Você está na página 1de 10

A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA NA GRÉCIA CLÁSSICA ( primeira parte)1

Quem o mais profundo pensa,


ama o mais vivo.

Hölderlin

- Os primeiros filósofos e a filosofia

O nome “pré-socráticos” expressa um conjunto heterogêneo de pensadores.O termo


“pré” não significa que eles vieram exatamente “antes” de Sócrates no tempo. Ao contrário,
alguns lhe foram contemporâneos. Assim, o termo “pré” designa uma visão da filosofia que
toma Sócrates como referência e padrão.Outros ainda empregam a expressão “pré-
platônicos”, uma vez que tomam Platão como o início da filosofia.

É errada a visão que considera inexistir nos pré-socráticos uma reflexão sobre o ser
humano.Entretanto, a maior dificuldade para a reconstrução dessa visão que eles possuíam
do homem repousa na escassez de fontes. Poucos escritos dos pré-socráticos chegaram até
nós. Sabe-se, por exemplo, que Demócrito , o atomista, teria escrito bem mais que
Platão!Todavia, apenas fragmentos nos chegaram.

Segundo argumentam Deleuze e Guattari no livro O que é a Filosofia? ( Editora 34), é


com os pré-socráticos que surge, pela primeira vez, o termo “filósofo”. Este termo nasce mais
especificamente com Tales de Mileto. O filósofo veio ao mundo antes da filosofia. O filósofo
surgiu em um espaço “entre” o Ocidente e o Oriente, pois foi nessa área limítrofe das colônias
da Grécia que o filósofo apareceu. Há algo do Oriente em Tales,isto é, há nele um tipo de
sabedoria que não se apóia apenas em conceitos.Há nele a poesia, a alegoria, a linguagem
simbólica – acompanhadas de uma intuição profunda, quase mística.Enfim, o filósofo também
era, em seu berço, um poeta. Muitos pré-socráticos, até mesmo Parmênides, evocam as
Musas para inspirá-los. Pitágoras, apesar de matemático, criara uma doutrina esotérica acerca
da transmigração das almas, o que faz dele o primeiro filósofo a acreditar na imortalidade da
alma .

1
Texto elaborado pelo Profº.

1
A filosofia, sustentam Deleuze e Guattari, nasceu um pouco mais tarde.A filosofia
surgiu após já ter nascido o filósofo. Enquanto este apareceu às margens da Grécia, a filosofia
é fruto genuíno de Atenas, o coração do Ocidente. Para a filosofia emergir, foi preciso que o
filósofo perdesse essa aura poética e mística,foi necessário que ele deixasse de ser um
sábio:foi preciso que ele desse as costas para o Oriente místico.

A filosofia aparece somente em Atenas, no auge da Grécia Clássica.A filosofia nasceu


em um determinado meio político ávido por debates e disputas verbais. A Grécia de então era
um meio atravessado por rivalidades de toda ordem. Nesse ambiente era fundamental a
constituição de associações. Nasce então uma idéia muito especial de “amizade” que será
considerada a base da filosofia. A filosofia seria um exercício dialogado entre aqueles que
buscam a sabedoria tendo como elo uma forma muito especial, não privada, de amizade.Na
Grécia Clássica, o filósofo se torna um “amigo da sabedoria”, um “amigo do conceito”.
Enquanto amigo do conceito, o filósofo vai também defender o conceito dos seus “falsos
amigos”:os meros sofistas. Um amigo,um verdadeiro amigo,nunca faz seu amigo de meio para
obtenção de coisas materiais. Segundo pensava Platão, os sofistas faziam da sabedoria um
meio para obtenção de fama e dinheiro. Na verdade, então, eles não faziam
sabedoria,mas”falsa sabedoria”, uma “aparência de sabedoria”. Sócrates, Platão e Aristóteles
dedicaram boa parte de seus ensinamentos para refutar esses falsos amigos do conceito.

