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Armas menos letais.

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OPINIÃO

Comentários sobre armas “Não-Letais”


Chocada com as milhares de mortes de não combatentes em toda a sorte não pode e não deve abusar das armas de fogo,
Ao alto Os dardos de um
de guerras, a opinião pública cada vez mais professa a idéia de que as mesmo em situações em que seu emprego seja
Taser permitem atingir
legal e legítimo, pois quase sempre haverá
vidas humanas são muito valiosas e que por isso devem ser preservadas questionamento sobre sua conduta. No meio
seu alvo a mais de 10m
com o emprego de recursos que permitam incapacitar pessoas, com o de distância (foto Taser).
policial e de segurança, em que se pretende
mínimo de danos, se possível com efeitos temporários e reversíveis. normalmente deter e dominar recalcitrantes,
armas “não letais” já são usadas há muito tempo (cassetetes, escudos, bom-
n VINICIUS D. CAVALCANTE bas atordoantes de luz e som, granadas e espargidores de gases irritantes e
projéteis de borracha). O arsenal das polícias passou também a contar com

E
sse tipo de baixas — mesmo em se tratando “do inimigo” — é difícil de jus- redes de contenção capazes de deter pessoas e até veículos, armas sonoras,
tificar, sobretudo quando há uma desproporção favorável dos meios à dis- armas de choque e os chamados sprays incapacitantes. Vejamos um pouco
posição das forças que normalmente impõem tais baixas. Assim, no início mais sobre essas armas.
da década de 1990, surgiu nos Estados Unidos e na Europa o conceito de “Não
Letal”. No contexto militar, o objetivo seria o de não aplicar uma destruição fí- Projéteis de borracha/plástico
sica indiscriminada, ou seja, atingir os alvos mas limitando os danos físicos, mi- O termo engloba tanto os projéteis de calibre até 40mm disparados por
nimizando mortes, ferimentos permanentes e prejuízos indesejáveis à lançadores especiais como granadas de bocal até balotes singelos e múltiplos
propriedade. para espingarda. São empregados normalmente em espingardas, na con-
Para alcançar esses objetivos, faz-se necessário empregar armamentos tenção de tumultos violentos.
não-convencionais. Hoje, está em uso uma grande quantidade de armas so- São compostos de um cartucho de munição normal, com uma carga de
noras, eletromagnéticas, elétricas e químicas, e muitas outras vêm sendo alvo projeção bem atenuada, capaz de disparar projéteis de plástico macio ou
de pesquisa e desenvolvimento. Elas proporcionam uma ferramenta eficaz borracha, que proporcionam um impacto doloroso no alvo, sem contudo
em situações em que — por razões éticas ou políticas — se pretenda limitar penetrar-lhe a pele. O alcance eficaz gira em torno de 40m, e não devem ser
a escalada de um conflito ou em que o emprego da tradicional força letal disparados contra a cabeça. Uma variação recente dessa tecnologia emprega
seja proibido ou indesejável. pequenos saquinhos de tecido, cheios de balins (pellets) plásticos, sementes
A partir do emprego do que se convencionou chamar de “Armas Não- de milho ou de feijão, disparados de cartuchos de espingarda ou de armas
Letais” diminui-se sensivelmente também a possibilidade de ocorrência mas- maiores, contra turbas hostis.
sacres de civis, muitos dos quais eram gerados pela necessidade de conter
multidões hostis. Uma vez que tropas disponham de armas adequadas, elas Spray de pimenta
podem observar os princípios de gradação do uso de força, apenas empre- Trata-se de produto para controle de distúrbios que também encontrou
gando seus petrechos letais em último caso. ótimo uso na defesa pessoal. Produzido a partir de um gênero de pimen-
Na atividade de segurança, a perspectiva do uso de força letal é bastante tas vermelhas (capsicum), é empregado em borrifadores e em granadas.
restrita, e só se justifica se existirem vidas em jogo. Um policial escrupuloso Sob a forma de aerosol ou de espuma, causa forte irritação nos olhos, vias

