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O REGISTRO CIVIL COMO CONDICIONANTE DE EXISTÊNCIA JURÍDICA E

A PRIVAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS


INDOCUMENTADAS NO BRASIL

Lorena Silva Vitório1


Eunice Maria Nazareth Nonato2

RESUMO
O presente artigo busca analisar registro civil como condicionante da
existência jurídica e identificar as consequências de sua não aplicação na vida
de pessoas indocumentadas. Para tanto, foi utilizada metodologia exploratória,
tendo sido realizadas buscas em estatísticas governamentais, na legislação
vigente e na literatura específica que versa sobre o tema. Os referenciais teóricos
adotados foram Arendt (1962), no campo dos direitos humanos, e Haesbaert
(2004), no que se refere ao território. Esse artigo evidencia que ainda há um
número expressivo de crianças sem registro civil de nascimento no Brasil, bem
como milhares de pessoas que por alguma razão, jamais tiveram sua identidade
registrada oficialmente e, consequentemente, se veem privadas de seus direitos
mais básicos.
Palavras-chave: Registro Civil. Direitos humanos. Pessoas
Indocumentadas.

ABSTRACT
The present article seeks to analyze civil registration as a condition of legal
existence and to identify the consequences of its non - application in the lives of
undocumented persons. In order to do so, exploratory methodology was used,
and searches were made on government statistics, current legislation and
specific literature on the subject. The theoretical references adopted were Arendt
(1962), in the field of human rights, and Haesbaert (2004), in what refers to the
territory. This article shows that there are still a significant number of children
without a civil registry of birth in Brazil, as well as thousands of people who for
some reason never had their identity officially registered and, consequently,
deprived of their most basic rights.
Keywords: Civil Registry. Human rights. Undocumented persons.

1
Mestranda em Gestão Integrada de Território pela UNIVALE (2018). Bolsista da CAPES. Especialista
em Direito Internacional pelo Centro de Direito Internacional -CEDIN (2017). Especialista em Direito
Público pela (2015). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce - FADIVALE
(2013). Advogada militante - Silva Vitório Advocacia. E-mail: lorena_svitorio@hotmail.com.
2
Pesquisadora e professora no curso de Mestrado em Gestão Integrada do Território da Universidade Vale
do Rio Doce. E-mail: eunicenazarethe@hotmail.com.
1. INTRODUÇÃO

O artigo em apreço contempla o registro civil como condicionante da


existência jurídica e de forma delimitada busca analisar a privação de direitos
das pessoas indocumentadas no Brasil.
De acordo com o Código Civil brasileiro e a Lei de Registros Públicos (Lei
n. 6.015/73), o Registro Civil de Nascimento (RCN) é obrigatório. Mais do que
isso, trata-se de importante instrumento de inclusão social. Consequentemente,
sua inexistência suscita gravíssima exclusão, uma vez que o indivíduo que não
é registrado se vê privado de seus direitos civis mais básicos.
Diante disso, este estudo busca analisar as estatísticas existentes sobre
pessoas indocumentadas no Brasil, bem como as consequências da inexistência
de registro civil nas pessoas que, juridicamente, jamais existiram.
No que tange à metodologia utilizada, foram realizadas buscas na base
de dados do IGBE3 e também em literatura específica que versa sobre o tema.
Como referencial teórico, a matéria será analisada sob a ótica dos direitos
humanos, à luz de Arendt (1962), a partir de suas concepções de cidadania.
Quanto ao território, utilizou-se Haesbaert (2004) como referencial teórico,
considerando sua discussão sobre regulação.
O texto está divido em três seções, além desta introdução. O tópico dois
tece considerações acerca do Registro Civil de Nascimento no Brasil. Por sua
vez, o terceiro estabelece relação entre a indocumentação e a privação a direitos
humanos com base análise da relação entre a inexistência jurídica dessas
pessoas e o poder soberano do Estado. Por derradeiro, as considerações finais
serão apresentadas no tópico cinco.