No Banquete, porém, Platão demonstra que o termo “philia” , presente em


“philosophia”, não designa apenas “amizade”. “Philia” também significa , de forma mais
profunda, “amor”. De maneira provocativa e sutil, Platão quer com isso dizer que o filósofo
não é apenas um amigo do conceito: ele também é um amante do conceito, ele é um
enamorado do saber. Enquanto “amigo do conceito”, podem aparecer rivais,como os
sofistas.Mas como amante do conceito, o filósofo não tem rivais, uma vez que ele e a
sabedoria formam uma unidade cujo elo é o amor. Aqui, Platão reata com certo misticismo
pré-socrático de fundo pitagórico , no qual tinha grande importância a intuição silenciosa do
Bem,isto é, daquilo que a mera palavra não alcança ( mais tarde , Plotino e Santo Agostinho
dedicarão belíssimas páginas a esse tema). Esse aspecto de amante da sabedoria dará ao
filósofo uma condição de “estrangeiro”, isto é, de alguém que não se deixa determinar pelas
convenções de uma determinada pólis. Sem dúvida, Sócrates é um personagem
importantíssimo nos diálogos de Platão, talvez o mais relevante.Todavia, importante também
é o personagem apenas designado como “o estrangeiro”, isto é, aquele que porta uma fala
que transcende ao estabelecido pelas leis e costumes que os homens estabelecem, de forma
convencionada , em uma determinada pólis. Se a condição de “amigo” liga o filósofo aos

2
homens, nascendo assim questões pedagógicas e políticas, a condição de “amante” o liga ao
divino que imortaliza sua alma, fazendo-a conhecer e viver a união amorosa com o Celeste.

- Principais pré-socráticos

Apesar da diversidade de doutrinas que caracteriza esse grupo de filósofos, uma


questão pode ser apresentada como sendo a característica geral dos pré-socráticos: a busca
pelo Um. Diante da multiplicidade de aspectos que a natureza apresenta aos órgãos da
sensibilidade, os pré-socráticos buscavam a unidade que tornaria essa multiplicidade pensável
e inteligível. A esta unidade eles deram um nome: arqué.Este termo grego possui uma rica
carga semântica. Os principais sentidos atribuídos a arqué são: origem, princípio, comando e
causa. Os pré-socráticos empregavam arqué no sentido de causa. Perguntar sobre a arqué era
indagar acerca da causa que gerou tudo o que existe.

Diante da multiplicidade de aspectos cambiantes que nossos sentidos testemunham, o


pensamento se erguia diante dessa multiplicidade e fazia uma exigência: o Um, a arqué, a
causa. A pré-socrática representou o primeiro momento de tematização de um problema que
acompanhará toda a filosofia , de Tales de Mileto a Deleuze: as relações entre o Um e o
Múltiplo. Se o múltiplo constitui a realidade tal como ela se apresenta aos sentidos, alcançar o
Um exige outro instrumento distinto da sensibilidade. Assim, emerge igualmente nesse
período uma visão de que o homem é constituído por dois princípios: a sensibilidade,
necessariamente ligada ao múltiplo, sendo ela própria múltipla, e o Logos, este igualmente
Um, tal como a arqué. Assim, seria o Logos o instrumento que poria o homem em contato com
a arqué, com o Um.

Os primeiros pré-socráticos estão ainda muito próximos da poesia. Há neles uma visão
do caráter divino da natureza. Em grego, natureza é “physis”, palavra esta cujo sentido se
reporta ao processo de “nascer” ou “brotar”. Mais do que se pautarem pela abstração dos
conceitos, eles ainda se apóiam em imagens, apesar de já se fazer presente a exigência de
racionalização comandada pelo Logos.