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respiratórias e pele. É erroneamente cha- Acima Exemplo de bala de sico. Essas armas possuem forte efeito dissua- Acima Equipamento
mado de gás paralisante, mas não paralisa borracha, para sor psicológico, em face do seu centelhamento ADS montado sobre
nenhuma função corpórea. Contudo, seu espingardas calibre 12. e do efeito que deixam em quem tenha recebido viatura Humvee
efeito cegante e sufocante praticamente Note-se que e embalagem descarga. No Brasil, as Stun Gun estão libera- (Foto: U.S. Army)
impede quaisquer outras ações que não a anuncia como “Less das para uso civil, podendo ser compradas sem
de aflitivamente procurar se livrar da subs- Lethal”, ou seja, “Menos qualquer registro ou burocracia.
Letal” (Foto: Lightfield).
tância aplicada.
Diversas variantes contém uma tintura Taser
especial ultravioleta, que permite marcar as pessoas atingidas, para identi- O Taser, nome comercial que acabou representando toda uma catego-
ficação posterior. Em diversos estados americanos está liberado para uso ria de armas, é uma arma de choque que permite atingir o alvo a uma certa
civil, embora na versão policial a concentração da substância irritante seja distância. Dispara um par de dardos, normal-
muito maior. No Brasil, os sprays à base de pimentas vermelhas não são li- mente propelidos por gás comprimido, que são
berados para uso civil, o que levou diversas empresas locais a buscar maté- conectados a uma fina bobina de fios, que se de- Abaixo Dispositivo
sonoro LRAD a
rias primas alternativas para aerosóis defensivos, como o gengibre. Existem senrola e conduz o pulso elétrico até o alvo. Os
bordo de navio,
antídotos razoavelmente eficazes, e os efeitos não tratados costumam cessar dardos penetram as roupas e se cravam na pele, para evitar a
em cerca de meia hora. transmitindo descargas elétricas de alta volta- aproximação de
gem (com amperagem baixa, como uma Stun embarcações
Stun Gun Gun comum). suspeitas (Foto:
Nos anos 60, o Senado dos Estados Unidos propôs ao Departamento de Embora em diversos modelos seja possí- LRAD Corporation).
Justiça o desenvolvimento de um item de defesa pessoal, portátil, que pu-
desse ser usado no lugar das armas de fogo. As primeiras Stun Gun, conhe-
cidas como “Cattle Prod”, tinham o volume de uma lanterna; possuíam dois
contatos na extremidade e eram capazes de aplicar um choque de aproxi-
madamente 20.000V. Como a corrente usada nesses primeiros aparelhos era
considerada alta (entre 2 e 3A), os efeitos lesivos de natureza séria não eram
raros e nem improváveis.
Nos anos 70, a arma evoluiu para dimensões mais compactas, com
circuitos eletrônicos que permitiam descargas de 45.000V (com apenas
1/8de Ampère), capazes de provocar rápido colapso muscular nas pes-
soas contras as quais era empregada. Hoje, as armas de choque (de con-
tato) existem em potências de 65.000-250.000V. Acionadas em contato
com o corpo do oponente, vão provocar desequilíbrio e perda do controle
muscular.
O disparo da arma não eletrocuta; apenas aplica energia que imobiliza
o alvo. Quando um músculo se contrai em face do choque, ele puxa o mús-
culo seguinte na linha, criando um efeito dominó que acarreta o colapso fí-

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Projetor de Raios Térmicos


Com o eufemístico nome de “Sistema de Nega-
ção Ativa” (Active Denial System, ADS), esse equipa-
mento foi concebido pelas forças armadas dos EUA
para dispersar multidões, provocando uma insupor-
tável sensação de calor. A partir de uma antena plana,
a arma emite uma microonda de 95GHz capaz de
causar uma sensação térmica de 55ºC em pessoas dis-
tantes até 500m. Esse nível de calor é atingido em 3s,
e ninguém resistiria a essa exposição por mais de 5s.

