rio de
Janeiro, na Candelária, reuniu mais Sob a liderança de Ulysses, Apesar da grande mobilização
de um milhão de pessoas. O povo foram organizados comícios popular, a Emenda Dante de Oliveira,
voltava às ruas e Ulysses ganhava o que restabelecia as eleições presiden‑
pelas eleições diretas para
carinhoso apelido de Senhor Diretas. ciais pelo voto popular, não passou
Era o segundo grande momento da
presidente em todas as capitais, no Congresso, ainda dominado pelo
carreira política do homem que, ainda com a participação dos PDS. Mas estava dado o xeque‑mate
menino, ficava fascinado ao ouvir o pai partidos de oposição, sindicatos na ditadura. No dia 15 de janeiro de
contar as histórias dos ex‑presidentes e demais organizações sociais 1985, em uma aliança da oposição
da República. com a Frente Liberal, formada por

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 69


Célio Azevedo / Fotos Públicas

Cidadã por ser a mais avançada de


todas, com destaque para o capítulo
dos direitos sociais e de garantias da
cidadania.
Na eleição presidencial de 1989,
um ano depois, veio a segunda grande
frustração da carreira do ex‑deputado.
Com apenas 4,4% dos votos, ele
terminou a disputa pelo Palácio
do Planalto em sétimo lugar. Não
conseguiu superar a rejeição de seu
partido, o PMDB, desgastado com
os naufrágios dos planos econômicos
lançados por José Sarney.
“A primeira razão da derrota foi a
pulverização das forças de esquerda em
Ulysses Guimarães e o texto consolidado da Constituição, em abril de 1988
várias candidaturas. Nunca deveríamos
ter nos dividido tanto. Outra foi o fato
dissidentes do PDS descontentes com a Em 1988 foi promulgada de que Ulysses, embora político sério e
escolha de Paulo Maluf para concorrer a sétima Constituição do bem intencionado, não tinha o carisma
ao cargo, o senador Tancredo Neves e a aceitação popular que tinha, por
país, que ganhou o apelido
foi eleito presidente da República exemplo, Lula, já naquela época. O
de Constituição Cidadã apoio quase unânime da grande mídia
no Colégio Eleitoral, tendo como
vice o também senador José Sarney, por ser a mais avançada de ao Collor também contribuiu para
recém‑filiado ao PFL – um partido todas, com destaque para o o insucesso da candidatura”, lembra
político da Frente Liberal. capítulo dos direitos sociais e Waldir Pires, companheiro de chapa
Tancredo morreu dias depois, sem de garantias da cidadania de Ulysses e hoje vereador em Salvador.
tomar posse, e Ulysses, principal arti‑
culador da eleição do líder mineiro,
resistiu à tentação de sentar na cadeira deixava dependente do aval político O BAQUE DA DERROTA  A derrota foi um
presidencial. Na ocasião, muitos parla‑ de Ulysses Guimarães. baque. No ano seguinte, Ulysses se
mentares tentaram convencê‑lo a assumir reelegeu deputado federal, mas teve
o cargo. Mas o velho democrata, disposto menos de um décimo dos votos da
a chegar ao Palácio do Planalto pelo voto A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ  Dois anos e campanha de 1986. E foi substituído
popular, defendeu a posse de Sarney. O nove meses depois, o Brasil colheu na presidência do PMDB por Orestes
senador maranhense era malvisto por o primeiro fruto da luta pela volta Quércia. A recuperação só veio em
todos os que se opuseram à ditadura e da democracia. Foi promulgada a 1992, no processo que resultou no
também pelos militares, que agora o Constituição de 1988, a sétima do país, impeachment de Collor. Não via com
tinham como um trânsfuga, o que o que ganhou o apelido de Constituição bons olhos a cassação do mandato do

70 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Arquivo Agência Brasil

Ulysses discursa na promulgação da Constituinte, em 5 de outubro de 1988: “A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. O
inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é
a sociedade que não acaba com a miséria”

ex‑presidente, mas mudou de posição onde o Ulysses do poema épico de e a ausência, silêncio que perturba os
com a evidência dos fatos e transformou Homero enfrentou sua Odisseia na nossos ouvidos, ausência que fere os
seu gabinete no quartel‑general da volta a Ítaca, negava aos brasileiros nossos olhos, a voz forte de Ulysses
Comissão Parlamentar de Inquérito o sepultamento do timoneiro que Guimarães ecoa na consciência moral
(CPI). Empenhou‑se para que a votação comandou o país, nas águas turvas deste Parlamento, de nosso povo e do
fosse aberta. da ditadura, ao porto seguro das nosso tempo”.
Collor foi afastado do cargo pelo liberdades democráticas. Passados 24 anos de sua morte, o
Senado no dia 2 de outubro de 1992. No dia 26 de novembro, pouco mais vazio que Ulysses deixou se tornou ainda
Dez dias depois, o helicóptero em de um mês depois daquela morte trágica, maior. O enteado Tito Henrique imagina
que Ulysses viajava com a esposa, o peemedebista Pedro Simon fez uma como o ex‑deputado se sentiria diante
dona Mora, o amigo Severo Gomes e homenagem ao velho comandante que do atual cenário político do país. “Se
a esposa do ex‑ministro, Anna Maria emocionou os colegas no Senado. “Há estivesse vivo, estaria indignado, como
Henriqueta Marsiaj, caiu em alto‑mar. um grande silêncio neste plenário. Há todo mundo, mas estaria empunhando
Todos morreram, mas só o corpo do uma grande ausência nestas salas e a bandeira da reforma política, a coisa
ex‑deputado nunca foi achado. O mar, corredores. Não obstante o silêncio mais necessária hoje”.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 71


