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EDUARDO KENEDY

IVO DA COSTA ROSÁRIO


MARIANGELA RIOS
ANA BEATRIZ ARENA
BETHANIA MARIANI
LUCÍLIA SOUSA ROMÃO
VANISE MEDEIROS
SILMARA DELA SILVA
ORGANIZAÇÃO

ROBERTO PAES
1ª edição

rio de janeiro 2013


Conselho editorial bethania sampaio correia mariani, magda ventura,
mariangela rios de oliveira, paula caleffi, roberto paes de carvalho ramos,
rosaura de barros baião

Organizador do livro roberto paes de carvalho ramos

Autores dos originais eduardo kenedy nunes areas (capítulo 1), ivo da costa
rosário (capítulo 2), mariangela rios de oliveira e ana beatriz arena (capítulo
3), bethania sampaio correia mariani e lucília maria sousa romão (capítulo 4),
vanise gomes de medeiros e silmara cristina dela da silva (capítulos 5 e 6)

Projeto gráfico e desenho didático paulo vitor fernandes bastos

Redação final e desenho didático roberto paes de carvalho ramos

Revisão linguística aderbal torres bezerra

Com a colaboração de daniela ferreira reis, flavia oliveira teófilo da silva,


jarcélen thaís teixeira ribeiro

Site de apoio ao projeto editorial andré renato fernandes lage, danielle


vilar goulart dos santos, rafael de freitas alvarez jourdan, tainara oliveira
da rocha e thiago lopes amaral.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou
transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e
gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão
escrita da Editora. Copyright seses, 2013.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

l755 Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras


Roberto Paes [organizador].
— Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2013.
128 p

isbn: 978-85-60923-05-2

1. Língua portuguesa, estudo e ensino 2. Linguagem 3. Texto


4. Discurso 5. Comunicação escrita I. Título.
cdd 469.09

Diretoria de Ensino – Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido – Rio de Janeiro – rj – cep 20261-063
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Sumário

Prefácio 7

1. Linguagem, sociedade e cognição 9

A linguagem humana  10
Linguagem e língua  12
Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural  15
Aquisição da linguagem  17
Formas e funções linguísticas  21
Arbitrariedade  24
Iconicidade  25
A linguagem humana em ação  27
A enunciação  30
Função referencial x metáfora  32
Para concluir  33

2. Língua e variação linguística 35

Papel e status dos interlocutores na comunidade linguística  36


Propósitos da língua: exemplificando pela modalização  37
Transformações na trajetória da língua: mudança e variação  38
Variação linguística  39
Por que a mesma língua é, também, diferente?  40
Explorando mais o tema: variações dialetais  42
Variação diatópica (dialetal)  42
Variação diastrática (sociocultural)  42
Língua padrão e língua culta  44
Língua culta  47
E as outras formas de uso?  48
Preconceito e poder no uso da língua  49

3. Linguagem, unidade e diversidade 53

Língua vernacular  55
Propriedades do texto falado  57
Propriedades do texto falado: a fragmentação  58
Propriedades do texto falado: a situacionalidade  59
Propriedades do texto falado: a reiteração  61
Propriedades do texto escrito  62
Propriedades comuns da fala e da escrita  65
4. Gênero, tipologia e sentido 69

O gênero discursivo  72
Do gênero para o funcionamento do discurso  75
Tipologia discursiva  77
Discurso lúdico  77
Discurso polêmico  79
Discurso autoritário  79
Situações de oralidade  80
Homofonia  81
Das tramas orais para a análise da conversação  82
Linguagem em contextos midiáticos: o caso do blog  85
Blog e jornalismo  86

5. Texto: coesão e coerência 89

Referência e referenciação  91
Da referência para a coesão  93
Coesão referencial endofórica  95
Coesão por elipse  96
Coesão sequencial  97
Organização da estrutura textual  99
Argumentação e texto argumentativo  101
Argumentação e ironia  104
Intertextualidade  105

6. Texto, discurso e interpretação 109

Do texto ao discurso  113


Retomando o conceito: condições de produção  116
O não-dito e os sentidos  121
O não-dito e o silêncio  124
O dizer e o já-dito  125
Sujeito e sentido  127
Prefácio
Durante muito tempo, atrevo-me a dizer que estivemos trabalhando a língua, as situações de lingua-
gem, de forma quase “estática”, enfatizando somente um aspecto da língua: o aspecto formal ou a for-
ma de prestígio, como hoje é denominada essa formalidade da língua. Essa denominação, na verdade,
parece ser a mais adequada, já que a referida forma é extremamente considerada e serve como determi-
nante de um “bom falar” e de “saber se comunicar”. Será que é assim?
Diversas atividades nos mostram a língua sendo utilizada de forma extremamente versátil, não só em
relação a vocabulário específico e à forma de falar de cada região mas também em relação às situações
com as quais nos deparamos. Bem, estamos falando de atividades de linguagem que, como tais, pressu-
põem a existência de “sujeitos” para se efetivarem. Logo, estamos falando de interações sociais, troca de
mensagens, e os sujeitos que atuam nesses cenários são diferentes, porque têm formações diferentes,
histórias diferentes, experiências diferentes. Isso nos dá enormes possibilidades de trocarmos mensa-
gens de várias maneiras, o que não significa que, necessariamente, teremos comunicações superiores a
outras. Claro que podemos, sim, ter comunicações mais claras, mais organizadas que outras.
Na busca de melhor entendimento dessa questão, diria que a consciência da necessidade de ade-
quação das mensagens funciona como fator de fundamental importância para o bom andamento da
interação. Melhor dizendo, cada situação necessita de adequação da linguagem, o que inclui forma-
lidade, informalidade e semiformalidade. Essa imagem fica mais clara quando falamos de festas: al-
gumas exigem roupas a rigor, outras, como festas ou reuniões com amigos, jantares ou almoços com
familiares, por exemplo, permitem roupas e cores diferentes. Enfim, para cada situação, concordamos
que há uma vestimenta adequada. Pois bem, o mesmo se dá com a organização de nosso discurso, de
modo que adquirir o aspecto formal da língua também faz parte das habilidades do falante.
Dito isso, podemos anunciar o objetivo deste livro: focalizar a linguagem em movimento, dando ên-
fase à formalidade e à semiformalidade através de várias possibilidades de organização do discurso e
práticas textuais, sem desconsiderar o potencial linguístico de cada um.
Mas como fazer isso? Trabalhando com a habilidade de leitura e a produção escrita, refletindo sobre
a relação dos elementos que compõem o texto, pois este é tomado como ponto de partida por ser lugar
de interação, de interpretação e produção de mensagens, onde há produção de sentido. Entendemos que
trabalhar atividades de linguagem focalizando a língua em movimento potencializará as habilidades dos
leitores, enfatizará um comportamento maduro em relação ao uso linguístico, podendo, com isso, au-
xiliar na tarefa de desfazer preconceitos e alargar a noção de língua — algo muito maior que, essencial-
mente, as regras gramaticais. Estas, juntamente com contextos socioculturais que integram a noção de
mundo de cada um, constituem esse fenômeno que possibilita diversas formas de comunicação.
Celebramos, juntamente com os autores que fizeram parte do início dessa conquista, o nasci-
mento de um livro que pretende conduzir à reflexão de assuntos urgentes em termos de lingua-
gem, mesmo considerando que alguns assuntos ou conceitos, pela própria dificuldade de trata-
mento que trazem, não são muito acessíveis.
Se a “leveza” com que pretendemos tratar tais assuntos for percebida e digerida por você, tere-
mos dado um grande passo.

rosaura de barros baião

7
Linguagem,
1 sociedade
e cognição

eduardo kenedy
1 CURIOSIDADE
Linguagem, sociedade
e cognição
A linguagem humana
Sons da linguagem: A linguagem humana é um fenômeno impressionante. Ela se faz pre-
É com base em apenas três ou quatro sente em quase todos os momentos da vida de uma pessoa: desde o
dúzias de sons que nós, falantes de seu nascimento, quando recebe um nome e é inserida em uma comu-
uma língua natural qualquer – como o nidade de fala, até a maturidade, quando transita diariamente pelos
português, por exemplo –, consegui-
complexos sistemas de comunicação e interação social modernos.
mos dominar dezenas de milhares de
palavras, as quais, quando combinadas
Concretizada em uma das milhares de línguas hoje existentes no
entre si de maneira ordenada, permi- mundo, a linguagem humana nos surpreende porque é capaz de fazer
tem-nos a produção e a compreensão muito a partir de pouco.
de um número potencialmente infinito A posse da linguagem, com seu ilimitado poder expressivo, faculta
de frases e textos. aos humanos a organização e a veiculação de pensamentos, ideias, con-
ceitos, valores e, dessa forma, insere cada indivíduo que domina (pelo
menos) uma língua no dinâmico e intenso fluxo comunicativo das socie-
CURIOSIDADE dades contemporâneas. Com efeito, os poucos sons da linguagem oral
podem ser substituídos por algumas letras em um sistema de escrita ou
Língua de surdos: por centenas de sinais em uma língua de surdos sem que, com isso, o
O Brasil possui a Língua Brasileira de poder mobilizador da linguagem seja significativamente alterado. Seja
Sinais (libras). Ao contrário do que na fala, na escrita ou na sinalização, a experiência humana se faz rica e
muitos pensam, a libras não é uma ilimitada com a linguagem e pela linguagem.
gestualização da língua portuguesa; na
Para que você tome consciência da complexidade social e cogni-
verdade, é uma língua à parte. Tanto é
que, em Portugal, a língua de sinais é
tiva subjacente a um simples ato da linguagem humana, pense no
diferente da brasileira. seguinte exemplo:

EXEMPLO
Um homem caminha distraído pela cidade, aproveitando os momentos que ainda lhe
sobram de seu horário de almoço. Subitamente, ele se dá conta de que pode estar
atrasado para o retorno ao trabalho e diz para si mesmo, com aquela voz interna e
silenciosa que, muitas vezes, ordena os nossos pensamentos: “Devo estar atrasado!”.
Com essa impressão, o homem se dirige a um transeunte e pergunta:
— Com licença. O senhor pode me informar as horas?
O transeunte, por sua vez, compreende o estado mental de seu interlocutor –
sua intenção de ser informado a respeito do horário – e busca o comportamento
adequado para a situação: olha para o relógio de pulso e dele retira a informação
necessária, que é codificada na frase-resposta:
— São doze e trinta!

A aparente banalidade de um evento como esse esconde sob si


um fenômeno extraordinário: a interação entre a mente humana e a

10 • capítulo 1
realidade sociocultural na tarefa de produzir e compreender estru- CURIOSIDADE
turas e significados linguísticos. Podemos não nos dar conta, mas,
na comunicação humana, o indivíduo que fala executa trabalho so-
ciocognitivo muito complexo. Ele deve codificar os seus pensamen-
tos e as suas ideias em palavras, que, por sua vez, devem ser combi-
nadas entre si em frases, as quais, por fim, são pronunciadas para
um interlocutor em um dado contexto discursivo.
Da mesma forma, a tarefa do indivíduo que compreende é também
engenhosa: ele deve decodificar os sons da fala que lhe são dirigidos
no ato do discurso, de modo a identificar palavras e frases para, assim, Ciências da linguagem:
conseguir interpretar os pensamentos e as ideias de seu colocutor. Essas ciências vêm alcançando um
extraordinário desenvolvimento ao longo

REFLEXÃO das últimas décadas e, assim, muitos


segredos a respeito da estrutura e do
funcionamento das línguas naturais
Ora, podemos perguntar: como os humanos fazem isso? De que maneira essa
estão sendo rapidamente revelados.
sequência de codificação e decodificação de formas e significados linguísticos Algumas dessas descobertas serão
ocorre? Pense bem, pois as respostas para essas perguntas não são nada apresentadas a você neste livro.
fáceis ou simples.

Lembre-se de que as estruturas das frases e dos textos nas línguas


naturais são, geralmente, muito complexas. Mesmo se analisássemos
uma frase simples, como “O senhor pode me informar as horas?”,
encontraríamos nela regras de ordenação de palavras, concordância,
regência, seleção de pronomes… Enfim, verificaríamos a existência
de uma suntuosa maquinaria gramatical a serviço da comunicação e
da interação social.
Entretanto, a despeito de toda essa complexidade, nós, huma-
nos, somos capazes de produzir e compreender frases e textos com
extrema facilidade. Em uma conversa qualquer, produzimos e com-
preendemos dezenas, centenas, milhares de enunciados, um após
o outro, em uma velocidade incrivelmente rápida, muitas vezes me-
dida em milésimos de segundo.

REFLEXÃO
Em circunstâncias normais, fazemos isso de maneira inconsciente e sem esforço
cognitivo aparente. Ora, como somos capazes disso? De que maneira nossas
mentes se tornam aptas a estruturar nossos pensamentos em frases e textos
codificados em sons, socialmente compartilhados?

Ao formularmos essas perguntas, acreditamos ter despertado em


você a consciência do complexo mundo sociocognitivo que se escon-
de sob cada uso cotidiano que fazemos da linguagem. De fato, espe-
ramos ter também aguçado o seu interesse pelos estudos linguísti-
cos. Você deve saber que encontrar respostas para tais perguntas é
tarefa das ciências da linguagem.

capítulo 1 • 11
AUTOR Neste capítulo inicial, vamos aprender alguns conceitos funda-
mentais e indispensáveis ao estudo da linguagem. Começaremos
Ferdinand de pelas noções de linguagem e língua. Os termos parecem se referir a
Saussure: conceitos aproximados, mas teremos uma seção inteira para enten-
Saussure (1857-1913) dermos que se trata, na verdade, de duas realidades diferentes. Com
é considerado o base no que estudaremos sobre a noção de língua, seguiremos para
“pai da Linguística”. a seção em que diferenciaremos a dimensão cognitiva da dimensão
Nascido na Suíça, seu pensamento
sociocultural da linguagem. Aprenderemos que uma língua sempre
exerceu grande influência na Litera-
tura e nos Estudos Culturais, princi-
existe simultaneamente no interior do indivíduo que a fala e no seio
palmente para o desenvolvimento do da sociedade em que esse indivíduo se encontra inserido, sendo, por
Estruturalismo no século xx. isso, um fenômeno sociocognitivo (ou cognitivossocial).
Logo em seguida, trataremos do fantástico fenômeno da aquisição
da linguagem. Vamos analisar alguns aspectos da árdua tarefa das crian-
CURIOSIDADE ças, que, de maneira inconsciente e compulsória, devem criar em suas
mentes uma versão do sistema linguístico que a elas se revela indireta-
Linguagem: mente na fala das pessoas que as circundam.
Para entender melhor isso, pensemos Também teremos, neste capítulo, uma seção dedicada às diferenças
no seguinte: você acha que animais não entre as formas e as funções linguísticas. Estudaremos para que serve a
humanos, como cachorros, gatos, maca- linguagem humana e como ela dá conta de seus diversos ofícios.
cos, pássaros etc., possuem algum tipo
Por fim, apresentaremos os principais fatos imbricados no uso da
de linguagem? A resposta é um tanto
óbvia: é claro que sim. A maior parte dos
linguagem pelos indivíduos adultos que, em tempo real, precisam pro-
animais possui algum sistema de co- duzir e compreender frases e textos, codificando e decodificando men-
municação que permite a expressão de talmente informações nas diversas formas de comunicação e expres-
seus estados internos e a interação com são que se tornam possíveis pela língua. Esperamos que você tenha
o seu ambiente. Embora as mensagens apreciado esse roteiro, pois nossa viagem pelo mundo da linguagem
que cães e gatos possam transmitir se-
está apenas começando!
jam um tanto limitadas (com seus ruídos
característicos, com a posição do corpo,
do rabo e com a emissão de certos
odores), não há dúvidas de que se trata Linguagem e língua
de um tipo de linguagem que permite a
comunicação tanto entre os membros Ferdinand de Saussure foi um importante linguista franco-suíço que
daquelas espécies animais quanto entre ainda hoje é considerado o pai das modernas ciências da linguagem.
eles e os seres humanos.
Foi Saussure quem formulou, explicitamente e com grande clareza,
uma importante distinção entre aquilo que compreendemos por
linguagem e por língua. Vamos entender do que se trata.
De acordo com Saussure, “a língua não se confunde com a linguagem,
pois é somente uma parte determinada e essencial dela” (1916: p.17).
O que o mestre genebrino nos ensina nessa passagem é que a lingua-
gem é um fenômeno muito mais geral e abrangente do que uma lín-
Por exemplo, se você possui um cão ou gua. Comparada com a linguagem, diz-nos Saussure, uma língua pos-
gatinho, certamente é capaz de perceber sui um caráter muito mais específico.
o tipo de latido (ou miado) que ele produz Na verdade, alguns animais chegam a possuir sistemas de lin-
quando está com fome, com dor, quando
guagem impressionantemente complexos, como é o caso das abe-
se sente em perigo ou está alegre.
lhas. As abelhas possuem um complicado sistema de dança em zi-
guezagueado que permite a indicação da direção e da distância em
que se encontra uma fonte de néctar que tenha sido descoberta por

12 • capítulo 1
alguma delas. As abelhas que, durante alguns minutos, observam a CONCEITO
abelhinha que localizou o néctar dançar para lá e para cá, chacoa-
lhando o seu corpo de maneira frenética, são capazes de “entender” Léxico:
a informação que está sendo transmitida e, logo ao fim da dança, O léxico pode ser compreendido como
rumam para a fonte do néctar com bastante precisão. Ora, esse o conjunto de palavras e expressões
exemplo ilustra, claramente, a existência de uma “linguagem dos que são socialmente compartilhadas
pelos falantes de uma dada língua.
animais”, ou, mais precisamente, a linguagem específica de cada
espécie animal em particular.
Você já deve ter entendido que a linguagem é um conceito bas-
tante abrangente, que se refere a todo e qualquer sistema de comu- CURIOSIDADE
nicação e expressão. É por isso que podemos falar em “linguagem
dos animais”, “linguagem das cores”, “linguagem dos cheiros”, “lin- Número:
guagem corporal”, “linguagem da arte” (incluindo a “linguagem da A título de ilustração, saiba que um
dança”, “linguagem da moda”) etc. falante escolarizado do português do
Pois bem, se linguagem é qualquer sistema de comunicação e ex- Brasil domina, pelo menos, 50.000
itens, sem contar as formas flexionadas
pressão, então o que é uma língua? Com efeito, língua é um tipo espe-
das palavras (como as diversas
cífico de linguagem, como o próprio Saussure já havia dito. Afinal, uma expressões do verbo “estudar”: estudo,
língua também é um sistema de comunicação e expressão e, assim, é estuda, estudamos, estudava, estudarei,
uma forma de linguagem. Acontece que a língua é uma forma singular estudaria etc.), mas os dicionários da
de linguagem, com características próprias que a distinguem de todas língua portuguesa chegam a registrar
as demais linguagens animais ou humanas não verbais. de 200.000 a 400.000 palavras. Trata-se
de números bem impressionantes, não?
Você deve estar se perguntando que características são essas.
Trata-se de dois fatores sociocognitivos muito importantes. Veja-
mos cada um deles a seguir.
O primeiro fator que distingue uma língua humana qualquer –
como o português, o inglês ou o xavante – dos demais sistemas de lin-
guagem é a existência de um léxico.
No léxico, encontramos uma coleção de formas (significantes) que
são associadas, sistematicamente, a certos conteúdos (significados).
Assim, por exemplo, em português, possuímos o significante [kaza]
(representado na escrita pela grafia “casa”) que será sempre associa-
do ao significado [tipo de moradia] todas as vezes que usarmos essa
palavra. Também temos no léxico de nossa língua o significante [a],
sufixo presente ao fim da forma [menina], ao qual está associado o
significado [pessoa do sexo feminino]. Da mesma maneira, temos o
significante da expressão [dar uma mãozinha] que se associa, em lín-
gua portuguesa, ao significado [oferecer ajuda].
O número total de palavras e expressões existentes em um léxico
é bastante variável de língua para língua. Pois bem, nos sistemas ge-
rais de linguagem, não existe nada parecido com o léxico das línguas
humanas. Afinal, quantos tipos de latido, miado ou canto podem ser
discriminados pelos cães, pelos gatos ou pelos pássaros? Quantas
“palavras” poderíamos transmitir com a linguagem corporal, com a
linguagem dos cheiros ou pela dança? Ainda que consigamos catalo-
gar um grande número delas, não encontraríamos algo tão organiza-
do, sistemático e vasto como o léxico de uma língua.

capítulo 1 • 13
CONCEITO O segundo fator que distingue uma língua dos demais tipos de
linguagem é o mais importante: as línguas humanas possuem um
Sistema combinatório: sistema combinatório, que chamamos gramática.
Esse sistema é capaz de combinar O interessante é que, se o número de itens existentes em um léxico
entre si, de maneira ordenada e contro- qualquer já é consideravelmente grande, ele não é quase nada quando
lada por regras, as unidades do léxico, pensamos no número de expres-
de modo a construir expressões, como
as frases e os textos. Por exemplo,
sões que o sistema combinatório Quando falamos
de uma língua pode gerar utili-
o léxico do português possui unida- uma língua, somos
des como “casa”, “bonita”, “comprar”, zando suas regras computacio-
nais. De fato, o número de frases
capazes de produzir
“você”, “mais”, porém, é a gramática
dessa língua que permitirá a criação de e textos que podemos construir e compreender um
expressões complexas como “que casa em uma língua ao combinarmos número infinito de
mais bonita você comprou!”.
léxico e gramática é ilimitado.
frases e textos.
Se compararmos as línguas
humanas com os sistemas mais gerais de linguagem (humanos ou
CONCEITO animais), poderemos deduzir que a principal diferença entre eles
é a recursividade – também denominada infinitude, criatividade
Recursividade: ou produtividade –, que existe somente nas línguas.
A recursividade é justamente a capa- Neste momento, você talvez tenha curiosidade de saber se existe
cidade de criar um número infinito de algum tipo animal não humano que possua língua (e não apenas
frases e textos com base no número linguagem). Muito bem, os cientistas ainda não conseguiram regis-
finito de palavras existentes no léxico.
trar nenhuma espécie de vida, além dos humanos, que use algum
A recursividade emerge, portanto, da
combinação entre os dois compo-
sistema de comunicação remotamente parecido com uma língua
nentes fundamentais de uma língua: natural. Por tudo o que até hoje sabemos, somente nós, humanos,
o léxico e o sistema combinatório conseguimos usar um sistema de linguagem com recursividade.
(gramática).
RESUMO
É por isso que as línguas parecem ser um verdadeiro patrimônio da humanidade,
algo que nos distingue, claramente, de todas as formas de vida conhecidas pela
ciência. A posse da linguagem, na forma de uma língua, é de fato uma das carac-
terísticas mais distintivas e mais importantes do homo sapiens.

Não obstante, existem muitos cientistas que vêm tentando ensi-


nar uma língua humana a animais inteligentes, como os chimpanzés
e algumas espécies de papagaios e de golfinhos.
No entanto, alegar que macacos ou papagaios são realmente
capazes de aprender e usar uma língua humana é um flagrante e
descomunal exagero, o qual se motiva muito mais por questões
ideológicas (por exemplo, conferir maior importância ao aprendi-
zado sociocultural em oposição à natureza biológica humana na
aquisição de conhecimento) do que linguísticas.

14 • capítulo 1
MULTIMÍDIA CURIOSIDADE
No link abaixo, você verá um exemplo que registra as tentativas de ensino de
línguas entre espécies.

Alex Papagaio cinza africano


que conseguia comunicar-se
usando várias palavras do inglês.

Capacidade linguística:
Essa capacidade permanecerá na
Você provavelmente ficará encantado com as proezas linguísticas desse animal mente da criança no curso de sua vida
raríssimo e genial. Mas acreditamos que não ficará convencido de que ele, de fato, saudável e será modificada, na adoles-
cência e na vida adulta, de acordo com
“aprendeu” a usar uma língua e que demonstra domínio de um léxico e de um sis-
suas experiências particulares.
tema combinatório. O máximo que podemos dizer é que esse adorável bichinho é
capaz de aprender, após intensos anos de treinamento, um sistema de linguagem
bastante complexo e avançado, inspirado no léxico das línguas humanas – algo
fantástico que, por si só, já é merecedor de destaque científico.

Até o momento, com efeito, a linguagem, na forma de um sistema


combinatório que opera recursivamente sobre um léxico, é um fenôme-
no identificado somente na espécie humana e ainda irreproduzível nos
sistemas de inteligência artificial desta segunda década do século xxi.
Muito bem, agora que você já sabe distinguir linguagem e língua,
fique atento às expressões “linguagem” ou “linguagem humana”. Mui-
tas vezes, essas expressões querem dizer “língua” (léxico e gramática)
e não apenas “linguagem” (qualquer sistema de comunicação). É bem
verdade que podemos usar esses termos de maneira um tanto livre e
mais ou menos metafórica, no dia a dia ou mesmo ao longo de um livro
mais especializado – como, de fato, já o fizemos e tornaremos a fazer
aqui –, mas, sempre que necessário, devemos distinguir tais conceitos.

Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural


As línguas humanas são uma autêntica maravilha do mundo natu-
ral e sociocultural. Talvez você já se tenha dado conta de que, desde
que estejam inseridos em um ambiente de interação social, todos
os indivíduos saudáveis, de todos os tempos da história e de todas
as culturas humanas, desenvolvem, de maneira natural e espontâ-
nea, a habilidade de produzir e compreender oralmente palavras,
frases e textos na língua de seu ambiente.
Por exemplo, uma criança que nasça no Brasil desenvolverá, já
nos primeiros anos de vida, a capacidade linguística de produção e

capítulo 1 • 15
CONCEITO compreensão de enunciados em português, em uma de suas moda-
lidades socioculturais – se não o português, então, uma das línguas
Línguas humanas: minoritárias do país (por exemplo, uma língua indígena) –, que será,
Sempre que ocorre o fenômeno lin- assim, a língua ambiente dessa criança.
guagem humana, temos, de um lado, o Como maravilha do mundo natural e sociocultural, o fenôme-
indivíduo particular que possui a capaci- no das línguas humanas comporta necessariamente duas dimen-
dade mental de produzir e compreender
sões: uma dimensão individual e mental e uma dimensão coleti-
expressões linguísticas e, do outro, a
sociedade em que esse indivíduo se
va e sociocultural.
insere, a qual lhe forneceu não só os O influente linguista norte-americano Noam Chomsky formu-
contextos de uso da linguagem em lou dois importantes conceitos para dar conta da diferença entre
interação com outros humanos mas a dimensão individual e psicológica das línguas e a sua dimensão
também os sons e as palavras necessá- social e cultural. Chomsky propôs que a dimensão mental e cog-
rios à expressão verbal.
nitiva do fenômeno da linguagem seja sintetizada pelo conceito
de Língua-i, em que “i” significa interna, individual. Já a dimensão
sociocultural das línguas é denominada por Chomsky como Lín-
AUTOR gua-e, em que “e” quer dizer externa, extensional. Vejamos melhor
esses conceitos.
Noam Chomsky: A noção de Língua-e corresponde, grosso modo, ao que comu-
Avram Noam Chomsky mente se interpreta como língua ou idioma no senso comum. Por
(1928) é um linguista exemplo, o português é uma Língua-e no sentido de que é esse fenô-
americano, conside- meno sociocultural, histórico e político que compreende um con-
rado uma das figuras
junto de sons, palavras, regras gramaticais e um sistema de escrita
acadêmicas mais proeminentes (durante
12 anos, foi o cientista vivo mais citado
que, juntamente, permitem a comunicação e a interação entre os
em trabalhos científicos no mundo). É seus falantes. Trata-se de um fenômeno supraindividual, na verdade,
conhecido como o pai da Linguística exterior ao indivíduo.
Moderna, especialmente por sua Teoria da A noção de Língua-i, por sua vez, corresponde ao conjunto
Gramática Universal. de habilidades mentais que permitem ao indivíduo a produção
e a compreensão de um número potencialmente infinito de ex-
pressões na sua língua ambiente. Uma Língua-i diz respeito,
portanto, àquilo existente no interior da mente das pessoas, que
lhes faculta a aquisição e o uso cotidiano de uma língua natural.
Nesse sentido, entende-se que uma língua seja parte do sistema
cognitivo humano.
Uma Língua-i é uma faculdade psicológica ou, por assim dizer, um
órgão mental. Todo indivíduo humano sem deficiências neuropsicoló-
gicas graves é capaz de manipular, em sua língua, diversos recursos
gramaticais e textuais que veiculam significados do indivíduo para o
mundo exterior e desse para a consciência do indivíduo. Essa compe-
tência cognitiva para a manipulação das estruturas e dos significados
da linguagem é individual e inconsciente. É a ela que nos referimos
com o conceito de Língua-i.
Às vezes, quando pensamos sobre a linguagem humana, precisa-
mos ter clareza se estamos discutindo aspectos cognitivos ou aspec-
tos socioculturais da língua – ou mesmo se estamos considerando
ambos os aspectos em interação. Fique, portanto, sempre atento a
esse particular.

16 • capítulo 1
RESUMO CURIOSIDADE
É muito importante que você compreenda que uma língua é, ao mesmo tempo, um Idioma:
fenômeno cognitivo e individual (uma Língua-i) e um fenômeno coletivo e sociocul- Quando dizemos que o russo é a língua
tural (uma Língua-e). Embora nem sempre usemos os termos chomskianos, essa da Rússia ou que o chinês é a língua
dualidade está lá inevitavelmente todas as vezes em que falamos sobre as línguas. da China, entendemos língua como
esse fenômeno desincorporado dos
falantes, a Língua-e. Da mesma forma,
essa língua se refere a um fenômeno
cuja existência é externa às pessoas
Aquisição da linguagem e, nesse caso, do qual elas devem se
apropriar: as línguas do ambiente.
Para que você compreenda a dramática situação sociocognitiva em
que se encontra um bebê na fase de aquisição da linguagem, vamos
liberar a imaginação com a seguinte história fantástica:

EXEMPLO
Suponha que você seja abduzido por alienígenas. Você acordaria em uma galáxia
distante, cercado de criaturas diferentes, cujos comportamentos você não com- Uma criança nascida no Paraguai pro-
preende. Apesar de toda a estranheza inicial, não lhe seria difícil notar que tais vavelmente aprenderá a falar espanhol e
criaturas possuem uma espécie de orifício em sua extremidade superior (algo guarani, ou seja, as línguas do ambiente.

como uma boca), de onde certos sons são regularmente emitidos.


Com um pouco de observação, você consegue perceber que esses estra-
nhos seres parecem se comportar de alguma maneira relacionada aos sons que CURIOSIDADE
trocam entre si. Por exemplo, você vê um ser alto emitindo sequências de sons
enquanto um baixinho o observa. Ao final da produção de sons, o baixinho se Bebês:
desloca no espaço, toma um objeto para si e o leva até o altão, como se tivesse Já ao nascer, os bebês parecem ser
cumprido um pedido ou uma ordem. muito espertos e, para eles, não é difícil
Para você, parecerá coerente concluir que os sons compartilhados entre es- deduzir que os sons emitidos pelas cria-
turas que o circundam constituem, na
ses alienígenas sejam uma espécie de sistema de comunicação e, para conseguir
verdade, um sistema de comunicação.
descobrir o que aconteceu consigo, onde está, quem são essas criaturas etc., você
terá de aprender a usar esse sistema. Tal tarefa não será nada fácil, pois você não
contará com nenhum professor de “alienígena para terráqueos”, nenhum livro ou
curso preparatório e, além disso, o aparente sistema de comunicação usado por
aquelas criaturas não é semelhante a nenhum outro que você já tenha visto antes...

Se você conseguiu compreender o quão dramática seria essa situa-


ção, está apto a entender que a aquisição da linguagem pelos bebês e
pelas crianças é um autêntico milagre do mundo biocultural. Note bem:
os bebês chegam a um mundo completamente desconhecido, retirados
que foram do aconchegante útero materno. Esse mundo é povoado por
seres estranhos ao bebê (os seres humanos) cujo comportamento pare-
ce estar estreitamente relacionado aos sons que todos trocam entre si.
Tais sons mais parecem ao bebê uma grande confusão, um continuum
de ruídos quase indecifráveis. Afinal, como um bebê poderia identificar,
no fluxo da fala humana, onde um som termina e o outro começa?

capítulo 1 • 17
AUTOR Talvez tenha sido em razão disso que o famoso psicólogo de Har-
vard, o canadense Steven Pinker, denominou tal fenômeno como instin-
Steven Pinker: to para a linguagem: um bebê humano rapidamente “compreende” que
Steven Arthur Pinker precisa dominar esse sistema para descobrir o que os seres ao seu redor
nasceu em Montreal dizem e também para que ele próprio possa dizer alguma coisa e comu-
(1954), é linguista e nicar-se com as outras pessoas.
psicólogo da Universi-
Mas bebês e crianças estão, em grande parte, quase sozinhos no
dade de Harvard. Escreve sobre lingua-
gem e ciências cognitivas e foi nomeado
interior de suas mentes durante a odisseia pela descoberta e pelo do-
uma das 100 pessoas mais influentes pela mínio da língua do seu ambiente. Eles não possuem um professor
revista Times. particular de “língua humana para bebês recém-nascidos” e, o que é
mais grave, o seu cérebro é ainda um protocérebro, ou seja, apenas
um rascunho do potente processador de informações que é o cérebro
de um indivíduo maduro.
Usamos a palavra “milagre” para descrever a aquisição da lingua-
gem pelos bebês e pelas crianças porque, apesar de todas as dificul-
dades que descrevemos, os pequenos humanos conseguem dominar
a língua de seu ambiente, para a compreensão e a produção da lin-
guagem, com extrema eficiência e em um intervalo de tempo incrivel-
mente pequeno, que não ultrapassa três ou quatros anos.
As crianças pequenas sequer parecem fazer esforço cognitivo
para adquirir a sua língua materna. De fato, a aquisição da lingua-
gem é muito mais algo, que simplesmente, acontece com os bebês e
com as crianças – e não algo que elas façam deliberadamente com o
seu pequeno cérebro em formação.

RESUMO
A par de ser um fenômeno sociocognitivo extraordinário, a aquisição da língua
do ambiente (ou das línguas do ambiente, no caso das comunidades bilíngues ou
multilíngues) é um dos eventos mais importantes na vida de um ser humano. Esse
fenômeno é, ao mesmo tempo, a porta de entrada para as relações sociais huma-
nas, que são quase sempre mediadas pela linguagem, e a janela para o aperfei-
çoamento cognitivo individual, uma vez que grande parte da cognição humana se
utiliza da linguagem como instrumento de desenvolvimento e de complexificação.

Na verdade, o que chamamos de aquisição da linguagem é um fenô-


meno duplo que envolve a aquisição de dois diferentes tipos de habili-
dades sociocognitivas. Vejamos isso com mais detalhes.
Um tipo particular de aquisição da linguagem é aquele que denomina-
mos aquisição em sentido amplo ou aquisição da linguagem lato sensu. Em
seu sentido amplo, adquirir linguagem significa apropriar-se das habilida-
des de comunicação, expressão e interação social. Esse tipo de aquisição
demanda dos bebês e das crianças a absorção dos aspectos mais gerais
da linguagem, tais como a interação sociocomunicativa, a organização de
conceitos e de pensamentos, e envolve, também, o desenvolvimento das
noções de autoconsciência e de individualidade nas relações humanas.

