Dialogo sobre as razOes
da diversidade teorica na
linguistica
O didlogo se dé numa sala de aula imagindria. O professor apresentou
um amplo panorama da lingitistica no século XX, listando uma infinidade de
teorias lingtiisticas concorrentes e um sem-ntimero de tedricos. Diante da per-
plexidade dos alunos, 0 Professor resolve discorrer sobre as razdes da diversidade
teérica na lingitfstica.)!
Aluno ALFA: Na ultima aula, Professor, vimos um panorama da lin-
giiistica que me deixou completamente confuso, com a impressdo de que a
lingiiistica € um caos. Por que ela € assim?
PROFESSOR: Para responder esta pergunta preciso que pensemos um
pouco sobre algumas das caracterfsticas do nosso objeto de estudos: a lingua-
gem. A linguagem humana é um fenémeno (se pudermos dizer que ela € um
fendmeno) extremamente complexo. Fla esta presente a todo instante e se
liga a tudo o que o homem faz. Pode-se dizer, por exemplo, que a linguagem
6 suporte do pensamento (a questo classica é: “pode-se pensar sem lingua-
| Este trabalho surgiu de uma palestra feita para os alunos de Letras da UFPR em maio de
1985, Agradeco aos alunos que questionaram algumas das posigdes 14 defendidas. Agradeso
também aos professores Carlos Alberto Faraco, José Luiz Mercer e Ana Lacia Maller pelos
comentarios que fizeram a uma primeira versio deste trabalho. A responsabilidade pelas
afirmagoes do texto, no entanto, é apenas minha.gem?”); a linguagem é instrumento de comunicagao € de ago sobre os ou-
tros; a linguagem é matéria de arte; a linguagem ¢ usada como marca de
posigao social.
DELTA: Nem precisa ir adiante, Professor. Acho que todo mundo esta
convencido da importancia da linguagem em nossas vidas e entende a sua
ligacdo estreita com nossas atividades.
PROFESSOR: Entao vamos adiante. Do fato de a linguagem se ligar
visceralmente ao “humano” decorre que seu estudo nem sempre pode ser
isolado de outros aspectos do “humano”. Por exemplo, nem sempre € possi-
vel estabelecer os limites entre a lingiiistica, que estuda as linguas naturais, e
a psicologia, que estuda os falantes. Pode-se dissociar a lingua daquele que a
fala? Nao é facil responder a esta pergunta. Nem sempre é possivel, também,
distinguir, em determinadas circunstancias, 0 que é 0 objeto da lingitistica ¢
o que é objeto da sociologia ou da antropologia.
GAMA: Eu nao estou entendendo bem esse ponto. O senhor pode dar
um exemplo?
PROFESSOR: Claro. E sabido que as Iinguas variam no tempo ¢ no
espaco. E ‘espaco’ ai pode significar tanto 0 espaco fisico (geografico) como
0 espago social (hierarquia de estratos sociais). Em outras palavras, as linguas
vio se modificando com o passar do tempo ¢ adquirem formas préprias,
determinadas culturalmente, em lugares diferentes ¢ em estratos sociais di-
ferentes, O portugues falado hoje nao ¢ igual ao portugués falado no século
XIII; 0 portugués falado hoje no Brasil nao é¢ igual ao portugués falado hoje
em Portugal; 0 portugués falado hoje no Brasil pela populacao de baixa
escolaridade (os “bdias-frias”, por exemplo), nao ¢ igual ao portugués falado
hoje no Brasil pelas pessoas de escolaridade mais alta (médicos, por exem-
plo). Podemos ver as linguas, entao, como uma sucesso temporal de “esté-
gios” (sincronias) e cada “estégio” como um conjunto de variacoes regionais
(dialetos) ¢ variagGes sociais (dialetos sociais ou socioletos). E facil perceber,
entdo, que a lingua de um povo nao se distingue, em principio, da historia
desse povo; nem se distingue da organizagao social dese povo a cada mo-
mento da historia. Esta claro?ALFA: Creio que sim. O que o senhor quer dizer é que a lingua de um
povo nao é um objeto que se realize a-historicamente, nem é um objeto
alheio as diferencas socioculturais existentes no meio social.
BETA: Como ele fala dificil!
PROFESSOR: Vocé entendeu o ponto, Alfa. A lingua nao “paira” sobre
a sociedade, mas esta presente nela e com ela se confunde.
BETA: | E por isso, entao, que o senhor diz que as veres fica dificil sepa-
rar 0 objeto da lingiiistica do objeto da sociologia ou da antropologia?
PROFESSOR: Exatamente. Mas tomemos outro caso. As andlises actisti-
cas das emissGes de fala revelam que a fala é um continuo. Em outras pala-
vras, do ponto de vista do sinal actistico — da fala como um fenémeno fisico
— nao ha entidades como segmentos ou sflabas, ou mesmo palavras. Nao
obstante, os falantes sio capazes de perceber segmentos, silabas ¢ palavras nas
emissoes de fala. Isto claramente revela que os falantes sao capazes de perve-
ber coisas que ndo estdo no sinal fisico, mas que pertencem propriamente ao
processo perceptivo do falante/ouyinte, Pode-se concluir dai que nao & pos-
sivel ver a lingua isoladamente da psicologia do falante. Em suma, assim
como nao se pode separar a linguagem do meio social em que cla é usada,
nao se pode separar a linguagem dos processos psicolégicos que, de certa
forma, “organizam” para os falantes essa linguagem. Nogoes lingitisticas como
Iingua, dialeto etc. sao claramente nogdes sociolégicas, enquanto forrema, si-
laba etc. sao nogdes francamente psicologicas.
BETA: | Parece, ento, que para entender a linguagem é preciso conhecer
hist6ria, sociologia, psicologia ¢ sabe lé o que mais.
PROFESSOR: Vocé ficou com essa impressdo? Otimo. Era justamente a
impressao que eu queria passar para vocés. Notem que a questéo que se
coloca neste ponto — e é basicamente a questo de Beta — é a da possibi-
lidade de se aprender a linguagem em suas miiltiplas relagdes com o ho-
mem e com as instituigoes humanas. O conjunto de relacoes, imbricagées e
superposigdes que a lingua mantém é tao grande que o homem, diante dela,
se sente como que diante de uma floresta, repleta de arvores, arbustos, cipds