MELHORES
PRÁTICAS
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72 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


A coleta seletiva que
traz dignidade, renda
e proteção ambiental
Programa da Prefeitura de Novo Hamburgo ganha Prêmio ODM
pelas práticas desenvolvidas para a gestão de resíduos sólidos
com inclusão social e parceria com o município de Campo Bom

Carla Lisboa – Brasília

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 73


D
ois anos após conquistar realmente, conseguem atingir um

20%
o Prêmio Objetivos de patamar de operação interessante por
Desenvolvimento do ser um tipo de empresa que, quando
Milênio (Prêmio ODM), da começa, se não funciona rapidamente,
Organização das Nações Unidas (ONU), cria desânimo entre os cooperados e
o Programa Catavida – Gestão Social
de Resíduos Sólidos supera barreiras.
a 25% das acaba. As pessoas abandonam”, observa
Albino Rodrigues Alvarez, técnico
Ele consolida, em Novo Hamburgo cooperativas que se formam conseguem de Planejamento e Pesquisa do Ipea.
atingir um patamar de operação interessante
(RS), uma das políticas públicas mais
difíceis instituídas no país: a Política
Nacional de Resíduos Sólidos. PROBLEMAS ESPECÍFICOS  As cooperativas
Criado em 2010 com cerca de têm dificuldades próprias. Muitas
quarenta catadores, o programa emprega em uma área de difícil consolidação vezes são conduzidas por pessoas sem
hoje mais que o dobro de mão de obra. desse modelo de gestão. É também experiência de trabalho organizado
E tem projetos de expansão. Atualmente, um exemplo de superação porque e enfrentam uma série de problemas
conta com 95 catadores, distribuídos a Prefeitura tratou o problema dos específicos que fazem com que poucas
em três unidades, os quais chegam resíduos sólidos e o da inclusão social prosperem e operem bem. Diante
a receber salário mensal de até R$ como políticas de Estado e não como desse quadro, as que sobrevivem,
1.500. A média salarial de catadores programa de governo. em geral, tiveram alguma assistência
organizados nas 1.175 cooperativas “É uma experiência bem‑sucedida na parte organizacional. Existem até
existentes no Brasil não ultrapassa em todos os sentidos. Sobretudo nessa Organizações Não Governamentais
um salário mínimo e meio por mês. área do cooperativismo, porque (ONGs), no Brasil, especializadas
Para a Prefeitura de Novo Hamburgo a mortalidade de empresas e em dar assistência para as
é uma grande vitória. Afinal, trata‑se cooperativas é muito alta cooperativas.
de uma das experiências de inclusão no Brasil. Apenas entre A organização é uma
social e de cooperativismo com resí‑ 20% a 25% das coopera‑ das razões que fazem do
duos sólidos mais exitosas do país tivas que se formam, Catavida um exemplo
de sucesso. Mas há um
conjunto de motivos que
levou esse programa a se
“É uma experiência bem‑sucedida
classificar na última edição do
em todos os sentidos. Sobretudo
Prêmio ODM Brasil. Um
nessa área do cooperativismo, deles foi o fato de
porque a mortalidade de empresas e
cooperativas é muito alta no Brasil”

Albino Rodrigues Alvarez, técnico de


Divulgação / Ipea

Planejamento e Pesquisa do Ipea

74 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS EM NÚMEROS (Levantamento do Ministério do Meio Ambiente de 2015)

DOS 5561 MUNICÍPIOS BRASILEIROS:

40% 60%
dispõem seus dispõem seus
resíduos em resíduos em
aterros lixão e aterro
(2.215 municípios) sanitários (3.346 municípios) controlado

42% 58%
têm planos de não têm planos
gestão de gestão
integrada de integrada de
(2.323 municípios) resíduos sólidos (3.238 municípios) resíduos sólidos