18 • capítulo 1
O outro tipo de aquisição da linguagem é muito mais específico e, CURIOSIDADE
por isso mesmo, denomina-se aquisição em sentido restrito ou aquisição
da linguagem stricto sensu. Em seu sentido restrito, adquirir linguagem Universal:
significa apropriar-se do léxico e do sistema combinatório existentes na Na aquisição da linguagem
língua do ambiente. lato sensu, a criança adquire, na verda-
Esse tipo de aquisição demanda dos bebês e das crianças a habi- de, os fundamentos da interação entre
os humanos: os valores e as ações
lidade de discriminação perceptual e de articulação intencional de
imbricados nos usos da linguagem, a
toda a maquinaria gramatical necessária ao funcionamento da lín- própria noção de si, a percepção do(s)
gua. Na aquisição stricto sensu, a criança adquire, de fato, o aparato outro(s), os modos de interagir social-
linguístico formal que estará a serviço das interações sociais e da or- mente e assim por diante.
ganização cognitiva do indivíduo em desenvolvimento.
Se você já entendeu a diferença entre aquisição da linguagem
lato sensu e stricto sensu, podemos, agora, falar um pouco mais so-
bre a aquisição em sentido restrito.
Um dos fatos mais intrigantes a respeito do processo de aquisição
do léxico e do sistema combinatório da língua do ambiente é que ele
parece ser universal. As fases pelas quais passam os bebês e as crian-
ças durante a aquisição stricto sensu são muito semelhantes em todas Já ao nascer, todas as crianças nor-
as culturas do mundo, seja qual for a língua do ambiente e o nível de mais balbuciam no ritmo da sua língua
inteligência geral da criança. Isso quer dizer que todas as crianças ambiente. Na verdade, algumas pesqui-
sas recentes descobriram que o choro
parecem atravessar as mesmas etapas nos mesmos estágios de de-
de bebês recém-nascidos transcorre
senvolvimento biológico, desde o nascimento até o domínio comple- conforme o ritmo e a melodia da língua
to da língua, estejam onde estiverem, em qualquer classe social e sob que a circunda (Wermke et al., 2011).
qualquer tipo de cultura. Esses fatos parecem indicar que a
Não obstante, o grande salto qualitativo na produção linguística aquisição da linguagem tem início ain-
dos bebês ocorre aos 12 meses, quando eles já são capazes de produ- da no útero materno, quando aspectos
sonoros da língua do ambiente (como
zir suas primeiras palavras reconhecíveis como tais. Essas são, na ver-
o ritmo, a entoação e o acento) já pare-
dade, mais do que simplesmente “palavras”, pois sempre assumem o
cem ser discriminados pelo feto.
valor de uma frase completa inserida em um contexto discursivo. In-
dependente da língua do ambiente, as primeiras palavras produzidas
por uma criança são sempre monossilábicas e seguem uma estrutura
[consoante + vogal]. Em pouco tempo, essa estrutura vai tornando-se MULTIMÍDIA
cada vez mais complexa e caminha em direção à complexidade exis-
tente na fala adulta.

EXEMPLO
Por exemplo, uma criança brasileira pode dizer algo como “bó” para significar uma
frase inteira, como “olhe, a bola”, conforme o contexto permita compreender. Pou-
cos meses depois, “bó” ganhará complexidade fonológica e tomará a forma con- Seu bebê chora
vencional de “bola”. O mesmo fenômeno pode ser observado com as centenas em que língua?
de outras palavras que as crianças adquirem durante essa fase, que os linguistas Roberto Lent – ufrj
nomeiam de fase holofrástica.

Com pouco menos de 24 meses, as crianças já atingem a fase de


duas palavras (também chamada de fase sintagmática). Nessa etapa de

capítulo 1 • 19
CURIOSIDADE seu desenvolvimento linguístico, frases com estruturas do tipo sujei-
to e predicado semelhantes às dos adultos começam a ser produzidas
Conteúdo referencial: pelos bebês. São frases como “qué papá”, “mais colinho”, “meia pa-
As partículas gramaticais (como a pai” e “banho não”. O interessante é que os enunciados produzidos
preposição, por exemplo), que pos- pelos bebês durante a fase sintagmática não são apenas uma combi-
suem conteúdo puramente formal, só nação entre duas palavras soltas. Pelo contrário, tal como ocorre na
emergem na fala das crianças, de modo
fase holofrástica, essas palavras também assumem o valor de um ato
consistente, a partir dos 36 meses de
vida – embora haja intensas variações
comunicativo completo, cuja interpretação é dependente do contex-
individuais sem causa aparente regis- to interacional e comunicativo.
tradas pelos cientistas. Por volta dos 30 meses de vida, as crianças já conseguem criar
frases com extensão ilimitada, compostas por três, quatro, seis,
nove, dez palavras... Interessantemente, ao longo dessa fase, cha-
mada de fase telegráfica, artigos, preposições, conjunções e pro-
nomes estão ainda ausentes na fala infantil. Com efeito, até o ter-
ceiro ano de vida, as palavras que as crianças inserem em frases e
textos são sempre itens de conteúdo referencial, como substantivos,
adjetivos e verbos.
É possível dizer que, por volta dos 4 anos de vida, a língua que uma
criança domina para a produção e para a compreensão da linguagem
é indistinguível da língua de um adulto. As únicas diferenças, é claro,
dizem respeito aos aspectos linguísticos que envolvem letramento,
escolarização e certas regras de comportamento social que se desen-
volvem posteriormente, na adolescência e na vida adulta.

PRIMEIROS MESES
1) Fase inicial – a criança se comunica pelo choro (dor, fome, frio etc.);
2) 6 semanas – choros diferenciados e sons guturais/primitivos. É quando aparecem as
primeiras vogais;
3) 18 semanas – aparecem as primeiras consoantes (p, b, k, g) e o balbucio;
4) Até os 8 meses – o balbucio se caracteriza pelo dobramento de sílabas (“mama”, p. ex.) e
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

pela imitação de sons produzidos por adultos.

DE 12 A 24 MESES
1) Utilização das primeiras palavras, ainda sem o mesmo formato das pronunciadas por
adultos (“papá”, p. ex.);
2) Reconhecimento de nomes de alguns objetos, compreensão de ordens simples;
3) Vocabulário passa de 50 palavras e a aquisição de novos vocábulos é diária;
4) Produção de frases curtas (“qué papá”, p. ex.);
5) Adaptação das palavras aos sons que conhece (como “tapéu” para “chapéu”, p. ex.).

DE 24 A 36 MESES
1) Uso constante de linguagem telegráfica;
2) Utilização de partículas gramaticais (artigo, preposição etc.);
3) Forte expansão do vocabulário;
4) Distinção de singular/plural, masculino/feminino;
5) Produção de todos os fonemas;
6) Tomada de consciência quanto ao ritmo de fala, à entonação (frases interrogativas, p. ex.).

20 • capítulo 1
Infelizmente, parece exis- O conceito de AUTOR
tir um fim para o período da
aquisição opõe-se Eric Lenneberg:
aquisição da linguagem. Isto
é, os humanos não podem ad- ao de aprendizado Eric Heinz Lenneberg
quirir a língua do ambiente porque a aquisição da (1921-1975), alemão,
tão rapidamente e sem esfor- linguagem ocorre na foi um linguista e
neurocientista pionei-
ço em qualquer momento de
infância de maneira ro nos estudos de aquisição da lingua-
sua vida, da infância à velhi- gem e psicologia cognitiva, em especial
ce. O neurocientista alemão espontânea, natural e do inatismo. Curiosamente, residiu no
Eric Lenneberg denominou mesmo involuntária, Brasil durante sua adolescência, quando
período crítico (ou idade críti- enquanto o aprendizado sua família fugia do nazismo.
ca) a fase de desenvolvimento
de línguas estrangeiras
físico e cognitivo humano no
limite da qual a aquisição da demanda do adolescente CONCEITO
linguagem deve acontecer. e do adulto esforço
Há muitas discussões consciente e instrução F
sobre qual seria o fim des-
mais ou menos formal. SN SV
sa fase, mas, como existem
muitas variações individuais no desenvolvimento humano, não é pos- Det N V
sível defini-lo com precisão. A maioria dos estudiosos aponta a puber-
dade, por volta dos 12 ou 13 anos, como o momento em que “a janela o automóvel derrapou
automática” para a aquisição da linguagem se fecha.
A partir de então, a aquisição da linguagem não é mais possível, e Estrutura:
tudo o que podemos fazer para dominar uma (nova) língua é aprendê-la Trata-se da superfície ou do meio
por meio de estudos formais em escolas ou cursos de idioma. A linha concreto, material, pelo qual uma língua
divisora entre aquisição e aprendizado é justamente a idade crítica. se realiza nos atos de fala humanos. Por
exemplo, uma palavra (como “casa”) e
uma estrutura sintática (como “esta é
minha casa”) são ilustrações de formas
Formas e funções linguísticas que usamos quando produzimos e com-
preendemos enunciados em uma língua.
Muito bem, já sabemos diferenciar linguagem e língua, compreende-
mos as dimensões cognitiva e sociocultural de uma língua natural e te-
mos noção da pequena epopeia que cada ser humano atravessa, em ten-
ra infância, ao longo da aquisição da(s) língua(s) de seu ambiente. Mas e
se perguntassem a você para que serve uma língua (como o português),
qual seria a sua resposta? Muito provavelmente, você diria algo como
"para permitir a comunicação entre as pessoas". Em essência, tal res-
posta está correta. Contudo, a pergunta é mais complexa do que parece,
de tal modo que é preciso esmiuçá-la um pouco mais. Façamos isso.
A questão para que serve uma língua pressupõe dois conceitos fun-
damentais: (1º) as línguas possuem um conjunto de formas e (2º) cada
uma dessas formas “serve” para algum fim, isto é, cada forma linguísti-
ca possui uma dada função ou um conjunto de funções. As formas exis-
tentes em uma língua podem ser também denominadas estrutura.
Quando estudamos linguística e falamos dos aspectos formais de
uma língua, estamos fazendo referência exatamente a essa aparato

capítulo 1 • 21
CURIOSIDADE estrutural que precisamos utilizar para que a língua tome vida em um
ato linguístico qualquer. Por outro lado, sabemos que as formas de
Função: uma língua não existem por si mesmas. Com efeito, a razão de ser de
O escritor Graciliano cada forma linguística é desempenhar determinada função.
Ramos (1892-1953) Para que você entenda melhor a dualidade entre forma e função,
compreendeu isso veja o quadro a seguir:
perfeitamente ao
afirmar que “A palavra não foi feita
para enfeitar, brilhar como ouro falso; OCORRÊNCIA FORMA FUNÇÃO
a palavra foi feita para dizer”. No caso,
“o dizer da palavra” é justamente a Contraste na significação
a) Ex.: forma [s]
a) [sorte]
sua função. Em outras palavras, uma
forma linguística não existe senão para
FONÉTICA b) Ex.: forma [f]
b) [forte]
c) Ex.: forma [m]
provocar algum efeito de significado ou c) [morte]
de sentido, isto é, uma forma não existe
senão pela sua função.
a) Formular pergunta
a) Ascendente “João saiu?”
PROSÓDIA b) Descendente b) Formular declaração
“João saiu!”

FORMAÇÃO Acréscimo de sufixo


diminutivo
a) Demonstrar afeto

DE PALAVRAS Ex.: [casa], [casinha]


b) Demonstrar desprezo

a) Voz ativa
a) Destacar o
Ex.: “João cometeu erros”
responsável
VOZ VERBAL b) Voz passiva
b) Esconder o
Ex.: “Erros foram
responsável
cometidos”

Uma forma linguística (um som, uma entonação, um


sufixo, uma voz verbal etc.) é a maneira pela qual uma
dada função se realiza materialmente na língua.

Se você compreendeu o que são formas e funções linguísticas, tal-


vez possa, agora, repensar a sua resposta à questão para que serve
uma língua (como o português)? Na verdade, as formas existentes em
uma língua se prestam a inúmeras funções. Não é possível descre-
ver todas elas neste capítulo, mas podemos dizer a você que, em sua
maioria, as funções a que se destinam as formas linguísticas são emi-
nentemente comunicativas.
É por isso que importantes estudiosos, como o já citado Steven
Pinker, acreditam que as línguas “servem” para a comunicação huma-
na. Não obstante, cientistas não menos ilustres, como o também já men-
cionado Noam Chomsky, um dos linguistas mais influentes de todos os
tempos, destacam outras funções linguísticas que são tão importantes

22 • capítulo 1
ou ainda mais vitais do que a comunicação, tais como a organização do AUTOR
pensamento e a criação do conhecimento individual.
Isso quer dizer que, ainda que a comunicação possa ser a primeira Karl Bühler:
e mais fundamental fun- Karl Bühler (1879-
ção das línguas, não pode- De fato, muitas vezes, 1963), linguista e
mos desprezar as outras nós, humanos, usamos a psicólogo alemão,
sistematizou as
funções, tais como a meta- língua internamente, em funções da linguagem tomando como
cognitiva, isto é, a função
voz alta ou em silêncio, ponto de partida a representação –
de organização do pensa- característica, por excelência, da língua.
mento, e a instrumental, como se falássemos com
ou seja, a função de ad- o nosso próprio eu – e
quirir e organizar outros isso, é claro, não pode ser
tipos de cognição, como o
considerado literalmente AUTOR
conhecimento matemáti-
co, o conhecimento sobre comunicação. Roman Jakobson:
a História, o conhecimento sobre as relações sociais etc. Roman Osipovich
Atento à natureza comunicativa das línguas, Karl Bühler foi um Jakobson (1896-1982)
dos primeiros a tentar sintetizar, de maneira esquemática, as corre- foi um pensador rus-
so que se tornou um
lações entre linguagem e comunicação. Foi ele que destacou que os
dos mais renomados linguistas de todos
usos da linguagem pressupõem (1) um emissor, (2) uma mensagem e os tempos, cujos conceitos ainda são
(3) um destinatário. usados e pesquisados. Jakobson esteve
Esse modelo tripartido de comunicação se tornou mais complexo na no Brasil nos anos 1970.
análise do linguista russo Roman Jakobson, que introduziu as noções de
(4) referente, de (5) canal comunicativo e de (6) código linguístico.
É desse modelo de Bühler e Jakobson que se derivam as famosas
funções da linguagem, que são amplamente estudadas no ensino es-
colar: (1) a “função emotiva”, em que o emissor da mensagem se des-
taca; (2) a “função poética”, em que a própria mensagem transmitida
é destacada; (3) a “função conativa”, na qual o destinatário da mensa-
gem assume a função central; (4) a “função referencial”, em que o re-
ferente é o foco da comunicação; (5) a “função fática”, em que o canal
comunicativo é meramente testado e (6) a “função metalinguística”,
em que se estabelece quando é o próprio código linguístico (a língua) o
fator de destaque na comunicação.

RESUMO
Na realidade, as funções linguísticas, entendidas como as funções que determi-
nadas formas podem desempenhar nos usos da língua, são muito mais nume-
rosas do que essas seis. Todavia, tal modelo parece ser um bom caminho para
começarmos a entender as funções comunicativas e expressivas que as formas
da linguagem humana podem desempenhar.

Se você for uma pessoa curiosa, talvez tenha pensado: será que exis-
te alguma relação natural entre determinada forma e sua respectiva
função? Ou será que formas e funções linguísticas são associadas de

capítulo 1 • 23
uma maneira um tanto imprevisível que precisam ser memorizadas
pelos falantes de determinada comunidade? Boa pergunta.

Na verdade, esse é um questionamento milenar que remonta à


IMAGEM antiga Grécia clássica. Os filósofos gregos que se dedicavam ao es-
tudo da linguagem dividiam-se, basicamente, entre os analogistas e
A Escola de Atenas é uma das mais os anomalistas. Em termos muito simples, os analogistas afirmavam
famosas pinturas do renascentista que as formas da linguagem eram análogas às suas funções e era so-
italiano Rafael e representa a mente em razão da passagem do tempo que, para as novas gerações
Academia de Platão. Foi pintada
de falantes, a analogia entre forma e função deixava de ser percebida.
entre 1509 e 1510 sob encomenda do
Vaticano.
Por seu turno, os anomalistas sustentavam que as relações entre
forma e função sempre foram totalmente acidentais e improvisadas,
um verdadeiro acordo social tacitamente estabelecido entre os falan-
tes de uma língua humana. Contemporaneamente, a controvérsia
entre analogistas e anomalistas é reanalisada na oposição iconicida-
de versus arbitrariedade. Vejamos o que é isso.

Arbitrariedade
Dizer que uma forma está arbitrariamente associada a uma função signi-
fica assumir que não é possível deduzir espontaneamente a que função
determinada forma se presta. Sendo assim, torna-se preciso aprender e
memorizar, caso a caso, a correspondência entre cada forma e sua respec-
tiva função em uma dada língua, tal como apregoavam os anomalistas.

24 • capítulo 1
Um bom exemplo disso é a relação existente entre o significante CURIOSIDADE
(forma) e o significado (conteúdo) de cada uma das palavras do léxico
do português. Só sabemos que a forma [kaza] (que escrevemos “casa”) Sequência:
deve ser associada ao conteúdo [tipo de moradia] porque aprendemos De fato, a maioria das línguas do
isso durante a aquisição da linguagem. Mas a relação entre forma e mundo apresenta a ordenação
conteúdo nessa palavra é totalmente arbitrária, isto é, não é natural ou “sujeito > objeto > verbo” (sov) e,
assim, codifica na frase os participantes
motivada por algum princípio lógico.
de uma ação na sequência “quem fez a
Isso tanto é verdade que, em outras línguas, o mesmo significa- quem o quê”, em outro tipo de seleção
do (conteúdo) pode ser codificado por outro significante (forma), tal arbitrária. A título de curiosidade, o japo-
como o termo “house”, que em inglês é a forma correspondente do nês é uma língua sov; o mandarim, svo.
conteúdo [tipo de moradia].
Por exemplo, a aparência física
Em outras palavras,
de uma “casa” não se assemelha ao afirmarmos
em nada à forma [kaza], em portu- que uma forma
guês, ou à forma [hauz], em inglês.
é arbitrária em
Com efeito, a língua portuguesa,
no curso de sua história, poderia
relação à sua
ter escolhido arbitrariamente qual- função, estamos
quer outra forma para expressar o dizendo que
conceito [tipo de moradia]. A esco-
não existem
lha por [kaza] foi arbitrária.
Vejamos outros exemplos de ar-
semelhanças
bitrariedade entre forma e função. entre o feitio de
Em língua portuguesa, a forma determinada forma
de entonação ascendente ao fim
e o seu respectivo
da frase desempenha a função de
formular perguntas. Dizemos que
conteúdo.
a relação entre essa forma e essa função é arbitrária porque não há
nada natural entre uma subida melódica e a “expressão de pergun-
tas”. Trata-se de uma associação arbitrária que todos os falantes do
português precisam aprender e memorizar.
Também a sequência “sujeito > verbo > objeto” (svo) é uma for-
ma arbitrária de codificar, em uma dada frase, a relação entre um
agente, uma ação e um paciente. Embora a nós, falantes de portu-
guês, pareça razoável pensar em codificar os participantes de uma
ação na ordem “quem fez o que a quem”, não existe nada que torne
essa ordem “mais natural” do que outra: trata-se, novamente, de
uma arbitrariedade.

Iconicidade
Pelo que expusemos, você talvez já possa deduzir que a iconicidade é o
justo oposto da arbitrariedade. Sendo assim, uma forma é icônica quan-
do reflete, com clareza, a função a que se destina, conforme pensavam
os analogistas. Um rápido exemplo pode bem ilustrar o conceito.

capítulo 1 • 25
CURIOSIDADE Imagine que uma pessoa lhe tenha apresentado desculpas por
determinado incômodo. Essa pessoa teria discursado por um lon-
Onomatopeias: go tempo, mas, ao fim e ao cabo, não teria dito nada que, de fato,
A forma “tique-taque” possui uma ex- reparasse o problema. Você poderia descrever a tediosa conversa
pressão fonética parecida com o som com essa pessoa dizendo algo como “Fulano falou, falou, falou e
das batidas de um relógio. Da mesma não disse nada”. Ora, nessa frase a repetição do verbo “falar” é pra-
maneira, “miar” é um verbo inspirado na
ticamente um ícone, isto é, um representação evidente do fato de a
forma acústica do miado dos gatos.
pessoa ter falado repetidamente. Trata-se, portanto, de uma forma
(um verbo repetido) que, com clareza, reflete a sua função (indicar
a repetição de um ato).
Outro exemplo de iconicidade é o alongamento de vogais que
podemos usar em determinada palavra quando queremos enfati-
zar o tamanho ou a duração de algo. Se você quer dizer que alguma
coisa é exageradamente grande, pode dizer algo como “Era muito
graaaaaaaaaaande”. Mais uma vez, a forma (alongamento da vogal)
“Tim-tim” é um substantivo que, iconi- reflete, claramente, sua função. Também no plano do léxico, na re-
camente, representa o som produzido lação entre significante e significado, existem casos de iconicidade.
pelo rápido toque entre taças quando Trata-se das famosas onomatopeias: palavras cuja forma se asseme-
se faz um brinde.
lha ao conteúdo representado.
As relações icônicas entre forma e função são bastante regula-
res, tanto que há muitos estudiosos, não por acaso denominados
funcionalistas, que defendem a ideia segundo a qual as formas exis-
tentes nas línguas, em grande medida, refletem as funções a que se
destinam. A motivação funcional para a existência de certas formas
pode ser, de fato, encontrada em todos os domínios de uma língua,
tal como vemos nos seguintes exemplos do português:

EXEMPLO
Fonologia Morfologia Semântica Sintaxe
Pense na palavra Pense, por exemplo, Lembre-se de expres- Tal como se vê na famo-
“sussurrar” que se nas palavras compos- sões como “pé-da-me- sa sequência atribuída
parece com os sons tas, como “saca-rolha”, sa” ou “braço da cadei- ao romano Júlio César,
emitidos quando “guarda-roupa”, cujas ra”, que transferem para “Vim, vi e venci”, que re-
alguém su... ssu... rra. funções são objetos a estrutura do flete, de forma icônica,
rapidamente dedutíveis corpo humano e, assim, a sequência temporal
pela análise de suas iconicamente, permitem com que os atos se de-
formas constituintes. a codificação formal de ram: o general primeiro
suas funções. veio, depois, viu para,
enfim, vencer.

Se você está curioso para saber quem vence a batalha entre analogis-
tas e anomalistas, saiba que temos, aqui, um empate técnico. As línguas
humanas estão repletas de casos claros de arbitrariedade e casos eviden-
tes de iconicidade. Ambos os fenômenos são encontrados em todas as
línguas quando cotejamos formas e funções.

26 • capítulo 1
Com efeito, a análise mais interessante que os cientistas da lingua- EXEMPLO
gem vêm apresentando ao longo dos últimos anos é interpretar a rela-
ção entre arbitrariedade e iconicidade em uma espécie de continuum, Contexto sintático:
isto é, como uma sequência gradual de várias etapas que separam um Vemos isso acontecer na célebre ci-
extremo de arbitrariedade, de um lado, e um extremo de iconicidade tação de Memórias Póstumas de Brás
de outro – mais ou menos como representamos a seguir: Cubas, de Machado de Assis:
em [um autor defunto], “autor” é
substantivo e “defunto” é adjetivo,
[+ icônico] → [+/- icônico] → [+/- arbitrário] → [+ arbitrário]
mas, em [um defunto autor], “defunto”
é substantivo e “autor” é adjetivo. Do
Sendo assim, não devemos pensar que as relações entre forma e mesmo modo, formas como “furado”
função em uma língua sejam sempre uma questão de tudo ou nada; ou podem ser analisadas como adjetivos
temos arbitrariedade ou temos iconicidade. A escalaridade parece ser ou como verbos (na forma de particí-
pio), dependendo de sua função na
uma boa chave para entendermos a dualidade forma e função. Pense, por
frase, tal como vemos acontecer em
exemplo, que, no uso de uma língua como o português, podemos desli-
“isso é papo furado” versus “a roupa foi
zar rapidamente da forma dos substantivos para a forma dos adjetivos, furada pelo alfinete”, respectivamente.
dependendo da função de um item no interior de um contexto sintático. Na verdade, mesmo certas formas
Em suma, você deve ter em mente que a gradiência no mapeamen- verbais, dependendo de sua função na
to entre formas e funções linguísticas ocorre de maneira generalizada frase, podem ser reanalisadas como
tanto no léxico quanto na gramática de uma língua. substantivos, tal como acontece na
expressão “sala de jantar”.

A linguagem humana em ação


Para finalizarmos este capítulo, passemos a descrever e analisar
alguns fenômenos sociocognitivos que ganham vida todas as vezes
em que colocamos a língua em ação nas inúmeras tarefas comuni-
cativas e interacionais de nossa vida cotidiana. Antes de iniciarmos
essa análise, devemos explicitar que existem duas modalidades fun-
damentais no uso da linguagem humana: a produção e a compreen-
são. Além disso, não podemos nos esquecer de que, em sociedades
letradas, como é o caso da maior parte das comunidades brasilei-
ras, a língua pode se realizar pelo canal oral ou pelo canal escrito.
Sendo assim, as quatro habilidades sociocognitivas envolvidas no
uso de uma língua natural são a produção oral, a compreensão oral,
a produção escrita e a compreensão escrita.
Comecemos pela produção linguística. Essa habilidade demanda
do falante (ou do escritor) uma série de tarefas cognitivas que se ar-
ticulam dinamicamente ao contexto social da interação linguística.
Por exemplo, para produzir a fala (ou a escrita), uma pessoa deve,
primeiramente, selecionar de sua memória de longo prazo os itens
lexicais que expressarão os conceitos que deseja veicular no ato de
linguagem. Essa seleção de palavras na mente é o que os psicolin-
guistas chamam de planejamento de fala ou planejamento conceitual.
Vejamos como isso ocorre.

capítulo 1 • 27
Esquematicamente, podemos representar a produção linguística oral pela sequência
ilustrada a seguir:

Plano Conceitual → Seleção Lexical → Combinação Sintática → Expressão Fonética

Você deve ter notado que acabamos de descrever a produção da fala fazendo com
que ela parecesse semelhante à produção da escrita. Pelo que sugerimos, a diferença
entre essas duas modalidades residiria no simples fato de que, na escrita, usaríamos
grafemas para representar a expressão fonética do texto. No entanto, essa descrição é,
na verdade, uma supersimplificação.
De fato, a produção oral é muito diferente da produção escrita. De uma maneira bem re-
sumida, podemos dizer que as pessoas, quando escrevem, estão muito mais conscientes do
uso que fazem da linguagem, sendo, por isso mesmo, bem mais atentas e vigilantes tanto em
relação ao que dizem quanto em relação a como dizem.

28 • capítulo 1
A tomada de consciência e a vigilância, comuns na produção es- LEITURA
crita, estão em flagrante contraste com o caráter mais espontâneo e
automático da fala natural. Não é por outra razão que a escrita fluen- Os neurônios da leitura:
te, típica das pessoas bem escolarizadas e treinadas nessa arte, de-
manda muitos anos de aprendizado formal, desde a alfabetização até
o letramento profundo na vida adulta.
Por sua vez, a produção fluente da fala emerge já em crianças bem
pequenas e se torna visível em qualquer conversa oral entre humanos,
independente da escolarização ou do letramento dos sujeitos falantes.

RESUMO
Portanto, atente para essa ressalva: apesar de os mecanismos básicos envolvi-
dos na produção oral e escrita serem semelhantes, falar e escrever são fenôme-
nos sociocognitivos dramaticamente diferentes.

No eixo da compreensão linguística, o ouvinte (ou leitor) deve per-


ceber as formas manifestadas no sinal da fala (ou da escrita) de seu
interlocutor para, então, acessar, em sua memória de longo prazo, os Segundo o autor, as pesquisas
conteúdos por elas evocados. Podemos dizer que a compreensão é o realizadas pela psicologia cognitiva
espelho invertido da produção. Vejamos por quê. experimental comprovaram o centro
de reconhecimento da palavra escrita
Na produção linguística, começamos com um plano conceitual.
no cérebro. Tal descoberta afeta
Esse plano nos leva a dizer certas coisas por meio de dadas palavras, profundamente as metodologias em-
as quais são inseridas nas frases que
Na realidade, pregadas nas escolas, que deverão
conduzem os textos. Já na compreen- rever suas abordagens.
são da linguagem, tudo começa pela porém, a
detecção, nos textos, dos elementos compreensão
do ato linguístico, tais como frases e linguística pela
palavras. É com base na identificação
leitura é muito
desses elementos que se torna possí-
vel compreender o plano conceitual e mais complexa
os valores comunicativos que move- do que a
ram a produção do interlocutor. “decodificação
Mais uma vez, as semelhanças en-
ortográfica”
tre oralidade e escrita estão aqui exa-
geradas. No caso, a especificidade da sugere.
compreensão da escrita diria respeito, de maneira muito simplifica-
da, apenas à decodificação ortográfica (leitura) que faria a função da
percepção fonética.
Infelizmente, não podemos tratar de tantos detalhes no espaço li-
mitado deste capítulo, mas, se você estiver interessado em compreen-
der as minúcias que diferenciam oralidade e escrita, sugerimos a leitu-
ra do excelente livro Os neurônios da leitura (2012), do neurocientista
francês Stanislas Dehaene.
Para sintetizar o que acabamos de dizer sobre a produção e a compre-
ensão linguística, a figura a seguir parece ser um bom recurso didático.

capítulo 1 • 29
AUTOR EXEMPLO
Émile Benveniste:
A B
Émile Benveniste
(1902-1976) foi um
linguista francês, cuja
principal obra, Problè-
mes de linguistique générale, ressalta a
ideia de ocorrência de dois planos de
enunciação – o da história e o do dis-
curso –, através dos quais demonstra a
oposição entre a “não pessoa” (terceira)
e as “pessoas” (eu-tu).

Note que as setas que correm da esquerda para a direita indicam que o “plano
conceitual” presente na mente de A é transformado na informação linguística vei-
culada para B. Por sua vez, B recebe essa informação linguística e, rapidamen-
te, consegue interpretar os conceitos ali representados. A figura é interessante,
também, porque, nela, podemos perceber que a produção e a compreensão da
linguagem são automaticamente intercambiáveis no fluxo da fala normal. Pelas
setas que correm da direita para a esquerda, notamos que, agora, é B quem produz
a informação linguística que será veiculada para A.

A enunciação
Na dinâmica da produção e da com-
A enunciação deve
preensão da linguagem, o intercâm-
bio de posições entre aquele que fala ser compreendida
e aquele que ouve dá origem ao fenô- como o ato
meno conhecido como enunciação. de criação de
Na enunciação, a pessoa que pro-
um enunciado
duz a fala (ou a escrita) é o enunciador
– a primeira pessoa do discurso. Já a linguístico.
pessoa que compreende a fala (ou a escrita) é o enunciatário – a segunda
pessoa do discurso, a quem a fala (ou a escrita) se destina. Chamamos
de terceira pessoa, ou de não pessoa – em um termo interessante formu-
lado pelo linguista francês Émile Benveniste –, os objetos e as pessoas
sobre os quais falamos (ou escrevemos) durante a enunciação.
Em termos linguísticos e comunicativos, é interessante notar que,
na enunciação explícita na produção da linguagem, as chamadas
pessoas do discurso (os pronomes pessoais que você, certamente,
conhece das aulas de português) são, justamente, categorias linguís-
ticas que indicam a figura da primeira pessoa (eu, nós), da segunda
pessoa (você, vocês) e da terceira pessoa (ele, ela, eles, elas e todas as
expressões referenciais, como os substantivos).

30 • capítulo 1
ATENÇÃO CURIOSIDADE
É com base na existência do enunciador, do enunciatário e dos referentes do Tempo futuro:
discurso que diversas expressões linguísticas são colocadas sob perspectiva du-
rante a enunciação.

Por exemplo, pronomes como [meu/minha/nosso/nossa] indicam


a posse de algo em relação à primeira pessoa do discurso, enquanto
pronomes como [seu/seus/sua/suas] indicam a posse relativa à segun-
da pessoa, e expressões como [dele/deles/dela/delas] denotam a posse
da terceira pessoa. Na verdade, mesmo o espaço ocupado pelas pessoas Por que a frase “Fiado, só amanhã” é
do discurso é posto em perspectiva durante a enunciação. Assim, ter- engraçada? Pela perspectiva da enun-
mos como [aqui/este] indicam o espaço da primeira pessoa, enquanto ciação, esse dizer, na prática, torna a
venda a crédito impossível: o “amanhã”,
[aí/esse] denotam o espaço da segunda pessoa, e [lá/aquele] apontam
seja quando for lido, sempre desloca
o espaço do referente, o lugar da terceira pessoa. para o dia posterior – e assim por dian-
De maneira muito interessante, o próprio tempo que utilizamos te, ad infinitum.
quando produzimos e compreendemos a linguagem só assume algu-
ma interpretação coerente quando é colocado sob perspectiva duran-
te a enunciação. Desse modo, sabemos que [ontem] é um termo que
denota um momento anterior ao tempo da enunciação, ao passo que
[hoje] indica o momento que coincide com a criação do enunciado,
enquanto [amanhã] marca um tempo futuro que acontecerá depois
de a enunciação ter sido concluída.

EXEMPLO
Para que você tenha uma boa noção de como pessoa, espaço e tempo são ca-
tegorias linguísticas cujas referência e interpretação dependem, crucialmente, da
enunciação, imagine que você esteja andando pelo centro de sua cidade, quando, de
repente, encontra um bilhete que flutua em sua direção.
Como pessoa curiosa, você abre o bilhete e encontra a seguinte mensagem:
“Eu estive aqui hoje.” Ora, você será capaz de compreender o significado básico
dessas expressões (afinal, é possível depreender do bilhete que “alguém esteve
em algum lugar, em algum dia”), mas não será possível identificar o sentido do
enunciado, justamente porque você não participou da enunciação – e, portanto,
não conseguirá encontrar o referente da primeira pessoa (eu) nem poderá deduzir
o lugar (aqui) que ela ocupava ao produzir o bilhete, tampouco descobrirá qual foi
o tempo presente (hoje) naquela enunciação.
Algo totalmente diferente aconteceria se o bilhete contivesse uma frase como
“A presidente Dilma esteve na Prefeitura do Rio de Janeiro em 04 de maio”. Nesse
caso, a identificação referencial da pessoa, do espaço e do tempo do enunciado
não são totalmente dependentes do contexto estabelecido na enunciação. Sabemos
apenas que a produção dessa frase ocorreu depois da visita da Presidente à Prefei-
tura – e deduzimos isso em função do tempo verbal passado expresso em “esteve”.

capítulo 1 • 31
CONCEITO Das pessoas do discurso que são acionadas sempre que usamos a lin-
guagem para a produção e a compreensão, a mais curiosa, em termos
Referente discursivo: científicos, é a terceira. Como dissemos, a terceira pessoa é, na verdade,
O já citado linguista Roman Jackob- a não pessoa, isto é, é a ausência da primeira e da segunda pessoas. Tra-
son havia destacado a existência da ta-se do referente discursivo de um dado uso da língua.
não pessoa ao batizar com o termo A função referencial é, muitas vezes, considerada a mais pro-
“referencial” a função da linguagem
eminente dentre as funções da linguagem, já que os humanos ti-
que privilegia a terceira pessoa como o
referente do discurso.
picamente usam a língua para falar do mundo, seus objetos, suas
ações e pessoas. Todavia, a proeminência da “função referencial”
pode nos passar a falsa ideia de que a linguagem humana, quando
colocada em ação, seja essencialmente referencial. É bem verdade
que muitos usos linguísticos são objetivos, isto é, focam-se no obje-
to (terceira pessoa) de maneira puramente referencial. Entretanto,
grande parte da experiência linguística humana é metafórica. Vejamos
o que isso quer dizer.