Tales de Mileto dizia que “tudo é água”. A água seria a arqué da qual tudo nasceu.
Como ele chegou a essa posição?Após a chuva, ele percebia que a natureza se renovava ou
renascia. Quando estão saudáveis, os olhos estão sempre umedecidos. Do mar vêm vários
seres vivos. A placenta, que é o primeiro berço de todo ser vivo, é um reservatório de água. As
fontes trazem vida aos desertos. Assim, onde está a água se encontra a vida. Por outro lado,

3
Tales constatou que tudo o que morre e definha vai perdendo água e secando. A terra sem
umidade se torna estéril. Enfim, Tales intuiu que a água é o princípio da vida. Então, existe a
água visível em suas mais variadas formas. Mas existe ainda a água enquanto arqué ou causa
de tudo o que existe. Esta água universal não tem um aspecto particular, e só o logos intuitivo
a pode apreender. Ela não é doce ou salgada: ela é simplesmente água, a pura água que
apenas o pensamento pode intuir e conceber.

Heráclito, por sua vez, afirma que o fogo é a arqué ou o Um do qual tudo é feito. Este
Um, no entanto, reúne nele o múltiplo, de tal modo que este Um é idêntico ao movimento, ao
devir. O fogo nunca fica imóvel, e é por isso que ele também é a imagem do tempo. E é isso
que diz o célebre fragmento de Heráclito: “Nós não podemos entrar duas vezes no mesmo
rio”. Quando saímos do rio e retornarmos para entrar nele, suas águas já passaram, assim
como nós mesmos já somos “outro”. Muda o rio e mudamos nós.Nada é, tudo devém,pensava
Heráclito. “Devir” significa: “vir de novo”. Cada “momento” do devir é uma repetição, um re-
venir. Cada momento do devir é uma repetição dele mesmo, que sempre se repete diferente,
pois nunca ele é o mesmo, assim como as águas do rio do tempo.Segundo dirá Platão,
ninguém mais que Heráclito compreendeu tão perfeitamente o mundo sensível, que sempre é
regido pela mudança. Hegel, Nietzsche, Bérgson e Deleuze foram muito influenciados por essa
intuição heraclítica do devir.

Mas por que as coisas mudam? Heráclito dirá: “não existe um porquê”( Aristóteles ,
por sua vez, responderá a Heráclito afirmando que as coisas mudam para realizar um fim: a
forma). Heráclito dizia que há no devir uma “inocência” pela qual o devir constrói e destrói, tal
como crianças que brincam de construir e destruir castelos de areia. Não raro, Heráclito era
visto observando crianças brincando e jogando. E a muitos ele dizia que aprendia mais com
elas do que com os doutos. Para muitos, um obscuro. Para outros, o primeiro dos pensadores
trágicos. Com Heráclito teria nascido o primeiro pensamento da imanência. “Imanência”
provém de “i-manare”. “Manancial” se origina de manare. Manancial é a mesma coisa que
“fluxo”. Assim, imanência é, literalmente, o que existe interior ao fluxo, ao devir, ao tempo.
Por oposição, temos o vocábulo “transcendência”. “Transcendência” é: “ir para além dos
entes” ( no núcleo da palavra transcendência existe o termo “ens”, “ente”).

Vale destacar outro pré-socrático: Empédocles. Ao invés de apontar para apenas um


elemento como arqué, Empédocles nos diz que a causa de tudo são as quatro raízes e os dois
princípios. As quatro raízes são: a água, o fogo, o ar e a terra. Os dois princípios são o Amor e o
Ódio. O Amor é a Vida, ao passo que o Ódio é a morte. Sob o poder do Amor, as quatro raízes

4
se combinam para gerar tudo o que existe, uma vez que tudo o que existe seria a união da
água, da terra, do fogo e do ar. O ódio, por sua vez, é o princípio que dissolve o ser organizado
e faz as quatro raízes voltarem a existir separadas. O ódio faz as raízes existirem sós.O ódio é
a solidão.O ódio não destrói as quatro raízes, ele apenas desfaz os seres que nascem de sua
união e composição. Além de realidades meramente físicas, Empédocles introduz Afetos
(Amor e Ódio) na gênese do mundo. Estes afetos não estariam apenas no homem, eles não
seriam tão somente subjetivos. Tais afetos seriam também cósmicos e presidiriam, ao mesmo
tempo, a vida dos homens e a vida do universo.