21%
(2.215 municípios)
têm coleta
seletiva 79% (3.346 municípios)
não têm
coleta seletiva

ter sido uma experiência desenvolvida LIXÕES FECHADOS  Aprovada em 2010, a mostra que 40% dos municípios
a partir da parceria entre municípios Política Nacional de Resíduos Sólidos brasileiros (2.215) depositam seus
– a Prefeitura de Novo Hamburgo e (PNRS), criada para permitir o avanço resíduos em aterros sanitários e 60%
a Cooperativa de Construção Civil necessário no enfrentamento dos (3.346 municípios), em lixão e aterro
e Limpeza Urbana (Coolabore) do principais problemas ambientais, controlado até hoje.
município de Campo Bom – e também sociais e econômicos decorrentes O estudo revela que 42% dos muni‑
ser replicável em outras localidades. do manejo inadequado dos resíduos cípios (2.323) declararam ter planos de
O programa de Novo Hamburgo sólidos, enfrenta sérios problemas gestão integrada de resíduos sólidos,
pôs em curso um trabalho de gestão de para ser implantada. mas 58% (3.238), não têm plano. Que
resíduos sólidos que ensejou mudança Ela determinou que todos os lixões apenas 21% dos municípios (2.215) têm
conceitual sobre os temas dos catadores do país deveriam ter sido fechados até coleta seletiva e, dos resíduos coletados
e dos resíduos sólidos na sociedade e o dia 2 de agosto de 2014, o rejeito nesse grupo de municípios, apenas 1,8%
entre os próprios trabalhadores. encaminhado para aterros sanitários é de fato reciclado. Aponta ainda que
O programa, por sua vez, coloca adequados e, dentre outras ações, que 79% dos municípios (3.346) não têm
Novo Hamburgo numa etapa avan‑ os municípios deveriam elaborar seus coleta seletiva.
çada de consolidação da Política e do respectivos planos para instituir a O Projeto de Lei nº 2.289/2015, em
Plano Nacional de Resíduos Sólidos coleta seletiva. tramitação no Congresso Nacional,
que a maioria dos municípios do país Levantamento do Ministério do prevê o estabelecimento de novo prazo
não conseguiu nem sequer implantar. Meio Ambiente (MMA), de 2015, para fechamento dos lixões: até 31 de

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 75


Divulgação

As denúncias contra os catadores


levaram os gestores públicos da
Secretaria de Desenvolvimento Social
a investigar a situação e a implantar
uma iniciativa intersetorial envolvendo
as Secretarias de Estado do Meio
Ambiente, da Educação, do Trabalho,
do Turismo e a própria Secretaria de
Desenvolvimento Social.
“Fizemos abordagens na rua
para conhecer aquela realidade e
verificamos que não se tratava de
população de rua. Descobrimos
que a maioria desse pessoal tinha
residência. Porém, usava a rua como
lugar de trabalho pela ausência de um
espaço formal, de uma estrutura de
organização que pudesse absorvê‑la
na realização dessa atividade. A partir
da identificação dessas pessoas,
julho de 2018, para capitais e regiões “Fizemos abordagens na rua debruçamo‑nos sobre como ocorria o
metropolitanas se adequarem; até 31 para conhecer aquela realidade trabalho com os resíduos da cidade”,
de julho de 2019, para municípios com e verificamos que não se conta a assistente social.
população superior a 100 mil habitantes. tratava de população de rua. Segundo ela, os gestores públicos
Para os municípios com população sabiam da existência de uma coleta
Descobrimos que a maioria
entre 50 mil e 100 mil habitantes, o convencional e que o resíduo seguia para
prazo é até 31 de julho de 2020. E até desse pessoal tinha residência” alguma central da cidade. “Conhecemos
31 de julho de 2021 para aqueles com essa central. Deparamo‑nos com
população inferior a 50 mil habitantes. Rúbia Goetz, assistente social do Catavida uma situação extremamente grave e
Levantamento do Ipea, de 2011, identificamos uma série de direitos
e outro do Sistema Nacional de negligenciados”, diz Rúbia.
Informações sobre Saneamento, de o material coletado e mal remunerava Segundo ela, a Prefeitura havia
2013, dão conta de que uma pessoa os catadores. Em meados de 2009, a cedido espaço para uma coopera‑
produz, por dia, em média, 1,02 quilo Secretaria de Estado de Desenvolvimento tiva que atuava nessa central. “Mas
de resíduos e que 600 mil catadores Social passou a receber denúncias de ela não atendia aos conceitos de
integram 1.175 cooperativas ou asso‑ que havia grande número de catadores cooperativa. Tinha um dono, que
ciações de catadores, distribuídas em no centro da cidade. Eram confundidos organizava os trabalhos e pagava
684 municípios. com a população de rua, pois grande cerca de R$ 100 mensais para as
parte deixava a periferia para coletar mulheres e R$ 200 para os homens.
os resíduos no centro. Após a coleta, O trabalho não era organizado.
A CONSTRUÇÃO DO PROGRAMA  A gestão “passavam a noite pelas calçadas da Não tinha maquinário. Não tinha
de resíduos sólidos de Novo Hamburgo cidade, protegendo o material cole‑ Equipamento de Proteção Individual
era realizada por um atravessador, que tado, e isso incomodava a população”, (EPI). Os catadores simplesmente
usava uma cooperativa e a estrutura da conta Rúbia Goetz, assistente social subiam nas montanhas de resíduos e
Prefeitura para fazer negociatas com do Catavida. dali tiravam tanto o material quanto