Considerações
Só para exemplificar, dois cenários em que a
polícia pode intervir com armas “Não-Letais” se-
riam: numa carceragem onde haja uma sublevação,
os presos podem ser controlados com o mínimo de
riscos ou danos físicos tanto para eles e para os
agentes da Lei; um suspeito forte e corpulento que
ofereça resistência pode ser subjugado sem o uso
de arma de fogo. Mas há exceções. No conhecido
caso de Rodney King (em Los Angeles, 1992), em-
Acima Polícia de Miami vel dar descargas contínuas mantendo o ga- bora o recalcitrante haja tomado duas descargas elétricas de 50.000V cada de
utiliza LRAD no tilho apertado, a preocupação de que isso uma Stun Gun”, ele ainda conseguiu se recompor rapidamente e, mesmo es-
controle de distúrbio possa ser deliberadamente empregado para tando embriagado investiu contra um policial, até ser finalmente dominado
(Foto: LRAD torturar já faz com que os fabricantes limitem por outros três agentes. Isso é claro, deveu-s à sua fisiologia individual, que
Corporation). o tempo de uma única descarga. Uma varia- lhe permitiu uma rápida recuperação após cada choque.
ção interessante do Taser é o projétil dispa- No Brasil, onde diversas ocorrências de emprego de excesso de força letal
rado por espingarda calibre 12, que contém sua própria fonte de energia pelas forças de segurança viraram manchetes, a idéia do emprego das armas
e que, ao atingir o alvo, provoca o efeito de choque e colapso muscular “Não-Letais” pelas polícias e até pela segurança privada tomou força. Em
involuntário. nosso país são frequentes os distúrbios urbanos e rurais, e mesmo no com-
bate ao tráfico de drogas as polícias devem lidar com protestos de civis coop-
Dispositivo Acústico de Longo Alcance (LRAD) tados pelas facções do crime organizado, que não devem ser tratados com a
O Long Range Acoustic Device (LRAD), desenvolvido no meio mi- metodologia tradicional de força repressora.
litar como um equipamento de áudio para transmitir mensagens a lon- O emprego indiscriminado de armas de fogo em certas missões gera,
gas distâncias, acabou derivando para uma arma não-letal capaz de quase sempre, vítimas que poderiam ser evitadas. Isso concorreu para que
direcionar e concentrar o feixe de som numa determinada direção e emi- os recursos “Não-Letais” fossem particularmente aclamados por uma grande
tir um ruído insuportavelmente alto (150dB, equivalente ao nível de quantidade intelectuais, políticos e jornalistas como uma “solução” alterna-
ruído de um avião a jato a 3m de distância). O alcance máximo pode tiva às armas de fogo, cuja demonização tomou força com a promulgação do
chegar a 2km, e à distância de 500m é possível projetar ruído num nível Estatuto do Desarmamento, em dezembro de 2003.
superior a 100dB! Empregado no controle de distúrbios, para dispersar No leque das missões desempenhadas pelas nossas forças de segurança
multidões, tais armas podem ser de dimen- pública havia uma enorme adequação para o emprego de armamento não-
Abaixo Uma “Stun Gun” sões reduzidas, sendo inclusive acopladas a es- letal. Dotar policiais de sprays de gás de pimenta, granadas químicas e armas
de 200.000V: a visão cudos balísticos. Versões de maior capacidade de choque elétrico como as pistolas Taser é uma necessidade, mas isso não
da centelha e seu são hoje utilizadas na proteção de navios con- substitui pistolas, carabinas, espingardas e fuzis na totalidade dos cenários tá-
ruído impressionam. tra de piratas, por exemplo. ticos e situações em que os agentes da autoridade policial terão de atuar.

Perigos
Ainda que seu emprego objetive diminuir o número de mortes, feri-
mentos e mutilações, as armas “Não-Letais” não estão isentas de produzir re-
sultados não esperados, havendo vários registros de mortes provocadas por
armas que, ao menos teoricamente, têm menor potencial ofensivo. Por isso,
em diversos países, forças de segurança usam os termos “Armas Menos Le-
tais” ou “Menos que Letais” (“Less-Lethal” ou “Less-Than-Lethal”). Essas
denominações são mais adequadas e realistas, pois é difícil assegurar um re-
sultado perfeito em 100% das situações de combate.
Durante os anos mais críticos da atuação das forças britânicas na Irlanda
do Norte, mais de 125.000 projéteis supostamente “Não-Letais” teriam sido
disparados no controle de distúrbios civis, e 17 pessoas tiveram seu óbito as-
sociado ao impacto causado por tais munições. Essas chamadas “balas de
borracha” de 37mm eram concebidas para provocar dor, mas não ferimen-

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tos graves. Disparadas para baixo, a uma distância