Função referencial x metáfora


Nossa tradição escolar se esforça para nos fazer crer que o uso co-
tidiano e comum da linguagem seja referencial, isto é, somos ensi-
nados que, quando produzimos e compreendemos a fala e a escrita,
fazemos referências a coisas e pessoas de maneira mais ou menos
objetiva. A linguagem metafórica seria, então, característica dos usos
linguísticos mais elaborados e artísticos, como a poesia e os roman-
ces. Essa ideia é reforçada quando, na escola, estudamos as “figuras
de linguagem” e ficamos com a impressão de que elas só acontecem
nos textos literários.
Na verdade, o uso metafórico da linguagem não é exclusividade da
arte. Com efeito, todos os seres humanos comuns, no dia a dia, também
utilizam metáforas ao produzir enunciados linguísticos. Por exem-
plo, quando dizemos
alguma coisa como No exemplo, estamos
“Decidirei se vou ca- transferindo propriedades
sar ou não só mais do espaço para fazer
à frente ao longo da
referência à noção de
minha vida” estamos
fazendo referência a tempo. Precisamente é
uma realidade tem- esse o princípio de toda a
poral (a passagem linguagem metafórica: a
da vida) por meio de transferência de domínios de
uma categoria espa-
significados.
cial (a localização no
espaço — “à frente”). Quando produzimos frases assim, estamos, na
verdade, cruzando domínios de sentidos para fazer referência àquilo
que queremos dizer.

32 • capítulo 1
A linguagem metafórica é, na verdade, generalizada nos usos linguísticos. Podemos di-
zer que ela é a regra, e não a exceção, quando produzimos e compreendemos a linguagem
humana. Um uso de linguagem estritamente objetivo e referencial é raro. Só o encontra-
mos em abundância no discurso científico das áreas da natureza, como a Física, a Química
e a Biologia. Mesmo em outras áreas da ciência, como a Economia, encontramos fartos
exemplos de linguagem metafórica em frases como “O mercado está aquecido”, “Os preços
estão nas alturas”, “Esperamos uma queda brusca na taxa de juros” etc. Para os cidadãos
comuns, em seu cotidiano linguístico, a metáfora é muito mais do que uma mera figura de
estilo: ela é um produtivo recurso natural de pensamento e de linguagem.

Para concluir
Neste primeiro capítulo, começamos nossa pequena incursão pelo fantástico e complexo mun-
do da linguagem humana. Aprendemos, aqui, diversos conceitos importantes, como a dife-
rença entre linguagem e língua, a distinção entre Língua-i e Língua-e, as noções e as fases da
aquisição da linguagem, a oposição entre formas e funções linguísticas e os fundamentos da
linguagem em ação. Nosso objetivo, ao longo do capítulo, foi apresentar a você uma visão pano-
râmica dos principais temas e figuras do estudo científico da linguagem, o qual tem em conta a
interação dinâmica entre sociedade e cognição. Você terá boas oportunidades de ampliar seus
conhecimentos sobre o assunto ao consultar os vídeos e os livros que indicamos. Bons estudos!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHOMSKY, N. O conhecimento da língua. Sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho, 1986.

DEHAENE, S. Os neurônios da leitura. Pará: Pense, 2012.

PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SAUSSURE, F. [1916]. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2004.

WERMKE, K. et al. Cry Melody in 2 Month Old Infants With and Without Clefts. The Cleft Palate-Craniofacial Journal,
v. 48, n. 3, p. 321–330, 2011.

IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 11 Cloud p. 19 Bebês p. 23 Roman Jakobson
Tainara Oliveira · Estácio Paulo Vitor Bastos · Estácio Autor desconhecido · Wikimedia · cc

p. 12 Ferdinand de Saussure p. 20 Pequeno p. 24 A Escola de Atenas


Autor desconhecido · Wikimedia . cc Paulo Vitor Bastos · Estácio Rafael Sanzio · Wikimedia · cc

p. 12 Nice dog p. 20 Médio p. 26 Champagne Chin Chin


Michael Sagmüller · stock.xchng Paulo Vitor Bastos · Estácio Roger Kirby · stock.xchng

p. 15 Quatro p. 20 Grande p. 29 Os neurônios da leitura


Paulo Vitor Bastos · Estácio Paulo Vitor Bastos · Estácio Stanislas Dehaene

p. 16 Noam Chomsky p. 21 Eric Lenneberg p. 30 Émile Benveniste


Duncan Rawlinson · Wikimedia . cc Autor desconhecido Autor desconhecido · Jacket Magazine

p. 17 Bandeira do Paraguai p. 22 Graciliano Ramos p. 31 Fiado


Domínio público Autor desconhecido · Wikimedia . cc Tainara Oliveira . Estácio

p. 18 Steven Pinker p. 23 Karl Bühler


Charles Gauthier · charlesgauthier.com Autor desconhecido · cmu

capítulo 1 • 33
Língua e
2 variação
linguística

ivo da costa do rosário


2 AUTOR
Língua e variação linguística

Neste capítulo, vamos discutir as relações entre língua e usuários da


língua. Para iniciar a abordagem desse assunto, leia o texto a seguir:
Antônio Gonçalves
da Silva: Não tenho sabença,
Patativa de Assaré pois nunca estudei,
(Assaré, ce, 1909- apenas eu sei
2002) alfabetizou-se o meu nome assiná.
aos 12 anos e, a partir de então, come-
Meu pai, coitadinho,
çou a fazer repentes e poemas. O nome
“Patativa” faz referência a uma ave
vivia sem cobre
amazônica de canto triste e melódico. e o fio do pobre
Antônio Gonçalves da Silva escreveu não pode estudá.
diversos livros, também foi nomeado
cinco vezes Doutor Honoris Causa em Você já conhecia esse texto? Consegue reconhecer o estilo de escrita des-
universidades brasileiras.
se poeta? Quem escreveu esses versos foi Antônio Gonçalves da Silva,
mais conhecido como Patativa do Assaré, um dos mais aplaudidos poetas e
compositores brasileiros, reconhecido inclusive internacionalmente.

À primeira vista, você deve ter estranhado a linguagem empregada


pelo poeta. Afinal, há várias palavras e construções que não estão em
conformidade com a ortografia oficial da língua portuguesa, ou seja,
com a linguagem exigida, por exemplo, pelas gramáticas normativas.
Você acha que, por conta disso, Patativa do Assaré falava errado? Existe
uma maneira certa de falar e escrever? São essas questões, entre ou-
tras, que vamos discutir neste capítulo.

Papel e status dos interlocutores


na comunidade linguística

A língua é, sem dúvi- O uso da língua é elemento


da, o meio mais efi-
fundamental para a
caz de comunicação
entre as pessoas. Por
construção da sociedade.
meio da língua, os seres humanos, de todos os tempos e lugares,
estabeleceram e estabelecem relações sociais de diferentes manei-
ras. Sendo assim, podemos afirmar que o uso da língua reflete, em
parte, a estruturação de uma dada sociedade.

36 • capítulo 2
RESUMO CURIOSIDADE
Em outras palavras, só existem as línguas porque existem seres humanos que as
falam em sociedade, com propósitos diversos. E, ao estabelecer relações sociais
– no trabalho, na escola, na igreja, no sindicato, na conversa informal e em várias
outras instâncias –, a língua vai se moldando às necessidades comunicativas dos
falantes e ao contexto da fala.

De fato, as mudanças na sociedade costumam provocar mudanças tam-


bém nos sistemas linguísticos, pois todas as línguas naturalmente existem
no seio de uma sociedade, que a (re)processa e a (re)elabora continuamente. Sistemas linguísticos:
Com o advento da tecnologia, por
exemplo, muitas pessoas inseriram em
Propósitos da língua: seus vocabulários palavras até então
inexistentes ou de pouca frequência
exemplificando pela modalização de uso. Assim, caminhando pela rua
ou conversando, é comum ouvirmos
que “Fulano acessou a web”, “torpedos
Até o momento estamos falando de aspectos relacionados à língua e foram trocados”, “novos tablets foram
à sociedade. Para começar a aprofundar o tema, traremos uma breve lançados”, “dá um google para ver” etc.
noção sobre modalidade, que o ajudará a entender como o falante
utiliza a língua para se relacionar com o contexto que o cerca.

RESUMO
Entende-se por modalidade os recursos da língua utilizados para expressar a
atitude do locutor, nos conteúdos, em relação ao interlocutor. Há dois tipos prin-
cipais de modalidades: a epistêmica e a deôntica.

Na modalidade epistêmica, com base no grau de conhecimento que


possui, um falante expressa sua atitude em relação à verdade ou à falsi-
dade do conteúdo de seu enunciado. Os valores epistêmicos podem ser de
certeza, probabilidade ou possibilidade. Vamos a um exemplo?

EXEMPLO
O estudante foi aprovado na disciplina.
CERTEZA
o locutor se compromete com a veracidade da informação

O estudante deve ter sido aprovado na disciplina.


PROBABILIDADE
o uso de “deve” condiciona a verdade, o locutor infere que tenha ocorrido

O estudante pode ter sido aprovado na disciplina.


POSSIBILIDADE
o locutor não assume compromisso em relação à verdade

capítulo 2 • 37
CURIOSIDADE Na modalidade deôntica, um locutor exprime juízos, procurando
agir sobre o seu interlocutor, impondo, proibindo ou autorizando a
Mudança: realização de algo em um tempo necessariamente posterior ao dis-
A expressão vossa mercê, como curso. Estabelece-se uma relação hierárquica entre locutor e interlo-
sabemos, não é mais utilizada no cutor. Tradicionalmente, a modalidade deôntica divide-se em valores
português atual. Atualmente utiliza- de obrigação e valores de permissão. Veja:
mos o pronome você para substituir
essa expressão. Portanto, houve um
processo de mudança, transformando, EXEMPLO
ao longo do tempo, a expressão vossa “Saia daqui, agora!”
mercê em você.
“Agora, você não vai sair.”
O valor modal de obrigação ocorre quando o locutor impõe
ou proíbe a realização de uma ação ao interlocutor.

“Só sai, se terminar antes.”


“Se terminar, você pode sair.”
O valor modal de permissão ocorre quando o locutor define
e/ou oferece escolhas ao interlocutor para realizar uma ação.

A modalidade, tanto epistêmica quanto deôntica, serve para aten-


der, como vimos, a necessidades comunicativas. Afinal, informar,
descrever, contar, ordenar, permitir, proibir, impor etc. são ações
típicas veiculadas pelas línguas humanas. Elas dependem da situação
comunicativa e, muitas vezes, da intencionalidade do falante.

RESUMO
Usamos a língua não só para nos comunicarmos e articularmos informações
mas também para agirmos sobre nossos interlocutores e até mesmo para con-
trolar o nível de comprometimento ou de verdade usado nas declarações que
fazemos cotidianamente.

Transformações na trajetória da língua:


mudança e variação

Esse processo de adap- Por mudança, devemos


tação da língua aos
entender as transformações
propósitos do falante,
que não está restrito
sofridas pelas línguas ao
somente à modalida- longo do tempo.
de, provoca dois fenômenos naturais atestados em todos os lugares e em
todos os tempos. Trata-se da mudança e da variação linguística (iremos
enfatizar a variação ao longo deste capítulo).

38 • capítulo 2
Pesquisadores vêm estudando já há muito tempo essas transfor- CURIOSIDADE
mações na trajetória da língua, gerando um número bastante expres-
sivo de publicações acerca desse assunto. Esses estudos, que têm
como objetivo analisar as mudanças da língua ao longo do tempo,
são chamados estudos diacrônicos. Veja o exemplo a seguir:

EXEMPLO
“Este rrey Leyr nõ ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e amaua-as Português do Brasil:
mujto. E huu dia ouuve sas rrazõoes com ellas e disse-lhes que lhe dissessem Nossas favelas são
uerdade quall dellas o amaua mais”. conhecidas como
bairros de lata em
Portugal. Em Angola,
Você conseguiu ler o texto anterior? Qual foi a sua sensação? Se você ima-
que também tem a
gina que se trata de um texto antigo, acertou! Esse texto, cujo título é Lenda do língua portuguesa como oficial, utiliza-
Rei Lear, é datado do século XIII ou XIV. Ele serve para ilustrar como a língua se o termo musseque. Para saber mais
muda ao longo do tempo, basta verificar como era a escrita séculos atrás… sobre diferenças entre o português
brasileiro e o português europeu,
recomendamos uma visita ao site do
Variação linguística Instituto Camões.

Voltando ao exemplo dado No uso da língua em


no início deste capítulo, no sociedade, muitas vezes AUTOR
poema de Patativa do Assa-
há várias formas de se Manuel Bandeira:
ré vimos palavras como
sabença, assiná e estudá. dizer a mesma coisa. Manuel Carneiro de
Você deve ter percebido que, no português formal, gramatical, essas Sousa Bandeira Filho
palavras equivalem a sabedoria, assinar e estudar. Aí está a ideia de va- (1886-1968) nasceu
em Recife (pe).
riação, que pode ser compreendida como a face heterogênea da língua.
Juntamente com Oswald de Andrade e
Assim, da mesma forma como Patativa do Assaré utiliza a forma saben- Mário de Andrade, formou o grupo de
ça para se referir a sabedoria, há outras formas que variam, e não somente escritores mais importantes da Primeira
em termos de ortografia, mas inclusive em termos vocabulares. Cariocas, Fase Modernista de nossa literatura.
por exemplo, falam chuva fina enquanto paulistas falam garoa. O português
do Brasil utiliza o termo ônibus, enquanto em Portugal falam autocarro.
O tópico da variação, devido à sua relevância, chegou a ser poeti-
zado pelos modernistas brasileiros. Manuel Bandeira, por exemplo,
foi um crítico do modo artificial como alguns brasileiros tentavam
imitar os estilos lusitanos, nas primeiras décadas do século xx:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros


Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo BANDEIRA, Manuel
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Estrela da vida inteira.
Ao passo que nós 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970.
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada...

capítulo 2 • 39
CURIOSIDADE Em busca de uma língua essencialmente marcada por traços da
cultura brasileira, os modernistas costumeiramente defendiam, de
Escolarização formal: forma ávida, usos linguísticos característicos do Brasil, mesmo que
Somente após 300 anos, com a che- não estivessem de acordo com o “português correto”. É por isso que
gada da família real, que a educação Manuel Bandeira afirma que a “a língua errada do povo” era a “língua
superior começou a fazer parte da nossa certa do povo”. Parece paradoxal, mas não é.
realidade: em 1808, surge o Colégio
Médico-Cirúrgico da Bahia. A elite bra-
sileira (membros da Corte, membros da RESUMO
Igreja e filhos de grandes latifundiários),
até então, só tinha por opção estudar O português vivo falado pelos brasileiros é, na opinião do modernista, a verdadeira língua
na Europa. A primeira universidade do Brasil, que traduz um falar “gostoso”, segundo suas palavras. Enfim, mesmo que sem
brasileira surgiu em 1920, e foi chamada os termos técnicos que utilizamos, defendia-se a legitimidade da variação linguística.
de Universidade do Rio de Janeiro (hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Voltando ao nosso tema, os estudos de variação linguística são sempre
feitos dentro de um recorte temporal específico, ou estudos sincrônicos.
Sincronia, portanto, designa um estado específico da língua.
CURIOSIDADE
EXEMPLO
Mudanças:
Um bom exemplo para vermos as Se um pesquisador se ocupar do estudo do pronome você no português do Brasil atual
mudanças é a inserção de palavras (ou até mesmo em todos os lugares da comunidade lusófona onde esse item é utilizado),
estrangeiras, como shopping. O uso dizemos que esse é um estudo sincrônico. Por outro lado, se analisa um determinado
da forma original (em inglês) dessa
uso linguístico ao longo de décadas ou séculos, com o objetivo de descrever transfor-
palavra é tão disseminado entre nós que
mações do item ao passar do tempo, então estamos diante de um estudo diacrônico.
praticamente não se utiliza uma forma
correspondente em português (como
“centro comercial”, por exemplo). Em
outros casos, uma palavra estrangeira
acaba sendo incorporada à língua. É o Por que a mesma língua é, também, diferente?
famoso “aportuguesamento”, como na
forma ballet (francês) para balé.
A língua portuguesa era a língua falada/escrita pelas classes escolariza-
das de Portugal. Aqui encontrou as línguas indígenas que, na fase inicial
da colonização, formaram uma “língua de intercurso”: mistura de por-
tuguês e línguas indígenas, que promovia a comunicação entre o coloni-
zador europeu e os nativos indígenas.
Em seguida, o povo que aqui se encontrava – índios, negros escraviza-
dos e mestiços, praticamente todos sem acesso à escolarização formal –
ia adquirindo o idioma de Portugal. Esse idioma, aqui no Brasil, tornou-se
também “mestiço”, sendo passado de pai para filho, com gerações apren-
dendo e ensinando, de forma empírica, a língua portuguesa.
Como se pode perceber, por falta de um ensino sistematizado para to-
dos, grande parcela da população utilizava a língua oficial conforme suas
próprias “regras”, de acordo com suas necessidades, e foi, pouco a pouco,
promovendo variações na língua portuguesa. Surgia, assim, uma variante
daquele português das elites escolarizadas: a língua falada pelo povo.
Após mais de 500 anos de uso do português no Brasil, nada mais na-
tural que a língua tenha passado por mudanças e apresente variações

40 • capítulo 2
conforme a região, a classe social e, até mesmo, conforme a idade dos falantes.
Nesse contexto de mudanças e variações, há palavras e construções linguísticas que,
embora ainda em uso, são cada vez mais escassas ou restritas a uma situação de alta for-
malidade. Mesmo assim, tais usos são ensinados nas escolas, estão presentes em todas
as gramáticas, são cobrados em exames, concursos etc. Vamos a um exemplo:

EXEMPLO 1: “O ônibus já passara quando chegamos ao ponto”


Caso em questão Regra gramatical Uso mais comum
Emprego do pretérito Emprega-se o pretérito A forma composta, com uso de
mais-que-perfeito mais-que-perfeito para assinalar verbo auxiliar:
um fato passado em relação a “O ônibus já tinha passado
outro, também no passado quando chegamos ao ponto”

EXEMPLO 2: “Amanhã, pegá-lo-emos no horário”


Caso em questão Regra gramatical Uso mais comum

Colocação pronominal Emprega-se a mesóclise quando O uso de próclise em vez de


o verbo estiver no futuro do mesóclise ou uso de pronome
presente ou no futuro do reto em vez de oblíquo:
pretérito do indicativo, desde que “Amanhã, o pegaremos
não se justifique a próclise. no horário”.
“Amanhã, pegaremos ele
no horário”.

Por outro lado, há momentos em que estamos com nossos amigos, nossos familia-
res, nossos grupos sociais. Nessas situações, é comum haver um uso menos formal da
língua, que comumente é acompanhado por gírias, expressões populares etc. Esse uso,
ao contrário do que muitos pensam, não é errado. Trata-se apenas de um uso diversifi-
cado do idioma. Portanto, esses usos são naturais, seguem uma lógica própria e preci-
sam ser respeitados, já que são igualmente úteis à comunicação.
Assim como as culturas são diversas, as línguas (que são parte da cultura) também
o são: os diversos domínios sociais atestam e influenciam o modo de fala e de escrita
dos cidadãos. Assim, podemos afirmar que, em geral, os eventos de uma sala de aula
ou de uma reunião de trabalho costumam ser mais monitorados do que as conversas
espontâneas no seio familiar, por exemplo. Nessas situações práticas do dia a dia,
invariavelmente se atesta o fenômeno da variação. Pense em como você se comunica
com o professor na universidade e como você conversa com seus amigos ou com seus
familiares. Não é diferente?

EXEMPLO
Imagine um cartão de apresentação profissional com erros gramaticais. Inconcebível, não é? Pois então, em con-
textos “monitorados”, o uso que um falante faz da língua oral ou escrita é “analisado” pelo ouvinte/leitor, como parte
de um processo de legitimidade, de adequação e de pertinência do conteúdo ao sujeito que fala/escreve.

capítulo 2 • 41
CONCEITO Explorando mais o tema: variações dialetais
Dialetos: Para nos aprofundar- Para o estudo científico da
Dialeto é a forma como uma língua mos no conceito de
é falada em uma região específica.
linguagem, a variação é um
variação, falaremos
Podemos considerar, por exemplo, que o agora das variações
fenômeno normal, natural,
dialetais. Dentre os inerente a todas as línguas.
português brasileiro e o português euro-
peu são variedades dialetais. O mesmo
pensamento vale dentro do Brasil, onde
dialetos que mais chamam a atenção dos estudiosos da língua, estão
temos subvariedades: o grupo dialetal os usos que se dão conforme a região (diatópicos) e conforme o estrato
carioca, gaúcho, baiano etc. sociocultural (diastráticos).

Variação diatópica (dialetal)

No Rio de Janeiro,
chama a atenção o Pessoas que residem em
“chiado” caracterís- localidades diferentes,
tico da população ao distantes, tendem a ter
pronunciar o “s” em
pronúncia e vocabulário
determinadas posi-
ções na palavra, como também diferentes.
em “misto” ou “mais” (com som de x). Por outro lado, é próprio do fa-
lar nordestino a abertura das vogais “e” e “o” antes da sílaba tônica, em
palavras como “receita” e “morena”. Em São Paulo, o uso da palavra
“guia” corresponde ao uso de “meio-fio” no Rio de Janeiro. Todos es-
ses são exemplos de variação diatópica.

Variação diastrática (sociocultural)

A língua também varia conforme o grau de escolaridade do falante, pela


cultura familiar, pela situação financeira, por grupos profissionais e so-
ciais específicos e, até mesmo, por idade ou gênero, entre outros.
Além do uso de gírias pelos mais jovens ou por pessoas em situação
de grande informalidade e da falta de concordância de número (singu-
lar-plural) entre os menos escolarizados, os jargões profissionais são
também exemplos clássicos de variação diastrática.
No universo do futebol, por exemplo, “ir para o chuveiro mais cedo”
significa que o jogador foi expulso de campo ou substituído. No discur-
so de advogados, há grande uso de expressões latinas, como data venia,
que corresponde a “com o devido respeito” em português.

42 • capítulo 2
ATIVIDADE
Vamos fazer um teste? Veja as frases e as associe a um determinado perfil:

1 Mamãe, eu quero um au-au! Pessoa com baixa escolaridade

2 A coroa lá em casa tá bolada... Pessoa com alta escolaridade

3 A moçoila está uma teteia. Uma criança

4 Que gracinha! Amei isso, é lindo! Um idoso

5 É mister ampliarmos o repertório vocabular do corpo discente. Pessoa em conversa online

6 Os poliça pegou os bagulho lá do pessoal! Pessoa do sexo feminino

7 Vc ker tc comigo? Um jovem

Você provavelmente respondeu a seguinte sequência: 6, 5, 1, 3, 7, 4, 2. Repare que há, inclusive, certo
determinismo na resposta, pois nem toda mulher fala usando diminutivo ou exageros e não há pessoa de
alta escolaridade que não use gírias eventualmente. Mas podemos considerar que todas essas frases são
bem características de alguns perfis de usuários da língua. Alguns usos são muito estigmatizados, como o
exemplo 6, outros são considerados mais “neutros”, outros despertam ternura, despojamento, informalida-
de etc. Todos esses usos linguísticos são continuamente praticados e avaliados pela sociedade.

De forma consciente ou não, nós reconhecemos essas variantes. Afinal, sempre que queremos nos
dirigir a alguém, refletimos acerca da situação (se é apropriado ou não falar naquele momento), do
interlocutor (não falamos com nossos amigos da mesma maneira como falamos com nosso chefe) e
do ambiente (há lugares mais apropriados para piadas, para conversa espontânea, para ensinamentos
morais etc.). Em outras palavras, utilizamos variantes distintas dependendo dos nossos propósitos e
objetivos, em cada situação particular.

Teria o mesmo sentido se usasse as regras gramaticais e a ortografia oficial na letra da música?
ASA BRANCA Luiz Gonzaga

Quando oiei a terra ardendo Inté mesmo a asa branca Quando o verde dos teus óio
Qual fogueira de São João Bateu asas do sertão Se espalhar na prantação
Eu perguntei a Deus do céu, ai Intonce eu disse: adeus, Rosinha Eu te asseguro, não chore não, viu
Por que tamanha judiação Guarda contigo meu coração Que eu voltarei, viu
Meu coração
Que braseiro, que fornaia Hoje longe, muitas léguas
Nem um pé de prantação Em uma triste solidão
Por farta d’água perdi meu gado Espero a chuva cair de novo
Asa Branca foi composta por Luiz
Morreu de sede meu alazão Pra mim vortá pro meu sertão Gonzaga e Humberto Teixeira em 1947.

capítulo 2 • 43
AUTOR Em Asa Branca, temos um claro exemplo de como a língua varia.
Poeticamente, Luiz Gonzaga canta as características de sua terra, em-
Luiz Gonzaga: baladas pelo linguajar local. O uso da língua padrão, no caso dessa
Luiz Gonzaga do Nas- música, continuaria comunicando a mesma emoção que ela nos traz
cimento (1912-1989) quando cantada em seu estilo original? Certamente, não!
nasceu no interior de Um fato curioso sobre a variação é que os usos fortemente de-
Pernambuco. É consi-
fendidos como corretos, no passado, muitas vezes invertem-se e
derado um dos grandes divulgadores da
música e cultura nordestinas.
passam a ser condenados. Por exemplo: nos século xvi e xvii, era
comum registrar, em obras escritas na língua padrão, os vocábulos
frauta, frecha, molher, entre outros. As variantes flauta, flecha, mu-
lher, que hoje designam o padrão formal dessas palavras, eram
fortemente estigmatizadas.

Língua padrão e língua culta


Como você já deve ter Há uma diferença entre saber
percebido, um usuá- falar uma língua, “dominar”
rio do português pode
as regras gramaticais e usá-
ser altamente escola-
rizado, expressar-se la de forma erudita.
bem, com correção, sem, necessariamente, empregar, a cada vez que
fala ou escreve, as regras prescritas pela gramática tradicional. É pos-
sível ainda que, por sua baixa escolaridade, um falante não conheça as
normas gramaticais e deixe de fazer concordâncias ou pronuncie deter-
minadas palavras em desacordo com a ortografia, por exemplo. Ainda
assim, todos falam língua portuguesa.

ATENÇÃO
A variação linguística nos faz pensar em algumas questões: as regras gramaticais
são frequentemente usadas pelos falantes do português contemporâneo? São
mais comuns na fala ou na escrita? São empregadas apenas por pessoas escolari-
zadas? Qual seria a forma usada por aqueles com pouca escolaridade?

Se pensarmos em termos puramente científicos, não há erro no


uso da língua. Ao utilizar a língua portuguesa, por exemplo, nas suas
variantes, os falantes não a utilizam de forma errada, mas de forma
diferente. Entretanto, existe, de fato, a necessidade de uma língua
padrão para que haja unidade, no uso do idioma, em contextos mais
monitorados, como nas situações escolares de ensino-aprendizagem,
nos textos formais (científicos, acadêmicos, legislativos etc.), no am-
biente de trabalho...

44 • capítulo 2
ATENÇÃO CURIOSIDADE
A gramática tradicional – aquela usada em instituições de ensino – enquadra-se Gramáticas normativas:
no domínio do normativo, isto é, que define “certo” e “errado”, que prescreve Gramática é um estudo, não um livro.
como a língua deve ser empregada e proscreve o que não deve ser dito. Existem outras gramáticas além da
normativa, como a descritiva (não
determina regras, mas procura des-
A escola e a universidade precisam investir no ensino e aprendi-
crever como a língua se dá para fins
zagem da língua padrão, pois é esperado que falantes escolarizados a de investigação), a histórica (estuda a
dominem nas situações em que seu uso for necessário ou valorizado. origem e a evolução de uma língua), a
Quanto a isso, não há discussão nem divergência. comparada (compara línguas de mes-
Nesse cenário, a gramá- ma origem, como as oriundas do latim,
A gramática normativa por exemplo), entre outras.
tica normativa se afigura
como grande pilar da lín- contempla usos que, por
gua padrão, posto que se razões menos linguísticas
enquadra no domínio do e mais socioculturais e AUTOR
prescritivo, isto é, define
históricas, contam com Eça de Queirós:
o que é “certo” e “errado”,
determina como a língua maior prestígio social. José Maria de Eça
deve ser empregada e aponta o que não deve ser dito. de Queirós (1845-
Entretanto, geralmente as gramáticas normativas apresentam 1900) foi um dos mais
importantes escrito-
como modelo de “português correto” escritores de séculos passados,
res portugueses de todos os tempos,
pautando-se, na maioria das vezes, em textos literários. autor de obras como O Crime do padre
Vamos a um exemplo? Observe a construção a seguir, de Eça de Amaro (1875) e A relíquia (1887).
Queirós, escritor português do século xix, retirada da Nova Gramática
do Português Contemporâneo (CUNHA E CINTRA, 2001:364).
AUTOR
EXEMPLO
Machado de Assis:
“Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até ao meio da face” Joaquim Maria
(Eça de Queirós, in CUNHA E CINTRA, 2001:69). Machado de Assis
(1839-1908) é o maior
nome da literatura
Ao longo dessa gramática, assim como em outras, encontramos
brasileira, também considerado por mui-
trechos retirados de diversos outros escritores de diferentes perío- tos estudiosos como um dos grandes
dos, incluindo-se brasileiros como Machado de Assis ou Érico Ve- gênios da literatura mundial. Foi autor
rissimo. Porém, fica claro que todos são cânones de um português de obras como Memórias póstumas de
elitizado, ou até arcaico, distante do que usamos cotidianamente, Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro
mesmo entre os grupos mais escolarizados. (1889). Foi fundador e eleito primeiro
presidente, por unanimidade, da Acade-
Para confirmar essa tendência, vamos a outro exemplo retirado da
mia Brasileira de Letras.
mesma obra (CUNHA E CINTRA, 2001:231). Dessa vez, a construção
linguística analisada é apresentada por meio de texto literário de
Machado de Assis, escritor brasileiro do século xix.

EXEMPLO
“Vi-os felizes a todos quatro” (Machado de Assis, in CUNHA E CINTRA, op.cit., 1126).

capítulo 2 • 45
Até mesmo fenômenos linguísticos já consagrados, presentes na fala e escrita de pes-
soas escolarizadas, são tratados com reservas pela tradição gramatical. O uso do “você”
combinado com pronomes de segunda pessoa, por exemplo, ou o emprego do “tu” com
pronomes ou verbos de terceira pessoa, são alvos de críticas por parte dos puristas.
Porém, no português brasileiro, o pronome “você” é de ampla aceitação, predomi-
nando em praticamente todo o território brasileiro e ocupando, cada vez mais, o lugar
do “tu”. Entretanto, por causa da sua origem como pronome de tratamento, a norma
gramatical prescreve que “você” seja sempre acompanhado por verbos e outros prono-
mes na terceira pessoa.

EXEMPLO
A regra gramatical prescreve que...

...“você” é um pronome de tratamento empregado para representar o interlocutor


(2º pessoa); entretanto, deve concordar com a 3º pessoa, assemelhando-se a
outros pronomes de tratamento (Vossa Alteza, por exemplo). Sendo assim, o
pronome oblíquo tônico correspondente é “lhe” (3º pessoa).

Não sei mais o que fazer com você! Vou lhe dar um castigo exemplar.

Mas o uso mais comum é...

...empregar o pronome oblíquo átono de 2º pessoa, concordando com “você”. Neste


exemplo, temos duplo erro gramatical: 1) o erro de concordância de pessoa; 2) o
emprego de pronome oblíquo átono (“te”) em vez de tônico, haja vista ocorrer
preposição, por causa da regência verbal.

Não sei mais o que fazer com você! Vou te dar um castigo exemplar.

Partindo desse exemplo, muito do que é falado e ouvido nas ruas, dentro de
casa, nas repartições públicas e até mesmo nas escolas e universidades, margeia
a gramática normativa, posto que incorpora variantes linguísticas no seu uso.

Você sabia que, segundo a visão normativa, um famoso comercial veiculado pela mídia
comete erros gramaticais? Vamos explorar?

A forma verbal no imperativo (“vem”) é


Vem pra referente ao pronome “tu”, não ao pronome
“você”. Logo, deveria ser “venha” para se
estabelecer concordância.

Mas não é só isso… Você reparou na forma “pra”?


Ela é própria da fala, mas não admitida na escrita,

Você de acordo com a tradição gramatical. Assim, se a


propaganda respeitasse a norma, ganharia em
também! correção, porém perderia em expressividade,
sonoridade e ritmo, não é mesmo?

46 • capítulo 2
Língua culta AUTOR
Você pode estar se perguntando qual seria a diferença entre língua pa- Oswald de
drão e língua culta. A língua padrão, como vimos, é aquela preconizada Andrade:
pelas gramáticas normativas. A língua culta, por sua vez, representaria José Oswald de
o português utilizado por pessoas letradas, das camadas mais escolari- Souza Andrade
zadas da sociedade. Estes, (1890-1954) per-

pela lógica, seguiriam as


A língua padrão é um ideal tencia a um grupo de intelectuais
e artistas envolvidos no Movimento
normas gramaticais. de correção, visto que nem
Modernista, cujo objetivo era tentar
Iniciemos, então, esta mesmo falantes cultos “eliminar definitivamente da cultura
seção com um poema bas- seguem irrestritamente os brasileira qualquer vestígio da influên-
tante conhecido, do escri- cia lusitana” (Alambert, 1992:8).
tor modernista Oswald de
seus ditames.
Andrade, que, já no início do século xx, trazia, em seu poema Prono-
minais, questionamentos sobre o português “da gramática” e o usado, de
fato, no Brasil:

Pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.

ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

O primeiro verso do poema – “Dê-me um cigarro” – apresenta o


que qualquer gramática normativa recomenda, no capítulo dedicado
a tratar da colocação dos pronomes átonos: quando o verbo abrir o
período, ou iniciar qualquer das orações que o compõem, a posição dos
pronomes átonos é depois do verbo (ênclise). Trata-se, portanto, de um
uso que se enquadraria no conceito de língua padrão.
Por sua vez, o último verso – “Me dá um cigarro” – reproduz um
caso em que o pronome átono está em próclise, isto é, posiciona-se
antes do verbo. Mesmo condenado pela tradição gramatical, certa-
mente era o uso que Oswald de Andrade ouvia nas ruas e nas suas
rodas de conversa no início do século xx.
Mas, se tal uso foi defendido por uma pessoa letrada, com alta escola-
ridade, o último verso poderia se enquadrar no conceito de língua culta?
Aqui cabe outra questão: se a língua culta é o português utilizado
por pessoas letradas e, por consequência, pelos grandes escritores,

capítulo 2 • 47
AUTOR o que dizer de Guimarães Rosa? Há diversos trechos de suas obras que
também não estão em acordo com a língua culta. Seria ele um “falante
Guimarães Rosa: inculto” ou um mau escritor? Não se defende algo dessa natureza…
João Guimarães Além dos casos trazidos à discussão, outros usos condenados pela
Rosa (1908-1967) norma padrão são considerados como próprios entre falantes esco-
foi um dos mais larizados. Até mesmo um professor de língua portuguesa, ciente das
importantes escri-
regras prescritas pela tradição gramatical, dificilmente declararia seu
tores brasileiros de todos os tempos,
eleito por unanimidade à Academia
amor com um “Amo-te!”. O muito mais romântico e brasileiríssimo
Brasileira de Letras (apesar de eleito “Te amo!” é a preferência nacional.
em 1963, assumiu somente em 1967,
pouco antes de morrer). Veja como RESUMO
ele “brinca” com a língua em Grande
Sertão: Veredas (1956): “Enfim, cada um
A essa altura, você já deve estar percebendo que a língua culta é a variedade
o que quer aprova, o senhor sabe: pão
em uso por aqueles que têm acesso à variedade padrão, por aqueles que
ou pães, é questão de opiniães”.
provavelmente tiveram detalhadas lições sobre a gramática normativa, nas
aulas de língua materna, mas que não apresentam, na sua fala, o mesmo rigor
gramatical que têm quando escrevem ou quando falam em contextos formais,
monitorados. Ou seja, são usuários que sabem ajustar seu texto/fala à situ-
ação comunicativa.

Portanto, língua culta é aquela em que se enquadram os usos


linguísticos da parcela letrada da sociedade, inserida nas práticas
associadas a diferentes atividades sociais, científicas, religiosas,
profissionais; enfim, manifestações culturais que requerem nível
alto de escolaridade.

E as outras formas de uso?