Outro pré-socrático importante foi Anaximandro. Com Anaximandro, o pensamento


atinge graus de abstração nunca antes alcançados. Para este pensador, a arqué não é a água, o
ar , a terra, o fogo ou a mera combinação deles. Para ele, a arqué não pode ser nada de
determinado, pois tudo o que é determinado possui um limite, uma identidade. E tudo o que
possui limites não é o todo. Assim, para ele a arqué ou causa de tudo será chamada de
Apeiron. A-peiron:o que não tem limites.Mas por quê existem as coisas com limites, as coisas
finitas? A resposta de Anaximandro introduz um elemento de julgamento moral: as coisas
finitas existem por uma culpa. Todo ser finito que se separa do infinito o faz por uma culpa.
Dessa forma, tudo o que é limitado, por isso mesmo, sofre. O sofrimento é a condição
existencial de tudo o que existe separado. Anaximandro acreditava que a sabedoria seria um
processo de reatamento com o que não tem limites, o que implicava em uma regra de vida
que se libertasse do império das coisas limitadas. Por exemplo, bens materiais, por maiores
que sejam, são coisas com limites.Todo apego ao limitado, seja o limitado das coisas ou o
limitado do “ego” ( embora Anaximandro não empregue exatamente esta palavra tão
moderna), todo apego alimenta ainda mais a culpa e o sofrimento. Por essa razão, impede a
liberdade e o pensamento.

Por fim, existiu Parmênides.Para este filósofo , a arqué não é mais nada físico,
tampouco a combinação de coisas físicas.A arqué também não é, para ele, algo que se
assemelhe a afetos humanos. A arqué, porém, também não seria o infinito, o que carece de
fins. Para Parmênides, a arqué, a causa de tudo, seria o Ser. E o que é o Ser?A resposta de
Parmênides é seca,lacônica, e já anuncia,firmemente, o princípio fundante da lógica: o Ser é o
Ser. O Ser é idêntico a ele mesmo. O Ser não devém. Quando a água devém nuvem, ela deixa
de ser água para se transformar em outra coisa. Como pode algo deixar de ser?Aceitar o devir
é aceitar um paradoxo:afirmar que o não ser é.Assim, pensava Parmênides, o Ser não se move,
ele não muda: ele simplesmente É. Os sentidos nos enganam: eles não nos mostram o Ser, eles
nos mostram apenas as aparências. Desse modo, existiriam dois caminhos: o da Verdade,

5
caminho este que apenas a alma pode trilhar, e o da opinião,que é o caminho no qual reinam
as aparências e ilusões nascidas de vivermos apenas a vida do corpo. O caminho da Verdade é
o do Ser,ao passo que o da opinião é o caminho da mera aparência, isto é, do não ser. Com
Parmênides são esboçadas as primeiras exigências de um pensamento lógico, que
posteriormente será desenvolvido por Aristóteles;em Parmênides também se dá início à
célebre distinção entre Essência e aparência, tema este que merecerá especial atenção de
Platão, e que marcará, até hoje, o vocabulário da filosofia.

- O nascimento da pólis

A arte pode ser também um espelho que reflete não apenas a personalidade daquele
que a criou. Ela também pode ir mais além, e expressar a sociedade e a época em que ela foi
produzida. Daí a função pedagógica da arte,a sua “Paidéia”2,que ensina não apenas sobre a
sua especificidade enquanto obra de arte, como também sobre o mundo do qual ela foi uma
expressão.

Como se sabe, a Grécia Clássica representou o período de surgimento da democracia e


da filosofia. O principal fruto da democracia foi a pólis. Esta palavra costuma ser traduzida por
“cidade”. Porém, existe ainda um sentido mais rico e pouco conhecido. Trata-se do termo
“organização”. Por exemplo, na palavra “própolis” encontramos esse sentido de pólis como
organização ( pró-polis= a favor da organização,uma vez que a colméia é uma organização).
Assim, a pólis é mais do que algo físico ou urbano. A pólis é uma organização que envolve
também um espaço mental3. O homem será, ao mesmo tempo, criador da pólis e criatura dela.
O homem assim compreendido será chamado de “politikos”. Em português: cidadão.