2. O REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO NO BRASIL

No ordenamento jurídico brasileiro, o documento que comprova o registro


civil de uma pessoa é a certidão de nascimento. É esse documento que confere

3
https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/populacao/9110-estatisticas-do-registro-
civil.html?=&t=o-que-e
identidade ao indivíduo e estabelece seu vínculo formal com seu Estado de
origem. A certidão de nascimento é, portanto, o símbolo da existência jurídica de
uma pessoa, e condição sine qua non para o exercício da cidadania em sua
plenitude.
O registro de nascimento é o documento primário para o exercício dos
direitos mais básicos dos sujeitos em sociedade. Na certidão constam nome,
sexo, data, horário e local de nascimento, bem como o nome dos genitores, dos
avós e do oficial que declarou o nascimento no cartório do registro civil.
É através dela que são gerados todos os outros documentos pessoais do
indivíduo, e que possibilitarão o acesso a seus direitos civis, políticos, sociais e
econômicos, como saúde, educação, moradia, emprego formal, previdência
social, entre outros.
Fato é que essa condição de inexistência de registro impossibilita também
ao próprio governo conhecer e quantificar a população para o planejamento e
execução de políticas que atendam adequadamente as necessidades das
pessoas.
O Código Civil brasileiro dispõe em seu art. 9º, I, que “Serão registrados
em registro público os nascimentos, casamentos e óbitos”. Por sua vez, a Lei n.
6.015/73 (Lei de Registros Públicos) trata dos registros naturais em seu Título II,
entre seus arts. 29 e 32.
Ademais, a Convenção Sobre os Direitos das Crianças, de 1989, da qual
o Brasil é signatário, dita que toda criança deverá ser registrada imediatamente
após o seu nascimento, e confere ao Estado o dever de prestar assistência e
proteção até que seja possível restabelecer sua identidade, senão vejamos:

Artigo 7
1. A criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá
direito, desde o momento em que nasce, a um nome, a uma
nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e a ser
cuidada por eles.
2. Os Estados Partes zelarão pela aplicação desses direitos de acordo
com sua legislação nacional e com as obrigações que tenham
assumido em virtude dos instrumentos internacionais pertinentes,
sobretudo se, de outro modo, a criança se tornaria apátrida.

Artigo 8
1. Os Estados Partes se comprometem a respeitar o direito da criança
de preservar sua identidade, inclusive a nacionalidade, o nome e as
relações familiares, de acordo com a lei, sem interferências ilícitas.
2. Quando uma criança se vir privada ilegalmente de algum ou de todos
os elementos que configuram sua identidade, os Estados Partes
deverão prestar assistência e proteção adequadas com vistas a
restabelecer rapidamente sua identidade (BRASIL, 1990).

Não obstante, o Brasil possui importante dispositivo de proteção à


infância, a saber, o Estatuto da Criança e do Adolescente, diploma legal
conquistado às custas de intensa mobilização popular, e que contempla o
princípio da “proteção integral” da criança em seu art. 3º, a seguir:

Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos


fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por
outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes
facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas
as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento,
situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença,
deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem,
condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou
outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade
em que vivem. (BRASIL, 1990)

No Brasil, o registro civil de nascimento é obrigatório, porém gratuito (art.