Até aqui, você conheceu duas varie-
dades da língua portuguesa: aque-
A ideia de que há
la que é ensinada nas escolas por pessoas que “falam
meio da gramática normativa, cujo e escrevem de
foco é a escrita – a língua padrão;
forma errada” está
outra que circula entre as camadas
mais escolarizadas e letradas da
muito disseminada
sociedade, detentoras de prestígio em nosso país.
social – a língua culta.
Como vimos também, há usos externos à língua padrão que
também são igualmente válidos, em termos comunicativos e ex-
pressivos, mas que são condenados pela gramática. Em relação a
isso, várias causas são alegadas para justificar a ocorrência de va-
riedades não padrão: falta de cuidado com a língua, má qualidade
do ensino, déficit cultural, perda da identidade nacional, falta do
hábito de leitura etc.

48 • capítulo 2
RESUMO CURIOSIDADE
Se uma perspectiva prescritivista é adotada, bem ao gosto dos famosos “consul- Falante idealizado:
tórios gramaticais” a que temos assistido na TV e em outros meios de comunica- Sirio Possenti aponta divergências no
ção, todos os empregos linguísticos, em desacordo com a norma padrão, passam tipo de tratamento gramatical para
a ser combatidos, como se fossem um mal à sociedade. erros sociais, como se fossem erros
estruturais. Segundo o autor, a varia-
ção de [l] com [r], como em “flamengo/
Um fato curioso é que, dentro da própria língua padrão, também framengo”, estruturalmente se situa
há variação, ou melhor, posturas divergentes. Assim, os gramáticos as- em um processo histórico que derivou,
sumem posições distintas quanto ao uso do infinitivo flexionado, da entre outras, palavras como “praia”
colocação pronominal (próclise, mesóclise e ênclise), dos conceitos de e “prata” (se compararmos ao espa-
sujeito, da lista de orações adverbiais, da classificação de advérbios, nhol, por exemplo, teremos “playa”
e “plata”). Mesmo explicáveis, tais
entre tantos outros pontos.
pronúncias são socialmente estigma-
Na prática, não existe o falante idealizado pelas gramáticas e pe-
tizadas. Para Possenti, “dizer que é um
los puristas, já que ninguém segue 100% as prescrições normativas erro (em língua) equivale a dizer que
em todos os momentos de sua vida. Embora a língua padrão seja a va- uma saia curta é um erro no campo
riedade linguística ensinada nas escolas, especialmente nas aulas de da moda (ou em moralidade!). É uma
português, em que se prioriza o ensino das normas gramaticais e da avaliação social, não linguística (…).
língua escrita, não se deve concebê-la como melhor ou superior às de- Às vezes, alguém diz que o som [fra] é
horrível, mas ninguém o acha horrível
mais variedades.
em [fraco]. No entanto, trata-se do
Além disso, se considerarmos que os usuários do português de- mesmo som, e no mesmo contexto.”
vam falar, ou até mesmo escrever, seguindo somente os modelos da (Coluna Palavreado, Instituto Ciência
gramática normativa, estaremos diante de uma língua artificial, dis- Hoje/uol, janeiro de 2012)
tante da realidade dos diferentes falares presentes em toda a exten-
são do Brasil. E o nosso pais é muito grande, comportando muitas
variedades linguísticas.

Preconceito e poder no uso da língua


De fato, não há nada de errado e O preconceito
feio no uso não padrão. O que ocorre,
linguístico
na verdade, é que esses usos consi-
derados desviantes nada mais são
origina-se das
do que diferentes dos usos linguís- relações sociais
ticos das elites socioculturais. estabelecidas.

RESUMO
Em síntese, o modo diferente de fala das classes menos escolarizadas e, normal-
mente, menos abastadas, passa a ser alvo de preconceito por parte das classes
mais escolarizadas; portanto, mais influentes na sociedade. Assim, o poder da-
queles que gozam de mais prestígio, por conta de fatores políticos, econômicos e
culturais, transfere-se para a variedade linguística que utilizam. Essas variedades
passam a ser consideradas mais corretas, mais dignas.

capítulo 2 • 49
CURIOSIDADE Essa associação, se pensarmos bem, é muito perversa. Afinal, a lín-
gua é um fator de identidade, um meio de acesso aos bens culturais
e o principal modo como nos comunicamos. Se assumirmos que há
pessoas que falam errado, que utilizam uma variante indigna, auto-
maticamente podemos estender à ideia de que essas mesmas pessoas
não têm direito aos bens culturais produzidos pela sociedade como
Variante indigna: um todo. Afinal, se elas “não sa-
Um erro na grafia da placa causou bem sequer falar corretamente”, Na prática, uma
estranheza aos policiais que pararam como vão ter acesso à cultura? variedade linguística
o veículo em questão. Resultado: o
erro mostrava, na verdade, um crime
Assim, a variedade culta é acaba tendo o mesmo
mais valiosa porque é falada por
de estelionato. Mas não podemos es- valor que as pessoas
quecer que há bandidos que também
pessoas também mais prestigia-
dominam a norma padrão… das. As variedades não padrão, que a adotam.
por sua vez, acabam sendo estigmatizadas porque as pessoas que as fa-
lam também o são. O uso da língua, portanto, reflete o poder e a autori-

CURIOSIDADE dade (ou a falta deles) nas relações econômicas, políticas e sociais.
O que fica mais claro ao longo dessas constatações é que, de fato,
Relações econô- o preconceito linguístico encontra espaço até mesmo em veículos que
micas, políticas e gozam de prestígio na sociedade. Muitas vezes, o que é ainda pior, não
sociais: há espaço para opiniões divergentes, o que cria a falsa imagem de um
No livro Triste fim de consenso em torno das questões levantadas. Sem dúvida, o espaço na
Policarpo Quaresma, mídia e a grande aceitação dessas questões pelo público em geral difi-
escrito por Afonso Enriques de Lima cultam o trabalho de esclarecimento sobre questões da língua, fazendo
Barreto (1881-1922), a questão do na-
permanecer o preconceito linguístico.
cionalismo é discutida. A personagem
principal do livro, Policarpo Quares-
A existência do preconceito linguístico é uma das maiores provas do
ma, em um dado momento, propõe à quanto língua e sociedade são imbricadas. Afinal, esse tipo de preconceito
Assembleia Legislativa que a língua está diretamente relacionado ao status dos interlocutores na comunidade
nacional deveria ser o tupi, a verdadeira linguística. Nesse contexto, a escola e a universidade devem integrar esfor-
língua nativa do país. Algo parecido ços para que o preconceito linguístico seja paulatinamente combatido.
ocorreu recentemente, mas na vida
real. O então deputado federal Aldo
Rebelo propôs um projeto que comba- CONCEITO
tesse o estrangeirismo, para “proteção,
promoção, defesa e uso da língua Preconceito linguístico:
portuguesa” (cf. Faraco, 2001). Essa Marcos Bagno é, no Brasil, um dos maiores estudiosos do pre-
proposta, por exemplo, revela o quanto conceito linguístico. Um dos seus livros mais conhecidos é Pre-
as nossas elites estão desinformadas conceito linguístico: o que é, como se faz?, obra que já conta
em termos de língua, uso e variação.
com dezenas de edições. Nele, o autor sintetiza em oito pontos
os principais equívocos veiculados quanto ao português do Brasil. A esses pontos,
o autor chama mitos, os quais você poderá ver mais detalhadamente no artigo.

Enfim, chegamos ao final de nossa reflexão sobre as relações entre


língua e sociedade. Discutimos o papel e status dos interlocutores na co-
munidade linguística, abordamos os conceitos de modalidade e eviden-
cialidade, como também de variação e mudança. Também discutimos a
questão do preconceito linguístico e suas nuances. Bons estudos!

50 • capítulo 2
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAGNO, M. Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009.

______. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2009.

CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Linguística. São Paulo: Scipione, 1991.

FARACO, C. (Org.) Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 2001.

GONÇALVES, S. C. L. Gramaticalização, modalidade epistêmica e evidencialidade: um estudo de caso no português


do Brasil. Campinas (sp), Instituto de Estudos da Linguagem da unicamp, 2003. Tese de Doutorado em Linguística.

LYONS, J. Linguagem e Linguística: uma int rodução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981.

MARTINS, A. Evidencialidade no discurso dos media. In: Estudos Linguísticos/Linguistic Studies. Lisboa: Edições
Colibri/cluni, 2010.

MOLLICA, C. A influência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

OLIVEIRA, M. R. Preconceito linguístico. In: PERES, Deila Conceição; et al. (Org.) 1º seles – Seminário sobre Leitura e
Escrita. Avaliação da redação no vestibular da uff. Niterói: EdUFF, 2006.

SCHERRE, M. M. P. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. São Paulo: Cortez, 2003.

IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 36 Patativa de Assaré p. 45 O escritor Eça de Queirós em 1882 p. 50 Frorianópolis
Autor desconhecido · O Nordeste.com Photographia Contemporanea Paulo Vitor Bastos · Estácio
Domínio Público
p. 37 Mensagem p. 50 Lima Barreto
Tainara Oliveira · Estácio p. 45 Machado de Assis Autor desconhecido · Wikimedia . cc
Autor desconhecido · abl
p. 39 Favela
Eduardo Trindade · Estácio p. 47 Oswald de Andrade
Auto desconhecido · Domínio Público
p. 39 Manuel Bandeira
Autor desconhecido · abl p. 48 Guimarães Rosa
Revista Pájaro de Fuego – nº18 –
p. 44 Disco Forró do Gonzagão
agosto 1979
Divulgação · Sony/BMG

capítulo 2 • 51
Linguagem,
3 unidade e
diversidade

ana beatriz arena e


mariangela rios
3 PERSONALIDADE
Linguagem, unidade
e diversidade
No capítulo anterior, ao final, abordamos o assunto preconceito lin-
guístico. Iniciamos este capítulo refletindo sobre um dos questiona-
Lula: mentos linguísticos mais famosos de que se tem notícia no Brasil: o
Luiz Inácio Lula ex-Presidente Lula sabe ou não “falar” português, estaria ou não em
da Silva (Caetés, condições de exercer a Presidência da República?
pe, 1945) foi o 35º Desde que se destacou no cenário político brasileiro como can-
Presidente brasileiro
didato à Presidência da República, em 1989, Luiz Inácio Lula da
(2003-2011). Além da carreira política,
foi metalúrgico, líder sindical, co-fun-
Silva, ou simplesmente Lula, tem sido submetido a uma série de
dador do Partido dos Trabalhadores críticas por causa do seu português falado. Provavelmente, isso se
(pt) e, atualmente, presidente de hon- deve ao fato de que, ao longo de seus dois mandatos, Lula sem-
ra do partido. É considerado por mui- pre gostou de falar de improviso, “cometendo”, por vezes, desli-
tos o político mais popular da história zes gramaticais, especialmente de concordância, e algumas ou-
brasileira. Ainda, foi condecorado com
tras "impropriedades", se considerarmos a língua padrão. Seria
vários títulos de doutor honoris causa,
isso o bastante para acusá-lo de
dentre eles o da Fundação Scien-
ces-Po (França, 2011). Foi o primeiro não saber português, ou estaria o Naturalmente, em
latino-americano a receber tal título. ex-Presidente sendo alvo de pre- face da importância
conceito linguístico, conforme já
abordamos no capítulo anterior?
de seu cargo, ele
As críticas vinham de todos os teve seus discursos
lados: dos gramáticos puristas, constantemente
dos professores, especialmente monitorados.
os de Língua Portuguesa, de jor-
nalistas e também de cidadãos muitas vezes tão ou menos escola-
rizados do que Lula. Era possível encontrarmos na mídia ironias
do tipo: “Lula na coletiva só não convenceu no português”, ou
ainda “O nosso Exmo. Presidente, com todo respeito, NÃO sabe
falar português”. Os defensores do “português bom é português
correto” não se orgulhavam de ter um Presidente, segundo eles,
que não sabia falar a própria língua.

RESUMO
Afinal, que português é esse que o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala?
Para refletirmos sobre tal assunto e chegarmos a uma resposta consistente e
objetiva, neste capítulo, vamos tratar dessas questões, abordando a variedade
mais estigmatizada, popular: a língua vernacular. Abordaremos, também, as di-
ferenças e as correspondências entre fala e escrita, considerando os recursos
linguísticos específicos a cada uma dessas modalidades.

54 • capítulo 3
Língua vernacular CURIOSIDADE
Se você consultar o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portugue- Vernáculo:
sa, encontrará a seguinte abonação para vernáculo: “a língua própria A palavra vernáculo deriva da forma
de um país ou de uma região; língua nacional, idioma vernáculo”. latina verna, cujo significado é
Nos estudos linguísticos, vernáculo é todo uso linguístico conside- “escravo nascido na casa do senhor,
em cativeiro; nativo”. Veja só que
rado popular, incluindo gírias, regionalismos, e também aquilo que a
interessante! Podemos até fazer uma
tradição gramatical considera “erro”, como a falta de concordância, por analogia com a relação existente
exemplo, ou ainda o emprego de palavras socialmente desprestigiadas. entre o português brasileiro – que
Variações no léxico (vocabulário), na prosódia (forma de pronun- nasceu “escravo” – e o português
ciar) e na sintaxe (concordância, emprego dos pronomes oblíquos áto- lusitano – idioma da casa do “senhor”,
nos, por exemplo), são comumente alvos de análise não só por parte de o colonizador.

estudiosos da língua como também pela sociedade em geral.

EXEMPLO
EXEMPLOS DE VARIAÇÕES DESPRESTIGIADAS (não padrão)
Variação no léxico “arribar”, em lugar de “melhorar de saúde”

Variação na prosódia “tauba”, em lugar de “tábua”

Variação na sintaxe “nós vai”, em lugar de “nós vamos”

Normalmente, essas variações são mais frequentes entre as camadas mais pobres, menos
escolarizadas, não urbanas, e os falantes costumam sofrer forte preconceito linguístico.

As próprias gírias, tão expressivas e recheadas de criatividade,


também não são merecedoras dos aplausos de muitos brasileiros. Há
quem defenda, inclusive, que elas sejam banidas.
Porém, observe que interessante: muitos jornais, propagadores dos
usos próprios da língua padrão, na modalidade escrita, apresentam
em suas páginas, em letras garrafais, manchetes como as seguintes:

EXEMPLO
Filho de Marquezine Perdeu, Fani se
Constância curte show Albertinho! empolga e
manda o e reclama de Gilda se dá selinho
funcionário do ‘excesso’ de encanta pelo em Aslan na
clube entregar namorados: capoeira piscina
um bilhete para ‘Encalhada?’ Chico
a morena, e
rola um clima
Exemplos retirados da página do jornal online Globo.com.
entre os dois Acesso em 19 de janeiro de 2013.

capítulo 3 • 55
Os exemplos listados reproduzem usos bastante atuais, em que gírias e co-
loquialismos, como “perdeu”, “rola”, “curte” e “dá selinho”, ajudam a transmi-
tir a mensagem com bastante propriedade, sem incorrer em inadequação de uso.
A proposta do jornal – de enfocar assun-
tos voltados à programação televisiva e es-
Trata-se de uma linguagem
portiva – pode justificar o emprego des- adequada ao perfil do jornal
sas variantes linguísticas. e à situação comunicativa
Como se pode ver, até mesmo a im-
de menor formalidade.
prensa escrita usa termos tratados, nor-
malmente, com discriminação. Então, por que não são comuns críticas direcionadas
aos jornalistas que escrevem tais matérias? Por que somente a fala dos jovens, dos la-
vradores ou das domésticas, por exemplo, são consideradas “erradas”?
Linguistas têm outra compreensão desses fenômenos. Vejamos o que dois deles afir-
mam em relação ao uso popular e ao ensino de língua:

Sobre a norma popular Sobre o ensino de língua materna

Para Dante Lucchesi (2006, p. 88), a norma Para Roberto Camacho (2013): “A tradição da
popular “emerge do uso da grande maioria da instituição escolar consiste em não apenas ignorar
população do país, desprovida de educação formal a legitimidade da variação linguística, mas também
e dos demais direitos da cidadania, com os submeter as variedades linguísticas ao critério de
previsíveis reflexos na língua da pluralidade étnica correção, como uma peneira fina. O que passa é
que está na base da sociedade brasileira”. um conjunto de expressões vinculadas ao registro
formal da modalidade escrita, e o que sobra é
estigmatizado como realizações incorretas e
deficientes em confronto com a matriz de valores
eleita como a variedade-padrão”.

Voltando ao preconceito linguístico, é importante lembrar que ele veicula uma ideia
desfocada – esta, sim, um erro com tudo de negativo que a palavra pode significar – so-
bre as variedades linguísticas do Brasil. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, em todas as
regiões, temos falares diversos.
Concluindo esta primeira seção, po-
São falares regulares,
demos considerar respondidas aque- sistemáticos, acatados
las perguntas iniciais, suscitadas pela por toda a comunidade
menção ao português do ex-Presidente
linguística a que o
Luiz Inácio Lula da Silva. É muito prová-
vel que as críticas feitas à sua expressão
usuário pertença.
verbal estejam diretamente relacionadas à origem humilde de Lula, já que o próprio
ex-Presidente nunca escondeu sua difícil história de vida, nem, em consequência,
sua baixa escolaridade. É importante deixar claro, também, que normalmente temos
contato, por meio da televisão, com a fala de Lula, e a modalidade falada de qualquer
usuário de qualquer língua é menos formal do que a escrita. É sobre este assunto que
vamos tratar a partir de agora.

56 • capítulo 3
Propriedades do texto falado
Na análise das marcas constitutivas do texto falado, vamos partir da transcrição do
relato de opinião de uma aluna universitária do Rio de Janeiro, a Valéria. Ela deu seu
depoimento ao Grupo de Estudos Discurso & Gramática, no final da década de 1990,
tratando da situação política do Brasil, em uma escolha temática a partir das suges-
tões apresentadas pelo entrevistador.
Como se trata de texto falado, o fragmento é transcrito de acordo com critérios específi-
cos e consensuais na área dos estudos linguísticos, assim definidos:

E: e::... agora eu queria que você me dis-


SÍMBOLO SIGNIFICADO sesse a sua opinião... ou sobre a situa-
... qualquer pausa ção... política... ou econômica... ou da
educação... no Brasil...
/ ruptura, truncamento
I: das três?
eh hesitação E: não... de uma... uma das três...
I: eh... só se/ política... eu estou achan-
? interrogação
do que agora está tendo uma abertura
:: alongamento maior... né? a gente está... está vendo

( ) trecho inaudível o que está acontecendo com o país...


está/ tudo o que está acontecendo a
(palavra) suposição de audição
gente está vendo... não é o que era anti-
[palavra] sobreposição de fala gamente... onde... a gente não... sabia de
nada... ficava tudo escondido... achava
((risos)) comentários do transcritor
que/ não tinha informação... né? a ver-
E entrevistador dade é isso... a imprensa tem/ eu estou
achando que (está num) papel funda-
I informante (a entrevistada)
mental... na divulgação das coisas... né?
que... pô... fulano roubou... a gente está sabendo... eh:: não sei quem foi preso... a gente está
sabendo... está tudo às claras... eu acho que o pessoal também está... com medo disso... aí
eu acho que estão andando mais na linha... não é que antigamente não roubava... lógico que
roubava... mas hoje em dia a gente está vendo que... quem rouba mesmo... e::... quando rouba a
gente sabe... e antigamente não acontecia isso... não podia se falar::... não podia/ tudo... tudo
proibi::do... não podia ter uma opinião de na::da... ficava todo mundo mais alienado... hoje em
dia eu acho que está melhorando... um dia a gente chega lá... eu tenho esperança ((risos))
E: você... é a primeira otimista [que eu entrevisto] ((risos))
I: [eu tenho... ] eu tenho esperança... sei lá... pode ser uma ilusão mas::... uma utopia mas::... que
se eu não acreditar... fica um pouco sem sentido... né? vamos tentar lutar para melhorar isso aí...
E: então tá... obrigada Valéria...
I: só isso?

Disponível em: http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/

capítulo 3 • 57
Propriedades do texto falado: a fragmentação
Um rápido olhar na transcrição do relato falado de Valéria já nos aponta traços constituti-
vos próprios dessa modalidade. Uma de tais propriedades diz respeito à relativa fragmen-
tação do texto falado. Dizemos “relativa” por comparação ao formato dos textos escritos em
geral, com os quais nossos olhos já estão muito acostumados, pelos anos de escolarização
envolvendo escrita e leitura que acumulamos até hoje.

Observamos na transcrição, por exemplo, uma profusão de frases curtas margeadas por pausa (no caso,
cada sinal de reticência representa uma parada ou quebra no fluxo da informação). São sequências como
por exemplo: tudo o que está acontecendo a gente está vendo... não é o que era antigamente... onde... a
gente não... sabia de nada... ficava tudo escondido..., em que registramos seis dessas frases curtas.

COMENTÁRIO
Esse é um traço muito típico de textos falados – via de regra, emitimos pequenos “jatos” de in-
formação, e o conjunto desses fragmentos, proferidos em sequência, é que acaba por compor a
totalidade da informação veiculada, tal como no fragmento aqui ilustrado.

Além de frases curtas, outra marca contextual da fala que concorre para a proprieda-
de de fragmentação é a presença explícita da hesitação. Como se trata de modalidade
falada, o tempo de planejamento de que dispomos para a elaboração de textos, compa-
rado ao tempo para a produção da modalidade escrita, é bem menor. Alguns especialis-
tas chegam a considerar que, na fala, o planejamento é quase online, no sentido de que
temos pouquíssimo tempo, por vezes menos de um segundo, para pensarmos, selecio-
narmos o conteúdo e nos expressarmos oralmente. Vamos voltar ao texto de Valéria:

Ao ser apresentada pelo entrevistador às opções de tema para dar sua opinião (agora eu queria
que você me dissesse a sua opinião... ou sobre a situação... política... ou econômica... ou da edu-
cação... no Brasil...), a universitária inicia seu relato com alguma hesitação – eh... só se/ política...,
parecendo não ter muita certeza, nesse momento inicial, se de fato queria escolher a política
para opinar. Valéria está diante do entrevistador e é chamada a elaborar seu depoimento: a hesi-
tação é considerada, em ambientes de fala, como traço constitutivo dessa prática discursiva. Não
se trata de erro ou defeito; é simplesmente a manifestação da relativa insegurança e do pouco
tempo de planejamento de que todos nós dispomos ao nos expressarmos oralmente.

Concorrem também para a hesitação alguns alongamentos silábicos verificados no texto


(marcados na transcrição por quatro pontos), como em não podia se falar:: e tudo proibi::do... Tais
alongamentos são considerados marcas de hesitação, na medida em que têm certo efeito suspen-
sivo no fluxo comunicacional, mantendo o que se declara por mais tempo do que o devido.

RESUMO
A hesitação pode ser usada como estratégia, entre outras motivações, para que o locutor ganhe algum
tempo, enquanto (re)formula seu texto. No caso de Valéria, o tema da falta de liberdade de expressão
e da censura pode a ter levado a produzir os alongamentos aqui ilustrados.

58 • capítulo 3
Uma terceira característica da fala que concorre para a impressão CURIOSIDADE
geral de fragmentação é o que chamamos de ruptura ou truncamento
(marcado na transcrição pela barra inclinada /). Trata-se de uma estra- Marcas de fragmentação:
tégia que, tal como a hesitação, tem muito a ver com o pouco tempo Pense nas situações de fala a que você
de planejamento do texto falado. É comum, nesse sentido, mudarmos é exposto no dia a dia, no certo grau de
nossa rota de expres- tensão, de insegurança e de hesitação

são, trocarmos de as- Ao falar, estamos de certa


que esses contextos motivam. Veja
como é “natural” a fragmentação de
sunto em meio ao que forma mais “autorizados” nossas produções faladas e como tal
já havíamos iniciado. a fazermos correções de propriedade é inerente a esse tipo de
As correções de prática discursiva. Observe o número
rumo, que são explicitadas
rumo dependem de de frases curtas, hesitações, alonga-
muitos fatores, desde
no próprio texto. mentos e rupturas que caracterizam
nossas produções faladas.
a mudança de nosso planejamento e das escolhas pessoais, até altera-
ções das condições de recepção do interlocutor, entre muitas outras.

No texto de Valéria, por exemplo, sequências como ficava tudo escondido...


achava que/ não tinha informação... né? ou ainda e antigamente não acontecia
isso... não podia se falar::... não podia/ tudo... tudo proibi::do... ilustram ruptu-
ras. Na primeira sequência, a aluna interrompe a declaração achava que para
iniciar outra (não tinha informação); na segunda sequência, Valéria suspende
repentinamente a frase não podia para substituí-la por tudo... tudo proibi::do.

Examinadas as marcas de fragmentação do texto de Valéria, que tal


tomar agora seus textos falados como ponto de referência e de reflexão?

Propriedades do texto falado: a situacionalidade


Uma segunda propriedade geral dos textos falados é sua situacio-
nalidade. Enquanto as produções escritas podem ser lidas, teorica-
mente, em qualquer tempo e lugar, permitindo inclusive releituras
várias, textos falados são altamente contextualizados e dependentes
da situação em que foram elaborados. Daí serem considerados mais
apoiados no contexto comunicativo em que são elaborados.

O trecho inicial do depoimento de Valéria já exemplifica essa vinculação


com a situação contextual: eu estou achando que agora está tendo uma
abertura maior... né? a gente está... está vendo o que está acontecendo
com o país... está/ tudo o que está acontecendo a gente está vendo...

COMENTÁRIO
A referência temporal agora diz respeito à época em que a aluna elaborou o
texto – o final dos anos 1990, momento em que o Brasil entrava mais efeti-
vamente no regime democrático (relativo ao termo abertura maior), inclusive
com o plebiscito sobre o regime de governo (parlamentarista, presidencialista

capítulo 3 • 59
CONCEITO ou monárquico). A menção ao que está acontecendo com o país relaciona-se
novamente ao momento de transição rumo à redemocratização no Brasil, que
Marcadores discursivos: é retomado a seguir com a inversão dos termos (tudo o que está acontecendo
Marcadores discursivos são itens, a gente está vendo...). Essas referências ao momento presente contrastam
em geral tomados de empréstimo com a declaração não é o que era antigamente, em alusão ao período anterior
de outras classes gramaticais do aos anos 1990 no Brasil.
português, que são articulados com
o intuito de provocar a adesão e a
anuência do interlocutor ao que está
Outra estratégia muito ancorada na situação contextual é a utili-
sendo dito. Estamos nos referindo a zação de pronomes. No caso de textos falados, esses pronomes, mui-
termos como né?, pô e sei lá, ilustra- tas vezes, não são aqueles listados nos compêndios gramaticais do
dos no texto de Valéria. português; trata-se de usos meio “marginais”, que surgem e se con-
sagram na fala, conferindo a este tipo de produção um traço de maior
informalidade se comparado aos textos escritos.

Valéria utiliza muito a gente (tudo o que está acontecendo a gente está
vendo; a gente está sabendo), para se referir não só a ela como ao povo
brasileiro em geral. A aluna usa ainda termos genéricos, que têm seu senti-
do preenchido no texto (fulano roubou; não sei quem foi preso; o pessoal
também está... com medo disso...; ficava todo mundo mais alienado).

COMENTÁRIO
Esses termos, aparentemente imprecisos e vagos, são usados com toda a
propriedade em produções faladas, uma vez que a situação comunicativa
trata de preencher seu sentido.

Ainda falando em situacionalidade, outra marca dos textos falados é


a utilização dos chamados marcadores discursivos. São termos que não
cumprem uma função sintática específica, uma vez que não participam
da organização interna da frase. Ao
contrário, formam uma classe cujo Os marcadores, bem
papel é concorrer para a contextua- como os demais
lização externa do texto, para a bus-
recursos atinentes
ca de interlocução e concordância
dos demais participantes.
à situacionalidade,
Como outros recursos linguísti- conferem tom mais
cos dessas produções, os marcado- informal aos textos
res discursivos não são referidos pe-
falados.
los compêndios gramaticais, já que
tais fontes se voltam de modo precípuo para a descrição das produções
escritas, tendo no chamado “período composto” seu limite de análise.

60 • capítulo 3
Propriedades do texto falado: a reiteração CONCEITO
A terceira propriedade que caracteriza a fala é a reiteração. Se, em Ressonância:
textos escritos, o que declaramos pode ser lido e relido, o que evita Segundo esse postulado, quando
repetições ou paráfrases, na fala; pelo contrário, é mesmo pertinente falamos utilizamos recursos linguísti-
e necessária a reiteração, o reforço do que dizemos. cos que foram usados pelos interlo-
cutores; assim, nossa fala acaba por
“ressoar”, repetindo e reiterando o
RESUMO que foi dito imediatamente por outro.

Tal reforço tem a ver não só com a necessidade de clareza, ênfase e convenci-
mento como também com a preocupação em relação ao interlocutor, com sua
capacidade de memorização de informações em curto prazo.

Seja por um motivo ou pelo outro, o fato é que a repetição nos


textos falados é considerada marca constitutiva dos mesmos. Tal
como outras propriedades mencionadas nesta seção, não se trata de
problema ou falha de organização das produções faladas, mas sim
de traços fundamentais que caracterizam, em menor ou maior grau,
essa modalidade em suas distintas manifestações.
Voltando ao texto de Valéria, podemos observar a constância com
que as declarações são reiteradas, principalmente aquelas cujo senti-
do é fundamental para a expressão da sua opinião acerca da situação
política do Brasil.

Assim, a afirmativa inicial de que agora está tendo uma abertura maior é logo
retomada na paráfrase (a gente) está vendo o que está acontecendo, na
sequência reformulada em tudo o que está acontecendo a gente está vendo.
Ao longo do texto, Valéria vai retomando a tese inicial, o que vem reforçar
sua opinião e garantindo, por tabela, o convencimento de seu interlocutor.

De outra parte, e até para destacar sua opinião, ao longo do texto a


aluna contrasta a situação política atual com o momento anterior. Para-
lelamente às declarações da boa fase do Brasil, em termos políticos, ve-
rifica-se uma série de outras referências contrastivas em relação à época
atual, voltadas para comentários avaliativos de períodos passados.

A reiteração concorre também para instaurar o contraste referido. Desse


modo, a informação não é o que era antigamente encontra-se reiterada em
a gente não... sabia de nada,ficava tudo escondido, não tinha informação e
não podia se falar, entre outras tantas.

Um recurso de caráter reiterativo e também fortemente apoiado na si-


tuação contextual é o que se denomina ressonância, conforme definido
em Du Bois (2010). No texto de Valéria, essa estratégia pode ser verificada
em alguns momentos, quando a aluna interage com o entrevistador.

capítulo 3 • 61
Inicialmente, sua pergunta das três? configura-se como retomada dos três eixos sobre os quais
poderia falar e que foram propostos pelo entrevistador: agora eu queria que você me dissesse a sua
opinião... ou sobre a situação... política... ou econômica... ou da educação... no Brasil... A resposta
do entrevistador, por sua vez, ressoa e retoma também a pergunta da Valéria: não... de uma... das
três... Na sequência final do relato, novamente o entrevistador intervém como a declaração você...
é a primeira otimista [que eu entrevisto]; logo após, inclusive sobrepondo-se à fala do entrevistador
(como marcado pelos colchetes), Valéria reitera essa referência com [eu tenho... ] eu tenho espe-
rança, em uma declaração que posteriormente ainda é retomada em que se eu não acreditar... fica
um pouco sem sentido e, por fim, em vamos tentar lutar para melhorar isso aí.

Ficou claro, até agora, como no texto falado as informações são retomadas, seja de
forma literal, seja como paráfrase; observa-se também como nos apropriamos de per-
guntas e declarações de nossos interlocutores a fim de elaborarmos criativamente nos-
sas produções faladas.

RESUMO
Somos menos originais do que podemos supor; nossa fala tem mais expressão do que propriamente con-
teúdo novo... Enfim, falar é retomar, reelaborar e repetir, sejam as próprias declarações, sejam as de outros.

Propriedades do texto escrito


Tratados alguns dos traços mais característicos da fala, vamos agora nos voltar para a
produção escrita. Para tanto, nos debruçamos sobre o relato de Valéria, redigido pela
própria. Destacamos que o texto é apresentado aqui tal como escrito por ela, sem qual-
quer correção ortográfica ou outros ajustes.

A respeito da situação política do país, acho que as pessoas estão se conscientizando deque
cada um, é, de algum modo, responsável pela “vida” do País. Os meios de comunicação per-
ceberam a arma que tem nas mãos e com a dita democracia ficou mais fácil deles desempe-
nharem a função de informantes, que informam o que as pessoas estão interessadas em ser
informadas e não aquela “incheção de linguiça” que não nego ainda existi, mas que a cada dia
que passa vem sendo mais criticada, acho que as pessoas estão mais acordadas, principal-
mente os jovens, que foram às ruas e tiveram a sensação de tirar um Presidente do governo.
Hoje, a sujeira está mais às claras, todos ficam sabendo. Antes quando tudo era mais censu-
rado, as coisas aconteciam, mas ninguém ficava sabendo.
Tenho esperança de que um dia as coisas entrem nos eixos, que esta tão falada moralização,
definitivamente impere e tenho certeza de que se todos fizessem sua parte seria bem mais fácil,
faço a minha, mas sei que posso fazer mais. Acho que é por aí.

Disponível em: http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/

62 • capítulo 3
A primeira leitura do texto escrito já indica que estamos diante de CURIOSIDADE
outra prática discursiva. Comparadas as três propriedades básicas da
fala (fragmentação, situacionalidade e reiteração), tratadas na subseção
anterior, temos aqui marcas distintivas. Levando-se em conta que se tra-
ta da mesma pessoa, Valéria, discorrendo sobre o mesmo tema, no mes-
mo tipo de texto, de caráter dissertativo, as distinções aqui destacadas
são entendidas como efetivamente ligadas às condições de produção de
modalidade distinta, no caso a escrita.
Uma dessas implicações reside no formato mais compactado da
escrita, em comparação à fragmentação da fala. Na versão escrita,
Valéria utiliza frases mais longas e encadeadas. A disposição do tex- Condições de produção:
to, organizado em torno de períodos compostos por coordenação e Essa constatação evidencia que todos
subordinação, distribuídos em três parágrafos, concorre para que se nós, ao falar e escrever, portamo-nos
instaure essa marca de maior condensação da escrita. linguisticamente de modo diferencia-
do, dadas as características inerentes
a cada tipo de produção. Nesse caso,
Já no primeiro período, destaca-se tal característica: A respeito da situação
não se trata da nossa escolha ou von-
política do país, acho que as pessoas estão se conscientizando de que cada tade, mas simplesmente de outro tipo
um é, de algum modo, responsável pela “vida” do país. Após anunciar o tema de contextualização que nos impõe
sobre o qual discorre (a respeito da situação política do país), a aluna formula comportamento diverso, o que tem
sua opinião valendo-se do encadeamento de três estruturas oracionais, mar- fortes implicações do ponto de vista
linguístico, entre outros.
cadas pelos usos verbais eu acho que, se conscientizando e é responsável.

Essa estratégia, que confere mais complexidade de forma e senti-


do à sua expressão, é retomada ao longo de todo o texto, concorrendo
para que haja maior vinculação tanto em termos estruturais (no nível
formal) quanto em termos semânticos (no nível conceitual).

RESUMO
Se, no texto falado, a unidade é obtida por intermédio da continuidade de frases
curtas, hesitações e rupturas, no texto escrito o caráter unitário se consegue por
meio de outras estratégias, como a maior integração de frases, organizadas em
períodos maiores e distribuídos em parágrafos.