O centro da pólis era designado como “ágora”. Esta era a praça pública. “Ágora”
procede de “agon” , que significa “disputa”. A ágora era um local onde se travavam disputas. O
instrumento de tais disputas não eram lanças ou espadas, mas a palavra. A palavra dialogada
era a base do exercício do poder na democracia nascente. Havia uma condição para que se
pudesse usar tal instrumento: que o homem que a empregasse fosse livre e proprietário. Em
grego,”propriedade” procede de “oikonomia” ( “oikos” é “casa), de onde nasce economia.
Desse modo, emergem a política e a economia como espaços que deveriam ser, no entanto,

2
Para saber mais sobre o assunto: WERNER, Jaerger. Paidéia: a formação do Homem Grego. São Paulo:
Martins Fontes,2001.
3
A esse respeito: VERNANT, Jean-Pierre. “O universo espiritual da pólis”, As origens do pensamento
Grego.Rio de Janeiro: Difel, 2002.

6
mantidos separadamente: o politikos não deveria buscar o poder político para obter
favorecimentos em sua esfera privada e econômica. A palavra dita em praça pública, e da qual
nasciam as leis, deveria ser expressão de sua vontade em agir pelo bem comum.Tal palavra
não poderia ser mero instrumento de interesses econômicos particulares. A palavra também
não poderia ser veículo da passionalidade,uma vez que a palavra deveria servir à razão. Uma
razão política, nascida do esforço para domar a contingência.

Mas quando surgiu exatamente este homo politikus?Este homem difere daquele que
viveu à época mitológica. O homem do período mitológico viveu em um período no qual
imperavam reis e triunfavam guerreiros , enquanto muitos viviam a condição de escravos,
submetendo-se àqueles. Inexistia o homem livre, tal como o concebemos. Isto porque não
havia ainda, àquela época, a democracia. O centro da vida de então era o castelo onde morava
o déspota, e não a praça pública do povo.Além disso, não havia ainda uma clara delimitação , e
separação, entre o universo humano e o dos deuses.Mesmo o guerreiro justificava suas ações
pela influência de alguma divindade.

Porém, entre o desaparecimento do guerreiro e o aparecimento do cidadão há um


período de passagem e transformação. Esta transformação não envolve apenas a política, pois
ela também implica uma transformação mental do homem. Assim como a poesia ( a epopéia)
é o melhor instrumento para compreendermos a mentalidade do homem que viveu na Grécia
mitológica, há outra arte que desempenhará papel fundamental para compreendermos essa
nova mentalidade humana que emerge com a democracia. A arte em questão é o teatro.
Hoje, mal percebemos a importância que já possuiu essa arte. Todavia, essa arte está na base
de constituição do homem que passa a viver no período democrático. Este período exigirá do
homem uma nova relação com suas ações. Estas não poderão mais evocar a influência dos
deuses como co-autores.Doravante, o homem deverá assumir-se como responsável pelos seus
atos. E foi no teatro grego que esse processo de passagem foi primeiramente tematizado.
Dessa maneira, o teatro também constitui um fator de educação cívica do cidadão, pela qual
ele aprendia a evitar os fatores que impediam que ele se assumisse como responsável pelos
seus atos. Nasce, nessa época,o primeiro esboço de uma teoria da vontade humana 4 .

4
Em termos estritos, a doutrina das faculdades humanas somente pôde estabelecer-se quando a
filosofia se debruçou sobre o Sujeito, fato este que caracteriza a Filosofia Moderna. No entanto, em
termo lato , amplo, já existe desde os gregos , ainda que em esboço, uma tematização de que o homem
é dotado de determinadas atividades, que posteriormente serão conhecidas como “faculdades”. O
principal texto a esse respeito é: VERNANT, Jean-Pierre. “Esboços da vontade na tragédia grega”. In:
Mito e tragédia na Grécia antiga. Tradução Anna Lia A. de Almeida Prado, Filomena Yoshie Hirata
Garcia e Maria da Conceição M. Cavalcanti. São Paulo: Perspectiva, 1999.