76 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


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Criado em 2010 com cerca de quarenta


catadores, o programa emprega hoje mais
que o dobro de mão de obra. E tem projetos de
expansão. Atualmente, conta com 95 catadores,
distribuídos em três unidades, os quais chegam
a receber salário mensal de até R$ 1.500

seu sustento. Muitos deles retiravam, subsidiar a elaboração do Programa de condições de trabalho subumanas e
até mesmo, a própria alimentação Gerenciamento Integrado de Resíduos fortes indícios de uma metodologia
daquele resíduo”, lembra. Sólidos, fundamentado na Resolução totalmente em desacordo com os prin‑
nº 017/2001, do Conselho Estadual do cípios do cooperativismo, confirmada
Meio Ambiente (Consema). O grupo por uma Comissão de Sindicância, o
DENÚNCIAS  Se a preocupação da comu‑ estudou o problema e pôs em curso que levou ao cancelamento do Termo
nidade era o incômodo de ver essa estratégias de aproximação, como de Permissão de Uso do Local.
população praticamente morando abordagens dos catadores de rua para Depois disso, a Prefeitura investiu
nas calçadas do centro da cidade, a a efetiva identificação deles; visitas recursos na implantação de uma polí‑
do poder público passou a ser outra. à Central de Reciclagem no bairro tica pública de gestão de resíduos
A Prefeitura percebeu que as denún‑ de Roselândia para compreensão sólidos atrelada à inclusão social dos
cias revelavam um problema social do processo de trabalho; e visitas catadores e à melhoria da qualidade de
mais grave, relacionado à ausência às experiências exitosas realizadas vida e ambiental em Novo Hamburgo.
de dignidade e cidadania dos traba‑ em municípios da região para obter Conseguiu verbas de emendas parla‑
lhadores que sobrevivem da coleta de intercâmbios. mentares federais. Boa parte dos equi‑
resíduos sólidos. Uma das mais importantes meto‑ pamentos das atuais três unidades foi
Observou que havia lacunas na dologias foi a visita à Central de financiada pela Fundação Banco do
efetivação de políticas públicas. Reciclagem, na qual foi constatada uma Brasil, por meio de projetos de captação
A resposta a isso foi a criação de um profusão de negligências trabalhistas e de recursos. Recebeu também dinheiro
grupo interdisciplinar de trabalho para sociais, como exploração de trabalho, da Funasa e da vinculação de recursos

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 77


do Índice de Gestão Municipal dentro pagar o trabalho de triagem de resí‑ Uma unidade com 60 e outra com 25
da política de assistência social que duos. Além disso, os catadores que trabalhadores. Em 2016 tivemos uma
fomenta o empoderamento dos sujeitos estavam em salas de aula foram todos inovação com a contratação de uma
e da inclusão no mercado de trabalho. vinculados ao trabalho. terceira cooperativa, a Univale, na qual
Paralelamente, estabeleceu contato temos – 10 trabalhadores. Ela está
com a Coolabore, da Prefeitura do recentemente conosco implantando
município vizinho de Campo Bom, AVANÇAR E AUMENTAR  Novo Hamburgo a sua unidade. Temos projetos para
que passou a ser, a partir de junho produz, atualmente, 4,5 mil toneladas ampliá‑la”, afirma Rúbia.
de 2010, a responsável pela gestão de resíduos sólidos por mês. Desse total, O Catavida tem entre seus atuais
da Central de Reciclagem de lixo. 160 mil toneladas já são processadas desafios a implantação de outras
A Coolabore trouxe sua expertise na central de reciclagem do Catavida. centrais de triagem apresentadas no
e passou a ser a principal parceira O intuito é avançar e aumentar cada vez plano de intervenção, a ampliação do
da Prefeitura de Novo Hamburgo mais esse número. As novas instalações projeto e a efetivação do Programa de
na execução do Programa Catavida. ampliaram o número de toneladas a Coleta Seletiva Solidária em todo o
O resultado é que o governo de Novo serem processadas e aumentaram a município. O objetivo geral é desen‑
Hamburgo contratou a Coolabore e contratação de catadores. volver ações integradas que abranjam
até hoje a parceria segue firme, com “Atualmente, estamos com duas a sustentabilidade social, econômica e
repasses de recursos financeiros para unidades conveniadas com a Coolabore. ambiental, levando em conta as medidas

PROGRAMA CATAVIDA:
RESULTADOS QUANTITATIVOS

240
catadores de
100%
da sociedade
85
trabalhadores saíram de um
6%
de aproveitamento dos
material reciclável mapeados por patamar de R$ 200 mensais resíduos sólidos
já certificados representações para cerca de R$ 1.500 produzidos no município