Como a produção escrita é aprendida, mediante recursos que


devem ser bem treinados, uma das tarefas da escola é justamente
capacitar as pessoas a utilizarem com competência as estratégias
de compactação escrita, na elaboração de períodos e parágrafos
eficientes e capazes de satisfazer as exigências do texto. Portanto,
são dois tipos de continuidade distintos.

capítulo 3 • 63
CURIOSIDADE CONTINUIDADE NA FALA CONTINUIDADE NA ESCRITA
Articula-se pela justaposição de Maior integração de sentido e
Reiteração: frases curtas, entremeadas por forma, organizada em torno de
Esse menor recurso aos elementos hesitações e rupturas. frases e períodos mais longos e
reiterativos tem a ver com as condi- parágrafos.
ções da escrita, em que tanto escrito-
res como leitores podem, a qualquer
Em termos de situacionalidade, a segunda propriedade abordada
momento, retomar o texto, ler nova-
mente o que está escrito.
na subseção anterior, também as condições de produção apresentam
distinções. Enquanto, no texto falado, Valéria confere com o entrevis-
tador o tema sobre o qual vai discorrer, no texto escrito, ela já parte
dessa definição anterior (A respeito da situação política do país).
Tal característica aponta o maior tempo de planejamento da escrita, a preparação

RESUMO
que se dá previamente e que evita, na elaboração das produções escritas, que
essas marcas sejam expressas. Se ainda temos referências ao momento em que
se dá a produção escrita, como o uso de hoje e antes, por exemplo, por outro lado,
estas referências são mais esporádicas do que no texto falado.

Em termos de articulação pronominal, os pronomes usados no


texto escrito são mais convencionais, se comparados aos do texto
falado. Na comparação entre as duas produções, temos:

USO DE PRONOMES NA FALA USO DE PRONOMES NA ESCRITA


“a gente” “as pessoas”
“fulano” “todos”
“o pessoal” “as coisas”
“Não sei quem”

RESUMO
Embora não sejam muito formais, as referências pronominais da escrita podem
ser consideradas mais convencionais e próximas do que descreve e prescreve a
tradição gramatical do português.

Com relação ao uso de elementos de conexão, a situação é outra. Se,


na fala, Valéria marca seu texto com elementos como né?, pô e sei lá,
agora, na modalidade escrita, a aluna praticamente não utiliza esse tipo
de estratégia coesiva. O vínculo entre sentido e forma é atingido pela jus-
taposição de períodos, sem recurso a marcadores ou operadores.
No que se refere à propriedade de reiteração, o texto escrito, embo-
ra não se afaste do tema, recorre menos a retomadas e paráfrases do
que seu correspondente falado. A maior compactação de sentido/for-
ma da escrita concorre para que haja menos recorrências e repetições.

64 • capítulo 3
Sintetizando o que vimos até agora: podemos dizer que fala e es- CONCEITO
crita apresentam distinções em termos de:
Centralidade temática:
PRINCIPAIS DISTINÇÕES ENTRE FALA E ESCRITA Significa dizer que falamos e es-
crevemos “sobre” um assunto, um
- Fala é mais fragmentada;
Distribuição das informações - Escrita é mais compactada.
tema geral, ainda que, como no caso
da fala, possamos nos desviar da
- Fala é mais apoiada nos elementos da proposta inicial, com hesitações e
situação comunicativa (contexto imediato); rupturas em relação ao que começa-
- Escrita é baseada na utilização de código mos a declarar.
Contextualização
específico (ortografia, acentuação,
pontuação, paragrafação).

- Fala é mais repetitiva, com retomadas


Recursos de reiteração literais e uso de paráfrases;
- Escrita usa menos o recurso de reiteração.

MULTIMÍDIA
Para fecharmos esta subseção, vamos assistir ao vídeo a se-
guir, em que os professores e linguistas Angela Dionísio e
Luiz Antônio Marcuschi tratam das modalidades falada e es-
crita como “multimodais”. Que característica é essa? Do que
falam esses especialistas? Vamos lá!

Vídeo produzido pelo Centro de Estudos em Educação e Linguagem (ceel) da


Universidade Federal de Pernambuco (ufpe). Publicado no YouTube pelo canal
institucional do ceel em 06/04/2011.

Observadas as propriedades gerais das modalidades falada e es-


crita, é hora de nos atermos ao que ambas as modalidades têm em co-
mum, aos traços que as caracterizam como faces da mesma moeda.

Propriedades comuns da fala e da escrita


Se, a princípio, fala e escrita têm traços próprios, relativos às con-
dições específicas a partir das quais cada modalidade é produzida,
há, por outro lado, propriedades comuns a ambas, que as fazem ser
vistas como manifestações da mesma língua. Nesta seção, vamos nos
dedicar a três dessas marcas constitutivas que textos falados e escri-
tos manifestam. Para ilustrarmos os comentários, vamos nos valer
novamente dos textos falado e escrito de Valéria, apresentados nas
subseções anteriores.
Em termos de sentido, a primeira das propriedades gerais partilha-
das por produções faladas e escritas é a centralidade temática. Nesse
aspecto, qualquer texto produzido, independentemente da modalidade,

capítulo 3 • 65
CONCEITO deve responder a perguntas como: de que trata esse texto? Qual o tema
desenvolvido? O que aborda? Se essas respostas não puderem ser da-
Organização sintática: das, estamos diante de produções com falha ou deficiência, em termos
Em português, a ordem/organiza- de articulação de sentido.
ção mais comum e regular é aquela Assim posto, os relatos de Valéria são entendidos como compe-
sintaticamente referida como svo tentes produções, na medida em que manifestam, efetivamente, a
(sujeito + verbo + objeto), chamada
opinião da aluna acerca da situação política do Brasil. Ao final de
“ordem padrão”. É essa ordem que a
comunidade linguística mais facilmen-
cada relato, é possível ao interlocutor saber a opinião referida.
te produz e recebe as manifestações
linguísticas. RESUMO
Dizemos, assim, que se trata de produções com centralidade temática, com foco
sobre aquilo que efetivamente se quer desenvolver e se desenvolve.

No plano estrutural, uma segunda propriedade geral a marcar tex-


tos falados e escritos é a organização sintática. Mesmo com a maior
fragmentação da fala e a maior compactação da escrita, sempre há,
para as produções verbais do português, a necessidade de ordenação
de constituintes segundo critérios da gramática da nossa língua.

Assim, tanto nas muitas frases curtas do texto falado de Valéria (como
em fulano roubou... a gente está sabendo... eh:: não sei quem foi preso...),
quanto nos períodos maiores e mais complexos de seu texto escrito
(como em as coisas entrem nos eixos... se todos fizessem sua parte seria
bem mais fácil... faço a minha...), a ordenação svo está presente.

Outro ponto comum a produções faladas e escritas é a conexão


textual. Ainda que na fala haja hesitações, rupturas, frases mais cur-
tas e reiterações, é necessária a presença de termos responsáveis pela
garantia da vinculação de sentido e forma. Vejamos:

ELEMENTOS DE CONEXÃO ESTRUTURAL NO TEXTO ANALISADO


Os elementos de conexão são mais informais, considerados
“marginais” na tradição gramatical do português. No relato
NA FALA de Valéria, os elementos de conexão destacados são os
marcadores né?, pô e sei lá.

A conexão textual é articulada por intermédio de elementos


mais formais, como as conjunções. No relato de Valéria, os
elementos de conexão se restringem ao elemento que,
NA ESCRITA iniciando uma série de orações subordinadas (acho que, a
arma que tem, que informam, entre outras) e a outros usos
conectivos, como mas ou de que.

De um modo ou de outro, o que queremos aqui ressaltar é que


cada tipo de produção, consideradas suas condições contextuais es-
pecíficas, faz uso de recursos linguísticos cuja função é garantir uni-
dade de sentido e de forma ao que é expresso.

66 • capítulo 3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALAMBERT, Francisco. A Semana de 22: a aventura modernista no Brasil. Rio de Janeiro: Scipione, 1992.

CAMACHO, Roberto G. Norma culta e variedades linguísticas. Disponível em: http://acervodigital.unesp.br/


bitstream/123456789/40354/1/01d17t03.pdf. Acessado em 25 jan. 2013.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do português contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

DU BOIS, John. Discourse and Grammar. In: TOMASELLO, M (ed). The New Psychologie of Language: cognitive and
functional approaches to language structure. v.2. London: Lawrence Erlbaum, 2003, p. 47-87.

LUCCHESI, Dante. Parâmetros sociolinguísticos do português brasileiro, Revista da ABRALIN, v.V, nº 1 e 2, 2006, p. 83-112.

ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática normativa da língua portuguesa. 28 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1987.

TEYSSIER, Paul (Tradução Celso Cunha). História da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 54 Presidente Lula
Ricardo Stuckert · Planalto

p. 63 Agendando compromisso
Autor desconhecido · Office

capítulo 3 • 67
Gênero,
4 tipologia
e sentido

bethania mariani e lucília


de souza romão
4 EXEMPLO
Gênero, tipologia e sentido

O presente capítulo tem como tema a palavra em seu uso cotidiano, ou


seja, os modos como ela é mobilizada em situações diversas: seja na
Sentido: fala diária, nos relatos jornalísticos, na literatura, nos escritos dispos-
A palavra “fogo” pode, em primeira tos em muros das cidades, na comunicação pessoal na rede digital etc.
vista, indicar ao menos dois sentidos: O fato é que toda palavra produz sentido em um contexto dado e
incêndio ou disparo de arma. Esse específico, e isso faz toda diferença para compreendermos os signifi-
exemplo aponta a necessidade de es-
cados, os sentidos em jogo.
cuta dos dados contextuais em que a
palavra foi proferida, a situação e/ou
a conjuntura em que foi pronunciada; COMENTÁRIO
mais ainda, a posição social de quem
a proferiu. O senso comum nos ensina que o sentido da palavra é sempre e apenas um,
como se a língua estivesse em estado de dicionário, congelada e sem movimento.

AUTOR Para compreender que os sentidos são múltiplos, precisamos perce-


ber os movimentos dos sentidos. Comecemos pelo que Manoel de Barros
Manoel de Barros: nos proporciona no livro Memórias inventadas (2008).
Manoel Wenceslau
Leite de Barros, Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra esco-
nascido em Cuiabá vando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque
(1916), é um poeta
ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que
brasileiro do século
aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar
xx. Pertence cronologicamente à
Geração de 45, mas, formalmente, ao osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas
Modernismo brasileiro. civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de
escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram
conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que esta-
riam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras pos-
suem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remonta-
das. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada
uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a
fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros
fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. (Barros, 2008, p. 21)

Pois bem, partindo dos conceitos iniciais e da leitura de Manoel de


Barros como inspiração, podemos traçar o objetivo de compreender
“alguns clamores antigos”, “muitas oralidades remontadas” e “as sig-
nificâncias” de certas palavras em dadas situações. Para isso, é preciso
“escovar” a palavra, o que para nós significa interpretá-la em seu con-
texto de uso, buscando compreender como o texto e o discurso funcio-
nam, como se inscrevem de modo singular a cada novo enunciado e
como produzem sentido a partir da posição de onde fala o sujeito.

70 • capítulo 4
Três textos servirão de começo para nossos estudos. O primeiro é um poema-música de
Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes, denominada Contato imediato (disco
Qualquer, de Arnaldo Antunes, 2007):

Peço por favor / Se alguém de longe me escutar / Que venha aqui pra me buscar / Me leve para
passear / No seu disco voador / Como um enorme carrossel / Atravessando o azul do céu /
Até pousar no meu quintal / Se o pensamento duvidar/ Todos os meus poros vão dizer / Estou
pronto para embarcar / Sem me preocupar e sem temer / Vem me levar / Para um lugar / Longe
daqui / Livre para navegar / No espaço sideral (...)

O eu poético convoca nosso olhar para perceber a necessidade de encontrar um al-


guém perto para depois viajar “para além do céu”, um alguém de carne e osso com
quem viveria a aventura de uma viagem amorosa, quase ao modo de uma odisseia inter-
planetária. Vamos analisar alguns fragmentos?

Rememoramos as inúmeras narrativas de contatos com


Contato imediato (Título) seres extraterrestres, contatos imediatos de primeiro e
segundo graus, como os filmes que já trataram desse tema.

O poema está endereçado a alguém


“Peço por favor / se alguém de longe me com quem se pretende um contato,
mas não qualquer um (“alguém de
escutar / que venha aqui para me buscar” longe”, que nunca teve contato antes).

“Estou pronto para embarcar / Diz estar preparado para mudar sua vida
radicalmente, sem medo do novo, aberto para
sem me preocupar e sem temer” novas experiências.

COMENTÁRIO
O poema-música aponta um modo de dizer ao outro, lançar um pedido, fazer um contato, não por
um meio tecnológico, mas pela poesia; e o seu contexto nos diz do deslizamento de sentido que a
poesia permite, qual seja, da viagem espacial para a viagem amorosa.

O texto a seguir, disposto no muro de uma capital brasileira, também é endereçado


a um outro.
Não há alongamento na trama do
texto: ele é curto, pois será lido, no
contexto da urbanidade, com a rapi-
dez de um passar de olhos, da janela
de um carro ou ônibus, no flash de
um momento.
O autor conversa com a Alice, que
pode ser uma moradora de São Paulo
e/ou a personagem do conto famoso
de Lewis Carroll. Ou seja, mais de uma
possibilidade de “Alice” estão em fun-
cionamento na poética dessa inscrição.

capítulo 4 • 71
AUTOR Seriam as maravilhas do fantástico, do sonho e dos delírios mais
estranhos que a personagem vive na ficção maravilhosa, ou seriam
Lewis Carroll: as maravilhas de uma Alice que tem lá seu cotidiano cheio de graça?
Charles Lutwidge A abertura de sentidos, ou seja, a possibilidade de surgirem novos
Dodgson (1832-1898) sentidos onde antes só existia um, está aqui fazendo funcionar dados
sempre foi mais de um contexto: o da cidade imensa (talvez sem tantas maravilhas de
conhecido por seu
inventar) e o da obra literária.
pseudônimo, Lewis Carroll. Estudou
Matemática na Universidade de Oxford
e lá se tornou professor. Em suas
obras, há presença de enigmas, jogos O gênero discursivo
matemáticos e desafios de lógica,
ainda que implícitos. Sua obra mais Os dois exemplos que vimos colocam-nos diante de um conceito impor-
famosa é Alice no país das maravilhas,
tante para compreender o funcionamento dos textos: o gênero discursivo.
publicada em 1865.
Refletindo sobre o termo, notamos que é muito amplo, sendo em-
pregado em vários campos do saber. Vejamos alguns exemplos:

CURIOSIDADE NO CINEMA NA LITERATURA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS


Gênero
discursivo:
O genêro discur-
sivo foi teorizado
primeiramente na São criados modos de Os gêneros textuais As ciências sociais
Grécia antiga, por classificar filmes pelo marcam diferentes marcam os estudos de
Platão. Ele propôs gênero, como drama, estruturas, como conto, gênero ligados ao
uma classificação dual, entre gênero suspense, ação. poesia, romance, entre campo da sexualidade,
sério (epopeia e tragédia) e burlesco tantos outros. assinalando as
(comédia e sátira). singularidades do
feminino e do masculino.

AUTOR Neste capítulo, o objeto é o gênero discursivo, e ele tem longa história.
Para começarmos a falar de gênero textual, vamos partir de um
Mikhail Bakhtin: filósofo russo da linguagem, Mikhail Bakhtin (2003), que fundou al-
Mikhail Mikhailovich guns conceitos importantes, como:
Bakhtin (1895-1975)
foi um filósofo e Processo de interação entre textos orais e escritos,
pensador russo, des- Dialogismo posto que eles sempre se remetem e continuam em
tacando-se por seus estudos nas áreas outros textos posteriores.
de crítica literária, filosofia da linguagem
e antropologia, entre outras. Atribui-se Termo emprestado da música que significa as várias
a ele o pioneirismo nas pesquisas sobre Polifonia vozes que percorrem os textos e os discursos.
polifonia e gêneros do discurso.
Manifestação da cultura popular e, a partir da leitura e
análise da obra de François Rabelais, na Idade Média e
Carnavalização no Renascimento, define-se tal termo como um processo
de desestabilização, subversão e ruptura do mundo oficial
e das convenções estabelecidas.

72 • capítulo 4
Bakhtin debruçou-se de modo mais alentado sobre o tema e definiu que CURIOSIDADE
gênero são formas “relativamente estáveis” de um enunciado, determina-
das historicamente, com as quais nos comunicamos, falamos e escrevemos. Formas infindáveis de gêneros:
Não há possibilidade de enunciar e/ou tomar a palavra sem mo- Você já teve um diário ou ao menos
bilizar as formas infindáveis de gêneros com os quais lidamos desde se lembra de um? A maioria já teve
que aprendemos a falar e escrever. diversos desses livros em que se re-
gistram ideias, opiniões, sentimentos,
utilizando uma linguagem mais infor-
REFLEXÃO mal, tendo o uso do vocativo presente
(“querido diário”). Pois então, assim
“A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as pos- como em qualquer gênero discursivo,
sibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera o diário possui características linguís-
de atividade contém um repertório inteiro de gêneros discursivos que se diferen- ticas específicas.

ciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvol-


ve e se torna cada vez mais complexa” (BAKHTIN, 1986, p. 60).

Assim, o autor define gênero como uma forma típica de enunciado,


que sofre mudanças a depender do contexto em que está inserido e que
tem uma plasticidade imensa, posto que está em movimento constante.
Por isso, a cada situação comunica-
“O gênero sempre
tiva, colocamos em movimento uma
grande heterogeneidade de gêneros. é e não é o mesmo,
Para o autor russo, o gênero re- sempre é novo e
nasce e se renova em cada nova eta- velho ao mesmo
pa do desenvolvimento da literatura
tempo” Bakhtin.
e em cada obra individual de um
dado autor. Nisso consiste a sua vida. Para ordenar a complexidade
do conceito que funda, ele divide gêneros em dois grupos:

PRIMÁRIOS SECUNDÁRIOS

Referem-se a situações comunica- São normalmente mediados pela


cionais cotidianas, espontâneas, escrita, indiciam situações
informais que sugerem um contato comunicacionais mais complexas,
mais imediato entre os sujeitos. elaboradas.

EXEMPLOS EXEMPLOS
As conversas de elevador, a carta, o Roteiro de uma peça de teatro, uma
bilhete, chat etc. tese, uma palestra etc.

Temos, segundo o autor, duas esferas de produção de enunciados


que se originam na oralidade e transbordam para além dela, que se
combinam em inúmeras possibilidades de recriar o mundo e que ga-
nham materialidade em gêneros primários e secundários.
O autor propõe ainda que os gêneros secundários são elabora-
ções dos primários, visto que é a partir das discursividades cotidianas

capítulo 4 • 73
que se originam muitos dos relatos, nar- No fundo, o que marca
rativas e enunciados levados a termo pela
a diferenciação entre os
literatura, jornalismo etc.
Essa teorização nos coloca diante de dois gêneros é o nível de
um impasse: como definir o fio que separa complexidade em que os
um gênero de outro? Como classificar, enunciados se apresentam.
sem dúvidas, algum texto? De que modo
teríamos condições de fixar as fronteiras entre gêneros se o próprio Bakhtin observou a
porosidade entre eles? Vamos ver um exemplo:

EXEMPLO

Fonte: ROSA, João Guimarães. Ooó do Vovô. São Paulo: Edusp, 2003.

O texto nos coloca diante de uma indagação classificatória: seria o cartão-postal do


vovô Guimarães Rosa enviado para sua netinha Vera um gênero primário, pois repro-
duz uma situação informal, cotidiana e docemente apresenta um tom infantil na de-
monstração de carinho?

COMENTÁRIO
Esse ponto de brincar com a língua da netinha, de desenhar, o jeito de estar com ela a despeito da
distância, de adaptar a escrita esbarrando na oralidade, como vimos, traça um modo de funcionamento
mais próximo da informalidade, um registro espontâneo e sem preocupação com a complexidade –
embora isso seja extremamente trabalhoso, diga-se de passagem.

No cartão há sonoridades, palavras, nomes de pessoas, referências familiares e lem-


branças apenas compartilhadas entre avô e netinha, que engendram um dado contexto
familiar, uma situação e uma estratégia de dizer.

74 • capítulo 4
Porém, as mesmas características estão em passagens de romances AUTOR
e contos de Rosa, como marcas de informalidade e do dizer espontâ-
neo para caracterizar personagens, por exemplo. Eni Orlandi:
Pesquisadora,
RESUMO professora universi-
tária e introdutora,
no final dos anos
No entender de Bakhtin, no romance, tais marcas de espontaneidade ganham
1970, da Análise do
corpo de gênero secundário, posto que o estatuto de complexidade do discurso
Discurso no Brasil. Eni Orlandi é au-
é maior e está mediado pela escrita. De certo modo, elas derivam de situações tora de diversas obras relacionadas à
menos formais em que a língua foi posta à prova na cotidianidade e desdobrada teoria do discurso. Em 1993, venceu o
em situações menos compromissadas com o rigor de uma formalização. prêmio Jabuti em Ciências Humanas,
com o livro As Formas do silêncio.

O importante nesse caso não é apenas identificar o gênero dis-


cursivo, mas o seu modo de funcionamento, as marcas que ele traz,
inscreve e atualiza em um dado contexto comunicacional. CONCEITO
Por conta disso, julgamos que, além do conceito de gênero visto
anteriormente, podemos enriquecer nosso olhar com a reflexão de Condições de produção:
Eni Orlandi, especialmente em relação ao conceito tipologia discursiva. As condições de produção são enten-
didas aqui como o contexto linguís-
tico e o contexto da situação, o que

Do gênero para o funcionamento do discurso envolve o sócio-histórico e a memória.


As condições de produção constituem
toda e qualquer tomada de palavra.
Orlandi (1996), tomando como ponto de vista a análise do discurso,
propõe observar o funcionamento dos discursos a partir dos lugares
ocupados pelos sujeitos ao enunciar, ou seja, a partir do modo como CURIOSIDADE
o sujeito se posiciona diante do objeto de que fala, do outro a quem
fala e de si mesmo como interlocutor possível a este outro.
Além do lugar ocupado pelo sujeito, Orlandi também aponta as
condições de produção como objeto de análise, bem como a dinâmi-
ca da interlocução que se dá no discurso.

ATENÇÃO
Esquerda:
Preocupada em discutir a interação entre sujeitos, a autora aposta que “todo fa- Na política, o termo "esquerda" deriva
lante, quando diz algo a alguém, estabelece uma configuração para seu discurso”. da Revolução Francesa. Durante uma
(ORLANDI, 1996, p. 153) votação na Assembleia Nacional
Constituinte, em 28 de agosto de 1789,
deputados que se opunham à proposta
Como exemplo podemos citar, a título apenas de passagem, que de “veto do rei” sentaram-se à esquer-
dizer "esquerda", em diferentes momentos da vida política nacional, da do assento do presidente, o que
teve implicações muito diferentes. Ou seja, essa palavra (e qualquer tornou-se um costume na demarcação
outra) colocada em um discurso reclama que olhemos as condições entre o apoio à República e o apoio
de produção em que foi proferida, o modo como as relações de poder à Monarquia. Na imagem você vê um
dos símbolos artísticos da Revolução
estão estabelecidas na trama social, o lugar que o sujeito ocupa e de
Francesa, o quadro A liberdade guiando
onde fala historicamente.
o povo (1830), de Eugène Delacroix
Tal pressuposto faz cair por terra a máxima da neutralidade absolu- (1798-1863).
ta, isto é, de que haveria uma relação direta, isenta de posicionamento

capítulo 4 • 75
e correspondente entre palavra-mundo, que o sujeito A palavra é sempre um
deveria preservar em sua fala para ser fiel à realidade.
ato político no sentido
Por exemplo, ao dizer “terra”, não tomamos
essa palavra como neutra e dicionarizada, isenta do
mais amplo do termo.
político; dizer “terra” implica tomar o sujeito que a diz e de onde ele se situa para fazê-lo.

EXEMPLO

Temos um efeito de sentido Para um retirante, o efeito de No caso de um astrônomo,


quando “terra” é falada por sentido da palavra “terra” “terra” pode ser vista como
um índio lutando pela pode ser outro, como um corpo planetário, um
preservação de sua aldeia. “esperança”, por exemplo. conceito de pesquisa.

RESUMO
Não é de acreditar que uma palavra será dita e significada do mesmo modo por todos igualmente, visto
que os sentidos, na trama social, são distribuídos de modo heterogêneo, desigual e contraditório. Por
isso, dizer “terra” tem como implicação assumir-se em uma posição e produzir sentidos a partir dela.

Em cada discurso há uma “dinâmica da interlocução”.

A dinâmica da interlocução, por sua vez, é o modo como a troca de papéis entre lo-
cutor e ouvinte se materializa no discurso.

ATENÇÃO
No momento de dizer, os sujeitos atribuem uma imagem do lugar social que ocupam, ou seja, fazem uma
representação para si mesmos desse lugar. Também fazem uma imagem, uma representação do lugar
ocupado pelo interlocutor. E, finalmente, também atribuem sentidos ao objeto que está em discurso.

Por ora, interessa compreender que essas imagens, ou representações, estão me-
diando os movimentos de interlocução e isso produzirá maior ou menor abertura à
polissemia, à troca de turnos, à poética e ao deslizamento de sentido.

76 • capítulo 4
Tipologia discursiva CONCEITO
Entendemos, assim, que o estudo da tipologia discursiva sinaliza a Paráfrase e polissemia:
possibilidade de analisarmos o movimento tenso entre a paráfrase Paráfrase é, em resumo, dizer o mesmo
– repetição e manutenção dos sentidos legitimados – e a polissemia – com outras palavras, conservando as
possibilidade do novo e emergência do sentido outro. ideias trazidas no enunciado original.
Eventualmente, na paráfrase acrescen-
Eni Orlandi define, então, uma tipologia discursiva com três mo-
tam-se comentários ou informações
dos de funcionamento: novas, mas sempre com o intuito de
ratificar o texto original. A polissemia,
• Discurso lúdico;
por sua vez, é o fenômeno natural em
• Discurso polêmico; que qualquer palavra adquire sentidos
• Discurso autoritário. múltiplos, múltiplas interpretações, de
acordo com as condições de produção
e as posições de sujeito assumidas,
COMENTÁRIO entre outros.

Em cada um deles há “uma atividade estruturante de um discurso determinado, para


um interlocutor determinado, por um falante determinado, com finalidade específica”.
(ORLANDI, idem, p. 153)

Discurso lúdico

No discurso lúdico, a reversibilidade é total, a polissemia é aberta e o


objeto do discurso está em jogo sem que nenhum dos interlocutores
queira tê-lo apenas para si. Estamos no campo da poética, em que
os sentidos correm soltos com possibilidade de tornarem-se outros.
Vamos a dois exemplos, nos quais está presente o funcionamento
do discurso lúdico, isto é, de um brincar com os sentidos.

EXEMPLO
Assum preto

Tudo em vorta é só beleza / Sol de abril e a mata em frô / Mas Assum Preto,
cego dos óio / Em um vendo a luz, ai, canta de dor (bis) / Tarvez por ignorança /
Ou mardade das pió / Furaro os óio do Assum Preto / Pra ele assim, ai, / cantá
de mió (bis) / Assum Preto véve sorto / Mas em um pode avuá / Mil vez a sina
de uma gaiola / Desde que o céu, ai, pudesse oiá (bis) / Assum Preto, o meu
cantar / É tão triste como o teu / Também roubaro o meu amor / Que era a luz,
ai, dos óio meus / Também roubaro o meu amor / Que era a luz, ai, dos óios meu
Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (1950)

A analogia entre o sentimento do poeta e o pássaro que teve seus olhos


furados está posta aqui de modo a promover um deslizamento poético,
do canto do pássaro para o cantar do trovador, um representando o outro.

capítulo 4 • 77
AUTOR No poema, o eu poético e o pássaro não conseguem ver que “em
vorta é só beleza”. Nesse discurso, não há interesse em ser dono de
uma verdade sobre o pássaro ou sobre os efeitos de vida, prisão e li-
berdade. Busca-se trazer um sentimento, a partir de uma analogia,
que permite a qualquer interlocutor interpretar, aplicar em sua reali-
dade, ser atravessado por aqueles sentidos.

COMENTÁRIO
José Miguel Wisnik:
José Miguel Soares Wisnik (1948) A cantoria brinca com a cegueira dos “óio” que veem sem enxergar o amor, e
é professor de Literatura Brasileira isso coloca em jogo uma polissemia aberta, produzindo novas significações em
na Universidade de São Paulo, além virtude do efeito paradoxal ali estabelecido (“ver” e “não ver” ao mesmo tempo).
de músico e compositor de discos e
trilhas sonoras. Publica regularmente
textos sobre música e literatura.
Continuando nessa concepção, veremos na música a seguir que
um diálogo se estabelece pelo nome do pássaro e pela forma como o
sujeito se coloca diante dos sentidos de amor e liberdade.

EXEMPLO
Assum Branco

Quando ouvi o teu cantar / Me lembrei nem sei do quê / Me senti tão só / Tão
feliz tão só / Só e junto de você / Pois o só do meu sofrer / Bateu asas e voou /
Para um lugar / Onde o teu cantar / Foi levando e me levou / E onde a graça de
viver / Como a chuva no sertão / Fez que onde for / Lá se encontre a flor / Que
só há no coração / Que só há no bem-querer / E na negra escuridão / Assum
preto foi / Asa branca dói / Muito além da solidão
José Miguel Wisnik (álbum Pérolas aos poucos, 2010)

O poeta aqui brinca com o título de duas canções de Luiz Gonzaga


(Assum preto e Asa branca), promovendo uma retomada para dizer de
outro pássaro, agora branco, de outro sentimento, já que o “só” do
sofrer do poeta bateu asas e voou.
Algo do “bem-querer” se configura como saída para o poeta, que
escolhe uma cor de paz e tranquilidade para nomear o pássaro, o co-
ração de “bem-querer”. Aqui é possível estar feliz e só, só e junto com
o amor, ou seja, os efeitos de presença/ausência deslocam o que an-
tes estava posto em torno dos sentidos de visão e dos “óios” na prisão.

REFLEXÃO
O primeiro texto, de Luiz Gonzaga, possui polissemia tão marcadamente aberta que
permite, inclusive, outros efeitos de sentido para outros poetas, como visto no texto
de José Miguel Wisnik. Esses dois textos, que consideramos de tipo lúdico, abrem
caminho para que sentidos fluam e a dinâmica de interlocução se materialize.

78 • capítulo 4
Discurso polêmico

No discurso polêmico, a reversibilidade e a polissemia são controladas. O objeto do


discurso está presente em disputa e os interlocutores tentam dar a ele uma direção. A
ilustração a seguir nos indica um funcionamento discursivo desse tipo, posto que colo-
ca em cena duas vozes em tensão pelo mesmo objeto.

Inspirado na charge original de Angeli, publicado na coluna do autor no portal uol


(http://www2.uol.com.br/angeli/). Acesso em 21/04/2013.
O anúncio de um político, em campanha eleitoral televisiva, marca a posição de su-
posto desenvolvimento na urbanização da cidade, com a construção de obras grandes
para acesso viário.

COMENTÁRIO
O que tal voz coloca em cena é a cidade como lugar prioritário para a circulação de carros, ou seja,
daqueles que possuem carros e consequentemente outros bens (casa, por exemplo).

A resposta de um dos muitos que estão vivendo nas ruas aponta outra voz e coloca a
cidade em disputa tensa pelos sentidos não de circulação, mas de moradia. Obras como
viadutos e elevados são discursivizados como locais de ocupação e como promessa do
fim dos problemas da casa própria.

ATENÇÃO
As vias públicas da cidade são tomadas pelos interlocutores a partir de diferentes posições e, ao modo de
uma disputa, cada um responde pela posição que ocupa e pela imagem que traça do espaço que habita.

Discurso autoritário

No discurso autoritário, a reversibilidade e a polissemia tendem a zero, o sujeito oculta


o objeto do discurso que não deve ser colocado à prova, restando o sentido de ordem e
a submissão ao comando de um dos interlocutores.

capítulo 4 • 79
“A verdade é imposta”, afirma Orlandi (1996, p. 155), e a paráfrase se estabelece
como única via possível. Repetir o mesmo e copiar o estabelecido sem questionamento
e sem que o interlocutor possa se posicionar.
Outra ilustração aponta para o que estamos explicando. Ele faz falar a assimetria e a
voz de comando que sustentam o discurso autoritário.

Apenas o “patrão” tem direito a sentenciar sobre o “fim da folia”, inscrevendo um


modo de fazer retornar os papéis aos seus lugares já estabelecidos, que não serão mo-
dificados senão no enquanto da festa do carnaval.

ATENÇÃO
Embora a fantasia faça parecerem próximas ou iguais as duas pessoas, o dizer de uma delas silencia qualquer
possibilidade de semelhança, inscrevendo a voz de autoridade na relação patrão e empregado. No tempo
presente, não há caminho aberto para colher a resposta do empregado, pois a reversibilidade é zerada.

Situações de oralidade
A tipologia proposta por Orlandi traz a possibilidade de compreensão, em cada
texto, seja falado ou escrito, dessa tensão inscrita na língua em uso. Vamos seguir
adiante com esse tópico da língua em uso
pensando, agora, exclusivamente em situa- “A palavra é irreversível,
ções de oralidade. tal é a sua fatalidade.”
Para Barthes, não se pode retomar o que Roland Barthes
foi dito, “a não ser que se aumente: corrigir
é, nesse caso, estranhamente, acrescentar. Ao falar, não posso usar a borracha, apa-
gar, anular; tudo o que posso fazer é dizer: ‘anulo, apago, retifico’, ou seja, falar
mais”. (1988, p.90)

80 • capítulo 4
Que tal exemplificarmos? Acompanhemos, a seguir, uma conver-
sa entre uma avó e seus netinhos:
CONCEITO
EXEMPLO Homofonia:
Homofonia são palavras pronuncia-
“Vamos, Julinha, vamos Pedrinho, está na hora de ir para a caminha. Hoje temos das de maneira semelhante, mas que
de dormir com as galinhas. Amanhã vamos bem cedo para a praia”, disse a vovó são escritas de maneiras diferentes e
possuem significações distintas.
para os netinhos de 6 e 4 anos, respectivamente. “Dormir com as galinhas? Que
esquisito!”, exclamou Pedro. “Por que vamos dormir com as galinhas? Eu não
quero!”, estranhou Júlia fazendo uma careta. A vovó riu muito e explicou para os
netos o que a expressão “dormir com as galinhas” queria dizer.

Como podemos perceber, na situação de oralidade, quando o que é dito


fica truncado ou ambíguo, podemos retomar as palavras já ditas e per-
guntar, pedir esclarecimentos.

No diálogo entre a avó e os netos, fica claro que, diante de uma pa-
lavra ou expressão nova, ainda desconhecida, ou ao ouvir metáforas
e provérbios, as crianças não se acanham e logo perguntam sobre o
que parece bizarro, sem sentido.
Lembremos que, como vimos, as situações de discurso muitas ve-
zes são do tipo autoritário, quase impedindo que nos manifestemos,
seja para perguntar, seja para pedir mais exemplos, seja para discor-
dar, seja para propor outras formas de explicação.

Homofonia
Avancemos mais um pouco. Um fenômeno linguístico específico da lin-
guagem oral que muitas vezes causa
interferência na compreensão do que As homofonias,
está sendo dito é a homofonia. assim como
Em todas as línguas há palavras ho-
mófonas. Como exemplo, vejamos o
outras formas de
seguinte diálogo, que resulta da trans- ambiguidade, estão
crição de parte de uma entrevista dada na língua.
pela escritora Clarice Lispector:

“— Você tem paz, Clarice?”