30 da Lei n. 6.15/73). Ainda assim, o que se observa ainda hoje no país é um
número considerável de pessoas indocumentadas. Estima-se que ainda existam
130 mil crianças de até dez anos sem certidão de nascimento. É o que revelam
os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015,
realizada pelo IBGE. Esse número tenta, mas não consegue projetar aqueles
cuja existência permanece invisível ao Estado.
O art. 50 da Lei 6.015/73 determina ainda que todo nascimento no
território nacional deve ser registrado no prazo de quinze dias, que é ampliado
para até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede
do cartório (BRASIL, 1973).
Em caso de registro extemporâneo, a lei prevê em seu artigo 46 que
deverá ser realizado com a presença de duas testemunhas, e se o oficial do
registro civil verificar necessidade, poderá exigir prova suficiente. Se ainda assim
persistir a suspeita, o oficial deve encaminhar os autos para o juízo competente.
Em 2007 o Decreto n. 6.289/07 estabeleceu o Compromisso Nacional
pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à
Documentação Básica, assumido por Municípios, Estados e União, visando a
erradicação da indocumentação no Brasil. A ação envolve a colaboração e
articulação dos entes estatais com os Poderes Judiciário e Legislativo, bem
como com as serventias extrajudiciais de registro civil de pessoas naturais, as
organizações dos movimentos sociais, os organismos internacionais, a iniciativa
privada, a comunidade e as famílias, buscando potencializar os esforços da
sociedade brasileira no intuito de erradicar o sub-registro no País e ampliar o
acesso à documentação civil básica (BRASIL, 2007).
De fato, entre 2010 e 2015 o número de crianças sem certidão de
nascimento diminui de 160 mil para 130 mil pessoas (IBGE, 2015). São algumas
das causas da inexistência do registro civil, por exemplo, o nascimento da
criança na própria residência, que impossibilita a emissão da Declaração de
Nascido Vivo pelo hospital; a perda do mencionado documento após a família
deixar o nosocômio; e até o esquecimento ou negligência dos pais quanto à
necessidade do registro.

3. O REGISTRO CIVIL COMO CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA JURÍDICA

A indocumentação acarreta graves consequências de ordem jurídica e


social, uma vez que, sem documentos, não há meios de exercer direitos
inerentes à condição de cidadão. Não possuir certidão de nascimento impede o
exercício de direitos básicos, além de impossibilitar também a emissão de outros
documentos, como carteira de identidade, cadastro de pessoas físicas (CPF),
carteira de trabalho e previdência social (CTPS), cartão do Sistema Único de
Saúde, entre outros.
Nesse sentido aplica-se o conceito de “direito a ter direitos” de Arendt
(1962). A filósofa utiliza a expressão quando se refere ao direito à nacionalidade
e consequentemente, à cidadania, uma vez que dela dependem o pertencimento
do indivíduo à humanidade e o gozo de seus direitos. Para Arendt, “o direito a
ter direitos significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e
opiniões e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada ”
(ARENDT, 1962, p. 330).
No caso das pessoas indocumentadas, o registro civil se vislumbra como
o “direito a ter direitos”, eis que o indivíduo nesta condição, ainda que seja
considerado nacional de algum Estado, também permanece inexistente
juridicamente. A certidão de nascimento, nesse caso, é condicionante da
existência legal do ser humano.
Nesse sentido, o registro civil que se configura “direito”, passa a ser
também, simultaneamente, instrumento de violação de direitos, à medida que
exclui aquele que não o detém. Nas palavras de Arendt:

O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide


com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral –
sem uma profissão, sem uma cidadania, sem um opinião, sem uma
ação pela qual se identifique e se especifique – e diferente em geral,
representando nada além da sua individualidade absoluta e singular,
que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde
todo o seu significado. (ARENDT, 1962.p. 336)

A existência do indivíduo para o Estado, portanto, é resultado de um


projeto de homogeneidade política baseado em concepções temporais e
espaciais. Assim, a condição do indocumentado seria construída a partir de uma
relação de diferenciação e subordinação hierárquica. O indivíduo sem
documentos, portanto, é definido por uma condição de ausência de status legal
do indivíduo, o que implicaria na privação do espaço público e no seu
confinamento em uma vida privada inexpressiva (ARENDT, 1962, p. 334).
Relevante, portanto, a concepção de Haesbaert (2004) sobre território e
dominação, para uma adequada compreensão da matéria. Para ele, as relações
de poder são indissociáveis do espaço à medida em que produzem funções e
significados:

Desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material


e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-
territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a
ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do
terror, do medo – especialmente para aqueles que, com esta
dominação, ficam alijados da terra, ou no “territorium” são impedidos
de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para
aqueles que têm o privilégio de usufruí lo, o território inspira a
identificação (positiva) e a efetiva “apropriação”. (HAESBAERT, 2004,
p. 94)
A constituição do território a partir das relações de poder é ilustrada in
casu pelo controle estatal sobre aqueles que podem ser considerados, ou não,
existentes para a ordem jurídica, a partir da norma produzida pelo próprio
Estado.
Nesse mesmo sentido o entendimento de Antas Jr., que apresenta a ideia
de “território como regulação” com base na concepção de “território normado”
advinda de Santos (1996). Segundo Antas Jr., o espaço geográfico seria fonte
material e não formal do direito; e a norma jurídica, um elemento central na
produção dos territórios. Para ele, “a regulação social e territorial, quer nos
parecer, é efetivamente exercida pelas instâncias que detêm poder de fato e não
apenas um poder declarado” (ANTAS JR., 2005, p. 199).
Bobbio ensina que o início da história de afirmação dos direitos humanos
é chamado de jusnaturalismo moderno, no qual impera “a ideia de que o homem
enquanto tal tem direitos, por natureza, que ninguém (nem mesmo o Estado) lhe
pode subtrair, e que ele mesmo não pode alienar (mesmo que, em caso de
necessidade, ele os aliene, a transferência não é válida)”.(BOBBIO, 2004, p. 29)
Ocorre que, ao constatar a fragilidade do indivíduo diante do poder
soberano do Estado, conclui-se que, na realidade o homem não nasce igual, mas
se torna igual quando se vê inserido nas convenções sociais da coletividade.
É nesse sentido que Arendt sustenta que, infelizmente, a afirmação de
que os direitos humanos seriam inerentes à condição humana é falsa, pois
quando nos deparamos com indivíduos em condição de inexistência jurídica,
ainda que convivam em sociedade, verificamos que a eles nada é assegurado e
nada lhes resta, a não ser o fato de serem humanos. Para ela, os direitos
humanos, portanto, não seriam dádivas da natureza, mas sim construções e
conquistas pela e para a própria humanidade.

5. CONCLUSÃO
Esse trabalho permitiu analisar o registro civil como condicionante da
existência jurídica do indivíduo e a consequente privação de direitos sofrida pelas
pessoas indocumentadas.
Vimos que a certidão de nascimento é o primeiro acesso do indivíduo aos
serviços estatais. É essencial para a obtenção de emissão de outros
documentos, bem como dos mais diversos direitos e benefícios sociais.
Ademais, concluímos que quanto maior a precisão do controle dos dados sobre
a população, melhor é o desempenho do próprio Estado para o desenvolvimento
de estratégias e políticas públicas em favor de seus habitantes.
Entretanto, o estudo trabalhou com a hipótese de que, em que pese se
tratar de um direito e ser considerado instrumento de inclusão social, o registro
civil deve ser também entendido como um meio de violação de direitos, uma vez
que a norma estatal que o obriga, por consequência, priva do exercício de
direitos aqueles(as) não o detém.
A ausência de direitos e a falta do reconhecimento de indivíduos que
caracteriza o totalitarismo - inclusive em regime teoricamente democráticos- não
é uma crise, mas um projeto de uma batalha política, e que serve como base
para a perpetuação do poder em razão dos interesses dos mais variados tipos.
Assim, tem-se que a pesquisa em apreço se apresenta como um convite
para a continuidade e aprofundamento da investigação a ideia de
homogeneidade do indivíduo em sociedade e da normatividade no território
regulador, que estabelece relações de poder entre os indivíduos nele inseridos.

REFERÊNCIAS

ANTAS JR., Ricardo Mendes. Território e regulação: espaço geográfico,


fonte material e não-formal do direito. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas. Fapesp, 2005.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Rio de Janeiro: Forense, 1962.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

HAESBAERT, Rogério. Identidades e territórios: questões e olhares


contemporâneos. Rio de Janeiro: Acess, 2004.
____________. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

IBGE. Estatísticas do registro civil. Disponível em:


https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/populacao/9110-
estatisticas-do-registro-civil.html?=&t=o-que-e. Acesso em 06 de ago. 2018.

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