78 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


de enfrentamento da questão social Não é à toa que o projeto recebeu que valeu o Prêmio ODM Brasil.
do lixo, desde a geração dos resíduos vários prêmios, como o Selo Cidade Não é algo comum uma Prefeitura
até o destino final, potencializando o Cidadã 2011, da Câmara dos Deputados; aproveitar uma experiência de outra.
trabalho dos catadores. o Prêmio Fundação Banco do Brasil Aliás, um dos grandes problemas que
Apesar de o modelo de gestão de de Tecnologia Social 2011; o 10º temos com essas políticas públicas
resíduos sólidos de Novo Hamburgo Prêmio Gestor Público 2011 do é que, às vezes, há certa rivalidade
estar ainda em construção, nesses Sindifisco; o Prêmio Boas Práticas entre os municípios, principalmente
seis anos ele comprovou ser possível em Sustentabilidade Ambiental Urbana entre os que são muito próximos. Mas
realizar um trabalho efetivo, capaz 2012, da Secretaria de Recursos Hídricos não foi o que aconteceu nesse caso”,
de romper com a lógica de trabalho e Ambiente Urbano do Ministério do comenta Albino Rodrigues Alvarez,
setorial e fragmentado. Um documento Meio Ambiente; o Prêmio Fundação da Diretoria de Estudos e Políticas
do MMA sobre o Catavida ressalta os Banco do Brasil de Tecnologia Social Setoriais de Inovação, Regulação e
aspectos multiprofissional, intersetorial 2013; o Prêmio Objetivos do Milênio, da Infraestrutura (Diset), do Ipea.
e interdisciplinar da iniciativa como Secretaria da Presidência da República
características fundamentais que e Programa das Nações Unidas para o
asseguraram os resultados exitosos e Desenvolvimento, em maio de 2014. CONSÓRCIOS INTERMUNICIPAIS  Na
transformaram a atividade em exemplo “Talvez tenha sido essa ideia de avaliação do técnico do Ipea, esse
para outros municípios. intercâmbio com outra Prefeitura conjunto de ações administrativas e a

PROGRAMA CATAVIDA:
RESULTADOS QUALITATIVOS

Protagonismo da categoria Redução do volume Redução do grau de


enquanto organização voltada de resíduos vulnerabilidade dos
à cadeia produtiva dos enviados ao aterro catadores de
materiais sólidos recicláveis sanitário materiais recicláveis

Maior atuação do Poder Redução de Fomento às ações


Público municipal com vistas impactos continuadas de
à separação do resíduo e nocivos ao educação
atendimento à legislação meio ambiente ambiental

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 79


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parceria com a Prefeitura do município


vizinho contêm o embrião do Plano
Nacional de Resíduos Sólidos que
prevê a formação de consórcios inter‑
municipais para a gestão de resíduos,
prática que não tem se disseminado
com a força necessária e enfrenta
problemas para a sua expansão, dentre
vários outros motivos, pelas grandes
distâncias entre os municípios e pelas
rivalidades político‑partidárias entre
gestores públicos de Prefeituras vizinhas.
“Novo Hamburgo e Campo Bom
mostraram que é possível. A Prefeitura
de Novo Hamburgo estabeleceu contato
com a Coolabore e organizaram uma
experiência vitoriosa da coleta com a
expertise, o conhecimento e a expe‑ A maioria de catadores é de na esteira de separação trabalham as
riência do pessoal de Campo Bom. mulher e, em razão disso, mulheres; muito aos poucos é que os
E assim houve uma aproximação entre homens vão começando a trabalhar
há uma divisão de trabalho
as secretarias de governo de Novo nessa função de separar o lixo. Eles
bastante nítida: na esteira
Hamburgo e a cooperativa de catadores começam, normalmente, na parte
de Campo Bom. Isso deu início ao de separação trabalham mais pesada, a de enfardar o material,
processo. Esse foi o segredo que levou as mulheres; muito aos transportar, carregar e descarregar
à instalação desse modelo de coleta e poucos é que os homens vão caminhão”, explica Alvarez.
ao prêmio”, assegura Albino Alvarez. começando a trabalhar na Em 2014 já se percebiam os resul‑
Ele visitou o Catavida em 2013, função de separar o lixo tados positivos. “A renda em relação
juntamente com o também técnico ao pessoal que trabalhava na coope‑
de Planejamento e Pesquisa do Ipea rativa anterior, envolvida com sérias
Sandro Pereira Silva, após o programa no momento de receber a remuneração irregularidades, aumentou bastante.
ser indicado como uma das iniciativas a que, às vezes, o catador de rua não Antes, os poucos catadores recebiam
do Rio Grande do Sul para receber o está acostumado”. em torno de R$ 300 e, com a nova
Prêmio ODM Brasil. Albino Alvarez cooperativa, passaram para R$ 1.500 por
afirma que esse tipo de experiência mês. Além da cooperativa, o Catavida
vale para quase todo o país. PAPEL FEMININO  O técnico do Ipea desenvolveu várias ações de educação
“É assim mesmo: começa pequeno, destaca o papel feminino na consti‑ ambiental, estabeleceu parcerias com
pelo centro da cidade, depois outro bairro tuição das cooperativas. “É importante órgãos do governo, escolas públicas
e assim por diante. Quando estivemos porque, em geral, começa com as e privadas, com a rede empresarial
lá, já havia 80 catadores. Esse processo mulheres. Elas são mais receptivas a e bancos para realizar uma triagem
de adesão é gradual porque, no primeiro essa novidade porque, normalmente, nos próprios locais, uma separação
contato, em geral, o catador tem certa significa uma melhoria nas condições de dos resíduos já na origem, a fim de
resistência a fazer parte desse tipo de trabalho, uma diminuição da violência facilitar o trabalho dos catadores”,
cooperativa, pois implica para ele certa do processo. A maioria, portanto, é comenta Sandro Pereira Silva.
organização, disciplina de trabalho e, de mulher e, em razão disso, há uma Técnico de Planejamento e Pesquisa
entre outras coisas, uma disciplina até divisão de trabalho bastante nítida: da Coordenação de Mercado de