“— Nem pai nem mãe.”
“— Eu disse paz.”
“— Que estranho, pensei que tivesse dito pais. Estava pensando em minha mãe
alguns segundos antes. Pensei – mamãe – e então não ouvi mais nada. Paz?
Quem é que tem?” (biografia de Clarice Lispector, por Benjamin Moser, p. 101)

capítulo 4 • 81
Homofonicamente semelhantes, sobretudo quando faladas no

AUTOR Rio de Janeiro, “paz” e “pais” produziram uma ambiguidade inicial,


um equívoco logo desfeito e justificado por Clarice.
Herbert Paul Grice:
Herbert Paul Grice
(1913-1988) foi um Das tramas orais para a análise da conversação
filósofo britânico
e linguista, tendo
Alguns linguistas, diante da língua em uso, se propuseram a analisar a
prestado enorme contribuição aos
estudos da filosofia da linguagem,
conversação. Há, portanto, um campo de estudos que se interessa jus-
sobretudo às questões de significa- tamente pela compreensão do modo de funcionamento da conversa.
ção e lógica. Por que estudar os processos conversacionais? Como nos lem-
bra o linguista Luiz Antonio Marcuschi (1986, p. 5), a linguagem
humana, e, portanto, o ato de conversar, é uma prática social que
constitui lugar para construção de identidades.
Claro que há diferentes maneiras de a conversação se realizar,
depende do contexto. Por exemplo, uma conversa entre patrão e em-
pregados funciona de modo diferente da conversa entre pais e filhos.
As situações são inúmeras: conversas entre crianças, entre médico e
paciente, entre deficientes auditivos etc. Assim, poderíamos seguir
adiante pensando nas diferentes situações.

REFLEXÃO
Por outro lado, poderíamos nos perguntar se entre árbitro de futebol e jogadores há
prática conversacional. Ou, ainda, em julgamentos, haveria alguma conversa ali entre o
juiz e o réu? De um modo geral, o que importa é compreender o que permite que a con-
versa prossiga ou, por outro lado, o que determina uma interrupção ou mal-entendido.

Haveria princípios que governam uma conversação para que ela


seja eficaz? Seria possível depreender princípios para uma maior efi-
cácia na conversa? Para responder a estas questões, vamos estudar
o que Herbert Paul Grice, um especialista nas áreas de semântica,
pragmática e filosofia da linguagem, propõe sobre a conversação.

Imagine o seguinte diálogo entre dois alunos: “Que horas são?” E o outro
responde: “Hora de ir embora, já vai tocar o sinal.” Nesse diálogo, a respos-
ta é dada a partir da pressuposição de que ambos partilham um mesmo
conhecimento sobre o horário de término da aula. Por isso, um não se pre-
ocupa em responder exatamente a partir da indicação do relógio.

COMENTÁRIO
Tal diálogo nos remete ao traço polissêmico da linguagem, qual seja a
abertura para uma resposta da ordem do inesperado, já que se pode an-
tecipar de uma pergunta como aquela (“Que horas são?”) uma resposta
direta e relacionada à pergunta (“São xx horas“).

82 • capítulo 4
Quando analisamos os processos conversacionais, podemos aprender mais sobre
o funcionamento geral da linguagem, sobretudo em contextos específicos das situa-
ções de interlocução.

RESUMO
Grice quer demonstrar aquilo que é efetivamente dito e o que não é dito na constituição de uma con-
versação, de tal modo que, muitas vezes, uma pergunta ou uma resposta é dada em função de algo
que foi implicado, sugerido, significado.

A partir dessa constatação, Grice afirma que algumas implicaturas são conversa-
cionais, ou seja, estão conectadas a certas características gerais da conversação. Nesse
sentido, quando falamos não emitimos frases desconexas, mas sim esforços cooperati-
vos para gerarmos aceitação do interlocutor sobre o que e como falamos.

REFLEXÃO
“Cada participante reconhece (...) um propósito comum ou um conjunto de propósitos ou, no mí-
nimo, uma direção mutuamente aceita. Este propósito ou direção pode ser fixado desde o início
(...) ou pode evoluir durante o diálogo; pode ser claramente definido ou ser bastante indefinido a
ponto de deixar aos participantes considerável liberdade (como em uma conversação casual) .”
(GRICE, 1982 [1967], p. 86)

Para Grice, como vimos, alguns princípios gerais devem ser observados em uma conver-
sação. Em outras palavras, o autor formula um conjunto de princípios gerais, ou máximas
conversacionais, que podem funcionar como elementos para um uso cooperativo e eficaz
da linguagem, como se fossem uma espécie de guia para uma conversação bem sucedida.

ATENÇÃO
As máximas conversacionais se inserem em um princípio geral: o princípio da cooperação. Sendo
assim, podem ser divididas em quatro categorias:

1. máxima da quantidade (seja tão informativo quanto necessário);


2. máxima da qualidade (seja o mais verdadeiro possível);
3. máxima da relevância (ser pertinente em relação ao objetivo da conversa);
4. máxima do modo (seja ordenado, claro e breve).

Para Grice, se uma conversa é uma troca de informações, então é importante seguir a má-
xima da quantidade, por exemplo. Da mesma forma, é importante que a informação que da-
mos seja verdadeira. Assim, estaremos de acordo com a máxima da qualidade.
A cooperação entre os interlocutores na conversa também precisa ser relevante. Por
fim, se de fato temos a intenção de cooperar em uma situação de conversa, é importante
o modo de dizer.
Para que você compreenda melhor as máximas conversacionais de Grice, analise o
trecho de letra da música Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, lançada no disco Sinal
Fechado (1974), de Chico Buarque.
capítulo 4 • 83
EXEMPLO
– Olá! Como vai? / – Eu vou indo. E você, tudo bem? / – tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu
lugar no futuro... e você? / – Tudo bem! Eu vou indo em busca de um sono tranquilo... Quem sabe?
/ – Quanto tempo! / – Pois é, quanto tempo! / – Me perdoe a pressa – é a alma dos nossos negócios!
/– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem! / – Quando é que voê telefona? Precisamos nos
ver por aí! / – Pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe?

Com muita argúcia e valendo-se de frases curtas, o compositor escreve um diálo-


go, fruto do reencontro entre dois amigos que não se veem faz muito tempo. Uma con-
versa corrida, palavras trocadas no espaço de tempo de um sinal fechado no trânsito
de uma cidade, por exemplo.

REFLEXÃO
Comecemos pensando na máxima da cooperação. Houve cooperação nesse diálogo? Nesse caso, po-
demos afirmar que os dois amigos de fato investiram, no curto espaço de tempo que havia, em buscar
um princípio cooperativo a fim de estabelecerem algum intercâmbio conversacional.

E as máximas da quantidade e da relevância também foram aplicadas? Nesse caso,


vale ponderarmos: como julgar a quantidade de informações necessárias a serem tro-
cada nesse curto espaço de tempo?

COMENTÁRIO
Se avaliarmos as repostas dadas à pergunta “Como vai?”, ambos dizem que estão bem. Porém, acres-
centam que “Eu vou indo... correndo pegar meu lugar no futuro”, e “Eu vou indo em busca de um sono
tranquilo...”. Seriam essas informações necessárias, verdadeiras e relevantes? Teria havido alguma
cooperação conversacional aqui? Essas expressões são claras?

Uma conversa é, como nos diz o referido linguista, repleta de implicaturas e de re-
ticências que vão sendo significadas de várias maneiras. Assim, devemos assinalar o
quanto o estabelecimento de concatenações na modalidade oral da língua depende do
contexto de uso, ou seja, depende da situação de interlocução e das representações que
fazemos de nosso interlocutor.

RESUMO
Embora a contribuição de Grice seja extremamente relevante para os estudos da conversação, não é
possível seguir à risca as exigências das máximas conversacionais.

A compreensão, na modalidade oral, depende também da troca de olhares, dos ges-


tos, bem como da ênfase, da entonação, ou seja, de mecanismos paralinguísticos e su-
pra-segmentais, respectivamente. Nesse sentido, na língua em uso, vamos nos valer de
recursos bem diferentes daqueles empregados na modalidade escrita. E isso define a

84 • capítulo 4
relação dos interlocutores entre si e com os objetos aos quais fazem CONCEITO
referência, relação esta que se aproxima do que estudamos anterior-
mente sobre a tipologia e o gênero discursivos. Blogs:
Blogs são páginas da internet nas
quais são publicados conteúdos de
Linguagem em contextos midiáticos: diversos tipos e finalidades, sejam
textos, imagens, músicas, vídeos etc.
o caso do blog Normalmente apresentam espaço para
comentários dos leitores.

Partimos dos conceitos já apresentados nesse capítulo para anali-


sar o uso da linguagem em contextos midiáticos; mais especifica-
mente, os blogs.
CURIOSIDADE
Os blogs são uma forma de textualização que colocam em frontei- Denise Schittine:
ra os gêneros que estudamos, já que comportam marcas da oralidade Denise Schittine, autora do livro
e de um tratamento considerado menos sofisticado dos enunciados Blog - comunicação e escrita íntima na
(gênero primário), e também materializam certo tratamento mais internet (2004), investiga o fenômeno
dos blogs, principalmente na forma
elaborado pela escrita (caracterizando o gênero secundário).
como eles substituem os velhos diá-
rios de papel.
ATENÇÃO
Tal movimento nos coloca diante do desafio de perceber as novas configurações
dos gêneros e a fragilidade das classificações engessadas quando tratamos de
textos eletrônicos.

Também entendemos o blog como espaço aberto a diferentes ti-


pologias discursivas que podem se dar e funcionar, em geral, permi-
tindo a polissemia e a reversibilidade, posto que a interatividade é
um dos pontos necessários à rede digital.
Denise Schittine, cujo trabalho sobre blog é um dos pioneiros nos
estudos da linguagem, sinaliza que “(...) é importante observar como
antigas questões relativas ao diário no papel ganham uma nova pers-
pectiva quando se trata do diário virtual, embora permaneçam as mes-
mas” (2004, p. 14–15). Vejamos alguns pontos que a autora desenvolve:

Memória imortalidade e permanência

Segredo o contar ou não a intimidade a um desconhecido

Tensão entre o espaço que aumentará com a passagem para a internet


público e privado
Relação com o romance ficção

Relação com o jornalismo observação dos fatos

Analisaremos o último ponto registrado pela autora, isto é, a rela-


ção entre o blog e o jornalismo, cujo discurso inscreve um modo de
ordenar e estabilizar efeitos de verdade sobre o mundo.

capítulo 4 • 85
CURIOSIDADE Blog e jornalismo
Discurso jornalístico: Sabemos que os jornais, em sua ampla maioria, dependem dos
Os manuais de redação e estilo de anunciantes e dos assinantes, ficando, desse modo, subditos aos
jornais são exemplo de certa ordem a jogos de relações de poder vigentes, bem como buscam se adequar
ser mantida, não apenas no modo de a um imaginário de liberdade e de práticas/concepções valorizadas
tratar os acontecimentos, ilusoriamente
pelos leitores/usuários do jornal.
com a certeza de uma narrativa neutra,
mas também no modo de dizer e dese-
nhar os enunciados, pasteurizados por RESUMO
regras e convenções de escrita.
Na produção do discurso jornalístico, tais relações funcionam de modo a não
permitir que certos sentidos se inscrevam, circulem ou produzam outros efeitos.
CURIOSIDADE
No entanto, no jornalismo online, algumas brechas se abrem para
Blogs informativos: a circulação de outros sentidos, para a emergência de outras posi-
Muitos jornalistas, com empregos nas ções e para o aparecimento de dizeres que não podem nem devem
grandes empresas de comunicação, ser postos em circulação nas páginas impressas, especialmente nos
mantêm em funcionamento blogs nos ditos blogs informativos.
quais postam artigos e notícias que não
teriam e não têm espaço fora da rede.
RESUMO
Tais blogs (informativos ou jornalísticos) são marcados por uma medida de tem-
po real, estabilizam dizeres sobre a realidade de modo quase contínuo, são
suscetíveis a deslizamentos quase instantâneos, abrem espaço para o discurso
do tipo polêmico e contam com a palavra do leitor internauta tão logo uma
palavra seja postada.

O jornalista Juca Kfouri, comentarista esportivo vinculado a um


grande jornal de circulação nacional, atualiza, mais de uma vez ao
dia, o seu blog. Uma de suas postagens produz o seguinte enlace:

86 • capítulo 4
1. Juca parte da premissa de que todos viram a renúncia do Papa Bento XVI (2007-2013), que co-
nhecem o assunto, o que dispensa um relato sobre o sabido. O que se tem aqui é uma suposição, uma
torcida, uma anunciação. “Vai que” sinaliza algo que aconteceu e que poderia ser deslocado para as
autoridades do futebol e dos esportes nacionais.

2. Ao citar uma estatística de quase cem por cento e sinalizar o papa como exemplo de uma “escola”,
Kfouri sugere que as referidas autoridades deixem seus cargos, o que é uma provocação que muitos
jornais impressos não sustentam.

Consideramos que o efeito jocoso de duas manchetes colocadas em sequência, sem


comentários ou sem maior desdobramento como notícia ou como artigo, não seria pos-
sível em um jornal impresso; mas, no blog, isso é possível. Os internautas, por sua vez,
replicaram ativamente, ora sustentando os efeitos postos em discurso, ora discordan-
do e abrindo caminho para outros sentidos, ora comentando sobre religião e política...

COMENTÁRIO
Tal polissemia é marca da rede digital e dos blogs, e sinaliza um modo de produzir um funcionamento
discursivo em que a abertura a novos dizeres é latente.

Ao longo deste capítulo, buscamos sinalizar como é fundamental conhecer os con-


ceitos de gênero discursivo, tipologia discursiva, oralidade e análise da conversação, e
tomá-los para o trabalho com diferentes materialidades textuais.
Sabemos que analisar e interpretar textos e discursos reclamam a formação de um lei-
tor conhecedor de dispositivos teóricos e analíticos, exigindo o estudo de vários pesquisa-
dores que se debruçaram sobre a linguagem no anseio e na (in)certeza de compreendê-la.
Se retomarmos o conceito de paráfrase, conforme Orlandi propõe, temos o proces-
so que faz falar a repetição do sentido legitimado como evidente, garantindo a reto-
mada dele sem rupturas ou mudanças. Nesse pêndulo, entre paráfrase e polissemia,
o jogo da linguagem é tecido.

capítulo 4 • 87
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

______. Speech genres & other late essays. Austin: Univ. of Texas, 1986.

BARROS, M. Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

GRICE, Herbert Paul. Lógica e conversação. In: Dascal, Marcelo (org.) Pragmática: problemas, críticas, perspectivas,
bibliografia da linguística. Campinas: Instituo de Estudos da Linguagem da unicamp, 1982.

LEVINSON, Stephen C. Grice’s theory of implicature. In: Pragmatics. Cambrigde: University Press, 1983.

MARCUSHI, L. A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986.

MARIANI, B. O pcb e a imprensa. Campinas: unicamp e Revan, 1998.

ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes, 1996.

SCHITTINE, D. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 70 Memórias inventadas p. 72 No cinema p. 76 Mãos segurando planta
Divulgação · Editora Planeta M.Zacharzewski · stock.xchng · rf Autor desconhecido · Office

p. 71 Alice p. 72 Livro de estudos p. 76 Spying


Paulo Vitor Bastos · Estácio Autor desconhecido · Office Jasmaine Mathews · stock.xchng · rf

p. 72 Lewis Carroll p. 72 Gêneros p. 78 Pérolas aos poucos


Autor desconhecido · Wikimedia · dp Paulo Vitor Bastos · Estácio Divulgação · Maianga Discos

p. 72 Busto de Platão p. 75 As formas do silêncio p. 79 Sem teto


A General History for Colleges Divulgação · Editora Unicamp Victor Maia · Estácio
and High School, Myers, 1894 . p. 75 A Liberdade guiando o povo p. 80 Carnaval
Wikimedia · cc Eugène Delacroix · Wikipedia · dp Eduardo Trindade · Estácio
p. 72 Mikhail Bakhtin p. 76 Índio Terena p. 82 Herbert Paul Grice
Autor desconhecido · Wikimedia · dp Agência Brasil · Wikimedia · cc Autor desconhecido

88 • capítulo 4
Texto:
5 coesão e
coerência

vanise medeiros e
silmara dela silva
5 CURIOSIDADE
Texto: coesão e coerência

Neste capítulo, vamos apresentar algumas noções importantes para


a conceituação de texto.
Texto: Também, iremos apresentar os elementos que contribuem na or-
Se buscarmos a etimologia da palavra ganização textual a fim de proporcionar legibilidade ao que escreve-
"texto" no dicionário Houaiss (2001, mos.Nosso objetivo é fazer com que você compreenda o modo de or-
p. 2713), veremos que, em latim, quer ganização textual para assim poder escrever seus textos acadêmicos
dizer tanto entrelaçar e construir, como
com maior clareza e eficiência.
também quer dizer narrativa, expo-
sição, em que o que foi narrado ou
exposto seguiu determinadas formas CONCEITO
de organização.
Um texto, seja oral ou escrito, seja na forma de uma narrativa, de uma descrição
ou de uma dissertação, é uma construção linguística que precisa seguir determi-
nadas estratégias a fim de garantir sua organização interna.

Segundo os linguistas Halliday e Hasan (1976, p. 1), “um texto é


uma unidade da língua em uso”. Essa definição de texto é bastan-
te ampla e apresenta duas características importantes: a unidade e
o uso. Porém, quais são os elementos linguísticos que organizam a
unidade textual? Como a unidade de um texto está relacionada a seu
uso? Vamos responder a essas questões, inicialmente, com o auxílio
de dois renomados autores da área:

Alcir Pécora, em seu clássico livro Problemas de redação (1983), diz que “um texto não é o produto
de uma justaposição de elementos linguísticos sem referência entre si: não se trata, por exemplo,
de uma soma de orações fechadas ou completas em si mesmas, ocupando um espaço vizinho no
papel ou na enunciação oral. Pelo contrário, quando se reconhece uma determinada manifestação
verbal como sendo constitutiva de um texto, está implícita a ideia de que existem nexos, nós,
ligas (ties) entre seus componentes e que, dessa forma, conferem-lhes uma mútua depen-
dência de significação”. (PÉCORA, 1983, p. 49, grifo nosso)

Ampliando a definição de Pécora, ao incorporar os fatores relativos ao uso, Ingedore Koch (1989)
afirma: “Poder-se-ia, assim, conceituar o texto como uma manifestação verbal constituída de ele-
mentos linguísticos selecionados e ordenados pelos falantes durante a atividade verbal, de modo a
permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decor-
rência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva, como também a interação (ou
atuação) de acordo com práticas socioculturais”. (KOCH, 1989, p. 23, grifo nosso)

90 • capítulo 5
A partir das duas definições vistas anteriormente, pode- Um texto,
mos chegar à ideia de textualidade, ou seja, uma qualidade portanto, não
que podemos atribuir a qualquer manifestação verbal que
é uma simples
seja compreensível, legível.
Logo, um texto supõe o manuseio de estratégias linguís- superposição
ticas e algum compartilhamento social e cultural da parte de frases.
de falante/ouvinte ou autor/leitor. Vejamos, abaixo, uma pequena e verídica história.

Em uma roda de leitura, a professora anunciou para seus pequenos ouvintes de seis anos que
iria contar uma história: “O sítio do Picapau Amarelo”. Com olhares atentos e respiração suspen-
sa, as crianças ouviram as aventuras de Pedrinho, de Narizinho, do Visconde de Sabugosa, de
Emília, alguns dos personagens do mundo encantado de Monteiro Lobato. Ao final da narrativa,
a professora perguntou se haviam gostado da história. Apesar do “sim” coletivo, uma delas ba-
lançou negativamente a cabeça e disse, para espanto da professora: “Não gostei. Você disse que
era sobre o sítio do picapau amarelo, mas não apareceu nenhum picapau amarelo na história!”.

Essa inusitada reclamação infantil incide sobre uma importante característica das
línguas humanas: as palavras de uma língua, qualquer que seja essa língua, estão vol-
tadas para o mundo exterior e dizem respeito a um objeto desse exterior, ao mesmo
tempo em que constituem esses objetos. Vejamos uma análise:

Ao enunciar tal expressão, indicou-se a existência de


um lugar (“sítio”) e constituiu-se um ser (“picapau”).

sítio do picapau amarelo

O item lexical ‘sítio’, tomado isoladamente, constitui uma referência


sítio exofórica, ou seja, remete para indicações no mundo, e o referente está
situado fora do texto. “Sítio” na história, trata de algum sítio possível.

• Remete para uma possível existência de algum picapau amarelo no mundo.


picapau • Relaciona-se a “sítio” - picapau amarelo que está no sítio.
• Determina/nomeia “sítio”.

Como o picapau não aparece na história, a criança aponta o paradoxo da comunicação linguís-
tica: como é possível que uma mesma história constitua um objeto e não fale dele? Ou seja, a
criança não reconheceu que “picapau amarelo” determina/nomeia “sítio”.

Referência e referenciação
Chama-se referência a característica das línguas naturais de necessariamente estabele-
cer uma orientação, uma indicação para o mundo exterior. Chama-se referente o obje-
to que, na língua, é nomeado, descrito, indicado, enfim, constituído discursivamente,
instituído em palavras.

capítulo 5 • 91
COMENTÁRIO
Oswald Ducrot afirma: “Desde que haja um ato de fala, um dizer, há uma orientação necessária para
aquilo que não é o dizer. É a esta orientação que podemos chamar ‘referência’, chamando ‘referente’
ao mundo ou objeto que ela pretende descrever. (O referente de um discurso não é, assim, como
por vezes se diz, a realidade mas sim sua realidade, isto é, o que o discurso escolhe ou ins-
titui como realidade)”. (DUCROT, 1984, p. 419, grifo nosso)

Vejamos, agora, esse outro fragmento de texto, no qual se percebe um tecido de re-
missões entre as duas frases presentes:

Suco de laranja faz bem para sua saúde – essa história é velha. A nova é que em breve ele
deve se tornar ainda melhor para nosso corpo. (revista Galileu, fevereiro 2013, número 259, p. 20)

“SUCO DE LARANJA” ... foi substituído por... “ELE”

“HISTÓRIA VELHA” ... foi substituído por... “NOVA”


Com omissão do termo “história”

“TORNAR AINDA MELHOR


“FAZ BEM PARA SUA SAÚDE” ... foi substituído por... PARA SEU CORPO”
Além de substituir, faz o texto
avançar em sua progressão lógica

Esse jogo de remissões internas ao texto constitui um conjunto de referências


endofóricas, ou seja, formas de organização dos sentidos a partir do conjunto de
remissões referenciais internas ao texto, com outros elementos linguísticos da
superfície textual. Como vimos no exemplo, a referência pode ser estabelecida
por substantivos, sintagmas nominais, fragmentos de oração ou até mesmo por
enunciados completos.

CURIOSIDADE
Quando o referente é um substantivo, ou um sintagma nominal, o sistema de remissões endofóricas
que vai sendo construído ao longo do texto irá agregar e produzir modificações na significação inicial.
“Isto é, o referente é algo que se (re)constrói textualmente”. (KOCH, op. cit., p. 31, grifo nosso)

Vejamos nesse pequeno texto, que tem como título Cidade-desejo, o tecido de remis-
sões endofóricas que agrega sentidos.

Cidade-desejo

O Rio de Janeiro não só continua lindo como está mais badalado do que nunca. Sede da
final da Copa do Mundo de 2014 e cidade anfitriã das Olimpíadas de 2016, tem recebido
muitas atenções e lojas de marcas gringas. (revista Claudia, janeiro de 2013, pg. 120)

92 • capítulo 5
“CIDADE-DESEJO” CONCEITO
... é um título cujo sentido é construído pelos sintagmas nominais que o substituem:

“Sede da final da Copa do “Cidade anfitriã das


“Rio de Janeiro”
Mundo de 2014” Olimpíadas de 2016”

Em seu conjunto, as subs-


Diremos que um texto
tituições referenciais estabele-
é coeso quando o jogo cidas entre os sintagmas que
de referências está você acabou de ver organizam Coerência:
bem organizado no um tecido textual de dependên- Os fatores para uma coerência são
cias internas de significação, vários, por exemplo, o conhecimento
nível intratextual. da situação, os fatores da contextu-
tornando o texto coeso.
alização, as inferências possíveis, a
relevância, entre outros.

Da referência para a coesão


A coesão faz com que um texto tenha sentido, seja compreensível.
Antes de prosseguir, porém, vamos pensar na diferença entre coesão
e coerência. Não se trata de uma distinção simples, mas, de modo
geral, conforme Travaglia e Koch (1990), a coerência é global:

RESUMO
“[a coerência] está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sen-
tido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido para os
usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de interpretabi-
lidade, ligada à inteligibilidade do texto em uma situação de comunicação e à
capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste texto”. (TRAVAGLIA
e KOCH, 1990 p. 21)

Imagine a seguinte cena: você encontra uma lista de nomes em


cima de sua mesa de trabalho. Você pega a lista e a guarda na sua
pasta. Na véspera, você havia pedido a um funcionário os nomes de
alguns candidatos a uma vaga de trabalho para avaliar. O que dá
coerência àquela lista é exatamente seu pedido no dia anterior. A
lista sozinha com nomes, fora de “contexto”, não significa, ou me-
lhor, não produz sentido.
Como você pode perceber, a coerência não é uma característica
do texto, mas reside no processos de interação com o texto. Já por
coesão, entende-se “as ligações entre os elementos da superfície tex-
tual” (TRAVAGLIA, 1994, p. 72). Voltemos, agora, ao estudo dos me-
canismos de coesão.

capítulo 5 • 93
CONCEITO ATENÇÃO
Endofóricos: Há distintas maneiras de estabelecer a coesão de um texto. São dois os princi-
Como já vimos, a referência é situacio- pais procedimentos linguísticos que constroem textualmente essa totalidade se-
nal (exofórica) e textual (endofórica). mântica: “a coesão referencial (referenciação, remissão) e a coesão sequencial
(sequenciação)”. (KOCH, op.cit., p. 27)

A fim de apreender melhor a coesão referencial, vamos ler, agora,


o fragmento do conto intitulado A primeira noite, da autora francesa
Marguerite Yourcenar:

A primeira noite

Era uma viagem de núpcias. O trem seguia para a Suíça trivial: sen-
tados no compartimento reservado, eles se davam as mãos. Um
silêncio pesava entre os dois. (YOURCENAR, 1995, p. 51)

Nesse fragmento, título e primeira frase do texto funcionam como


elementos linguísticos que estabelecem uma referência exofórica,
ou seja, remetem à situação que está sendo narrrada. Essa situação
constitui o contexto.

COMENTÁRIO
Observemos que o título e a primeira frase referem-se mutuamente, estabele-
cendo correferência, ou seja, estabelecem uma identidade de referência e uma
proximidade semântica.

Em seguida, o substantivo “trem”, o particípio passado flexio-


nado “sentados”, o pronome pessoal “eles” e o numeral “dois” são
elementos referenciais endofóricos já circunscritos a esse contex-
to, constituído inicialmente pelo título e pela primeira frase. Es-
ses itens lexicais estão concatenados entre si a partir de uma orga-
nizada rede de procedimentos linguísticos, produzindo um efeito
de totalidade.

ATENÇÃO
Quando falamos ou escrevemos, esse jogo referencial precisa ser estabelecido e
partilhado com nossos interlocutores a fim de evitar as ambiguidades, as frases
truncadas e sem continuidade.

No âmbito da modalidade escrita da língua, portanto, é funda-


mental saber usar os procedimentos linguísticos que estabelecem a
referência, ou seja, é necessário saber manejar os nexos coesivos da
produção textual escrita.

94 • capítulo 5
De início, precisamos planejar o que vamos escrever, o que significa que devemos
ter em mente o tipo de texto que pretendemos e qual nosso objetivo ao escrevê-lo.
Lembremos que nosso interlocutor não estará na nossa frente para fazer perguntas ou
tirar dúvidas. Por isso precisamos conectar as ideias que queremos transmitir em um
todo coeso e coerente; afinal, um texto não é uma mera sequência de frases.

Coesão referencial endofórica


Para haver interpretação semântica, como vimos, é necessário que os elementos do texto sejam
remetidos entre si de modo sistemático. Vamos, agora, ampliar nosso conhecimento sobre a
construção dos procedimentos linguísticos necessários para a coesão referencial endofórica.

ATENÇÃO
Isso pode ser feito de duas formas. Quando ocorre a retomada de um item lexical já colocado no texto,
temos uma anáfora; quando, ao contrário, ocorre a antecipação, temos uma catáfora.

Vejamos um texto cujos termos estabelecem entre si dois diferentes procedimentos


linguísticos de remissão textual:

Cidades históricas e turísticas, Angra dos Reis e Paraty convivem, desde o início
do ano, com um problema diário de 270 toneladas. Ambos os municípios estão
despejando seus resíduos em locais inapropriados, segundo o Instituto Estadual do
Ambiente (inea) . (jornal O Globo, 24/01/2013, pg. 13)

Fragmento 1: “Cidades históricas e turísticas”


A interpretação semântica depende do que vem a seguir no texto,
CATÁFORA respectivamente, “Angra dos Reis e Paraty”.

Fragmento 2: “Ambos os municípios”


O sintagma que inclui o numeral “ambos”, em “ambos os municípios”,
ANÁFORA retoma itens lexicais que apareceram anteriormente.

A substituição ocorre quando colocamos uma palavra no


lugar de outra para evitar uma repetição.

De uma maneira geral, a coesão referencial resulta do funcionamento de vários mecanis-


mos linguísticos: a substituição, a elipse e a sequenciação.
A substituição pode se realizar de diferentes maneiras. Porém, quando substituímos
uma palavra por outra, precisamos ficar atentos ao contexto semântico a fim de garantir
sua continuidade. Vejamos o seguinte trecho:

O maior poeta vivo brasileiro da atualidade, Manoel de Barros, ou, como seus leitores
tocados pela magia de seus versos o definem, “o poeta do pantanal”, “o Guimarães
Rosa da poesia”, “o grande poeta das pequenas coisas.” (HENRIQUES, 2012, p. 58)

capítulo 5 • 95
Temos, aqui, um conjunto de substituições que estabelecem equivalências semânticas em torno
do sintagma nominal “o maior poeta vivo brasileiro da atualidade”.

“O maior poeta vivo brasileiro da atualidade”

EPÍTETOS
“Manoel de Barros”
Substantivo, adjetivo ou expressão
(nome próprio)
que qualifica um nome

“o grande poeta das


“o poeta do pantanal” “o Guimarães Rosa da poesia”
pequenas coisas”

Se você voltar ao texto, verá ainda que o pronome possessivo “seus”, em “seus versos”, também
é um elemento substitutivo: “magia dos seus versos [do Manoel de Barros]”.

De acordo com Fávero e Koch (1983, p. 40), a substituição pode ser: a) nominal,
feita por meio de pronomes, numerais, indefinidos; b) por nomes genéricos (hipe-
rônimos), como “coisa, gente, pessoa”; c) por substitutos, como “respectivamente, o
mesmo, também, sim, não”.

COMENTÁRIO
Ponto importante a observar: a substituição referencial deve considerar o gênero e a flexão de número
do termo que será substituído.

Coesão por elipse


A elipse, por sua vez, marca uma omissão que é recuperável no próprio texto, evitando
uma repetição desnecessária. No trecho a seguir, a coesão é realizada de outra maneira:

Manoel de Barros nasceu no Beco da Marinha, beira do rio Cuiabá, em 1916. (Ø)Mudou-
se para Corumbá, onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumba-
ense. Atualmente (Ø)mora em Campo Grande. É advogado, fazendeiro e poeta. (site da
Fundação Manoel de Barros – www.fmb.org.br – acesso em 20/01/2013)

Nesse pequeno trecho, o nexo coesivo é instaurado a partir da elipse, ou seja, da


ausência (representada pelo símbolo Ø) de repetição do nome próprio “Manoel de Bar-
ros”. O verbo “nascer” na 3ª pessoa do singular refere-se a Manoel de Barros, sujeito do
verbo. A partir dessa relação (sujeito–verbo), todos os outros verbos (“mudar-se”, “fixar-
se” e “morar”) também se referem a Manoel de Barros.

96 • capítulo 5
CURIOSIDADE AUTOR
Para nós, falantes do português, não é necessário que um nome seja repetido, como Affonso Romano
vimos no exemplo, pois podemos inferir que estão todos relacionados entre si. de Sant'anna:
Affonso Romano de
Sant’anna (1937) é
escritor e cronista

Coesão sequencial brasileiro. Com sólida formação acadê-


mica na área de literatura, atuou como
docente em diversas universidades
Mencionamos a importância da continuidade na construção de um brasileiras e estrangeiras, além de criar
texto. Em outras palavras, a continuidade (ou progressão) depende e dirigir programas de pós-graduação
da seleção lexical e, também, do uso dos elementos de sequenciação. na área. Foi presidente da Fundação
Biblioteca Nacional (1990-1996).

CONCEITO
Os elementos de sequenciação são aqueles que estabelecem nexos coesivos
entre as orações, entre as orações de um mesmo parágrafo e entre os parágra-
fos de um texto. (FÁVERO e KOCH, 1983)

Vamos ler, agora, um fragmento do poema A pesca, de Affonso


Romano de Sant’anna.

O anil / o anzol / o azul


o silêncio / o tempo / o peixe
a agulha / vertical / mergulha
a água / a linha / a espuma
o tempo / o peixe / o silêncio
a garganta / a âncora / o peixe
(...)

O título do poema, associado à seleção lexical que compõe os


versos, não deixa dúvidas: trata-se da descrição de uma pescaria.
Observemos que, no fragmento transcrito, o poeta se utilizou de vá-
rios substantivos e um único verbo.

RESUMO
Em seu conjunto e na maneira em que estão organizados, os itens lexicais for-
mam, de modo adequado, coerente e progressivo, a descrição de uma pescaria.

Vejamos agora outras maneiras de construir a sequenciação tex-


tual, esse importante mecanismo responsável pelos encadeamentos
semânticos.
Os elementos linguísticos que estabelecem encadeamentos, ou
seja, uma rede de conexões internas em um texto, são chamados nexos
ou operadores coesivos. Consideremos a seguinte frase:

capítulo 5 • 97
COMENTÁRIO
Por causa da atuação de uma frente fria, todo o Estado do Rio en-
Causalidade: trou em estágio de atenção, ontem. (jornal Metro, 06/02/2013)
A causalidade pode ser expressa
por diferentes conjunções: "porque”, Essa frase poderia ser reescrita de várias maneiras. Vejamos algu-
“já que”, “visto que” etc. E também mas possibilidades de substituição:
podemos expressar causalidade em-
pregando determinados substantivos
(“motivo”, “razão”, “pretexto”, “o porquê”)
POSSIBILIDADES DE SUBSTITUIÇÃO
ou verbos, como “causar”, “acarretar”, “por causa da” ... por... “em função da”
“motivar”. (cf. GARCIA, 1977, p. 49)
“presença de massa
“atuação de uma frente fria” ... por...
de ar frio”

“todo o Estado do
... por... “o Rio de Janeiro inteiro”
Rio de Janeiro”

“entrou em estágio
... por... “ficou em alerta”
de atenção”

Essas substituições, como se pode observar, ficam circunscritas à


manutenção sinonímica de um mesmo campo semântico.

ATENÇÃO
Nesse processo de substituição, é fundamental manter o sentido estabelecido
pelo operador “por causa da”, que estabelece um nexo coesivo de causalidade
entre as duas orações.

Como você pode notar, é possível alterar os nexos coesivos, mas


manter a ideia geral de causalidade. Se, no lugar de qualquer um des-
ses operadores, colocassemos outro, de outro sentido, toda a significa-
ção seria alterada, você não acha? Volte ao exemplo e substituía “por
causa da” por “apesar da” para ver se o sentido de causa permanece.
Se quisermos que nosso texto tenha manutenção temática e encadea-
mento lógico de ideias, é necessário usar adequadamente os operadores
coesivos para estabelecermos as relações lógico-semânticas pertinentes.
Koch (1989, p. 62–9) distingue oito tipos de encadeamento adequa-
dos a textos dissertativos, narrativos e descritivos.

RELAÇÕES LÓGICO-SEMÂNTICAS
“porque”, “visto que”, “em virtude de”, “devido a”,
Relação de causalidade “por motivo de” etc.