7
- Os sofistas: o homem como o metron de todas as coisas

Foi nesse ambiente de extrema valorização do indivíduo, e da palavra, que surgiram os


Sofistas. A maioria deles veio de fora de Atenas.Por isso, não podiam exercer atividades
políticas nesta capital da Grécia. A origem dos Sofistas se liga a Sicília, àquela época uma
colônia grega. Nesta cidade um tirano foi deposto pelos cidadãos com a ajuda de um retórico
chamado Córax. Este ajudou os cidadãos a como falar bem em público e defender suas causas
diante dos juízes. Teria sido Córax o inventor da retórica. Ele teve um discípulo: Górgias. Este
deu à retórica outros fins, fins também comerciais. E foi com Górgias que nasceu o termo
“sofista”, que a partir de Platão passou a ter um sentido pejorativo.

Com os sofistas, as questões cosmológicas são substituídas pelas questões


antropológicas. O homem passa ao centro da reflexão filosófica. Protágoras , outro famoso
sofista, resume bem essa atmosfera com o célebre pensamento: “O homem é a medida
(metron) de todas as coisas: daquelas que são,na medida em que são, e daquelas que não são,
na medida em que não são”.Platão,ao refutar os sofistas, dirá que apenas a Idéia pode ser a
medida das coisas que se podem conhecer.

Filosoficamente, os sofistas inauguram o relativismo e perspectivismo enquanto visões


do homem e do universo. Para eles, a verdade nada mais seria do que uma perspectiva que
derrotou suas rivais. Eles, no entanto, eram apenas “professores”, já que não podiam exercer
atividades políticas. Seus cursos eram procurados avidamente por todos aqueles que queriam
vencer seus rivais em praça pública, e assim ver transformado em lei , e obedecido por todos,
o que nascia apenas dos seus desejos e ambições.Como conseqüência, os preços das aulas
subiram de tal modo que apenas os mais ricos podiam pagar. Assim, o poder econômico
passou a preponderar sobre o interesse público, o que acarretou em um descrédito nas leis.
Resumidamente:o caos passou a rondar a nascente democracia. E os sofistas passaram a ser
perseguidos, presos e até mesmo expulsos. É nesse ambiente conturbado, política e
eticamente, é nesse ambiente que surge Sócrates.

-Sócrates

Ao surgir, Sócrates teria sido confundido como mais um sofista. Inclusive, alguns
inimigos de Sócrates, que são os mesmos inimigos da democracia, fizeram de tudo para

8
manterem essa confusão até o fim , para assim tirarem proveito e condená-lo à morte,como
de fato o fizeram.Mas os que se acercavam com sinceridade de Sócrates, e o ouviam falar e
questionar, estes de imediato percebiam, não sem admirado espanto, que o grande dom da
palavra que Sócrates possuía servia a outros fins, embora o próprio Sócrates dissesse que
“apenas sabia que nada sabia”.

Entre aqueles que dele se aproximaram, havia um jovem que até então admirava os
sofistas e pensava em seguir a carreira de autor de teatro. Esse jovem ainda se chamava
Aristocles, mas passará à história com outro nome:Platão. Sob o impacto do contato com
Sócrates, o jovem Platão rasga seus poemas e decide se dedicar exclusivamente à filosofia
(embora, até onde se sabe, nunca o velho Sócrates teria exigido que o jovem discípulo
rasgasse poemas...).