80 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


Trabalho, na Diretoria de Política Social,
Silva focou sua visita ao Catavida na
verificação das condições de trabalho e ATERROS SANITÁRIOS:
geração de renda. “O que me chamou
atenção, positivamente, foi o fato de CUSTOS E VALORES
que tinha uma cooperativa em outra
cidade e que a de Novo Hamburgo era
só de fachada, na qual havia um dono Dados de 2007, da Fundação Getúlio Vargas e da Associação Brasileira de Empresas
e poucas pessoas trabalhando numa de Tratamento de Resíduos (Abetre), corrigidos pelo Índice Nacional de Custo da
central de triagem e uma renda muito Construção (INCC) até junho de 2014, mostram os custos da instalação dos aterros
baixa. Era uma pessoa que interme‑ sanitários e os valores de implantação
diava os contratos com a Prefeitura e
existia desvio de recursos financeiros.

5%
O potencial da cooperativa estava do total de
totalmente comprometido”, lembra. Custo de
investimentos
A superação dessa dificuldade foi implantação: no aterro
uma das razões que o convenceram de
que a Prefeitura de Novo Hamburgo
merecia o Prêmio ODM Brasil. “Um
pouco antes, em 2010, o governo

85%
federal, no último ano da gestão do Custo de operação do total de
investimentos
ex‑presidente Lula, aprovou a Lei
e manutenção: no aterro
da Política Nacional de Resíduos
Sólidos. Essa lei trouxe uma inovação (em uma vida útil de 20 anos)
grande porque permitiu às Prefeituras
desenvolverem grupos de catadores
em cooperativas ou associações nos

10%
do total de
programas em que se faz gestão de Custo de encerramento
resíduos sólidos”, afirma. investimentos
Como esse tipo de serviço é de
e pós‑encerramento: no aterro
responsabilidade do Estado, Silva
considera importante haver projetos
inovadores nos municípios que sirvam
de modelo para produzir outros Valores estimados para implantação
projetos e sejam replicados em outros
municípios para possibilitar melho‑
rias em termos de gestão de resíduos
sólidos. “Em Novo Hamburgo, uma
cidade com mais de 250 mil habi‑
tantes, ou seja, relativamente grande
e muito urbana, situada na Região Aterro de pequeno Aterro de médio Aterro de grande
Metropolitana de Porto Alegre, os
impactos foram positivos, compro‑
porte (100 t/dia): porte (800 t/dia): porte (2.000 t/dia):
vados em números na época em que R$ 5,2 milhões R$ 18,4 milhões R$ 36,2 milhões
fomos lá, em 2013”, lembra.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 81


ciência&inovação Freepik

SUSTENTABILIDADE
CIRCUITO Uso de palma
na alimentação
de animais
INPE A criação de caprinos, como bodes
e cabras, pode ficar mais barata e consumo de água diminuiu em 61%.
sustentável graças a uma descoberta Durante a análise, os pesquisadores
do Instituto Nacional do Semiárido usaram três tipos de palma – orelha
(Insa). A equipe percebeu que a de elefante mexicana, doce miúda
ingestão da palma forrageira pelos e baiana – misturadas a outros
animais reduz significativamente o alimentos, como milho, farelo de
consumo de água por parte deles. soja e feno. O resultado apontou
Isso se dá pelo fato de o alimento que a ingestão desse complemento
possuir aproximadamente 90% da ajudou também no ganho de peso
TECNOLOGIA sua composição de H2O. Assim, o dos animais.
Brasil partilha
monitoramento Embrapa