“mas”, “porém”, “apesar de”, “embora”,


Relação de oposição “contudo” etc.

“se”, “caso”, “a não ser que”, “contato que”,


Relação de condicionalidade “a menos que” etc.

98 • capítulo 5
Relação de mediação “a fim de”, “com o propósito de”, “para”, “com o objetivo de” etc.

“ou” de valor inclusivo – (um ou outro, ambos)


Relação de disjunção “ou” de valor exclusivo – (nunca ambos)

Relação de conformidade “conforme”, “consoante”, “segundo”, “de acordo com” etc.

Modo como se realiza uma ação/evento:


Relação de modo “Eles seguiam o bloco pulando animadamente”

Pode ser tempo simultâneo, anterior, posterior, contínuo: “assim que”,


Relação de temporalidade “antes que”, “depois que”, “enquanto” etc.

Além dos operadores citados, Garcia (1977, p. 265–71) enumera outras possibilida-
des de sequenciação. Vejamos os encadeadores apresentados por esse outro autor, a
partir de exemplos:

EXEMPLO
a) relações de adição, continuação (“Tom Jobim, além de maestro, era compositor também.”);
b) relações de dúvida (“O avião já aterrisou? Quem sabe? É provável, mas ainda não apareceu qual-
quer registro no painel.”);
c) relações de certeza ou ênfase (“Sem dúvida, o avião já pousou.”);
d) relações de surpresa (“Inesperadamente, ouvimos a notícia sobre o atraso do avião.”);
e) relações de esclarecimento (“O avião pousou, em outras palavras, ele já se encontra no pátio.”);
f) relações de recapitulação ou conclusão (“Em suma, vimos o conjunto de possibilidades de estabe-
lecer relações sequenciais coesivas.”).

ATENÇÃO
O que se observa no modo de construir a sequenciação também é válido quando temos a produção
de um texto maior.

Organização da estrutura textual


Para nossos propósitos, é fundamental que você se lembre de fazer sucessivos encadea-
mentos de forma a apresentar e organizar progressivamente o tema do texto. Agora, ire-
mos explorar como isso se dá em um plano mais amplo, tomando o texto como unidade.
Vamos ler, a seguir, o seguinte parágrafo, transcrito do livro A construção da ordem
(1996), de José Murilo de Carvalho:

“Elemento poderoso de unificação ideológica da política imperial foi a educação superior. E isso por três
razões. Em primeiro lugar, porque quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com
pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados em um mar de analfabetos. Em segundo lugar,

capítulo 5 • 99
porque a educação superior se concentrava na formação jurídica e fornecia, em consequência, um
núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades. Em terceiro lugar, porque se concentrava, até a
Independência, em quatro capitais provinciais, ou duas, se considerarmos apenas a formação jurídica. A
concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes das várias capitanias
e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas su-
periores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil.” (CARVALHO, 1996, p. 55)

Nesse texto de José Murilo de Carvalho, a progressão textual é realizada com a utilização
de operadores que ordenam a sequência dos motivos que justificam a afirmativa de que foi
a educação superior a responsável pela unificação ideológica durante o período do império.
As “três razões” estão justapostas, não há predominância de qualquer uma delas.

ENCADEAMENTO ARGUMENTATIVO DO TEXTO


TESE / OPINIÃO
A educação superior foi a responsável pela unificação ideológica no período do império no Brasil

argumentos / justificativas apresentados por nexos coesivos

“Em primeiro lugar” “Em segundo lugar” “Em terceiro lugar”

Por outro lado, quando queremos escrever um texto em que a progressão se dá por rele-
vância, ou prioridade, devemos nos valer de outros nexos coesivos, como, por exemplo, “antes
de mais nada”, “acima de tudo”, “sobretudo”, “primordialmente”(cf. GARCIA, 1977, p. 263).
A utilização desses operadores introduz uma hierarquia semântica entre os elementos
que compõem o texto. Vamos a outro fragmento extraído de A construção da ordem, de José
Murillo de Carvalho. O texto é construído por contraste. Vejamos:

“O exame da política de terras permite aprofundar a análise das relações entre governo e pro-
prietários rurais. Como a política abolicionista, a política de terras, sobretudo seu ponto alto, a lei
de 1850, atingia de maneira profunda os interesses dos proprietários, ou pelo menos de parcela
deles. Mas ela possui valor analítico distinto por ter provocado alinhamento de proprietários di-
ferente daquele provocado pelo abolicionismo e por não ter sofrido interferência direta da coroa.
Sua especificidade se manifesta ainda com mais clareza quando se examinam os resultados ob-
tidos. Em contraste com a política de abolição, a política de terras quase não saiu do debate
legislativo e dos relatórios dos burocratas dos ministérios do Império e da Agricultura, Comércio
e obras Públicas. Ela foi vetada pelos barões.” (CARVALHO, 1996, p. 303)

Observemos que a progressão é realizada a partir da frase inicial, em que se explicita o


tema “o exame da política de terras...”. A partir daí, o texto vai sendo encadeado por compa-
ração e contraste. Essa forma de sequenciação aparece logo na segunda frase com a intro-
dução do operador “como” (“como a política abolicionista...”). O contraste (ou contrajun-
ção) se inicia na terceira frase, a partir do uso da conjunção “mas” (“mas ela possui...”), e
continua mais adiante no texto, com “em contraste com a política de abolição...”.

100 • capítulo 5
Argumentação e texto argumentativo CONCEITO
Normalmente, quando pensamos em argumentação e em textos ar- Texto dissertativo:
gumentativos, costumamos associá-los a um tipo específico de texto, Diferentemente de outros tipos textu-
o chamado texto dissertativo. ais, como o narrativo ou o descritivo,
É o que fazemos, por exemplo, quando escrevemos uma redação o texto dissertativo teria como função
principal discorrer sobre uma determi-
para o vestibular: argumentamos sobre uma dada questão, como so-
nada questão a partir de um ponto de
bre o trânsito nas grandes cidades ou a influência da tecnologia na vista e, consequentemente, ganhar a
educação, dentre outras, e, se formos bem sucedidos, teremos como adesão do leitor a esse ponto de vista
resultado um texto coerente e coeso, com boa argumentação e bem ali expresso, através de argumentos.
aceito pelo leitor que, nesse caso, é um avaliador.
Esse tipo de texto dissertativo/
argumentativo é também muito fre- COMENTÁRIO
quente em jornais impressos: logo
nas primeiras páginas, costumamos Lugares diferenciados:
encontrar o editorial, destinado a emi- As análises do discurso jornalístico
tir a opinião do periódico sobre um têm discutido muito essa ilusão de
determinado assunto. objetividade que é construída pela
imprensa. Você pode não ter percebido,
mas a própria seleção do que será ou
COMENTÁRIO não noticiado na imprensa já é uma
escolha e diz ao leitor o que deve ser
O que faz o jornal nesse espaço é justamente argumentar, na tentativa de mostrar considerado importante em um dado
ao leitor como a questão em pauta pode e deve ser compreendida. Também nos momento histórico. Em outras palavras,
jornais são comuns os artigos assinados, que são textos opinativos nos quais jor- entendemos que o discurso jornalístico
agenda o que será tema de discussão
nalistas e especialistas, em diversas áreas, argumentam sobre uma dada questão.
na cidade e no país. Logo, todo ele é,
por natureza, argumentativo.
No discurso jornalístico, a presença desses textos declaradamente
argumentativos, em seções específicas, tem um funcionamento particu-
lar: marcar lugares diferenciados para a opinião e para a informação,
mantendo esta última sob
o rótulo da objetividade, do Sob essa perspectiva
simples relato dos fatos. teórica, toda linguagem
De modo análogo ao que
se dirige ao outro e,
ocorre no discurso jornalís-
tico, a classificação dos tex-
nesse sentido, todo
tos em tipos diversos tam- ato linguístico é
bém produz os seus efeitos: argumentativo.
por ela, somos levados a
pensar que somente alguns textos são argumentativos, ou seja, são des-
tinados a “ganhar” a cumplicidade dos leitores. Vejamos algumas afir-
mações de Koch a respeito da relação entre argumento e discurso:

ATENÇÃO
“A simples seleção das opiniões a serem reproduzidas já implica, por si mesma,
uma opção. Também nos textos denominados narrativos e descritivos, a

capítulo 5 • 101
AUTOR argumentação se faz presente em maior ou menor grau (...) O uso da lingua-
gem é inerentemente argumentativo.” (KOCH, 1987, p. 19–20, 104)
Oswald Ducrot:
Oswald Ducrot De um modo geral, a argumentatividade na linguagem está relacio-
(1930) é um linguista nada à persuasão do outro, ao agir sobre o outro em termos linguísti-
francês cujas obras cos. Além disso, há textos e enunciados que têm como característica
e estudos versam,
marcante uma formulação construída para levar o leitor a certos tipos
especialmente, sobre
a semântica da enunciação. Em seus
de conclusão, ou de eliminação de opiniões divergentes. Esses textos
estudos semânticos, uma das questões se marcam por lançar mão de diferentes estratégias que orientam a
abordadas é justamente a argumenta- argumentação. Compare, por exemplo, os dois enunciados a seguir:
ção. Para Ducrot, a argumentação não
é uma propriedade de certos tipos de Meu time está preparado para o jogo.
texto e não está meramente condicio-
nada à intenção do sujeito que busca
persuadir o outro com o seu dizer. Trata-se de uma afirmação, de limitado poder de
argumentação/persuasão, depende de o interlocutor acatar ou não a
afirmação como verdade.

Meu time, aliás, está preparado para o jogo.

A palavra “aliás” implica uma força argumentativa maior que a vista no


primeiro enunciado, pois funciona como uma afirmação que atua sobre
o interlocutor de modo a não ser possível negar sua veracidade.

Observe agora os exemplos a seguir e veja qual enunciado, na sua


opinião, possui maior força argumentativa:

1 Ele leu e fichou tudo para fazer a monografia.

2 Ele não só leu como também fichou tudo para fazer a monografia.

Você já percebeu que o segundo tem maior força argumentativa,


não é? E o que está servindo para isso são os elementos “não só” e “como
também”, que funcionam como em uma escala argumentativa, de acor-
do com o semanticista Oswald Ducrot. (In: GUIMARÃES, 1987, p. 19–32)
Vamos entender melhor como isso funciona?

RESUMO
Para a linha teórica de Ducrot, a argumentação está na própria língua, “especificamente
no léxico”, como nos explica Zoppi-Fontana (2006). Assim, os enunciados e as palavras
que compõem o léxico de uma língua em particular já trariam consigo valores argumen-
tativos específicos, que conferem certa direção ao que é dito (orientação argumentativa).

102 • capítulo 5
Alguns elementos linguísticos teriam então maior valor argumen- CURIOSIDADE
tativo que outros, o que permitiria dispô-los em uma escala argumen-
tativa (dos termos com menor valor argumentativo para aqueles com
maior “poder” de argumentação).

EXEMPLO
Quer outro exemplo de como os próprios termos empregados no dizer funcionam
argumentativamente? Você já deve ter ouvido a metáfora do copo, geralmente Imperativo:
utilizada para diferenciar as pessoas otimistas daquelas consideradas pessimistas: Você se lembra daquele anúncio em
que uma meninha ficava dizendo de
forma encantadora “compre Baton?”
Pois é, reparou que o verbo encon-
tra-se em uma forma imperativa? É
o mesmo funcionamento que vemos
“Meio vazio” “Meio cheio” em slogans famosos, como “Beba
Coca-Cola” e em dizeres correntes
Pessimista Otimista
em propagandas das mais diversas,
como “Compre agora”, “Assine já” ou
“Compre um e leve dois”.

Diante de uma mesma quantidade de água em um copo, é possível afirmar que ele
está “meio cheio” ou “meio vazio”. Dependendo do enunciado emitido, podemos che-
gar a conclusões diferentes, apesar de a quantidade de água no copo ser a mesma.

COMENTÁRIO
Como afirma Zoppi-Fontana (2006), nesse exemplo, “meio cheio” e “meio va-
zio” possuem valores argumentativos, e nos permitem entender a argumentação
como “direcionamento para uma possível continuação” (p. 196); ou, como nos diz
Guimarães (2002, p. 78), “argumentar é dar uma diretividade ao dizer”.

O tempo verbal é outro importante operador argumentativo.


Formas verbais no imperativo, por exemplo, possuem um valor ar-
gumentativo bastante relevante e, por isso, são muito frequentes no
discurso publicitário.
O modo imperativo é muito recorrente nos discursos da mídia que
buscam uma maior proximidade com os seus leitores, posto que seus
enunciados interpelam o interlocutor, incitando-o a uma atitude/
ação. Chamadas como “Acompanhe a movimentação do trânsito no
Carnaval” e “Tire suas dúvidas de português com nosso dicionário”
são apenas alguns exemplos do funcionamento dessa forma verbal.
Como podemos observar, todos esses enunciados buscam encami-
nhar a uma única conclusão: a efetivação da compra. O que nos leva a
concluir que a publicidade é um texto argumentativo por excelência; afi-
nal, seu objetivo é levar quem a lê a comprar o produto. Ela age sobre o

capítulo 5 • 103
CONCEITO outro de forma a impeli-lo a preferir um produto a outro, a substituir um
produto por outro mais moderno. Para isso, a comparação, o verbo e os
Ironia: adjetivos (como “novo” produto) têm força argumentativa.
Segundo o dicionário Houaiss (2009),
ironia é: “1. ret figura por meio da qual
se diz o contrário do que se quer dar Argumentação e ironia
a entender; uso de palavra ou frase
de sentido diverso ou oposto ao que
deveria ser empregado, para definir ou
Até aqui mostramos e destacamos a importância dos elementos coesi-
denominar algo [A ironia ressalta do vos na construção de um texto; e como, dentre eles, alguns têm maior
contexto.] 1.1 lit esta figura, caracteri- força argumentativa que outros. É hora de pensar em outro mecanis-
zada pelo emprego inteligente de con- mo que também tem força argumentativa: trata-se da ironia.
trastes, usada literariamente para criar Estudada desde a retórica, a ironia é do interesse do campo lite-
ou ressaltar certos efeitos humorísticos
rário, do filosófico, e, como veremos, também da linguística. Vamos
(...) 3. uso de palavra ou expressão
pensar um pouquinho sobre isso. Leia o fragmento abaixo retirado
sarcástica; qualquer comentário ou
afirmação irônica ou sarcástica 4. fil do romance O amor, de Julian Barnes:
disposição fingida de aprender com
Deus é perfeito; nada no mundo é perfeito; portanto, nada no
outrem, a quem se interroga habilmen-
te, fazendo-o entrar em contradição e
mundo foi feito por Deus. (BARNES, 2000, p. 33)
evidenciando o caráter errôneo de suas
concepções.
Podemos ver aí um uso oposto, sarcástico e inteligente do silogismo
servindo à argumentação de um discurso não religioso.

CONCEITO Nesse fragmento, está em cena um silogismo. O enunciado de


Barnes apresenta duas premissas – “Deus é perfeito” e “nada no
Silogismo: mundo é perfeito” – e uma conclusão – “portanto, o mundo não foi
Silogismo é uma forma de raciocínio, feito por Deus” – que vai contra um discurso religioso presente e
desde os gregos, que consiste em atuante em nossa sociedade: “Deus criou o mundo”.
apresentar três proposições afirmativas, Indo adiante, para Ducrot (1987) a ironia consiste em um fenôme-
sendo as duas primeiras funcionando
no polifônico, isto é, com a ironia, duas vozes comparecem: uma que
como premissas que se articulam entre
si e que levam à conclusão posta na
enuncia e outra que é trazida nessa enunciação. Essa outra, além de
terceira afirmação. Um silogismo famo- não ser da responsabilidade do locutor – não é ele quem a diz, mas
so, que você deve conhecer, é: “Todo um outro que lhe é anterior –, é posta como absurda ou contraditória.
homem é mortal. Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.”
COMENTÁRIO
Se voltarmos ao silogismo de Barnes, nele, outro dizer é trazido à baila – o de
que Deus criou o mundo – e é posto em suspeição por uma lógica aristotélica
(o silogismo). Daí advém sua força argumentativa: da corrosão do dizer do outro.
Corrosão que pode se dar seja pelo riso, seja pelo estranhamento, seja pela des-
construção da lógica de uma determinada forma de pensar.

A ironia desfaz, portanto, a argumentação do outro. É por isto que a


ironia é muitas vezes apontada como perigosa, percebeu? E não se trata
apenas de um fenômeno verbal mas também não verbal, como ocorre
na caricatura e nos quadrinhos, por exemplo.

104 • capítulo 5
Observe a figura a seguir: CONCEITO
Intertextualidade:
Para Ingedore Kock (1990), a inter-
textualidade é um fator que confere
coerência aos textos, uma vez que para
ser interpretado, é necessário que ele
guarde alguma relação com textos que
o antecederam. Mas alguns textos de
fato retomam, explicitamente ou não,
outro texto, o que permite ao leitor
reconhecer esse diálogo entre textos.
Segundo Indursky, a intertextualidade
consiste na “retomada/releitura que
um texto produz sobre outro texto, dele
apropriando-se para transformá-lo e/ou
assimilá-lo.” (INDURSKY, 2006, p. 70)
No caso da figura, a ironia coloca em confronto a expectativa que
é gerada a partir do estereótipo de “surfista”, contrastada pela forma-
lidade que ele emprega no uso da língua.

RESUMO
Por fim, é preciso lembrar que a ironia é, sobretudo, relacional, isto é, depende
da relação daquele que diz com aquele que a escuta ou a lê. Da conivência ou do
repúdio. Sua força corrosiva – e, portanto, argumentativa – está em desdizer um
dizer outro, em expô-lo para destruí-lo, em fazer rir do outro.

Intertextualidade
Até aqui, tratamos do funcionamento do texto de um modo geral, bus-
cando mostrar os modos como ele se organiza. Para isso, falamos so-
bre noções importantes, como referência, coesão, textualidade e argu-
mentatividade. Para fecharmos esta nossa conversa sobre texto, vamos
abordar apenas mais um de seus aspectos: a intertextualidade.
Da mesma maneira que podemos observar, em qualquer texto, os
modos como os seus elementos internos se organizam e a maneira
como esse objeto linguístico estabelece referências com a exterioridade,
também podemos perceber um diálogo constante com outros textos,
que geralmente se faz por retomadas, remissões e releituras.

ATENÇÃO
Veja o que afirma Bentes (2003, p. 269), ao tratar da intertextualidade: “Em nossas
práticas cotidianas de linguagem, não percebemos o quanto os produtores utili-
zam-se dessa rede de relações entre os textos, ao elaborarem os seus próprios

capítulo 5 • 105
textos, e o quanto nós, leitores ou destinatários, não percebemos que, ao processarmos o que lemos ou
ouvimos, muitas vezes nos utilizamos de nosso conhecimento sobre outros textos, para atribuir sentido
global às diversas formas textuais com as quais temos contato”.

De fato, como afirma Bentes, a intertextualidade é mesmo muito frequente e comparece


em textos variados. Um exemplo clássico de intertextualidade está no hino nacional brasileiro:

[...]
Do que a terra, mais garrida,
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
"Nossos bosques têm mais vida",
"Nossa vida" no teu seio "mais amores." [...]

Joaquim Osório Duque Estrada (1922)

Observou como os dois últimos versos comparecem grafados entre aspas? É justamente um indicativo
de que se trata de uma citação de dois versos da famosa Canção do Exílio, poema de Gonçalves Dias:

[...]
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Gonçalves Dias, em Primeiros cantos (1847)

Nesse caso, a letra do hino nacional marca explicitamente o emprego de dois dos versos do
poema de Gonçalves Dias, incorporando, assim, parte desse texto.

A citação é um modo de estabelecer relações intertextuais e também é uma prática mui-


to frequente nos textos acadêmicos, como você já percebeu durante a leitura deste capítulo.
Porém, nem todas as relações intertextuais são assim tão explícitas como ocorre na citação.
Em alguns casos, ela tem um funcionamento diferente, menos marcado. Observe essa frase:

Essa cruzada, a guerra contra o terrorismo, vai demorar algum tempo.


Declaração de George W. Bush, então presidente dos EUA, cinco dias após o ataque às
Torres Gêmeas (11/09/2011)

COMENTÁRIO
Quando o então presidente utilizou a palavra “cruzada”, intencionalmente ou não, provocou ira e pro-
testos. Isso porque a palavra remete a um contexto de perseguição de cristãos contra muçulmanos,
na Idade Média, o que resultou em uma jornada de extermínio àquele povo. Muitos interpretaram o
discurso de Bush como uma convocação de cristãos para uma guerra santa contra o universo islâmico.

106 • capítulo 5
Outra forma de intertextualidade é a paródia. São vários exem- CONCEITO
plos, como as do quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, e são tam-
bém várias as paródias do poema Canção do Exílio, que já menciona- Paródia:
mos. Uma delas, analisada por Sant’anna (2007), é o Canto de regresso Na paródia, geralmente, o que ocorre
à Pátria, de Oswald de Andrade: é a reescritura de uma obra conhecida,
de forma bem humorada, seja obra
literária, filme, música, pintura etc. As
Minha terra tem palmares
paródias normalmente são reconheci-
Onde gorjeia o mar dos pelo leitor, mesmo ao contar com
Os passarinhos daqui uma nova escrita ou nova linguagem.
Não cantam como os de lá [...]

Em sua análise, Sant’anna (2007) mostra como a substituição de


“palmeiras”, do poema de Gonçalves Dias, por “palmares” traz para CURIOSIDADE
o poema de Oswald de Andrade o nome do quilombo liderado por
Zumbi dos Palmares, marcando assim um posicionamento crítico Hortifruti:
em relação à história brasileira. Já circularam em outdoors enunciados
como: “Alface americana”, em uma

ATENÇÃO retomada do filme Beleza americana;


“Batatas do Caribe”, paródia ao título
da saga da Disney Piratas do Caribe;
A paródia, nesse caso, também é um modo de argumentar, de dar uma direção aos
“A hortaliça rebelde”, paródia do título
sentidos, fazendo com que sentidos outros compareçam na relação entre textos. do clássico A noviça rebelde, e “Horta
de elite”, em uma clara relação de
Também são frequentes as paródias nos textos publicitários. As intertextualidade com o título do filme
propagandas da rede Hortifruti, por exemplo, brincam muito com brasileiro Tropa de elite.

a paródia ao recriar títulos de filmes famosos, tendo como persona-


gens frutas, legumes e verduras.
Tal como a ironia, a paródia também apresenta duas vozes, ou,
ainda, duas posições distintas em cena. Ambas têm ainda em comum
o humor em seus diferentes efeitos de sentido.
No capítulo seguinte, vamos retomar a noção de texto, e seguir
adiante com uma novidade: a questão dos efeitos de sentidos.

capítulo 5 • 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BENTES, A.C. Linguística textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.C. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e
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CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Editora da ufrj & Relume dumará, 1996.

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. Texto e argumentação: um estudo de conjunções do português. Campinas: Pontes, 1987.

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S. (Orgs.). Introdução às ciências da linguagem: discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006. p. 33-80.

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PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

SANT’ANNA, A.R. Paródia, paráfrase & cia. 8 ed. São Paulo: Ática, 2007.

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ZOPPI-FONTANA, M. Retórica e argumentação. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES, S. (Orgs.). Introdução às


ciências da linguagem: discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006. p. 177-210.

ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 28. ed. Rio de Janeiro:
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TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 93 Connect with Central Hub p. 103 Wine Glass
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p. 97 Affonso R. de Sant'anna p. 103 Chocolate... 2


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p. 101 My Daily p. 105 Surfista


Sanja Gjenero · stock.xchng · rf Roberto Bindes Jr. · Estácio

p. 102 Oswald Ducrot


Divulgação · Minuit

108 • capítulo 5
Texto,

6 discurso e
interpretação

silmara dela silva e


vanise medeiros
6 AUTOR
Texto, discurso e interpretação

Neste capítulo, vamos falar de um último aspecto da linguagem e,


em especial, do texto. Vamos tratar da sua relação com a significa-
Ferreira Gullar: ção, ou seja, com a produção de sentidos. Iniciamos com a leitura
José Ribamar de duas estrofes do poema Não-coisa, de Ferreira Gullar, que repro-
Ferreira (1930), mais duzimos a seguir:
conhecido como
Ferreira Gullar, é
Não-coisa
um poeta brasileiro,
além de crítico literário, ensaísta e tra-
dutor. Participou de diversos movimen- O que o poeta quer dizer/ no discurso não cabe/ e se o diz é pra saber/
tos literários, mas sua obra transcende o que ainda não sabe./ [...]/A linguagem dispõe/ de conceitos, de nomes
classificações ou rotulações. Foi agra- / mas o gosto da fruta/ só o sabes se a comes/[...]
ciado com diversos prêmios, dentre
eles Molière, Jabuti e Camões, além
Ferreira Gullar
de ter recebido indicações ao Prêmio
Nobel de Literatura.
Fonte: trecho de poema extraído dos Cadernos de Literatura Brasileira, edi-
tados pelo Instituto Moreira Salles — São Paulo, nº 6, setembro de 1998, p. 77.

Nesse fragmento do poema, podemos observar que Ferreira Gullar


fala sobre a relação do poeta com a sua prática de fazer poesias, que é
uma prática de linguagem. Ele nos diz que é impossível para o poeta
dizer tudo aquilo que ele quer dizer, ainda que a linguagem disponha
de tantos “conceitos” e “nomes”...
O que Ferreira Gullar traz nessa sua reflexão, entre outros aspec-
tos, é mais ou menos a mesma questão abordada em uma das músi-
cas gravadas pelo grupo Paralamas do Sucesso que, em seus três pri-
meiros versos, diz assim:

La bella luna

Por mais que eu pense/ Que eu sinta, que eu fale/


Tem sempre alguma coisa por dizer

Herbert Viana

Fonte: Disco 9 luas, do grupo Paralamas do Sucesso, lançado em 1996.

No fragmento do poema Não-coisa e nos versos iniciais da música


La bella luna, temos exemplos de uma breve reflexão sobre essa
relação que é específica do ser humano: a relação com a lingua-
gem. É por essa relação que, como vimos até aqui, o ser humano

110 • capítulo 6
consegue expressar os seus pensamentos, comunicar-se e interagir CONCEITO
socialmente, utilizando-se, para isso, de textos também.
Contudo, por mais que a gente diga, sempre fica “alguma coisa Possibilita interpretar:
por dizer”, como nos lembram os versos de Herbert Viana. Por mais Ao estudar a linguagem, a analista
que a gente se aproprie dos “conceitos” e “nomes” oferecidos pela de discurso Eni Orlandi nos lembra
linguagem, Ferreira Gullar nos diz que: “o gosto da fruta/ só o sabes que a interpretação é inerente ao ser
humano, o que quer dizer que “diante
se a comes”. Daí podermos pensar que a relação humana com a lin-
de qualquer fato, de qualquer objeto
guagem não se esgota, não tem fim. simbólico, somos instados a interpretar.”
(2001, p. 10) Orlandi nos diz ainda:
ATENÇÃO “Não temos como não interpretar”
(2001, p. 9), ou seja, não temos como
Como sempre resta algo a dizer, podemos entender que um texto, que é uma não atribuir sentidos diante de qual-
quer texto, diante de qualquer prática
manifestação de linguagem, nunca está completo em si mesmo: é preciso um
de linguagem.
sujeito que, diante dele, possa atribuir sentidos, possa interpretar.

Retomando o que vimos no capítulo anterior, quando aprendemos


que a linguagem representa o mundo e a nós mesmos, podemos ir além
e afirmar então que a linguagem nos possibilita interpretar, atribuir
sentidos a tudo o que nos cerca, inclusive significar a nós mesmos.
Para entendermos melhor essa relação humana com a interpreta-
ção, trazemos como exemplo uma história bem conhecida: a parábo-
la dos sábios cegos e do elefante. Vamos à leitura?

Os cegos e o elefante
Seis homens sábios do Industão, uma terra bem distante / Ouviram atentos
os boatos sobre um animal gigante / E, apesar de serem cegos, foram ver o
elefante. / O primeiro passou as mãos sobre a barriga dura e falha / E explicou
bem confiante: / minha análise não falha / Esse tal de elefante mais parece
uma muralha. / O segundo tocou as presas e proclamou com confiança: /
Esse tal de elefante não é brinquedo pra criança / Tão pontudo e afiado, mais
parece uma lança. / O terceiro chegou à tromba, elogiando a bela obra / Tão
comprido e gelado, vejam só, ele até dobra. / O flexível elefante mais parece
uma cobra. / O quarto sentiu a pata e teve logo a recompensa / Percebendo as
semelhanças, anunciou com indiferença: / Esse animal mais parece com uma
árvore imensa. / O quinto tocou as orelhas e sugeriu conservador: / Mas que belo
utensílio nessas tardes de calor / Esse tal de elefante mais parece um abanador.
/ O sexto subiu às costas, despencando na outra borda / E pendurado ao rabo
disse: Não sei se alguém discorda, / mas para mim esse animal se parece
com uma corda. / E então os sábios homens discutiram inconformados
/ Cada um com seu discurso, sem ouvir os outros lados / Pois estavam
certos em partes, mas completamente errados.

Fonte: Versão para o português do poema Six blind men and the elephant,
de John Godfrey Saxe (1816-1887), traduzido livremente por Josadarck To-
maz Coutinho, a partir de transcrição de vídeo disponível no YouTube.

capítulo 6 • 111
COMENTÁRIO Nesse texto, que é uma parábola, lemos a história dos cegos sá-
bios em suas experiências diante da novidade ali representada pela
Interpretações: presença de um elefante. Podemos observar, de imediato, esse dese-
Por exemplo, na atitude dos cegos que jo humano de atribuir sentidos a tudo o que o cerca: os sábios que-
tentam dizer o que é o elefante, consi- riam entender o que era aquele ser tão diferente de tudo o que conhe-
derando apenas uma parte do animal, ciam e buscaram interpretar o elefante, tocando cada um em uma
podemos interpretar a necessidade de
parte específica do animal.
se considerar sempre uma visão geral
sobre qualquer fato, antes de tirarmos
As interpretações e, consequentemente, os sentidos que cada um
conclusões precipitadas. Nessa mesma vai atribuindo ao elefante, são bem diversos: uma lança, uma cobra,
linha, podemos interpretar que os um abanador, uma muralha... Os cegos vão conferindo sentidos à me-
cegos que se apressaram em dizer do dida que reconhecem nas partes do animal características semelhan-
que se tratava o elefante não conse- tes a coisas já conhecidas, com as quais já tinham tido um contato.
guiram chegar a boas conclusões, o
que nos faria entender, na parábola, um
sentido semelhante àquele que temos COMENTÁRIO
no provérbio popular: “o apressado
come cru”. É assim também que nós, sujeitos da linguagem, reagimos diante de qualquer
texto: tentamos interpretá-lo, buscando dar sentido a ele a partir de tudo
aquilo que já ouvimos e lemos. E, muitas vezes, o fazemos por partes, sem a
visão da totalidade.

Ao ler o texto dos cegos e o elefante, certamente você deve ter en-
tendido que essa história não trata apenas de cegos em seu primeiro
contato com um elefante, não é mesmo? Quando lemos a parábola,
podemos extrair dela vários sentidos.

ATENÇÃO
Isso nos mostra mais um ponto importante quando consideramos o texto a partir
dos efeitos de sentido que ele produz: um texto sempre se abre à interpretação,
o que quer dizer que o seu sentido pode sempre ser outro, já que o sentido de um
texto também se produz, como estamos vendo, na relação com o sujeito que o lê.

Ao mesmo tempo, embora o sentido de um texto possa sempre ser


outro, ele não pode ser qualquer um. Isso porque, diante de um texto,
não podemos interpretar qualquer
coisa: pela relação com a lingua- São vários os
gem e com as condições em que é sentidos possíveis,
produzido, o texto também impõe mas isso não faz de
limites para a sua interpretação.
Se voltarmos ao nosso exemplo
um texto uma obra
da parábola, outro sentido que po- totalmente aberta
demos interpretar a partir dela é a toda e qualquer
que a verdade pode ser alcançada interpretação.
com a observação de um objeto ou
de um fato em sua totalidade; mas não podemos afirmar o inverso, ou
seja, que um olhar apressado e parcial nos levaria igualmente à verdade.

112 • capítulo 6
Quando passamos a considerar o texto a partir dos efeitos de sentido que ele pro-
duz, levando em conta o modo como ele significa para nós, sujeitos de linguagem, esta-
mos pensando na relação entre texto e discurso.

Do texto ao discurso
No capítulo anterior, vimos as estratégias necessárias para a construção da coesão textual,
as quais asseguram, na superfície linguística, a suposta unidade de um texto, a tessitura
das partes de um texto. Agora, passamos
do conceito de texto para o de discurso.
Podemos entender o
Já começamos a perceber que a pro- discurso como os efeitos de
dução dos efeitos de sentido está rela- sentido que se produzem a
cionada aos sujeitos e às circunstân-
partir da leitura de um texto.
cias sócio-históricas em que o texto é
produzido e interpretado, ou seja, em relação às suas condições de produção.
Para entendermos melhor a relação entre o texto, os sujeitos e as circunstâncias na
produção dos efeitos de sentido, vamos ler os dois fragmentos textuais a seguir. Eles
tratam de uma mesma questão – o casamento –, mas os efeitos de sentido que se pro-
duzem em cada um deles aparentemente são bem diversos. Vejamos:

Veja 20 conselhos para um casamento feliz

Você está prestes a começar a sua vida de casada e, certamente, o seu maior desejo é que o seu
casamento dure. Não existe receita exata para isso, entretanto, alguns conselhos podem te ajudar.

1. Respire fundo e pense no quanto você o ama antes de começar uma discussão.
2. Cumprimente-o todas as manhãs carinhosamente, como se tivessem acabado de se encon-
trar e despeça-se dele com um beijo toda vez que ele for sair. [...]
5. Seja sensível, compreensiva e otimista.
6. Mantenha sua casa organizada, nada melhor do que a limpeza. [...]
13. Toque-o constantemente. Dê a mão para ele ao andarem na rua.
14. Comemore datas especiais como o aniversário de namoro, o seu próprio aniversário e qual-
quer outra data que possa ser importante. [...]

Fonte: Portal Terra, editoria Mulher-Comportamento. Autor não informado. Acesso em 21/04/2013.

RESUMO DO TEXTO 1
Para quem é o texto? É dirigido à mulher recém-casada, que deseja que seu casamento dure.

Trata-se de uma matéria jornalística de comportamento, caracterizada por tratar


Qual é o gênero textual? de relacionamentos interpessoais e por oferecer conselhos especializados.

Qual é o contexto Destinado à circulação em um site de notícias, em um espaço reservado às


de produção? mulheres leitoras.

capítulo 6 • 113
Desabafos de um bom marido

Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar: duas vezes por semana, vamos
a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo.
Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha em São Paulo.
Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. "Em algum lugar que
eu não tenha ido há muito tempo!", ela disse. Então eu sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras. [...]
Eu me casei com a "Sra. Certa". Só não sabia que o primeiro nome dela era "Sempre".
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la. Mas tenho que
admitir: a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: "O que tem na TV?" E eu disse "Poeira". [...]

Fonte: Desabafos de um bom marido. Crônica atribuída a Luis Fernando Veríssimo, disponível em
vários sites na internet, fonte primária desconhecida.

RESUMO DO TEXTO 2
Quem é o sujeito São dizeres produzidos a partir da imagem do lugar social atribuído aos
representado no texto? maridos em geral.

Uma crônica, um gênero que traz traços dos textos literários, normalmente
Qual é o gênero textual? tratando de questões cotidianas.

Qual é o contexto Destinado à circulação livre, com o objetivo de provocar humor, quase uma
de produção? paródia a textos como o primeiro, destinados a aconselhar sobre relacionamentos.