Ao conhecer Sócrates, o jovem Platão descobre seu caminho. Entre as muitas lições
que ouviu de Sócrates, e que depois reproduzirá ( nem sempre fielmente...) em seus célebres
Diálogos, uma delas merece destaque, pois essa lição também a aprenderá Aristóteles, e esta
lição muito o influenciou na invenção da Lógica Dialética. A referida lição é a seguinte: “Para
lutarmos contra a palavra mentirosa só temos uma arma: a palavra verdadeira”. A mera força
bruta pode fazer calar a palavra mentirosa, mas não extirpa sua raiz da alma. Apenas a palavra
que traz a verdade pode derrotar a palavra mentirosa . E a palavra verdadeira deve vencer a
mentira à luz do dia, uma vez que a palavra mentirosa teme a luz. Ela vive da ardilosidade, da
intriga e da dissimulação, uma vez que a movem interesses que vivem à sombra da
razão.Assim, aquele que defende a verdade deve saber usar a palavra, pois aqueles que
defendem a mentira só sabem usar a palavra, uma vez que carecem de ideias e virtudes. São
as ideias e as virtudes que dão força à palavra que traz a verdade.Ou seja, o que torna as
palavras verdadeiras vivamente poderosas é que elas não são apenas palavras ( flatus vocis).

Um fato marcante acerca de Sócrates é que ele dizia ouvir “uma voz interior”. Nele
existiam ouvidos para ouvir essa voz que não era humana. Tomando de empréstimo uma
expressão que já fazia parte da cultura grega, mas dando a ela outros fins, Sócrates chamava
essa voz interior como sendo a voz de um Daimon. Contextualizando esse termo com outro de
nós mais próximo, a voz do Daimon seria a “voz da consciência”, a “voz da interioridade”.
Sócrates ouvia essa voz e a fazia de autoridade: era ela que pautava a sua conduta,e não os
valores ( ou a falta deles...) dominantes. Essa interioridade que Sócrates descobre não era uma
interioridade meramente psicológica. De forma mais profunda, ela era uma interioridade que
o ligava ao Bem. É pelo interior que se alcança, alçando-se, o Bem.

9
Sócrates evocava a duplicidade de sentidos presente no termo “soma”. De “soma”
nasce “somático”. “Soma” significa “corpo”.Mas “soma” também significa, em grego,
“túmulo”. Sócrates explorava essa duplicidade do termo soma para indicar que o corpo era o
túmulo da alma: quanto mais a alma vive apenas a vida do corpo, mais ela está como que
“morta”, morta em vida, morta para a vida do pensamento e para todos os frutos que ele pode
conceber, como o fruto das virtudes; ao contrário, quanto mais a alma busca a vida que é dela
própria,mais ela se percebe eterna e ao Bem busca se unir.

Outro pensamento de Sócrates muito sábio:”Conhece-te a ti mesmo”. Para ele,


somente quem conhece bem uma coisa pode aperfeiçoá-la. Por exemplo,o bom sapateiro é
aquele que conhece bem os sapatos. Por isso, o bom sapateiro sabe não apenas consertá-los,
ele sabe igualmente aperfeiçoá-los. O fim maior de todo conhecimento é o aperfeiçoamento.
Assim, conhecer a si mesmo é aperfeiçoar a si mesmo. Sabe-se quem se conhece pelo esforço
que faz para aperfeiçoar-se. O ignorante,ao contrário,já se acha perfeito, e é por isso que não
busca verdadeiramente conhecer-se. O bom sapateiro conhece a essência dos sapatos, e é por
isso que ele é capaz de melhorar os sapatos em suas existências imperfeitas. Se todo conhecer
é um aperfeiçoamento, este aperfeiçoamento é praticado em razão de algo que já existe
perfeito, e que funciona como modelo. Este ser perfeito é o Bem, modelo de todo
aperfeiçoamento. Conhecer a alma é, também, conhecer quem a fez. É o Bem o produtor da
alma. E conhecer o Bem é fazê-lo. Sabe o que é o Bem quem o faz, pois o Bem não é matéria
teórica,mas prática.

Dessa maneira, as preocupações de Sócrates versam quase que exclusivamente sobre


o plano ético-moral. É Platão que dará um estatuto epistemológico e ontológico às palavras
que ouviu do seu mestre. Platão transformará em sistema aquilo que em Sócrates era vida e
ação.

Referências:

BORNHEIM, G.Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1998.

NOGARE, P. Humanismos e anti-humanismos.Petrópolis:Vozes, 1979.

VAZ, C. Antropologia filosófica I. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

Filme sugerido:

Sócrates, de Rossellini.

10

Você também pode gostar