DOCUMENTAÇÃO
de florestas
Representantes do Peru, do Suriname Brasil possui
e da Guiana participaram do curso acervo de 30 mil
internacional de Monitoramento de
Florestas Tropicais oferecido pelo amostras de solo
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe), no Centro Regional da Amazônia, A soloteca brasileira,
em Belém (PA). O Brasil é o único pertencente à Embrapa Solos,
país da região tropical que possui no Rio de Janeiro, possui
um programa de monitoramento de uma extensa documentação
florestas. Pode, assim, partilhar com do solo brasileiro e africano.
outros países a expertise para que eles Com aproximadamente 30
consigam acompanhar e fiscalizar suas mil amostras, o objetivo
florestas. Alguns dos pontos fortes do de guardar todo esse material é a 2018, quando ganhará um inventário
monitoramento brasileiro são: a geração possibilidade de realizar avaliações de digital para controle das amostras
de imagens das florestas via satélite, o mudanças temporais nos atributos do arquivadas, um banco de dados com
levantamento de informações sobre solo, estudos retrospectivos de balanço trabalhos publicados, dados analíticos
áreas desmatadas na Amazônia Legal de nutrientes e poluentes, calibrar e morfológicos completos de perfis
e a qualificação do desflorestamento. novos métodos de medida em relação de solos estocados e um manual que
Além disso, há o projeto Queimadas, aos tradicionais e possibilitar uma estabelecerá regras de gestão, de seleção
que mapeia e monitora cicatrizes de redução de custos. Criada em 1973, a de amostras para estocagem e descarte,
áreas de incêndios florestais. soloteca passará por revitalização até catalogação e política de uso.

82 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


AGRICULTURA
Carnes poderão receber selo de certificação
Um dos principais fatores responsáveis pelo efeito estufa pode estar
com os dias contados. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) desenvolveu um conceito batizado de Carne Carbono
Neutro (CCN) e que passará a ter selo de certificação. O CCN consiste
em introduzir árvores na criação de rebanhos bovinos. Sua presença
neutraliza o metano entérico – exalado pelos animais –, que é um dos
principais responsáveis pelos problemas do aquecimento global. A carne
que for produzida levando em conta esse sistema poderá receber o selo
mediante adoção ao protocolo CCN. Assim, espera-se um aumento na
exportação de carnes, em especial para o mercado europeu.

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ALIMENTAÇÃO
Hambúrgueres com INOVAÇÃO
menos gordura Clareamento dental com luz violeta
A ingestão de alimentos balanceados e com menos Pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (IFSC)
gordura tem sido a cada dia mais incentivada por da USP desenvolveram um estudo utilizando apenas luz
médicos e nutricionistas. Dessa forma, pesquisadores violeta para o clareamento dentário e descobriram que
da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveram um esse recurso é tão eficaz quanto outros tratamentos. No
hambúrguer feito com fibra de abacaxi e óleo de canola entanto, uma vantagem é que sua utilização dispensa
como substitutos parciais de gordura. O produto, além outros materiais, como o gel de peróxido aplicado
de ter uma melhor qualidade nutricional, colabora para junto com a luz ultravioleta, atualmente utilizado no
a redução de desperdício de alimentos, já que utiliza tratamento de clareamento dentário. Os pesquisadores
material que seria descartado pela indústria e, ainda, destacaram que há também uma redução no tempo do
pode ser considerado um ingrediente promissor para tratamento – atualmente de três sessões, com duração
a indústria, uma vez que está disponível e é de baixo de aproximadamente quarenta minutos cada. Com a luz
custo. Quanto a benefícios nutricionais, o alimento com violeta, esse tempo cai para três sessões de trinta minutos,
subprodutos de abacaxi e óleo de canola tem menos divididas em três semanas.
calorias, teor de gordura e de colesterol.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 83


livros e publicações

ESTANTE
LIVRO ANALISA COMPLEXO DO ALEMÃO

A vida social e política do Complexo do governo nesse processo histórico.


do Alemão é marcada por esperanças Elas enfatizam arranjos institucionais, a
e frustrações desde que se iniciaram as participação do Estado e o envolvimento
obras do Programa de Aceleração do dos jovens com o tráfico de drogas. A
Crescimento (PAC) e a instalação das publicação apresenta três dimensões
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). que justificam a discussão sobre a
A atuação do Estado nessa região é relação entre juventude e o mundo
analisada no livro Vida Social e Política do crime. A primeira é “o interesse em
nas Favelas – pesquisas de campo no compreender como as dimensões da
Complexo do Alemão, trazendo uma sociabilidade das favelas – moradia,
abordagem da participação popular nos lazer, afeto etc. – são vividas por esses
arranjos institucionais que possibilitam jovens”. A segunda busca “entender
a formulação de políticas públicas os mecanismos de saída, retenção ou
para a região. adesão dos jovens ao tráfico no contexto
As análises partem da construção das da UPP” e a terceira, por fim, busca
favelas que fazem parte da comunidade, “assimilar o olhar da rede de afeto sobre
passando pelo papel das intervenções essas dimensões e processos de vida”.

POLÍTICA MONETÁRIA, FINANÇAS E CONSÓRCIOS PÚBLICOS

Um modelo que avalia o grau autoridade monetária é crucial


de compromisso entre a autoridade para a redução da inflação e da
monetária e a estabilidade de volatilidade da taxa de juros no
preços foi apresentado na revista Brasil.
Planejamento e Políticas Públicas Além desse tema, a primeira
(PPP). Os autores, Gabriel Caldas edição de 2016 da revista PPP
Montes e Alexandre Curi, analisam apresenta doze artigos que versam
que, quanto mais credibilidade sobre vários pontos relativos à ação
houver nessa relação, “maior será governamental: política monetária,
o ganho em termos de controle finanças públicas estaduais, políticas
inflacionário, bem como em termos para o setor elétrico, consórcios
de redução da volatilidade da taxa públicos, políticas de desenvolvi‑
básica de juros”. E completam mento urbano e políticas de saúde
afirmando que a credibilidade da e de educação.