mínima de 30m, de forma atingir manifestantes
nas pernas, elas deveriam produzir contusões,
abrasões e hematomas. Na prática, porém, verifi-
cou-se que elas podem causar fraturas, lesões em
órgãos internos e, em casos extremos, a morte.
Mesmo as munições semelhantes empregadas em
espingardas calibre 12, podem, se disparadas con-
tra cabeça, pescoço ou nuca, produzir lesões que
levem à morte.
Mesmo gerando descargas de baixa ampera-
gem, as armas atordoantes de choque elétrico tam-
bém podem vitimar aqueles contra os quais são
empregadas. Não há documentos definitivos que
comprovem os efeitos mortais de sua descarga elé-
trica, mas não se pode descartar o perigo de que a
alteração repentina do ritmo cardíaco possa levar
à morte de pessoas de compleição leve, nervosas
ou que estejam sob o efeito de drogas.
Outra condicionante seria, é claro, a duração
da descarga elétrica. Normalmente, o choque de
2s-3s é mais do que suficiente para que uma forte contração muscular invo- No Rio de Janeiro, a repercussão dessas duas Acima Emprego da
luntária jogue o indivíduo no chão. A exposição a altíssima voltagem por mortes, sem relação entre si, motivou as autori- rede anti-veículo para
períodos maiores ou de forma repetitiva certamente descaracterizaria a idéia dades municipais a recolherem as pistolas Taser deter uma viatura
de emprego não letal dessas armas atordoantes De toda forma, vale estabe- em uso pela Guarda Municipal, vulnerabilizando (Photo: U, S, Army,
lecer aí uma analogia com o poder de parada (stopping-power) das muni- a segurança dos agentes, a quem até hoje não se Capt. Teresa Ovalle).
ções de armas de fogo; considerando que, assim como nem todo mundo que permitiu empregar armas de fogo. Diferente-
é atingido por um tiro reage da mesma forma, algumas pessoas seriam mais mente de suas congêneres em diversas outras
suscetíveis a se deixar abater pelo choque elétrico do que outras. unidades da federação, a Guarda Municipal carioca recomeçou suas ativida-
No caso do spray de pimenta, tanto sob a forma de aerosol quanto de es- des em 1992 dentro do regime da CLT, e mesmo depois de tornada estatutá-
puma, não se tem notícia de óbito ou lesão permanente. Mas não se pode des- ria, ainda enfrenta um forte lobby contrário à sua dotação com armas de fogo.
cartar a possibilidade de problemas mais sérios em alguém altamente alérgico Sucessivos prefeitos e parlamentares vêm defendendo que os efetivos da cor-
às subtâncias componentes da fórmula ou quando a concentração do agente poração atuem apenas com cassetetes, sprays de pimenta e armas de choque
agressivo no ambiente possa provocar asfixia. Da mesma forma, o pânico ge- — mas, agora, nem os Taser a corporação pode usar.
rado pela cegueira temporária, pela ardência da pele e da mucosa da boca e Isso soa como uma daquelas decisões em que não se considera a opi-
nariz pode, no caso de pessoas nervosas, trazer conseqüências funestas. nião dos técnicos e de quem opera o equipamento e está na linha de frente.
A experiência pessoal do autor com as três armas citadas o fazem crer Prepondera apenas a “achologia” daqueles que, no lugar dos guardas, ja-
que os resultados negativos no uso de tais recursos estão íntimamente rela- mais se disporiam a correr tais riscos e trabalhar sem armas nas ruas, mor-
cionados às deficiências de treinamento ou ao passionalismo dos agentes mente numa cidade onde as viaturas policiais
que as empregam. Se um policial que se deixe levar pela raiva vier a dispa- há muito não deixam suas bases sem que um
Abaixo Militar ameri-
rar projéteis de borracha ou plástico a curta distância, contra pontos vitais de dos seus tripulantes esteja portando uma arma cano se familiarizando
um manifestante, ele estará assumindo o risco de matar. Se o agente que dis- longa de grande potência como fuzil ou, no mí- com os efeitos do
para um Taser mantiver o alvo sob choque por muito tempo, ele pode matar nimo, uma carabina... Mas não é essa a pri- spray de pimenta
aquele a quem, ao menos teoricamente, só pretendia deter. Mas, em tais meira vez que teóricos pretendem transformar (Foto: U.S. Army, Staff.
casos, o erro estará no emprego, e não na arma em si. exceção em regra. n Sgt. David Chapman).

Enfoque errado
Muitos acadêmicos e até autoridades passaram a encarar as armas “Não-
Letais” como uma panacéia, acreditando que — ao arrepio das opiniões téc-
nicas — efetivos de segurança pública e privada pudessem ser “armados”
exclusivamente elas. O que em algumas situações pode ser permitido ou de-
sejável por certo não se aplica em todos os casos.
Em março de 2012, a morte de duas pessoas atingidas por disparos de
armas de choque lançou grande polêmica em torno da sua eficácia não letal.
Em março, um brasileiro foi vitimado por disparos de pelo menos duas
armas Taser da polícia australiana. Posteriormente, em Florianópolis (SC),
um homem de 33 anos, que havia consumido cocaína, morreu após ser imo-
bilizado com um choque elétrico de uma pistola Taser disparada por um
PM, sendo essa a primeira vez no Brasil que uma morte foi relacionada às
armas de choque.

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