Como vimos, os efeitos de sentido de um texto se produzem na relação entre a ma-


terialidade do texto, que é linguística, os sujeitos e as circunstâncias em que ele é pro-
duzido e interpretado.
Se levarmos em conta essas três condições, vamos observar que os dois textos pro-
duzem efeitos de sentidos diversos. O primeiro, por meios dos conselhos que traz, pro-
duz um efeito de sentido de verdade para as leitoras a quem se destina. Uma marca no
texto, dessa produção do efeito de verdade, é o emprego dos verbos no modo imperativo,
no início de cada conselho:

RESPIRE PENSE CUMPRIMENTE-O SEJA MANTENHA TOQUE-O

Já no texto 2, um efeito de sentido que se produz é o de humor, que se dá pela re-


tomada de um conselho, como o de sair para jantar fora com a esposa, e um desfecho
inesperado, surpreendente: eles, de fato, não saem para jantar fora como um casal,
juntos, como vemos na menção aos dias da semana.
Por outro lado, apesar de tantas aparentes diferenças, os dois textos também permi-
tem algumas interpretações semelhantes. Você concorda? Veja só:

114 • capítulo 6
PAPEL ATRIBUÍDO À MULHER CURIOSIDADE
Atribuem-se à mulher as tarefas domésticas, como em
NO TEXTO 1 “mantenha a casa organizada”.

Acontece o mesmo, ainda que de forma humorística:


NO TEXTO 2 “O que tem na TV?” E eu disse “Poeira”; ou em “Então
eu sugeri a cozinha”.

CARACTERÍSTICAS ATRIBUÍDAS À MULHER Dizeres já ditos:


A mulher deve ser “sensível, compreensiva e otimista”, Também é assim que, tanto na crônica
NO TEXTO 1 deve ser carinhosa (“Toque-o constantemente”), deve como no fragmento do texto sobre os
ser atenciosa (“Cumprimente-o todas as manhãs...”) etc. conselhos para um bom casamento,
um dos sentidos que se constitui para
A imagem de consumista (“Se eu soltar, ela vai às o casamento é o de que ele tem de
NO TEXTO 2 compras”), de autoritária (“me casei com a ‘Sra. Certa’. durar, ou seja, ele não pode não dar
Só não sabia que o primeiro nome dela era ‘Sempre’”). certo. E aí temos um exemplo de outro
dizer em circulação no casamento. É
Como podemos observar, os textos 1 e 2 são bem atuais, mas rea- mais um ponto questionável, mas que
firmam sentidos que já ouvimos antes, circulando por aí, não? retorna como se fosse evidente quando
falamos sobre o assunto.

COMENTÁRIO
É que os sentidos que atribuímos a um texto sempre decorrem da sua relação
com outros textos e com outros dizeres que já foram ditos e esquecidos, mas
continuam em circulação em um contexto sócio-histórico. E isso nos permite
dizer que os sentidos se constituem a partir de uma memória do dizer.

Do mesmo modo, quando falamos sobre casamento e sobre as


funções do homem e da mulher, nessa relação, retomamos muitos
dizeres já ditos e esquecidos sobre o casamento. Aqui mesmo, com
essa nossa afirmação, já retomamos um dizer corrente sobre o casa-
mento que funciona como uma memória a cada vez que falamos so-
bre esse tipo de união: a de que o casamento pressupõe um homem e
uma mulher, princípio que pode ser questionado atualmente. Viu só
como funciona a memória na interpretação?
Você já deve ter percebido que estamos caminhando para uma
noção de texto como não sendo somente um objeto fechado, com
princípio, meio e fim, resultado da utilização adequada das regras de
coesão. Chegamos a um conceito de texto como um objeto linguís-
tico e histórico (Orlandi, 1996, p. 53), ou seja, como tendo relação
com outros textos e dizeres, como tendo história (não somente da
situação de sua produção, mas das leituras dele feitas, por exemplo),
e como também tendo relação com o sujeito (com suas histórias, o
que permite ou impossibilita tal ou tais sentidos).

capítulo 6 • 115
CONCEITO EXEMPLO
Condições de produção: Para prosseguir, tomemos de imediato um enunciado muito comum em teorias
Compreender discurso como efeito de linguísticas: trata-se da exclamação – “Que calor!” – dita em uma sala de reunião
sentidos significa que “o sentido não por um diretor e que tem como contrapartida o gesto de um funcionário se le-
está (alocado) em lugar nenhum, mas vantando e ligando o ventilador do teto. Volte ao enunciado e reflita: será que, se
se produz nas relações: dos sujeitos,
tivesse sido proferido pelo funcionário, o chefe teria se levantado? Ou será que
dos sentidos...” (Orlandi, 1983, p. 229).
o chefe teria dado ordem para ligar o ventilador?
Diremos, portanto, que quando toma-
mos a palavra, o fazemos de “lugares
determinados na estrutura de uma Pois é esse o ponto ao qual queremos chegar. A produção dos efei-
formação social” (Pêcheux, 1997, p. 82). tos de sentidos está vinculada à imagem que se faz do lugar social
A tais lugares atribuem-se imagens. ocupado por aquele que diz “que calor!”. E isso faz toda a diferença:
É por isso que tomamos o imaginário
se era o chefe ou o funcionário... É aí que entra em cena uma noção
como parte integrante do funciona-
muito importante para entender a produção de efeitos de sentidos:
mento da linguagem: as imagens que
fazemos dos lugares sociais são atra- trata-se da noção de condições de produção.
vessados por sentidos – já existentes, Em outras palavras, há representações, imagens sobre o lugar so-
em conflito, possíveis ou não – em uma cial ocupado (sobre ser chefe ou funcionário, por exemplo). Tais ima-
sociedade. gens implicam posições de linguagem, visto que são definidas por
uma relação com o que pode ou deve ser dito a partir de um lugar
socialmente marcado. Estamos sinalizando para algo que faz parte
das condições de produção: as formações imaginárias.

CURIOSIDADE
“Todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade, e isso faz parte da significa-
ção. Os mecanismos de qualquer formação social têm regras de projeção que estabe-
lecem a relação entre as situações concretas e as representações (posições) dessas
situações no interior do discurso: são as formações imaginárias.” (Orlandi, 1988, p. 18).

Dito de outro modo, em relação a qualquer lugar social, inscrevem-se


projeções imaginárias sobre os interlocutores (imagens sobre si, sobre o
outro e sobre o objeto do discurso) que fazem parte daquilo que se diz.

Retomando o conceito: condições de produção


Você já começa a perceber por que a noção de condições de produ-
ção é fundamental na produção de sentidos e por que é diferente da
noção de contexto, que vimos nos capítulos 4 e 5.

ATENÇÃO
Condições de produção é um conceito que agrega os interlocutores e a situação, ambos
materializados no jogo imaginário das relações sociais de uma sociedade. A noção de
condições de produção abarca ainda outros elementos, como a memória e a historicidade.

116 • capítulo 6
Vejamos, então, outros exemplos, como o fragmento a seguir retirado do livro Amor,
etc., de Julian Barnes:

O amor em um bairro arborizado e democrático, com uma renda de seis dígitos por ano, é dife-
rente do amor em um campo de concentração stalinista. (Barnes, p. 33).

EXEMPLO
Nesse trecho, como podemos ler, o autor está opondo duas condições sociais para significar o amor –
“renda de seis dígitos” e “bairro arborizado e democrático” versus “campo de concentração stalinista”.
Em outras palavras, os sentidos para amor decorrem do contexto histórico e social.

Vamos observar dois outros exemplos, que dizem respeito à história da língua portuguesa:

“E entre nós e os latinos há esta diferença: eles fazem comparativos de todos os seus nomes
adjetivos que podem receber maior ou menor significação, e nós temos mais comparativos que
estes: maior, que quer dizer mais grande; menor, que quer dizer menos grande; melhor para mais
bom; pior, para mais ruim.” (Adaptação nossa do original)

“E antre nós e os latinos há ésta diferença: eles afazem comparativos de todolos seus nomes ajetivos
que podem receber maior ou menor sinificaçám, e nós nam temos mais comparativos que estes:
maior, que quer dizer mais grande; menor, por mais pequeno; millór por mais bom; pior, por mais máo.”
(João de Barros, Gramática da língua portuguesa, 1540, apud Quental, 1995)

Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandro e
de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / A quem Netuno
e Marte obedeceram: / Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se alevanta.
(Trecho da obra Os Lusíadas, publicada em 1572, por Luiz Vaz de Camões, 1524-1580)

O primeiro exemplo traz a adaptação de um trecho da segunda gramática de língua


portuguesa; já o segundo exemplo é um trecho do famoso poema épico Os Lusíadas, de
Camões. A gramática e o poema são contemporâneos entre si, como se pode perceber.

ATENÇÃO
Na gramática, está em jogo a língua portuguesa, que, neste momento, é significada como sendo
do mesmo quilate que a língua latina e até mais completa que ela (tem mais comparativos que a
língua latina). No poema estão em jogo, como já é sabido, os feitos portugueses: feitos marítimos,
conquistas, e também a língua portuguesa que, nesse momento, “se alevanta” frente a uma antiga
musa: a língua latina.

Você deve estar se perguntando: O que isso tem a ver com condições de produção?
Pois bem, pense e responda: será que sempre a língua portuguesa foi posta como supe-
rior à língua latina? Não é o caso.

capítulo 6 • 117
COMENTÁRIO Ora, o que está em jogo é que as condições de produção são outras:
no século xvi, das descobertas, os portugueses estavam percorrendo
Língua portuguesa: o mundo; e a sua língua – uma língua de uma nação que se mostrava
No século xix, por exemplo, o que se extremamente forte – estava no mesmo patamar que seus feitos: maio-
dizia da língua portuguesa, nas gramá- res que os latinos... Já no século xix, as condições de produção são ou-
ticas, era que ela valia tanto quanto a tras: a língua portuguesa já possuía literatura expressiva, gramáticas e
língua latina. Não se tratava de dizer
dicionário; não precisava mais se impor frente ao latim, que também
que tinha mais comparativos ou não,
mas de destacar a origem latina da lín-
deixa de significar ameaça à portuguesa para poder ser exemplo e mo-
gua portuguesa. Buscavam-se, assim, tivo para a dignificação da língua pela semelhança.
exemplos nas duas línguas que fizes-
sem a portuguesa valer tanto quanto COMENTÁRIO
o latim. Então, no século xv, a língua
portuguesa era posta como sendo mais
A partir desse exemplo, já podemos entender a definição de condições de produ-
completa que a latina; já no século xix,
ção como compreendendo “o contexto histórico-social, ideológico, a situação, os
o português era visto como equivalente
à língua latina. interlocutores e o objeto do discurso, de tal forma que aquilo que se diz significa
em relação ao que não se diz, ao lugar social, para quem se diz, em relação aos
outros discursos etc.” (Orlandi, 1988, p. 95).

CONCEITO Quer outro exemplo de como funcionam as condições de produ-


ção? Então, veja só a charge a seguir:
Data de circulação:
Como podemos ver, conhecer as cir-
cunstâncias imediatas em que o texto
foi produzido é muito importante para
que possamos entender os efeitos
de sentido possíveis a partir dela.
Contudo, não é somente a circunstân-
cia imediata de enunciação, ou seja, a
situação em que um texto foi produ-
zido, que conta nos modos como ele
irá produzir efeitos de sentidos para
os sujeitos leitores. As circunstâncias
imediatas dialogam sempre com o
contexto sócio-histórico ideológico.

Inspirado em charge original de Miguel Paiva, publicada no jornal O Estado de


São Paulo, em 05/10/1988 (edição histórica, p. 3).

Para pensarmos no funcionamento das condições de produção,


no processo de produção de sentidos nessa charge, podemos come-
çar observando a data de circulação da charge original: 05 de outu-
bro de 1988. É justamente nessa data que foi promulgada a Consti-
tuição Federal, a lei máxima do país. A menção à Constituição está
marcada, na charge, na expressão: “São direitos sociais a educação, a
moradia...”, grafada no primeiro balão, que traz justamente a leitura
de um dos artigos da lei então recém-aprovada.
Na charge, podemos observar a representação das figuras de uma fa-
mília, e podemos interpretar pela imagem que tal família provavelmente

118 • capítulo 6
não tem uma moradia digna. O cenário e os lugares atribuídos aos sujei- AUTOR
tos ali presentes denunciam o sentido de que “moradia”, “comida”, “saú-
de” e tantos outros direitos básicos do cidadão brasileiro não passam de Italo Calvino:
um sonho para muitos cidadãos que, naquele momento histórico, viviam Italo Calvino (1923-
na pobreza, apesar de a lei já ter sido promulgada. 1985) nasceu em
No texto da charge, como vemos, a família ali representada ocupa Cuba, filho de pais
italianos. Logo após
um lugar social específico na sociedade brasileira: o lugar daqueles
o nascimento, sua família retornou à
que esperam ser amparados pelo Estado, mas que raramente o são, Itália. Foi um dos escritores contem-
não possuindo, de fato, condições sociais dignas de subsistência. porâneos mais traduzidos, além de
ter sido indicado ao Prêmio Nobel de
EXEMPLO Literatura.

A crítica ao Estado se marca justamente na fala da mulher, que ao dizer “aquele


pedaço bonito que fala de comida, saúde...”, denuncia justamente que as leis, de um
modo geral, são mesmo bonitas no papel, mas não se efetivam para todos os brasilei-
ros igualmente. E aí temos mais um exemplo do funcionamento da memória do dizer,
um dizer já-dito: as leis são muito boas na teoria, e não necessariamente na prática.

Nesse nosso exemplo, mostramos como funciona, na charge, o


contexto histórico-social e ideológico. Agora, vamos nos deter um
pouco em ideologia; para isso, leia mais um fragmento textual, esse
retirado do conto As cidades invisíveis, de Italo Calvino:

“A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias (...) mais do que pelas
coisas que todos os dias são fabricadas, vendidas, compradas, a opulência
de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para
dar lugar às novas. (...) O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele,
mais coisas acumula (...). A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o
mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lado de lá de
sua cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem
para longe montanhas de detritos.” (Calvino, As cidades invisíveis, p. 105).

O conto de Calvino fala de uma cidade cuja opulência é marcada


pelo que se joga fora, pelo dejeto. Essa cidade não é estranha ao nosso
mundo contemporâneo. Ao contrário, vivemos sob a égide do consumo
incessante: as propagandas que todos os dias nos dizem que é preciso
comprar, que isso ou aquilo já está ultrapassado, que, então, é preciso
se livrar do que se torna obsoleto para obter o último e mais avançado
modelo de algo... (“quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula”).

RESUMO
Em outras palavras, a cidade de Leônia, como lembra Bauman (2010), inscreve-se
em um estágio do capitalismo em que o acúmulo implica um incessante descartar
que joga contra a durabilidade das coisas. Não é mais a durabilidade que vale.

capítulo 6 • 119
CONCEITO Tais constatações remetem à ideologia, ou seja, é a ideologia que
permite o efeito, imaginário, de se supor o mundo como já tendo ou
Ideologia: fazendo sentido, como “sendo assim”.
“É a ideologia que fornece as evidên- Leia agora outro fragmento que exemplifica ainda mais o que
cias pelas quais ‘todo mundo sabe’ o estamos tomando como ideologia:
que é um operário, um patrão, uma
fábrica, uma greve etc., evidências que
“ (...) pegue esses fenômenos migratórios que observamos nas nossas es-
fazem com que uma palavra ou um
tradas, por ocasião do que chamamos férias. É, de certo modo, espanto-
enunciado ‘queiram dizer o que real-
mente dizem’: e que mascaram, assim, so. Para estar seguro de que se trata de férias, é preciso que você faça
sob a ‘transparência da linguagem’ como todo mundo, sofrer, passar por engarrafamentos, pela dor. A situação
aquilo que chamaremos de o caráter que descrevi sem dúvida é paródica, mas todo mundo já pôde observá-la.
material do sentido das palavras e do Quando você ouve o rádio anunciar um ‘domingo infernal’ nas estradas, ele
enunciado.” (Pêcheux, 1988, p. 160).
diz que o seu comportamento é perfeitamente inscrito e previsto. Antes
mesmo que você aja, sabe-se o que vai fazer. O grande irmão, Big Brother,
está lá, nesse discurso benevolente; ele diz: atenção, domingo, vocês vão
todos cair na estrada. Você vive sem surpresa, você não vai voltar três dias
mais cedo, nem um dia depois.” (Melman, 2003, p. 98).

Pois é, agora que você já compreendeu que os sentidos são produ-


zidos histórica e socialmente, podemos avançar mais um pouquinho
na compreensão de que ideologia constitui um mecanismo imaginário
que produz, em um dizer já dado, um sentido que para o falante aparece
como evidente, ou seja, natural, óbvio para ele enunciar daquele lugar.

COMENTÁRIO
É por isso que podemos afirmar que os sentidos são ideologicamente marcados
porque eles não são naturais, mas estão relacionados às posições que os sujei-
tos ocupam em um dado contexto sócio-histórico.

Para vermos mais um exemplo de como os sentidos são ideológi-


cos, ou seja, como eles são construídos pelas práticas ideológicas que
nos dizem como as coisas devem ser entendidas, basta observarmos
como um mesmo objeto pode ser significado de modos diferentes,
dependendo de quem fala sobre ele. Um bom exemplo é o “salário”,
aquele pagamento mensal recebido pelo trabalhador:

SALÁRIO
Os sentidos da palavra “salário” O sentido da palavra “salário”
para um assalariado podem ser... para um patrão pode ser...

“condição de sobrevivência” “aumento de custos, ou recursos


que saem do caixa da empresa
“retorno justo como pagamento todos os meses para cumprir a folha”
por tarefas realizadas”

120 • capítulo 6
São as posições ideológicas de trabalhador e de patrão que, nesse CONCEITO
caso, determinam que uma mesma quantia em dinheiro signifique
diferentemente. Não é dito:
Se é verdade que não podemos dizer
RESUMO tudo, também é verdade que nem
tudo precisa ser dito para ser signi-
ficado, para ser compreendido. Um
Como viemos mostrando até aqui, os efeitos de sentido se constituem na relação
exemplo disso nós já vimos quando
da materialidade textual com as suas condições de produção, que incluem desde
falamos sobre o funcionamento de
as circuntâncias imediatas em que um texto é produzido até o contexto sócio enunciados como “que calor!”, que
-histórico de disputa e tensão pelo poder, que é sempre ideológico. podem fazer com que alguém ligue o
ventilador, ainda que esse pedido não
No jogo dos sentidos, entram em cena a memória do dizer, que, tenha sido expresso textualmente.
Pois bem, o pedido não foi dito, mas
como vimos, é composta por dizeres já–ditos que permanecem em
foi significado em função de questões
circulação, e também as imagens dos lugares ocupados pelos sujei-
contextuais, como vimos.
tos que, por sua vez, decorrem de práticas ideológicas.
Logo, como você já deve estar percebendo, o sentido não depende
somente daquilo que é dito, isto é, da materialidade linguística pre-
sente em um texto. O que é dito significa sempre na relação com o
já-dito, que é a memória do dizer; e significa também na relação com
o não-dito, mas que, de diferentes modos, se marca no dizer, partici-
pando da produção de efeitos de sentido.
Por essa você não esperava, não é mesmo? Você deve estar se per-
guntando: como aquilo que não é dito pode significar no dizer? De
fato, é uma questão bastante intrigante... Mas isso apenas a princí-
pio. Observando mais atentamente, vamos ver que a questão não é
tão complicada assim.

O não-dito e os sentidos
O não-dito pode se marcar no dizer de diferentes modos, como nos
mostram os trabalhos de vários estudiosos de linguagem. O seman-
ticista francês Oswald Ducrot (1972), por exemplo, dedicou parte de
seus estudos à compreensão do funcionamento dos implícitos, que
são justamente um modo de manifestação da relação entre o dizer e
o não-dizer na linguagem.

RESUMO
Na base dessa sua reflexão está o entendimento de que não é somente aquilo que é dito
textualmente que pode ser compreendido a partir de um texto. Algumas informações
que ficam implícitas participam igualmente do processo de constituição de sentidos.

Para entendermos melhor o que Ducrot chamou de implícitos,


vamos partir de um exemplo: o poema Do amoroso esquecimento, de
Mario Quintana, que reproduzimos a seguir.

capítulo 6 • 121
Do amoroso esquecimento (1945)

Eu, agora - que desfecho!/Já nem penso mais em ti.../


Mas será que nunca deixo/De lembrar que te esqueci?

(Mário Quintana, em Antologia poética, 2001)

No segundo verso do poema, o poeta afirma o esquecimento daquela pessoa que ele
amava. Nesse dizer do poeta, o emprego do advérbio “mais” marca o funcionamento de
um implícito. Vamos ver como isso acontece?

Já nem penso mais em ti...

Ao afirmar que deixou de fazer alguma coisa, o sujeito que enuncia marca em seu dizer
que essa mesma coisa era feita anteriormente, em um tempo passado.

CONCEITO
O pressuposto é um tipo de implícito, que está relacionado ao funcionamento da instância da lingua-
gem, ou seja, àquilo que é dito propriamente. Como afirma Orlandi (2001, p. 82): “O posto (o dito) traz
consigo um pressuposto (não-dito, mas presente).”

Na continuidade do poema, os dois versos finais denunciam justamente que esse


pensar ainda não faz parte do passado, sinalizando a dificuldade do poeta em esquecer
esse outro, ao final de um relacionamento amoroso vivido.

Mas será que nunca deixo / De lembrar que te esqueci?

Será que o fim do relacionamento foi contra a vontade do poeta? Poderíamos


interpretar que ele não consegue deixar de lembrar de um relacionamento que acabou
virando um “esquecimento amoroso”.

Pensar que o relacionamento acabou contra a vontade do poeta já é uma interpreta-


ção a partir do que foi dito, pois o motivo para o poeta ter de esquecer esse amor tam-
bém fica não-dito no poema.

COMENTÁRIO
Nesse caso, temos outro tipo de implícito: o subentendido, que não está diretamente ligado àquilo
que é dito, à instância da linguagem, mas que pode ser interpretado em função do contexto em
que foi enunciado.

Os implícitos, como vemos, são modos de funcionamento do não-dito naquilo que é


dito. Outros modos de funcionamento do não-dito na linguagem estão mais diretamente

122 • capítulo 6
relacionados à instância do discurso, na relação com o funcionamento CONCEITO
da memória do dizer e da ideologia.
Implícitos:
RESUMO Como afirma Eduardo Guimarães
(2006, p. 135), ao tratar do implícito:
Na relação com a memória do dizer e a evidência do sentido, que é um trabalho da “Há algo que está significado no
que se diz que não está diretamente
ideologia, o não-dito significa justamente pela sua ausência no dizer, pela relação
dito, é preciso que um certo tipo de
entre o que é dito e aquilo que poderia igualmente ser dito, mas que não o foi.
raciocínio (um procedimento de inter-
pretação) seja feito para se retirar da
Vejamos um exemplo de produção de sentidos na imprensa. Ao relatar língua, com suas regras de combina-
a ação de movimentos como o dos trabalhadores rurais sem terra (mst), a ção e das condições específicas de
grande imprensa geralmente designa tal ação de “invasão”, enquanto os funcionamento dos enunciados no
acontecimento, o que eles significam.”
membros do movimento costumam falar em “ocupação”, como afirma
Indursky (1999), após várias análises dos discursos do/sobre o mst.

A MESMA AÇÃO PODE SER NOMEADA COMO...

INVASÃO OCUPAÇÃO
Quando se opta pela palavra
“INVASÃO”, marca-se na língua uma
oposição ao termo “OCUPAÇÃO”,
adotado pelo MST.

Além de se marcar uma oposição, o termo “INVASÃO” constitui sentidos para a


memória de quem lê, relacionando o termo aos sentidos de outras “invasões”:
atos criminalizados, passíveis de punição.

É justamente essa a relação entre o dito e o não-dito que podemos


observar nos enunciados a seguir:

Ministério Público denuncia 72 alunos pela ocupação


de reitoria em 2011
Fonte: Jornal online Última Instância, portal uol, publicado em 06/02/2013.

Até alunos contra a invasão da reitoria criticam denúncia


Fonte: O Estado de São Paulo (versão online), publicado em 07/02/13.

COMENTÁRIO
Os dois enunciados tratam de uma mesma ação: a denúncia feita pelo Ministério Públi-
co do Estado de São Paulo contra funcionários e alunos da Universidade de São Paulo
(usp), que, em protesto, ocuparam a reitoria da universidade em 2011. Nesse exemplo,
dizer “ocupação” é não-dizer “invasão”, e vice-versa, e esse não-dito também irá produ-
zir os seus efeitos no dizer, marcando uma posição ideológica, dentre outras, e fazendo
com o que os sentidos sejam filiados a certas memórias do dizer e não a outras.

capítulo 6 • 123
CONCEITO Desse modo, podemos observar que o não-dito é mesmo constitu-
tivo do dizer: dizer uma palavra é necessariamente não dizer outra. É
Censura: justamente entre o dito e o não-dito que os efeitos de sentido se pro-
Censura é uma prática adotada por um duzem. Ou, como nos diz Orlandi (2001, p. 82): “... ao longo do dizer,
grupo no poder para impedir ou punir a há toda uma margem de não-ditos que também significam.”
circulação de informação não autori-
zada. Atualmente, pode ser entendida
como qualquer tentativa de cercear
a liberdade de expressão. Durante o
O não-dito e o silêncio
período da ditatura militar no Brasil,
entre 1964 e 1985, a interdição ao dizer Do mesmo modo que para dizer de um jeito é necessário não di-
resultou no exílio de muitos artistas e zer de outro, o não-dito também pode funcionar de modo a apa-
intelectuais brasileiros, que insistiam gar outros sentidos, ou seja, fazendo com que alguns sentidos não
em dizer aquilo que, segundo o governo
compareçam no que é dito, sejam silenciados, enquanto outros
militar, não podia ser dito.
são privilegiados.

CURIOSIDADE
Para além desse silêncio que constitui mesmo os sentidos, Orlandi (2002), ao
estudar as formas do silêncio, apresenta-nos outros dois modos de seu funcio-
namento diretamente ligados ao não-dito: o silêncio fundador, que é condição da
linguagem, e o silenciamento ou política do silêncio, que se divide em dois tipos:
o silêncio constitutivo e o silêncio local.

Em nosso exemplo, com os enunciados sobre a decisão do Mi-


nistério Público paulista de denunciar estudantes da usp, temos um
caso de silêncio constitutivo. Vejamos novamente:

Até alunos contra a invasão da reitoria criticam denúncia.

Dizer “invasão” é impedir que os sentidos de “ocupação” se legitimem,


sejam reconhecidos. Nesse caso, é calar o sentido da ação dos
estudantes como um movimento legítimo, justamente porque dizer
“invasão” significa silenciar esse outro sentido possível (o de “ocupação”).

Ao definir o silêncio constitutivo, Orlandi (2001,


p. 83) afirma: “... uma palavra apaga outras
palavras (para dizer é preciso não-dizer)”.

Já a noção de silêncio local é empregada pela autora para explicar


o funcionamento da censura, que consiste justamente na interdição
a certos dizeres em uma conjuntura dada.
São inúmeras as letras de músicas, por exemplo, que tentam es-
capar à proibição de dizer imposta pela ditadura militar no Brasil,
recorrendo a dizeres outros. Vejamos um exemplo no fragmento da
letra da música Meu caro amigo, uma composição de Chico Buarque
e Francis Hime:

124 • capítulo 6
Meu caro amigo

[...]
Aqui na terra tão jogando futebol / Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll / Uns dias chove,
noutros dias bate sol / Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui / tá preta
[...]

Fonte: disco Meus caros amigos, de Chico Buarque, lançado em 1976.

Os autores afirmam a banalidade das ações cotidianas, marcadas em expressões


como “jogando futebol”, “muito samba” e no verso “uns dias chove, noutros dias bate sol”.
No entanto, não deixam de afirmar que o que “querem dizer”, ainda que não possam, é
que a situação não vai bem. A expressão “a coisa aqui tá preta”, que será repetida várias
vezes na canção, sinaliza a interdição ao dizer, os sentidos da censura marcados pela
cor preta que silencia, impedindo sentidos outros de circular. Outra marca é a expres-
são “muito choro”, que em meio à menção a “samba” e “rock’n’roll” pode ser signifi-
cada meramente como um ritmo musical, mas que também pode encaminhar para o
sentido de sofrimento provocado pelas prisões, pelos sumiços e pelas mortes impostas
àqueles que teimavam em não silenciar.

COMENTÁRIO
No caso do silêncio local, a interdição ao dizer leva à busca por possibilidades outras de fazer com-
parecer o não-dito naquilo que ainda pode ser dito. Conforme nos diz Orlandi (2001, p. 83): o “silêncio
local, que é a censura (...) faz com que o sujeito não diga o que poderia dizer: em uma ditadura não se
diz a palavra ditadura não porque não se saiba, mas porque não se pode dizê-lo.”

Como vemos, é na relação entre a possibilidade do dizer (o dito e o não-dito) que os


efeitos de sentido vão se constituindo, podendo sempre ser outros, o que é possibilita-
do pelo silêncio e pela natureza mesmo da linguagem, que é incompleta.

O dizer e o já-dito
Uma vez que todo dizer traz consigo um já-dito e um não-dito, que, como vimos, são
trabalhados via memória do dizer, podemos afirmar que todo dizer retoma em si sen-
tidos já-ditos, ao mesmo tempo em que permitem que sentidos outros se constituam,
possibilitando assim novos processos de significação.

ATENÇÃO
Uma consequência disso é que todo dizer retoma dizeres ditos previamente e que são atualizados ao
serem ditos de novo, em novas condições sócio-históricas e ideológicas, por e para outros sujeitos.

capítulo 6 • 125
CONCEITO Vamos ver um exemplo para entendermos melhor esta relação en-
tre o dizer e o já-dito? Têm circulado muito na internet, de um modo
Funcionamento da paráfrase: geral, quadrinhos que trazem novas versões de ditados populares
Como afirma Orlandi (2001, p. 36), bem conhecidos. Vejamos dois deles:
“em todo dizer há sempre algo que
se mantém, isto é, o dizível, a memó-
“Amigos, amigos, senhas à parte.”
ria. A paráfrase representa assim o
retorno aos mesmos espaços do dizer. O já-dito é “Amigos, amigos, negócios à parte”, sendo o termo “negócios”
Produzem-se diferentes fomulações do substituído por “senhas”, muito requeridas no espaço digital. Mas um dos
mesmo dizer sedimentado”. Logo, a pa- sentidos do ditado tradicional permanece: as relações de amizade devem
ráfrase tem como marca a repetição, a ser separadas das negociações, sejam elas no mundo real ou virtual.
reiteração de certos dizeres que fazem
parte da memória discursiva e que são “Não adianta chorar sobre o arquivo deletado.”
mobilizados pelos sujeitos.

O já-dito é “Não adianta chorar sobre o leite derramado”. No dito, a


expressão “leite derramado” é substituída por “arquivo deletado”.
AUTOR O sentido do ditado original, no entanto, permanece: em algumas
situações, não há nada que possa ser feito, daí ser inútil chorar.

Lavoisier:
Antoine Laurent de COMENTÁRIO
Lavoisier (1743-1794)
é considerado o pai Em casos como esses, apesar de termos uma formulação original nos ditados,
da Química moder-
que aparecem repaginados em relação a novas condições de produção do espa-
na. Apesar da excepcional contribui-
ço virtual, temos uma retomada de dizeres já-ditos, o que quer dizer que discursi-
ção científica que deu à humanidade,
especialmente nos estudos da maté- vamente temos o funcionamento da paráfrase.
ria e sua conservação, foi condenado
à guilhotina. Agora, veja mais um exemplo de ditado popular da era digital:

Na informática nada se perde, nada se cria. Tudo se


copia…. e depois se cola.

Nesse caso, vemos que o sentido do provérbio tradicional não se man-


tém; ele é deslocado, a partir da recuperação da famosa frase de Lavoisier.
O ditado retoma um dizer já-dito, mas também promove uma rup-
tura de sentido: “Tudo se copia... e depois se cola”. Na retomada de
outro dizer já-dito em outro espaço, “copiar e colar” textos, retoman-
do a facilidade de cópia proporcionada pelos comandos “Ctrl+c” e
“Ctrl+v”, a ruptura se evidencia.

RESUMO
Nesses dois casos, temos a possibilidade de sentidos outros, um deslocamento
de sentido, apesar da aparente retomada de uma frase famosa. Desse modo,
temos o funcionamento da polissemia. Segundo afirma Orlandi (2001, p. 36), “na
polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação.
Ela joga com o equívoco.”

126 • capítulo 6
É na relação entre paráfrase e polissemia que os dizeres se assentam, uma vez que
eles sempre retomam dizeres já-ditos, mas também promovem deslocamentos, que
fazem com que o sentido possa sempre ser outro.

Sujeito e sentido
Até agora, pensamos no funcionamento da linguagem e nos modos como os processos de
sentido se constituem, observando a relação entre texto e discurso do lado da interpretação.
Mas como será que podemos pensar todas essas características da linguagem do lado da sua
produção? Qual a relação do sujeito com a linguagem, com os seus enunciados e textos?
Se compreendemos que os sentidos sempre se constituem na relação entre a lin-
guagem e as suas condições de produção, e que assim fatores sócio-históricos e ideo-
lógicos determinam o modo como os discursos produzem os seus efeitos de sentido,
é preciso também entendermos que, nessa mesma relação de linguagem e de senti-
dos, está imerso o sujeito da/na linguagem.

ATENÇÃO
O sujeito ocupa sempre uma posição discursiva ao abrir a boca para falar, e essa posição traz suas
marcas ideológicas, o que equivale a dizer que o sujeito diz sempre de um lugar, produzindo sentidos
que para ele aparecem como se fossem evidentes e naturais.

É por isso que, quando pensamos o texto da perspectiva de sua produção, em sua
relação com o discurso, pensamos que o sujeito, autor de seu texto, constitui-se por um
efeito imaginário, que coloca o sujeito na origem de seu texto, apesar de seu dizer se
constituir sempre a partir de uma memória discursiva, a partir do já-dito. O mesmo irá
se dar com o sujeito-leitor.

Vejamos um episódio verídico: uma criança com quase 7 anos, já alfabetizada, recém-ingressada em
uma nova escola, que, no caso, era católica, em um dos exercícios a serem feitos, em que aparecia
“Qual é o nome do papa?”, acrescenta um “i” ao nome “papa” e escreve, então, o nome do seu pai.

COMENTÁRIO
Ora, de imediato temos aí um exemplo do que dissemos no início: somos instados a dar sentido e o
fazemos. Para ela, era evidente que faltava um “i” para papai; o “i” de “papai” inscreve-a como leitora.

Disso resulta que a leitura, então, não é aqui considerada como decodificação de um
código; ao contrário, como explica Orlandi (1988, p. 39), “o leitor traz para sua leitura a
sua experiência discursiva, que inclui sua relação com todas as formas de linguagem”.
Tal como a função-autor, a função-leitor tem condições de produção que produzem cer-
tos sentidos e não outros, o que produz, por fim, a evidência de que só pode ser assim...
Terminamos, então, essa nossa jornada que foi do texto ao discurso, introduzindo no-
ções teóricas novas que estabelecem relação de continuidade com conceitos já estudados

capítulo 6 • 127
em capítulos anteriores, tais como posição-sujeito, polissemia e tipologia discursiva.
É justamente assim que julgamos ser importante proceder aos estudos da linguagem:
acrescentando, ao dispositivo de análise, novos desafios e teorizações.

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QUINTANA, M. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 2001.

IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 110 Resmungos p. 119 Italo Calvino
Divulgação · Imprensa Oficial do Autor desconhecido · Wikimedia
Estado de São Paulo
p. 126 Antoine Lavoisier
p. 115 Wedding cake Louis Jean Desire Delaistre ·
Olah Beata · stock.xchng · rf Wikimedia · cc

p. 118 Constituição
Victor Maia · Estácio

128 • capítulo 6

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