84 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


JUVENTUDE BRASILEIRA POSSUI MAIORIA DE POBRES, NEGROS E MULHERES

O Brasil possuía, em 2013, O grau de escolaridade também


uma população de 21 milhões de foi analisado: 1,32% dos jovens com
jovens. Mais da metade (64,87%) idade entre 15 e 17 anos não concluiu
é negra, mulher (58%) e vive com o ensino médio. A explicação pode
renda menor do que um salário estar na dificuldade de acesso à
mínimo (83,5%). Esse perfil foi educação. Em 2010, no Nordeste,
traçado pela pesquisadora do apenas 18,4% das pessoas entre 18
Ipea Enid Rocha, em um dos e 29 anos conseguiram entrar na
capítulos do livro Dimensões da universidade. Já no Sudeste esse
Experiência Juvenil Brasileira número era de 48,5%.
e Novos Desafios às Políticas A abordagem da juventude rural
Públicas, que aborda também a questionou pesquisas tradicionais
expansão de iniciativas estatais sobre a migração do campo para a
voltadas para esse segmento, como cidade. Os autores esclarecem que
educação, trabalho, segurança, o estudo “representa uma contri‑
esporte, cultura, tecnologias da buição para o conhecimento e a
informação e comunicação (TIC), revalorização do mundo rural como
saúde, empreendedorismo, direitos um ‘modo particular de utilização
humanos e participação social. do espaço e da vida social’”

ESTUDO ANALISA ESTRATÉGIA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO

Quais as vantagens brasileiras em Dividido em 14 capítulos, o livro


termos de capacidades estatais perante faz uma análise comparada da ação
outros países emergentes? Esse é um do Estado em pontos estratégicos
dos questionamentos colocados no de países com dificuldades comuns
livro Capacidades Estatais em Países em relação ao desenvolvimento.
Emergentes – o Brasil em perspectiva Foram escolhidos para estudo Brasil,
comparada, organizado pelo técnico Rússia, Índia, China, África do Sul
de Planejamento e Pesquisa do Ipea (BRICS) e a Argentina. Essa análise
Alexandre de Ávila Gomide. possibilita aos Estados nacionais
O texto analisa as capacidades neces‑ desenvolver “uma melhor formulação
sárias para o Estado alcançar um resul‑ de estratégias, compreender o reequi‑
tado satisfatório no desenvolvimento e líbrio de forças na ordem econômica
as competências a serem estimuladas mundial e o papel desempenhado pelo
com o objetivo de promover o desen‑ Estado em diferentes paradigmas de
volvimento inclusivo e sustentável. desenvolvimento”.

Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88 85


Humanizando o
DESENVOLVIMENTO

Um grupo de mulheres empreendedoras em Uganda transformou seu domínio doméstico tradicional em um negócio de pequena escala. Usando
habilidades empreendedoras, elas produzem vassouras feitas a partir de materiais locais e sustentáveis ​​para venda na comunidade e no
mercado regional, aumentando sua renda familiar e expandindo suas redes sociais. Mulheres poderosas são a pedra angular do desenvolvimento
da comunidade e a chave para famílias saudáveis ​​e prósperas. Foto: Azra Kacapor Nurkic

Como você vê o desenvolvimento? frequentes que mostram desolação pantes de mais de 100 países que nos
Como retratar uma face humana do e desespero. Uma galeria de fotos enviaram suas fotos e suas histórias
desenvolvimento? Como os programas e será permanentemente montada no e compartilharam sonhos e desafios.
iniciativas do desenvolvimento melhoram escritório do Centro Internacional de Agradecemos às instituições parceiras
a vida das pessoas? A campanha Políticas para o Crescimento Inclusivo e membros do Comitê de Seleção por
mundial de fotografia Humanizando (IPC‑IG) e aberta à visitação pública. suas contribuições para a campanha.
o Desenvolvimento busca mostrar e Uma série de exposições fotográficas Todos vocês tornaram a campanha uma
promover exemplos de pessoas vencendo também será organizada em diversas realidade e nos ajudaram a destacar
a luta contra a pobreza, a marginalização cidades ao redor do mundo. e a promover o desenvolvimento por
e a exclusão social. A campanha chama Temos o prazer de anunciar as 50 meio de novas lentes. Parabéns aos
a atenção para os sucessos obtidos como fotos selecionadas pela campanha. participantes.
forma de contrabalançar as imagens Gostaríamos de agradecer aos partici‑

Visite o site e veja algumas das fotografias da campanha: http://www.ipc‑undp.org/photo/

86 Desafios do Desenvolvimento • 2016 • Ano 13 • nº 88


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